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O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos(*) Elizabethe Cristina Fagundes de Souza (†) Angelo Giuseppe Roncali da Costa Oliveira (‡) Introdução Ao falarmos em doença, identificamos logo de imediato o seu oposto - a saúde - desejo incontestável de todas as pessoas vivas. A doença aparece como o lado sombrio da vida, aquele que poderá levar à morte. Sem querermos adentrar no significado do “viver” e do “morrer”, trataremos neste texto, da saúde e da doença enquanto processo pertinente à vida das pessoas e que ao longo dos anos tem sido compreendido ou enfrentado de acordo com as diversas formas de existir das sociedades, expressas nas diferentes culturas e formas de organização. O processo saúde-doença tem tido significados conforme a época. O conceito que se tem de saúde depende do entendimento que se tem do organismo vivo e de sua relação com o meio ambiente. Como esta compreensão muda de uma cultura para outra e de um momento histórico para outro, as noções de saúde e de doença também mudam. Desta forma a conceituação do processo saúde-doença é condicionada pela capacidade intelectiva do homem em cada contexto histórico e pelas condições concretas de existência. As concepções na história... A doença acompanha a espécie humana desde os primórdios. Achados patológicos foram revelados através de pesquisas paleontológicas em antiquíssimos restos fósseis e nas múmias egípcias, identificando seqüelas traumáticas, sinais de doenças infecciosas e parasitárias. Privados de recursos da ciência e tecnologia, os povos antigos explicavam a doença dentro de uma visão mágica do mundo. Os demônios e espíritos malignos, talvez mobilizados por um inimigo ou por castigo, vitimavam o doente, podendo levá-lo até à morte. A cura do doente caberia ao feiticeiro ou xamã, tendo o poder de convocar espíritos capazes de erradicar o mal. Esta concepção, mais presente nos assírios, caldeus, e hebreus, detentores de uma compreensão religiosa do mundo, levava-os a darem, às observações empíricas relacionadas ao surgimento de doenças e à função curativa de plantas e recursos naturais, esse mesmo caráter religioso. Para os hindus e chineses, a doença era causada pelo desequilíbrio entre os elementos do organismo humano, ocasionado pelas influências do ambiente físico - astros, clima, insetos etc. Para a medicina chinesa, as causas externas provocavam o desequilíbrio entre os princípios yin e yang, o que levaria a um desequilíbrio dos elementos, com o conseqüente aparecimento da doença. O restabelecimento da saúde se daria através do reequilíbrio da energia interna a partir de terapêuticas como a acupuntura e o do-in. Este conceito perde o caráter mágico e religioso predominante na idéia anterior e naturaliza a causação, onde o homem atua ativamente no processo de doença e cura. * Capítulo do livro "Odontologia Social: textos selecionados", publicado pelo Curso de Mestrado em Odontologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal: Editora da UFRN, 1998. † Professora de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia do Rio Grande do Norte, Mestre em Odontologia Social pela UFRN, Doutora em Epidemiologia pela UNICAMP ‡ Professor de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia do Rio Grande do Norte, Mestre em Odontologia Social pela UFRN, Doutor em Odontologia Social pela UNESP - Araçatuba. O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos – Souza e Oliveira 2 Na Grécia, as concepções trilharam o caminho dos hindus e chineses através de explicações que davam à saúde o significado de harmonia entre os quatro elementos que compõem o corpo humano - água, terra , ar e fogo. A saúde seria o estado de isonomia entre os mesmos e a doença seria a dismonia. Hipócrates enriqueceu estas concepções de saúde e doença através da prática clínica e de cuidadosas observações da natureza, ressaltando a importância do ambiente físico na causalidade das doenças. Hipócrates de Cós (Cós, pequena ilha grega onde nascera), “pai da medicina”, desenvolveu de forma extraordinária a observação empírica. Diversos casos clínicos deixou registrados, revelando uma visão epidemiológica do problema saúde-doença. Tais observações não se limitavam ao paciente em si, mas ao seu ambiente. No seu clássico “Dos ares, das águas e dos lugares”, discute fatores ambientais ligados à doença, defendendo um conceito ecológico e multicausal de saúde-doença que envolve as reações do homem às agressões provenientes do seu ambiente natural. Cada época histórica em que situamos determinada forma de conceber o processo saúde-doença teve seus espectros em termos de doença. A lepra, nos tempo bíblicos, juntamente com a peste e o cólera. Na China e na Índia antigas, a varíola. Na antigüidade greco-romana, a malária - tal como descreveu Hipócrates - tornou-se uma