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16 Capítulo 3 RECUPERAÇÃO E RECRISTALIZAÇÃO DE MATERIAIS METÁLICOS ____________________________ 3.1 Introdução Quando um material metálico no estado sólido é deformado plasticamente, ou seja, sofre uma mudança de forma permanente pela aplicação de um esforço mecânico, a maior parte da energia envolvida no processo é dissipada na forma de calor mas uma parte é armazenada no mesmo aumentando sua energia interna e, portanto, tirando-o do seu equilíbrio termodinâmico. A deformação plástica externa do material altera também a sua microestrutura e a parcela de energia envolvida no trabalho de deformação que fica armazenada está associada a deformações na rede e ao aumento da densidade de defeitos cristalinos nessa estrutura, principalmente as discordâncias e os vazios. Dependendo da temperatura na qual o material é deformado essas alterações na microestrutura podem permanecer após o término do processo e a energia associada a elas leva o material a um estado metaestável. A possibilidade disso acontecer é tanto maior quanto mais baixa for a temperatura de deformação. O material metaestável tem, então, a tendência de sofrer transformações que o levem em direção a um estado mais estável. No entanto, como já foi visto no primeiro capítulo, há necessidade de se fornecer energia de ativação para que essas transformações ocorram. Neste capítulo serão estudados os processos de recuperação e recristalização que permitem, respectivamente, a eliminação parcial ou total dos efeitos da deformação na microestrutura dos materiais metálicos. 3.2 Efeitos da deformação plástica na resistência mecânica dos materiais metálicos Neste texto não serão abordados de forma extensiva os aspectos metalúrgicos das transformações internas da rede cristalina introduzidas pela 17 deformação plástica. Mas alguns conceitos, que são imprescindíveis para uma compreensão dos efeitos de tais transformações nas propriedades dos materiais e dos tratamentos térmicos que permitem a eliminação desses efeitos, serão apresentados a seguir, de forma simplificada. Do ponto de vista microscópico pode-se considerar que a deformação externa visível de um material metálico é provocada por deslocamentos sucessivos de planos atômicos característicos da sua estrutura cristalina quando se aplica uma tensão sobre o mesmo. Esse tipo de deslocamento caracteriza um cisalhamento interno na estrutura e ocorre mais facilmente quando envolve os planos cristalinos com maior densidade atômica (planos compactos), que são denominados planos de deslizamento. Pode-se dizer, então, que a deformação plástica inicia quando a componente de cisalhamento da tensão aplicada ultrapassa o limite de resistência ao cisalhamento do material (ver figura 3.1). Considerando-se o caso ideal de um material monocristalino, ou seja, que apresenta um único grão cristalino em toda a sua extensão, e isento de defeitos internos na rede, pode-se considerar que o limite de cada plano atômico é constituído pela superfície externa do material. Cada deslocamento de uma distância interatômica entre dois planos subsequentes, necessário para a continuidade da deformação, exigirá o "rompimento" de todas as ligações atômicas entre os átomos dos dois planos, envolvendo, portanto energias muito altas (ver figura 3.2). Na prática, no entanto, as energias necessárias para deformar um material são bem menores que as calculadas considerando um cristal perfeito. Isto ocorre devido a defeitos cristalinos denominados discordâncias, que facilitam o deslizamento dos planos atômicos. A forma mais simples de discondância é a discordância em cunha caracterizada por um plano extra incompleto de átomos inserido na rede (ver capítulo 1). Aplicando-se uma tensão no cristal esse plano extra pode mover-se sobre um plano de deslizamento, deslocando parte do plano completo adjacente. A energia para tal movimento deve permitir o "rompimento" das ligações atômicas de uma quantidade de átomos correspondentes à aresta do plano extra, sendo, portanto, bem menor que a necessária para romper as ligações entre todos os átomos de dois planos compactos subsequentes. Como deslocamentos sucessivos de uma discordância até o limite externo do cristal formam um degrau semelhante ao obtido com o deslizamento entre dois planos compactos (mostrado na figura 3.2), pode-se concluir que a deformação é facilitada pela existência das discordâncias. 