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Educação e diversidade cultural ANA PAULA RIBEIRO SONIA BEATRIZ DOS SANTOS MARIA ALICE GONÇALVES JOANA BARROS 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Ana Paula RIBEIRO Sonia Beatriz dos SANTOS Maria Alice GONÇALVES Joana BARROS Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa ..................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Aula 1 Uma ciência da diferença: o que é Antropologia? ............................................................................................ 7 Aula 2 Como emerge a Antropologia enquanto disciplina? ......................................................................................16 Aula 3 Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural ...................................................................................................................................................27 Aula 4 Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos ........................................................................................................................................................................36 Aula 5 Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural ..................................................................................................49 Aula 6 O legado cultural africano – Lei no 10.639/2003 e indígena – Lei no 11.645/2008 ...........................62 Referências ..........................................................................................................................................................................73 4 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. 5 ORgAnIzAçãO DO CADERnO DE EStUDOS E PESqUISA Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Nos dias atuais, quando diferenças culturais são parte do cotidiano de um mundo cada vez mais globalizado, é cada vez mais importante pensar nos desafios que essa pluralidade coloca à Educação. Neste Caderno, apresentaremos a disciplina Educação e Pluralidade Cultural e procuraremos entender como os conceitos de cultura, educação e pluralidade cultural estão relacionados na sociedade em que vivemos. Objetivos Este Caderno de Estudos tem como objetivos: » Discutir a pluralidade cultural e seus desafios para o campo da educação. » Apresentar ferramentas teórico-metodológicas desenvolvidas pela Antropologia para a compreensão da pluralidade cultural. » Estabelecer uma relação entre os conceitos de cultura, educação e pluralidade cultural. 7 Apresentação Nesta aula apresentaremos a problemática da pluralidade cultural a partir de uma disciplina que foi forjada para lidar com ela: a antropologia. Trabalharemos alguns dos seus conceitos básicos, a partir da leitura do texto “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema”, de Horace Minner. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: » Compreender o que é antropologia. » Analisar o texto “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema”, para uma sensibilização à disciplina. 1 AULA UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA? 8 AULA 1 • UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA “Eu” e o “outro”: de quem trata a antropologia? Para início de conversa, propomos a leitura de um texto introdutório, que nos levará a pensar questões relevantes sobre a própria disciplina. O nome do texto é O Ritual do Corpo entre os Sonacirema, e foi escrito nos anos 1940, nos EUA, por um antropólogo chamado Horace Minner. Vamos ler? Saiba mais O Ritual do Corpo entre os Sonacirema Horace Minner A maioria das culturas possui uma configuração particular, ou estilo. Frequentemente, um determinado valor central ou uma forma específica de perceber o mundo deixa suas marcas em várias instituições das sociedades. Como, por exemplo, temos o “machismo” nas culturas de influência ibérica, a “face” na cultura japonesa, e a “contaminação pelas mulheres” em algumas culturas dos planaltos da Nova Guiné. Neste artigo, Horace Minner demonstra que ”atitudes quanto ao corpo” têm uma influência generalizada em muitas instituições da sociedade Sonacirema. O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de situações similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada. Esta observação já foi realmente feita por Murdock, no que diz respeito à organização do clã. Neste sentido, as crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê-las como exemplo dos extremos a que o comportamento humano pode chegar. O Professor Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há vinte anos, mas a cultura deste povo é ainda muito pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive no território que se estende desde os Cree do Canadá aos Yaqui e Tarahuma do México, e aos Carib e Aruaque das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste. A culturaSonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat natural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica, uma grande porção do fruto destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do etos deste povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícita são únicos. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em suas casas e, de fato, a opulência de uma casa é frequentemente aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abriga. A maioria das casas é de taipa, mas os santuários dos mais ricos têm paredes cobertas de pedras. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas de cerâmica nas paredes de seus santuários. Embora cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nesses mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar esses santuários e anotar a descrição desses rituais. 9 UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA • AULA 1 O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para seus clientes, decidindo apenas os ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrito só pode ser decifrado pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais – mediante outro presente – fornecem o feitiço desejado. O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim é colocado na caixa de mágicas do santuário doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original e temem usá-los de novo, embora os nativos tenham-se mostrados vagos em relação a esta questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágicas, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protegerá de alguma forma o fiel. Embaixo da caix de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve rito de ablução As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro. Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os especialistas cuja designação é mais bem traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma fascinação por ela que chegam às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral. O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós-mágicos, e em seguida na movimentação desse feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados. Além desse rito bucal privado, as pessoas procuram o homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais possuem uma impressionante parafernália, que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura ritual do cliente. O homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga quaisquer buracos que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nesses buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serradas para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do cliente, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes continuem a se deteriorar. Deve-se esperar que, quando um estudo intensivo dos Sonacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura de personalidade desses nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada, quando ele enfia uma agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser verificado, uma configuração muito importante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do corpo, que é realizada apenas pelos homens. Esta parte do rito envolve uma arranhadura e laceração da superfície do rosto por meio de um instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que lhes falta em frequência lhes sobra em barbárie. Como parte dessa cerimônia as mulheres assam suas cabeças em pequenos 10 AULA 1 • UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista desenvolve especialistas sádicos. Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam lentamente nas câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos. As cerimônias no latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-las ao templo, alegando que “é aonde você vaipara morrer”. Apesar disso, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se a uma prolongada purificação ritual, se eles possuem meios para tanto. Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência, não admitem o cliente se ele não pode dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente. O (a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Sonacirema evitam a exposição de seu corpo e das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, onde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh , costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal enquanto executa suas funções naturais dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, veem seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros. Poucos suplicantes nos templos estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados em suas camas duras. As cerimônias diárias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-no em seus leitos de dor enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objetos de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm a seus clientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros. Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como um escutador. Este tipo de feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e medos, começando com as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nessas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento. Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e a suas funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos, ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos; e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples viagens de aldeia em aldeia, permitindo aos nativos admirá-las mediante uma taxa. Já fizemos referência ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto. As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, além de programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio do uso de materiais 11 UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA • AULA 1 mágicos ou pela imitação do intercurso a certas fases, da lua. A concepção é realmente muito pouco frequente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida de seus bebês. Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto esses ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski, que escreveu: Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como a fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização. Vamos reler o texto e ver quais pistas Horace Minner nos traz sobre suas reações, assim como a antropologia e seus conceitos principais? Após a releitura do texto, você deve estar mais familiarizado com a linguagem e diversos trechos que antes ficavam confusos ou eram objetos de estranhamento passaram a fazer mais sentido para você? Logo no início do texto, Minner nos diz claramente que “Todas as culturas possuem uma configuração particular, um estilo”. Isso significa que a cultura, adjacente a um grupo específico é relativa, isto é, tem questões próprias que não a fazem nem melhor, nem pior que a nossa, apenas guardam um estilo particular que as diferencia de outras. Estamos trabalhando aqui com dois conceitos primordiais da disciplina: cultura e relativismo, que desvendaremos em breve. Na sociedade Sonacirema, Minner vai demonstrando que, em sua particularidade, este povo prioriza as atitudes quanto ao corpo e, consequentemente, este é um aspecto fundamental da sua cultura. No texto, descobrimos que a crença dos Sonacirema é de que “o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença”. Isto posto, em seguida descobrimos que aquele povo utiliza de rituais para evitar a decadência física. Em nossa segunda leitura, o estranhamento vai dando lugar à familiaridade e percebemos o quanto os Sonacirema são parecidos conosco. Vejamos: “Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa” e “O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede”. Os santuários são os banheiros e as arcas são os armários do banheiro. “Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas”: que podemos aproximar dos remédios guardados na arca, isto é, no armário do banheiro! Curandeiros são médicos cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais, isto é, pagamentos. Para refletir Quando lemos um texto sobre outro povo, outras culturas, podemos dizer que temos algum tipo de reação. Identificação, estranhamento, afastamento, indiferença... Ao ler este trabalho, o que você sente? Quais são as sensações que você tem a respeito dos Sonacirema? Quais são as ideias preconcebidas a respeito desse povo que passa a lhe acompanhar? De que forma você se identifica, estranha, se afasta dos rituais daquele povo ou fica indiferente? 12 AULA 1 • UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA Estes curandeiros prescrevem osfeitiços e poções mágicas por meio de uma linguagem antiga e secreta, que é a imagem mais próxima do que entendemos como receita médica. Herbanários são farmacêuticos e embaixo da caixa de mágica existe uma pequena fonte – a pia, em que “Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução”, que é a nossa escovação dos dentes. Há hierarquia entre os profissionais da magia. Em termos de prestígio, abaixo dos médicos, estão os “homens-da-boca-sagrada”, isto é, os dentistas. Sobre a relação dos Sonacirema com “homens-da-boca-sagrada” e seus dentes, Minner nos diz que Os Sonacirema nutrem um misto de horror e fascinação por suas bocas que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente ritualizados. Ora: Pequeno feixe de cerdas na boca – escova de dente. Creme mágico – pasta dental. Em sequência, descobrimos que “Os curandeiros possuem um templo imponente, o Latipsoh, em cada comunidade, de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas neste templo”. Latipsoh – hospital Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva. Grupo permanente de vestais – corpo de enfermagem de um hospital. Os guardiões do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Guardiões do templo – zelador = gestor ou administrador hospitalar Esses guardiões do templo têm uma função: “Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente”, que é o pagamento pelos serviços prestados no Latipsoh, isto é, no hospital! 13 UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA • AULA 1 Em outra parte, já ao final, Minner nos diz que “Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do feiticeiro ‘escutador’ é singular por sua relativa ausência de ritual”. E nesse caso, o feiticeiro “escutador” que cuida da maldição nas crianças se torna um... profissional da área de psicologia! Você já descobriu quem são os Sonacirema? Vamos ler de trás para frente? Sonacirema são os americanos! E suas experiências com relação ao corpo, são, de certa forma, as nossas também. O texto de Horace Minner nos apresentou a algumas sensações, como estranhamento e reconhecimento, empatia, aproximação e distanciamento, ou até mesmo a indiferença ou a curiosidade, sensações que iam se sucedendo conforme a leitura