endemia, trazendo graves conseqüências sócio-econômicas. O local de ocorrência, coincidente com a agricultura, era as regiões úmidas. A malária, acometendo os trabalhadores rurais, levava-os a abandonarem o campo e a se dirigirem para a cidade. Esta, por sua vez, perde o suporte agrícola e ganha camponeses doentes, entrando em crise. Os romanos, que já tinham conhecimento da influência do ambiente sobre a saúde, construíram grandes obras de drenagem e esgotos. Pretendiam evitar os miasmas, os maus ares que proviam dos pântanos, que acreditavam trazer a malária (daí a origem do nome da doença). No entanto, ou porque as obras não deram o efeito desejado ou porque as guerras contribuíram para a disseminação da doença, a malária se tornou epidêmica e lhe foi atribuído um papel importante na queda do Império Romano. A Idade média, no momento em que se dá a ascensão do regime feudal, pode ser considerada como a Era das Trevas e, do ponto de vista da saúde, a denominação é apropriada. Uma época de pestilências. O Ocidente medieval estava despreparado para enfrentar o problema da doença. Os princípios hipocráticos são mantidos enquanto concepção teórica, mas a prática clínica é abandonada. Por outro lado, a medicina árabe e a medicina judaica, que acrescentaram ao acervo grego conhecimentos de farmacologia e cirurgia, principalmente, estavam fora do alcance da cristandade européia. Sob a influência do Cristianismo, têm-se a volta da prática religiosa. A doença era vista como purificação. Uma forma de atingir a graça divina, que incluía, desde que merecida, a cura. As epidemias eram o castigo divino para os pecados do mundo ou resultavam da ação de inimigos. Numerosos judeus foram jogados na fogueira sob a acusação de terem provocado a Peste Negra; das doenças endêmicas, a mais temida era a lepra, cujos doentes eram segregados só podendo entrar nas cidades em feriados especiais, usando vestes características e sendo anunciados com cornetas ou matracas. É também na Idade Média que surgem os primeiros hospitais, os hospícios ou asilos, nos quais os pacientes recebiam mais conforto espiritual que tratamento adequado. A ineficácia dos procedimentos mágicos ou religiosos era compensada com a caridade. Com o crescente número de epidemias na Europa, retornam as preocupações com a causalidade das doenças infecciosas, tornando-se mais evidente a noção de contágio entre os homens. Na Europa a lista de doenças sofre um acréscimo com o aparecimento da sífilis. O fim da Idade Média aponta o Renascimento, marcado por transformações políticas, sociais e econômicas. A medicina volta a ser praticada por leigos, predominantemente. A escola de Salermo, na Itália, um dos destaques europeus, utiliza os ensinamentos de grandes mestres como Hipócrates e Galeno. São retomados os O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos – Souza e Oliveira 3 experimentos e as observações anatômicas, admitindo inclusive a dissecação, mas a prática médicaainda era rudimentar. Aparecem também as primeiras corporações médicas (guildas). A renascença foi um período de transição, onde práticas esotéricas conviviam com o pensamento científico. A concepção hipocrática, de certa forma é relegada, predominando a idéia do fator externo que penetra no organismo. Este mais uma vez é visto como receptáculo de doenças. A explicação da disseminação das doenças epidêmicas se dá pela existência de partículas invisíveis, que produzem doenças e atingem os homens de diversas maneiras. A teoria do contágio desenvolvida por Fracastoro, poeta e médico da época que se inspirou na Sífilis para defender a idéia de contagiosidade, apontava três formas possíveis dos agentes contagiantes se disseminarem: direto, de pessoa para pessoa; através de fômites (roupas, objetos, resíduos etc.) e um outro, que é o contágio à distância. Durante todo o século XVIII, os estudos se voltam para a compreensão do corpo humano e das alterações anatômicas decorrentes da doença, centrando-se no desvelamento de seus sinais e sintomas, consolidando a prática clínica, que por sua vez propicia a abordagem do particular e do individual. No final deste século, após a Revolução Francesa, quando aumenta a urbanização dos países europeus e ascende o sistema fabril, a explicação social na causalidade das doenças aparece, relacionando-as com as condições de vida e trabalho das populações. As conseqüências danosas do trabalho na fábrica e dos cortiços industriais forçaram a atenção de médicos, escritores, economistas e funcionários públicos. Na metade do século XIX, a França era o país mais avançado em teoria política e social, permeando a medicina francesa com o espírito de mudança social. Durante este período, os métodos disponíveis para estudar os problemas sociais de saúde eram o empirismo racional, a observação crítica e os levantamentos. A análise estatística