18 F F ττ ττ Figura 3.1 - Aspectos microscópicos da deformação. (a) (b) ττ ττ ττ ττ 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 Figura 3.2 - Deslocamento relativo de dois planos atômicos durante a deformação. A figura 3.3 mostra uma seqüência de deslocamentos de uma discordância, que leva a uma deformação equivalente a uma distância interatômica. Como a densidade de discordâncias por cm2 em um material metálico no seu estado normal varia em torno de 106 e 108, pode-se perceber a importância e a influência das discordâncias no processo de deformação plástica. Foi considerado até agora o caso de um material monocristalino mas em geral os materiais metálicos utilizados em engenharia são policristalinos, ou seja, têm sua microestrutura formada por uma quantidade grande de grãos cristalinos. Nesse caso o deslocamento das discordâncias ocorrerá dentro desses grãos cristalinos. Como a deformação plástica, na prática, é baseada no movimento das discordâncias sobre os planos de deslizamento, pode-se concluir que qualquer coisa que dificulte o movimento das discordâncias dificulta a deformação, aumentando, consequentemente, a resistência mecânica do material. Nos contornos de grão há uma interrupção dos planos de deslizamento, não havendo o "casamento" entre planos atômicos pertencentes a diferentes grãos cristalinos adjacentes. Assim pode- se considerar que o contorno de grão é um obstáculo evidente ao deslocamento das discordâncias e que durante a deformação plástica haverá um acúmulo de discordâncias nos contornos de grão, aumentando a resistência do material, na medida que a continuidade dos deslocamentos é prejudicada (ver figura 3.4). 19 Figura 3.3 - Exemplo de deslocamento de discordância em cunha. Contorno de grão Discordâncias Plano de deslizamento Figura 3.4 - Acúmulo de discordâncias no contorno de grão. Além disso deve ser considerado que há um aumento na densidade de discordâncias durante a deformação, podendo chegar a algo em torno de 1012/cm2, e que devido ao cruzamento de planos de deslizamento em certas estruturas cristalinas pode ser formada uma estrutura "emaranhada" de discordâncias nos contornos de grão, agravando ainda mais o problema (ver figura 3.5). Além dos contornos de grão outros fatores podem dificultar o movimento das discordâncias, como, por exemplo, a existência de precipitados de uma segunda Discordância ττ ⇒⇒ 20 fase ou de impurezas dispersas na estrutura cristalina, contribuindo também para o aumento da resistência. Deve ser notado, ainda, que os grãos cristalinos sofrem distorções durante a deformação plástica tornando a microestrutura ainda mais irregular (ver exemplo na figura 3.6). Deformado Figura 3.5 - Estrutura emaranhada de discordâncias nos contornos de grãos. O aumento da resistência mecânica por deformação plástica é denominado encruamento. O material encruado encontra-se em um estado metaestável, já que a sua energia interna é maior que a energia que caracteriza o estado de equilíbrio termodinâmico, podendo ser usado nessas condições dentro de certos limites. De um modo geral o limite de escoamento e a dureza aumentam com o grau de encruamento e o alongamento diminui (ver figura 3.7).Figura 3.6 - Deformação dos grãos durante o processo de laminação. 21 Grau de encruamento Alongamento Dureza Resistência mecânica Figura 3.7 - Variação das propriedades mecânicas com o grau de encruamento. Na figura 3.8 é mostrado, esquematicamente, um exemplo de aumento do limite de escoamento devido ao encruamento. O material recozido, ou seja, no seu estado normal, apresenta um limite de escoamento inicial σ1 e ao ser descarregado após sofrer deformação plástica passa a apresentar um novo limite de escoamento σ 2 maior que σ1. Além da resistência mecânica, a resistência elétrica também pode ser alterada com o encruamento. O efeito do encruamento pode ser benéfico na medida em que pode ser usado para aumentar a resistência mecânica de um material metálico. Pode, no entanto, ser prejudicial em processos de fabricação que envolvam deformações sucessivas, como é o caso, por exemplo, da trefilação, em que um fio com um certo diâmetro é obtido pela passagem do material, inicialmente com um diâmetro bem maior, através de fieiras sucessivas com diâmetros decrescentes. Nesse caso o encruamento aumenta a fragilidade do material a cada nova deformação e pode haver necessidade de se realizar tratamentos térmicos intermediários para restaurar as propriedades originais do material permitindo a continuidade das deformações. Deformacao σσ11 σσ22 σσ Te ns ao εε Figura 3.8 - Influência do encruamento no limite de escoamento. 