do texto e as semelhanças ou diferenças que encontramos com relação a nossa própria cultura, ou aquilo que consideramos como nossa cultura. Essas sensações e conceitos, como o de cultura, diversidade cultural, a tentativa de entender o outro da forma como ele se apresenta, respeitando a sua cultura (relativismo) e até mesmo os rituais e a magia, são fundamentais para entendermos a antropologia enquanto disciplina. Muitos, aliás, devem estar se perguntando o que significa exatamente Antropologia... Sugestão de estudo Se você quiser aprofundar seus estudos, sugerimos os seguintes livros: LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. Aprender Antropologia, de François Laplantine, prioriza a constituição da Antropologia enquanto disciplina e suas escolas na teoria antropológica, isto é, seus principais autores e seu desenvolvimento na Europa e Estados Unidos. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia, é um livro introdutório sobre o conceito de cultura, tratado por excelência dentro da antropologia. A partir do que é a cultura e do que não pode ser a cultura. Laraia desvenda, em uma linguagem simples, a importância desse conceito. O que é, então, a Antropologia? Segundo Cristina Costa (2002, p. 106), o homem – objeto de conhecimento quase exclusivo da filosofia – foi finalmente enfocado pela ciência a partir do século XIX. Desenvolveram-se então as ciências humanas – a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia e a Antropologia. As razões desse florescer de explicações científicas da natureza humana estão em parte nos problemas que a sociedade enfrentava, trazidos pela urbanização, pela industrialização e pela expansão europeia no mundo. Tais razões estão também na grande aceitação do pensamento científico no mundo 14 AULA 1 • UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA ocidental. Se a ciência adquiria uma inquestionável credibilidade, por que não utilizá-la para o conhecimento do homem? O resultado foi um desenvolvimento extraordinário dessas ciências, de seus métodos e pressupostos teóricos. Tudo favorecia o surgimento de teorias e métodos novos: a necessidade de um planejamento social que garantisse o sucesso da economia industrial e sua expansão pelo mundo; a crescente complexidade da vida humana gerada pela industrialização e urbanização e o alargamento dos horizontes científicos com a intensa interação de povos e nações. A antropologia e a sociologia, entre as ciências sociais, definiram de forma bastante satisfatória seus objetos de estudo, seus objetivos e métodos. Enquanto à Sociologia cabia o estudo da sociedade europeia, à Antropologia cabia o estudo dos povos colonizados na África, Ásia e América e ainda nessa direção, a Antropologia acaba por desenvolver um método mais empirista que o sociológico e bastante qualitativo, voltado para a descoberta das particularidades da sociedade que estudava. O professor Vagner Gonçalves, em sua página pessoala(http://www.fflch.usp.br/da/vagner/ antropo.html), define que A Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural. Sendo cada uma destas dimensões por si só muito ampla, o conhecimento antropológico geralmente é organizado em áreas que indicam uma escolha prévia de certos aspectos a serem privilegiados como a “Antropologia Física ou Biológica” (aspectos genéticos e biológicos do homem), a “Antropologia Social” (organização social e política, parentesco, instituições sociais), a “Antropologia Cultural” (sistemas simbólicos, religião, comportamento) e a “Arqueologia” (condições de existência dos grupos humanos desaparecidos). Além disso, podemos utilizar termos como Antropologia, Etnologia e Etnografia para distinguir diferentes níveis de análise ou tradições acadêmicas. Ainda para Gonçalves: Qualquer que seja a definição adotada é possível entender a antropologia como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo “Outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais podemos alargar nossas possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que, afinal de contas, nos torna seres singulares, humanos. François Laplantine (1998, p. 13) entende que, ainda no início, a Antropologia irá atribuir-se um objeto que lhe é próprio: o estudo das populações que não pertencemà civilização ocidental. Serão necessárias ainda algumas décadas para elaborar ferramentas de investigação que permitam a coleta direta no campo das observações e informações. Mas logo após ter firmado seus próprios métodos de pesquisa – no início do século XX –, a Antropologia percebe que o objeto empírico 15 UMA CIÊnCIA DA DIFEREnçA: O qUE É AntROPOLOgIA • AULA 1 que tinha escolhido (as sociedades “primitivas”) está desaparecendo; pois o próprio universo dos “selvagens” não é de forma alguma poupado pelo imperialismo existente à época e pelo acelerado desenvolvimento, principalmente o industrial. Ela se vê, portanto, confrontada com uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma questão permanece desde seu nascimento: o fim do “selvagem” ou, como diz Paul Mercier (1966), será que a “morte do primitivo” há de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta vários tipos de resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em três deles: 1. O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o âmbito das outras ciências humanas. Ele resolve a questão da autonomia problemática de sua disciplina reencontrando, especialmente, a Sociologia, e notadamente o que é chamado de “sociologia comparada”; 2. Ele sai em busca de outra área de investigação: o camponês, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, já que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciências do homem; 3. Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive não exclui o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua prática, não mais por meio de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas por meio de uma abordagem epistemológica constituinte. O objeto teórico da Antropologia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a nos situar a partir de agora, a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular. Sintetizando Vimos até agora: Que a Antropologia surge de uma expansão das preocupações e métodos da ciência em direção à sociedade humana nas diferentes formas em que se apresenta; Assim como ficou claro na discussão do texto “O ritual do Corpo entre os Sonacirema”, os conceitos de etnocentrismo e relativismo cultural são centrais para a disciplina e permitem transformar nossos valores em objeto de reflexão à luz de outros modos de vida. 16 Apresentação Nesta aula apresentaremos o contexto histórico em que a Antropologia emerge enquanto disciplina, suas escolas teóricas, principais autores e questões. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: » Compreender o contexto da emergência da disciplina. » Relacionar a discussão sobre Jardins Zoológicos Humanos ao surgimento da disciplina. » Apreender os principais autores e escolas. 2 AULA COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA? 17 COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA • AULA 2 O contexto de emergência da antropologia Saiba mais Texto: Os Jardins Zoológicos Humanos No final do século XIX, não havia um único cidadão francês que não tivesse descoberto uma reconstituição “autêntica” desses ambientes selvagens, povoados de homens e de animais exóticos, entre uma exposição, a missa dominical e o passeio no lago. por Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Sandrine Lemaire 1 de Agosto de 2000, em Le Monde Diplomatique Brasil Fonte: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186 Jardins zoológicos humanos Os zoológicos humanos, exposições etnológicas ou aldeias negras, continuam sendo assuntos complexos a serem abordados por países que exaltam a igualdade de todos os seres humanos. De fato, esses “zoos”, nos quais indivíduos “exóticos” misturados a animais selvagens eram mostrados atrás das grades ou em recintos delimitados a um público ávido de distração, constituem a prova mais evidente da defasagem que existe entre o discurso e a prática no tempo da construção dos impérios coloniais. “Canibais australianos, machos e fêmeas. A única colônia desta raça selvagem, estranha, desfigurada e a mais brutal nunca antes capturada das regiões selvagens em todos os tempos. A ordem mais baixa da humanidade.” [1] “Exibições etnológicas” A ideia de promover um espetáculo zoológico pondo em cena populações exóticas aparece paralelamente em vários países europeus ao longo da década de 1970 do século passado. Inicialmente, na Alemanha, onde em 1874, Karl Hagenbeck, vendedor de animais selvagens e futuro promotor dos principais zoos europeus, decide apresentar aos visitantes, ávidos de “sensações”, nativos de Samoa e da Lapônia como populações “genuinamente naturais”. O sucesso dessas primeiras exibições o conduz, a partir de 1876, a enviar um de seus colaboradores ao Sudão egípcio, a fim de trazer animais, bem como nubianos, para renovar a “atração”. Esses últimos tiveram sucesso imediato em toda a Europa, sendo apresentados sucessivamente em diversas capitais como Paris, Londres e Berlim. Tal sucesso influenciou, sem dúvida alguma, Geoffroy de Saint-Hilaire, diretor do Jardim de Aclimação, que procurava atrações capazes de reverter a situação financeira delicada em que se encontrava seu estabelecimento. Ele decide então, em 1877, organizar dois “espetáculos etnológicos”, apresentando os nubianos e esquimós aos parisienses. O sucesso foi fulminante. A frequência ao Jardim dobrou e alcançou, naquele ano, milhões de ingressos pagantes. Os parisienses acorreram para descobrir o que a grande imprensa qualificava de “grupo de animais exóticos, acompanhados por indivíduos não menos singulares”. Entre 1877 e 1912, foram montadas com sucesso no Jardim Zoológico de Aclimação, em Paris, cerca de trinta “exibições etnológicas” desse tipo. Vários outros lugares iriam rapidamente apresentar os mesmos “espetáculos” ou adaptá-los para fins políticos, a exemplo das exposições universais parisienses de 1878 e de 1889 (com a torre Eiffel, como “atração máxima”), que tinham como principais atrações uma “aldeia negra” e 400 figurantes “indígenas”; a de 1900, com seus 50 milhões de visitantes, além do famoso diorama[2] “vivo” de Madagascar; e ainda, mais tarde, as exposições coloniais de Marselha, em 1906 e 1922, e também as de Paris, em 1907 e 1931. Uma reconstituição “autêntica” Estabelecimentos passam a se especializar no “lúdico”, como as representações programadas no Campo de Marte, na boate Folies-Bergères ou na Cidade Mágica, e na reconstituição colonial, como, por exemplo, a da derrota dos daomeanos,[3] liderados por seu último rei, Behanzin, para o exército francês, no teatro da Porte Saint-Martin... 