vai surgir a partir de 1820. Muitos dos estudos estavam interessados na questão da mortalidade e no efeito de fatores como classe social, ocupação, raça, prisão e falta de saneamento adequado sobre a saúde. Deste cenário emergiu a idéia de Medicina Social, e o termo data 1848. As idéias e propostas surgidas na França não se limitaram àquele país. Os estudos franceses que investigaram a influência da pobreza, ocupação, nutrição e habitação, influenciaram médicos alemães e outros interessados em assuntos similares. As condições sociais e econômicas ganham significativa importância quanto ao impacto provocado sobre a saúde e a doença. Ao mesmo tempo, muitas medidas específicas foram propostas. No entanto, tanto na Alemanha como havia sido na França, a revolução foi derrotada, e o movimento médico teve seu desenvolvimento retardado. O amplo programa de reforma da saúde transformou-se em um programa mais de medidas sanitárias e de legislação trabalhista. Com as descobertas bacteriológicas na metade do século XIX, volta com bastante solidez a idéia das partículas externas que podem provocar o aparecimento de doenças. As concepções sociais dão lugar ao agente etiológico, que deverá ser identificado e combatido, por meio de agentes químicos. Abre-se um terreno fértil para o desenvolvimento industrial, com a produção de fármacos e imunizantes. As explicações multicausais não encontram eco e a determinação social é completamente descartada. A teoria unicausal, onde cada doença tem o seu agente etiológico e a cura se dá a partir de sua descoberta e combate químico, torna-se insuficiente, no início do século XX. Este modelo não é suficiente para explicar as novas questões que surgiam com o desenvolvimento científico, abrindo espaço para as concepções multicausais, sem contudo recuperar a idéia de causação social. O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos – Souza e Oliveira 4 No que diz respeito às ciências biológicas, a ecologia se consolida enquanto disciplina científica. Neste contexto, a teoria ecológica de doenças infeciosas assume importância, demonstrando a interação do agente com o hospedeiro que ocorre em ambiente composto de elementos diversos (físicos, biológicos e sociais). As redes multicausais suplantam a unicausalidade. Dentro deste novo modelo, importantes avanços quanto às doenças infecciosas são registrados, como a identificação dos vetores de doenças parasitárias (febre amarela, doença de Chagas e equistossomose, p. ex.). Consolida-se, então, o modelo ecológico multicausal, tendo também influência em modelos matemáticos e sobre as ciências sociais, particularmente na sociologia urbana. Críticas a este modelo ecológico argumentam que o mesmo faz uma redução naturalista na interpretação das relações sociais que o homem estabelece com a natureza e os outros homens, na produção de sua vida material e cultural. Todos os elementos da relação são colocados num mesmo plano ahistórico, intemporal e a vida humana fica reduzida a sua condição animal. O homem naturalizado passa a ser classificado segundo critérios naturais como idade, sexo e raça. Os agentes etiológicos são reduzidos a sua condição biológica, negando a esta, sua historicidade. As relações entre agente, hospedeiro e meio se dão no plano ecológico, podendo-se atuar sobre estes através de medidas ecológicas, sem precisar alterar a organização social. A partir da década de 60 intensificaram-se as críticas ao modelo ecológico. Identifica- se a limitação das explicações causais de tal modelo, buscando uma nova formulação sobre a determinação do processo saúde-doença que seja capaz de expressar a unidade deste processo, bem como o seu caráter duplo - biológico e social, reconhecendo a especificidade de cada um e, ao mesmo tempo, analisando a relação que conservam entre si. A concepção da determinação social do processo saúde-doença se aproxima de formulações teóricas que possibilitem recuperar o caráter histórico deste processo, permitindo apreender o vínculo entre o processo social e o processo biológico saúde- doença. Esta relação não apaga a hierarquia distinta do biológico nesta determinação e se contrapõe à concepção de que o social, unicamente, desencadeia processos biológicos imutáveis e ahistóricos e permite explicar o caráter social do próprio processo biológico. Desta forma, compreende-se como cada formação social cria determinado padrão de desgaste e reprodução biológica. Este, por sua vez, determina o marco dentro do qual a doença é gerada. É neste contexto que se deverá recuperar a não especificidade etiológica do social, como também do padrão de desgaste e reprodução, pois não se manifestam em entidades patológicas específicas. Expressam-se num perfil patológico, que é um conjunto de padecimentos mais ou menos bem definidos. Essas formulações, que tem como protagonistas principais na América