22 3.3 Recuperação de materiais encruados A recuperação do material encruado está relacionada com a eliminação parcial dos efeitos da deformação plástica na sua microestrutura. A recuperação, em geral, ocorre a temperaturas não muito altas. Durante a recuperação pode haver uma certa diminuição dos defeitos cristalinos, como discordâncias e vazios, que tiveram sua densidade aumentada durante a deformação, e alguma ordenação no arranjo "emaranhado" das discordâncias nos contornos de grão (ver figura 3.9). Mas a densidade de discordâncias, em geral, permanece acima do normal e as mesmas continuam concentradas nos contornos de grão. A estrutura permanece irregular, com os grãos cristalinos deformados. A energia interna, portanto, permanece alta e o material encontra-se ainda em um estado de equilíbrio metaestável. Do ponto de vista das propriedades pode-se dizer que a resistência elétrica é a mais afetada durante a recuperação podendo voltar ao valor normal mas as propriedades mecânicas, em geral, são pouco alteradas. No entanto para o caso específico de um monocristal pouco deformado, pode haver, excepcionalmente, a restauração da estrutura e das propriedades originais já durante a recuperação. Na prática, se o material vai ser utilizado no estado encruado, a recuperação propicia um alívio de tensões internas. Recuperado Figura 3.9 - Ordenação das discordâncias no contorno de grão após a recuperação. Fazendo uma análise simplificada, pode-se considerar, do ponto de vista microscópico, que nas regiões de alta densidade de discordâncias, sobre planos de deslizamento que, em função da deformação plástica, sofreram flexão (ver figura 3.10), durante a recuperação ocorre um alinhamento das discordâncias formando contornos de grão de pequeno ângulo e dando origem a subgrãos microscópicos 23 conforme pode ser visto esquematicamente na figura 3.10. Esse processo de ordenação é denominado poligonização e os contornos de pequeno ângulo são também denominados paredes poligonais. Os subgrãos podem ser considerados grãos microscópicos com estrutura isenta dos efeitos da deformação. Distribuição aleatória Subgrão Paredes poligonais ( ou subcontornos ) Poligonização Figura 3.10 - Formação de subgrãos durante a recuperação. 3.4 Recristalização de materiais encruados A recristalização é um processo que permite a eliminação completa dos efeitos da deformação plástica na estrutura e nas propriedades do material metálico através da nucleação e crescimento de grãos cristalinos não deformados no interior da estrutura deformada até a completa substituição desta. Durante a recristalização há a eliminação do excesso de defeitos cristalinos, a redistribuição das discordâncias acumuladas nos contornos de grão durante a deformação, a substituição da estrutura irregular por uma estrutura regular e, portanto, a diminuição da energia interna. A recristalização é, então, um processo que envolve a nucleação e crescimento de grãos cristalinos não deformados, o que, como foi visto no capítulo anterior, exige energia de ativação e, portanto, ocorre a temperaturas mais altas que a recuperação. Pode-se considerar que a energia de ativação necessária para a recristalização (∆GR*) é dada pela equação 2.12, ou seja: ∆ ∆ G GR sl v * ( cos cos ) ( )= − ⋅ + ⋅ ⋅ ⋅ ⋅ 2 3 4 3 3 3 2θ θ pi γ 24 onde γsl é a energia de superfície associada ao contorno do grão recristalizado e ∆ Gv é a diferença de energia de volume entre o material recristalizado e o material deformado. Como o termo ∆Gv é tanto maior quanto maior for o grau de deformação conclui-se que quanto maior o grau de deformação menor a energia de ativação e, portanto, mais fácil a recristalização. Assim existe um grau de deformação mínimo, que depende do material, abaixo do qual a recristalização pode tornar-se inviável por exigir temperaturas muito altas ou tempos excessivamente longos. Já com um grau de deformação alto pode-se realizar a recristalização a uma temperatura que possibilite uma alta velocidade de nucleação e uma baixa velocidade de crescimento, dando origem a uma estrutura de grãos refinados, o que é mais conveniente do ponto de vista das propriedades mecânicas. A nucleação dos grãos recristalizados ocorre quando embriões, originados dos subgrãos, limitados por contornos de pequeno ângulo, crescem, através do movimento das discordâncias que constituem as paredes poligonais, formando contornos com maiores ângulos, atingindo um raio maior que o raio crítico. Os núcleos