18 AULA 2 • COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA Para atender a uma demanda mais “comercial” e ao apelo do interior do país, as feiras e as exposições regionais tornaram-se, bem depressa, os principais lugares de promoção dessas exibições. É nesta dinâmica que são estruturadas, muito rapidamente, as “turnês” itinerantes – passando de exposição a feira regional –, e se popularizam as célebres “aldeias negras” (ou “aldeias senegalesas”), como por ocasião da exposição de Lyon em 1894. Não há uma só cidade, uma exposição ou um francês que não tenha descoberto, numa tarde ensolarada, uma reconstituição “autêntica” desses ambientes selvagens, povoados de homens e de animais exóticos, entre uma exposição agrícola, a missa dominical e o passeio no lago. O discurso das “raças inferiores” São milhões de franceses que vão, de 1877 ao início dos anos 1930, ao encontro do Outro. Um “outro” levado à cena na gaiola. Quer seja um povo “estranho”, vindo dos quatro cantos do mundo, ou indígenas do império, trata-se, para a maioria dos metropolitanos, do primeiro contato com a alteridade. É grande o impacto social desses espetáculos para a construção da imagem doOutro. Principalmente porque eles são combinados com uma propaganda colonial onipresente (pela imagem e pelo texto) que impregna profundamente o imaginário dos franceses. No entanto, esses zoos humanos ficaram ausentes da memória coletiva. O aparecimento, depois o impulso e o entusiasmo pelos zoos humanos, resulta da articulação de três fenômenos concomitantes: inicialmente, a construção de um imaginário social sobre o Outro (colonizado ou não); em seguida, a teorização científica da “hierarquia das raças”, na esteira dos avanços da antropologia física; e, enfim, a edificação de um império colonial, então em plena construção. Bem antes da grande expansão colonial da Terceira República dos anos 1870- 1910, que termina com o traçado definitivo das fronteiras do império ultramarino, manifesta-se, na metrópole, uma paixão pelo exotismo, ao mesmo tempo em que se constrói – na fronteira de várias ciências – um discurso sobre as “raças” ditas inferiores. Logicamente, a construção da identidade de toda civilização dá-se sempre sobre as representações do outro, permitindo – como num espelho – elaborar uma autorepresentação e se situar no mundo. A mecânica colonial da inferiorização No que diz respeito ao Ocidente, as primeiras manifestações são encontradas na Antiguidade (a categorização do “bárbaro”, do “meteco”[4] e do cidadão), retomadas pela Europa do tempo das Cruzadas e, depois, por ocasião da primeira fase de explorações e conquistas coloniais nos séculos XVI e XVII. Mas até o século XIX essas representações da alteridade não passaram de incidências, não necessariamente negativas, não parecendo ter penetrado profundamente no corpo social. Com os impérios coloniais consolidados, o poder das representações do outro se impõe num contexto político muito diferente e num movimento de expansão histórica de amplitude inédita. A questão fundamental continua sendo a colonização porque ela impõe a necessidade de dominar o outro, de domesticá-lo e, portanto, de representá-lo. As imagens ambivalentes do “selvagem”, marcadas por uma alteridade negativa, mas, também, pelas reminiscências do mito do “bom selvagem” de Rousseau, são substituídas por uma visão claramente estigmatizante das populações “exóticas”. A mecânica colonial de inferiorização do indígena pela imagem é então acionada e, nessa conquista dos imaginários europeus, os zoos humanos constituem, sem dúvida alguma, a engrenagem mais viciada da construção dos preconceitos sobre as populações colonizadas. A prova está lá, para todos verem: trata-se de selvagens, vivendo e pensando como selvagens. A ironia da história é que esses bandos de indígenas que atravessavam a Europa (e mesmo o Atlântico), ficavam muitas vezes de 10 a 15 anos fora de seus países de origem e aceitavam a encenação, desde que remunerados. Não é outro o cenário da selvageria instalada no zoo pelos organizadores dessas exibições: ao final do século: o selvagem reivindica um salário![5] A estigmatização da selvageria Paralelamente, um racismo popular instala-se na grande imprensa e na opinião pública, como pano de fundo da conquista colonial. Todos os grandes meios de comunicação, dos jornais ilustrados mais populares – como Le Petit Parisien ou Le Petit Journal – às publicações de caráter “científico” – La Nature ou La Science amusante –, passando por revistas de viagens e de exploração como Le Tour du Monde e o Journal des Voyages –, apresentam as populações exóticas – e muito particularmente as submetidas à conquista colonial – como vestígios dos primeiros estágios da humanidade. 19 COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA • AULA 2 O vocabulário de estigmatização da selvageria – bestialidade, gosto de sangue, fetichismo obscurantista, estupidez atávica – é reforçado por uma produção iconográfica de uma violência inaudita, propagando a ideia de uma sub-humanidade estagnante, humanidade dos confins coloniais, na fronteira da humanidade e da animalidade.