Latina, Laurell e Breilh, encontram suporte teórico em conceitos do materialismo histórico, como classe social e processo de trabalho. Para tais autores o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento histórico. Esta apropriação se dá por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção. A evolução dos conceitos do processo saúde doença, como nos referimos no início deste texto, tem acompanhado o desenvolvimento histórico da humanidade. A compreensão dada à saúde e à doença, particularmente na prática profissional e na produção de conhecimentos na área de saúde, tem influências significativas. Tem predominado na formação e práticas dos profissionais de saúde a idéia da rede multicausal na determinação do processo saúde-doença, na qual, dentro da tríade ecológica, o agente é o principal personagem enquanto desencadeador do processo, e alvo de atenção, esta traduzida em intervenção médica de caráter clínico.Esta concepção tem consolidado de O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos – Souza e Oliveira 5 forma hegemônica o modelo clínico curativo dominante, baseado numa visão mecanicista da saúde e da vida. A falência deste modelo, que se expressa no agravamento dos problemas de saúde da população e na incapacidade da ciência, das instituições e da sociedade de responderem de forma eficiente aos mesmos, tem levado à busca de elaborações que alcancem a complexidade do processo saúde-doença, quanto ao seu conceito e quanto à possibilidade de uma intervenção/interação mais saudável, no sentido da prevenção e da promoção da saúde, recuperando o sentido de vida, implícito e explícito no processo saúde-doença. Nesse campo ressaltamos a visão holística da saúde defendida por Fritjof Capra em “O ponto de mutação”, que compreende a saúde como um fenômeno multidimensional, que envolve aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos interdependentes. Esta idéia baseia-se na concepção sistêmica da vida, na qual os organismos vivos são sistemas auto- organizadores que têm um alto grau de estabilidade, a qual é dinâmica e caracterizada por flutuações contínuas, múltiplas e interdependentes. A flexibilidade é a característica fundamental para o sistema ser saudável, isto é, dispor de opções várias para a interação com seu meio ambiente. Quanto mais dinâmico é o estado do organismo, maior será a flexibilidade, independentemente de sua natureza (física, mental, social, tecnológica ou econômica), o que dá capacidade ao sistema de se adaptar às mudanças ambientais. A perda da flexibilidade equivale à perda da saúde. “A saúde portanto, é uma experiência de bem estar resultante do equilíbrio dinâmico que envolve os aspectos físico e psicológico do organismo, assim como suas interações com o meio ambiente natural e social”. Tal conceituação pretende incluir as várias dimensões - individual, social, econômica e cultural - que permeia o processo saúde-doença, aproximando-o do conceito de vida. As exigências desta compreensão transcende as atuais fronteiras disciplinares e rompe com a visão mecanicista da vida, predominante nos atuais modelos explicativos da realidade. As elaborações conceituais decorridas ao longo da história não significam verdades únicas em cada momento. A produção do conhecimento é dinâmica e a percepção da realidade pelos indivíduos está permeada por fenômenos também dinâmicos e complexos. A percepção de saúde e doença de cada indivíduo está relacionada com a sua percepção de vida, que por sua vez se dá em contextos contraditórios, marcados por diferenças culturais, sociais, econômicas e individuais. Isto permite coexistirem concepções distintas em distintos momentos, em diferentes sociedades. Bibliografia consultada BARATA, Rita de C. B. A historicidade do conceito de causa. In: Carvalheiro, José R. (org) Epidemiologia: textos de apoio. Rio de Janeiro: ABRASCO, 1985. p.13-27. BARRETO, Maurício Lima. A epidemiologia, sua história e crises: notas para pensar o futuro. In: COSTA, Dina C. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: HUCITEC- ABRASCO, 1990. p.19-38. CAPRA, Fritjof. Holismo e saúde. In: _____ O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Ed. Cultrix, 1992. Cap. 10, p.299-350. DEJOURS, Christophe. Por um novo conceito de saúde. Palestra proferida pela CGT francesa, out/82. (mimeo). 7 p. LAURELL, Asa C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, Everardo D.(Org.) Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global ed., 1983. p.133-158. ROSEN, George. A evolução da medicina social. In: NUNES, Everardo D. (org.) Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global ed., 1983. p.25-82. O processo saúde-doença: do xamã ao cosmos – Souza e Oliveira 6 SCLIAR, Moacir. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM Editores S/A, 1987. 111p.
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