assim formados estão, então, em condição de crescer substituindo gradativamente a estrutura deformada. Uma observação que deve ser feita com relação aos embriões que se formam com raio menor que o raio crítico é que os mesmos não podem desaparecer, como no caso da solidificação, já que é impossível recriar a estrutura deformada que foi substituída pelo embrião. Assim esse embrião permanece inalterado até que flutuações nas condições termodinâmicas locais permitam o seu crescimento ou o seu englobamento, através de deslocamentos de paredes poligonais, por grãos adjacentes em crescimento. O processo de nucleação é um processo lento e pode-se definir como tempo de incubação o tempo necessário para que a nucleação torne-se efetiva permitindo o crescimento dos grãos recristalizados. Após o tempo de incubação o processo de recristalização é acelerado até próximo do final do mesmo, quando a interferência entre os grãos recristalizados provoca uma desaceleração. A figura 3.11 mostra, através da variação da fração recristalizada com o tempo, as diferentes etapas do processo. O processo de recristalização é ativado termicamente e, portanto, o tempo necessário para o mesmo depende não só das características do material e do grau de deformação, mas também da temperatura na qual é realizado, como pode ser observado na figura 3.12. Define-se então como temperatura de recristalização para um determinado material, aquela na qual o processo completa-se em uma hora. 25 VR Alta VR Baixa Tempo de recristalização ( log t ) ( Tempo de incubação ) 100 0 VR Baixa Figura 3.11 - Relação entre o percentual de recristalizaçãoe o tempo de tratamento. T ( °°C) Tempo de recristalizacao ( log t ) 100 0 T1 T2 T3 T4 50 T1 > T2 > T3 > T4 Figura 3.12 - Influência da temperatura no tempo de recristalização. Na tabela 3.1 são apresentados valores aproximados de temperaturas de recristalização para alguns materiais metálicos considerando um determinado grau de deformação. Como pode ser observado na tabela, comparando valores relativos a metais com alta pureza com os relativos metais com pureza comercial (maior teor de impurezas) e ligas metálicas, as impurezas e os elementos de liga aumentam a temperatura de recristalização. A principal razão para isso é que os precipitados, de impurezas ou elementos de liga, dispersos na estrutura dificultam o deslocamento das discordâncias que formam as paredes poligonais retardando a nucleação. Em função da temperatura de recristalização pode-se definir como deformação a frio aquela que é realizada a uma temperatura inferior à temperatura de recristalização e como deformação a quente aquela realizada a uma temperatura superior à temperatura de recristalização. 26 No caso do material ser deformado a frio ele manterá na estrutura os efeitos da deformação apresentando um certo grau de encruamento. Por outro lado, se for deformado a quente a recristalização iniciar-se-á já durante a deformação e o material não apresentará encruamento após o processo. Esse tipo de recristalização é denominado recristalização dinâmica. Tabela 3.1 - Valores aproximados de temperaturas de recristalização para alguns materiais metálicos. MATERIAL PUREZA TEMPERATURA DE RECRISTALIZAÇÃO (°°C) Chumbo comercial -4 Estanho comercial -4 Zinco comercial 10 Alumínio alta pureza 80 Alumínio comercial 280 Cobre alta pureza 120 Cobre comercial 200 Cobre-2% Berílio comercial 250 Ferro comercial 450 Aço (baixo teor de carbono) comercial 550 Os materiais que têm sua resistência mecânica aumentada por encruamento apresentam uma estrutura metaestável e podem ser utilizados nessa condição, desde que a temperatura de serviço não seja alta o suficiente para desencadear o processo de nucleação de grãos recristalizados. Se o material após completado o processo de recristalização for mantido à temperatura de recristalização há uma tendência de crescimento dos grãos recristalizados, através do aumento dos maiores e desaparecimento dos menores. Esse crescimento ocorre para diminuir a energia de superfície associada aos contornos de grão, já que muitos grãos pequenos ocupando um determinado volume vão apresentar uma área superficial maior que poucos grãos maiores ocupando o mesmo volume. Assim o processo deve ser interrompido, resfriando-se o material, tão logo a estrutura deformada tenha sido totalmente substituída por grãos recristalizados, já que os grãos grandes são incovenientes do ponto de vista de propriedades mecânicas.
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