[6] “Raças superiores” e “raças inferiores” Simultaneamente, a inferiorização dos “exóticos” é consolidada pela tripla articulação do positivismo, do evolucionismo e do racismo. Os membros da Sociedade de Antropologia – criada em 1859, mesma data que o Jardim da Aclimação de Paris – estiveram por várias vezes nessas exibições de grande público, com o objetivo de realizar suas pesquisas voltadas para a antropologia física. Esta ciência, obcecada pelas diferenças entre os povos e o estabelecimento de hierarquias, dava à noção de “raça” um caráter predominante nos esquemas de explicação da diversidade humana. Através dos zoos humanos, assiste-se ao desenvolvimento da construção de uma classificação das “raças” humanas e da elaboração de uma escala unilínea, que permite hierarquizá-las de cima a baixo na escala evolucionista. O conde de Gobineau, por exemplo, com sua obra Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), estabeleceu a desigualdade original das raças, criando a “beleza das formas, da força física e da inteligência”, e consagrando, assim, as noções de “raças superiores” e “raças inferiores”. Como muitos outros, postula a superioridade original da “raça branca”, que detém, segundo ele, o monopólio desses três elementos e serve de norma, permitindo classificar o negro num estado de inferioridade irremediável, no degrau mais baixo da escala da humanidade, e as outras “raças” como intermediárias. Os pensadores da desigualdade Essa classificação encontra-se nas programações parisienses dos zoos humanos, condicionando grandemente a ideologia subjacente desses espetáculos. Quando, por exemplo, os cossacos foram convidados ao Jardim Zoológico da Aclimação, a embaixada da Rússia insistiu para que eles não fossem confundidos com os “negros” vindos da África. Do mesmo modo, quando Buffalo Bill chegou com sua trupe encontrou seu lugar no Jardim, contando com a presença de “índios” em seu espetáculo! Finalmente, os liliputianos foram, sem nenhum problema, apresentados ao público, segundo a mesma terminologia da diferença, da monstruosidade e da bestialidade aplicada às populações exóticas! O darwinismo social, vulgarizado e reinterpretado na virada do século por Gustave Le Bon e Vacher de Lapouge, encontra sua tradução visual de distinção entre “raças primitivas” e “raças civilizadas” nessas exibições de caráter etnológico. Esses pensadores da desigualdade descobrem, por meio dos zoos humanos, um laboratório fabuloso de espécimens até então inimagináveis na metrópole. Tanto a antropologia física como a emergente antropometria – na época, uma gramática dos “caracteres somáticos” dos grupos sociais, sistematizados desde 1867 pela Sociedade de Antropologia com a criação de um laboratório de craniometria, e depois a frenologia – legitimam a continuidade dessas exibições. Incitam os cientistas a manterem ativamente as programações por três razões pragmáticas: a disponibilidade de um “material” humano excepcional (variedade, número e renovação dos espécimens?); o interesse do grande público por suas pesquisas, e portanto a possibilidade de promover seus trabalhos na grande imprensa; e finalmente, a demonstração mais comprobatória da procedência dos enunciados racistas pela presença física dos “selvagens”. Liliputianos, corcundas e macrocéfalos Ora, nesta percepção linear da evolução sociocultural e proximidade ao mundo animal, as civilizações não europeias são, evidentemente, consideradas como atrasadas, mas passíveis de serem civilizadas, portanto, colonizáveis. Fecha-se o círculo. A coerência dos espetáculos torna-se uma evidência científica, ao mesmo tempo em que uma perfeita demonstração das teorias nascentes sobre a hierarquia das raças e uma perfeita ilustração in situ da missão civilizadora ultramarina. Cientistas, membros do lobby colonial e organizadores de espetáculos, todos tiram proveito. A aplicação dos fundamentos antropológicos “darwinianos” da ciênciapolítica, celebrizada e popularizada por essas exibições, vai muito rapidamente influenciar as ciências irmãs e o projeto “eugenista” de Georges Vacher de Lapouge, que consistia na melhoria das qualidades hereditárias, desta ou daquela população, por meio de uma seleção sistemática e 20 AULA 2 • COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA voluntária. Muito significativamente, as exibições de “monstros” (anões ou liliputianos no Jardim Zoológico da Aclimação, em 1909; corcundas ou gigantes nos inúmeros parques de diversão itinerantes; macrocéfalos ou “negros” albinos em Paris, em 1902) conhecem, na virada do século, um grande sucesso, acompanhando e interpenetrando o sucesso estrondoso dos zoos humanos. É lógico que, dialeticamente, eugenia, darwinismo social e hierarquia racial têm correspondência entre si. E compartilham uma mesma angústia diante da alteridade, angústia que encontra seu exutório[7] na racionalização desigual das “raças”, numa estigmatização comum do “corrompido” e do “indígena”. “Ritos canibalescos” e “barbárie” Os “zoos humanos” encontram-se assim na confluência do racismo popular e da objetivação científica da hierarquia racial, ambos frutos da expansão colonial. Índice notável desta confluência, as “exibições etnológicas” do Jardim Zoológico da Aclimação são legitimadas, como vimos, pela Sociedade de Antropologia e pela quase totalidade da comunidade científica francesa. Ainda que entre 1890 e 1900 a Sociedade de Antropologia se torne claramente mais circunspecta quanto ao caráter “científico” desses espetáculos, ela não pode deixar de apreciar o afluxo de populações que lhe permitem aprofundar suas pesquisas sobre a diversidade das “espécies”. A ruptura se dará, finalmente, devido à crescente importância que passam a ter essas diversões apreciadas pelo público e, sobretudo, pelo fato de eles se tornarem cada vez mais populares e burlescos. É preciso dizer que esses espetáculos – assim como as exibições no Campo de Marte e nas Folies-Bergères – são estruturados a partir de uma representação cada vez mais elaborada da “selvageria”: trajes rdículos no estilo barroco, danças frenéticas, simulação de “combates sanguinários” ou “ritos canibalescos”, insistência em programas publicitários sobre a “crueldade”, a “barbárie” e os “costumes desumanos” (sacrifícios humanos, golpes com armas cortantes?). Uma barreira intransponível Tudo converge para que, entre 1890 e a primeira guerra mundial, uma imagem particularmente sanguinária do selvagem se imponha. Os “espetáculos” – construídos sem nenhuma preocupação de verdade etnológica, cumpre dizer – remetem, desenvolvem, atualizam e legitimam os estereótipos racistas mais doentios que formam o imaginário sobre o “outro” no momento da conquista colonial. Na realidade, é fundamental destacar que o “fornecimento dos indígenas” segue de perto as conquistas da república ultramarina, recebe o aval (e o apoio) da administração colonial, contribuindo para sustentar explicitamente a empreitada colonial da França. Os tuaregues, por exemplo, foram exibidos em Paris nos meses que se seguiram à conquista francesa de Tumbuctu, em 1894; também os malgaxes, que apareceram um ano após a ocupação de Madagascar; e finalmente, o sucesso das célebres amazonas do reino de Abomey, que se seguiu à comentada derrota de Behanzin para o exército francês no Daomé. A vontade de degradar, humilhar, animalizar o outro – mas, também, de glorificar a França ultramarina através de um ultranacionalismo que conheceu o auge após a derrota de 1870 – é então plenamente assumida e destacada pela grande imprensa, ao mostrar aos colonizadores “indígenas” exaltados, cruéis, cegos pelo fetichismo e sedentos de sangue. Assim, as diferentes populações exóticas tendem todas a ser mostradas em seu cotidiano pouco atraente: há um fenômeno de uniformização na caricatura do conjunto das “raças” apresentadas, que as torna praticamente indiferenciadas. Entre “eles” e “nós”, há, a partir deste momento, uma barreira intransponível. A animalização do outro Os “selvagens” trazidos ao Ocidente são sem dúvida atraentes, mas no entanto despertam um sentimento de medo. Suas ações e movimentos devem ser rigorosamente controlados. São apresentados como absolutamente diferentes e sua incursão europeia os obriga a se comportarem como tal, pois lhes é proibido manifestar qualquer sinal de assimilação, de ocidentalização, durante o tempo em que são exibidos. Deste modo, é impossível que eles se misturem aos visitantes na maior parte das manifestações. Caracterizando-se segundo os estereótipos em vigor, seus trajes são concebidos para parecerem o mais originais possíveis. Os exibidos devem, além disso, permanecer no interior de uma parte especificamente delimitada do espaço da exposição (sob pena de aplicação de multa sobre seus já parcos salários), o que marca a fronteira intangível entre seu mundo e o dos cidadãos que os visitam e os inspecionam. Uma fronteira delimita escrupulosamente a selvageria e a civilização, a natureza e a cultura. 21 COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA • AULA 2 O que mais chama a atenção nesta brutal animalização do outro é a reação do público. Ao longo dos anos de exibições quotidianas, poucos jornalistas, políticos ou cientistas comoveram-se com as condições sanitárias e de abrigo – muitas vezes catastróficas – dos “indígenas”; sem falar nos inúmeros casos de morte (como os ocorridos em 1892, com os índios Kaliña, de Galibi, em Paris[8]) pouco habituados ao clima francês. Imagem invertida da ferocidade colonial? Contudo, alguns relatos ressaltam o horror desses espetáculos. Com relação a isso, a atitude do público não é o assunto menos chocante: inúmeros visitantes jogam alimento ou quinquilharias aos grupos expostos, comentando suas fisionomias, comparando-os aos primatas (retomando com isso uma das cantilenas da antropologia física, ansiosa em revelar os “caracteres simiescos” dos indígenas), ou rindo abertamente à visão de uma africana doente e tremendo em sua cabana. Essas descrições – algumas cheias de lacunas – demonstram razoavelmente o sucesso da “racialização latente dos espíritos” contemporânea. Em tal contexto, o império podia crescer com a consciência tranquila, instituindo a desigualdade jurídica, política e econômica entre europeus e “indígenas”, com base no racismo endêmico, uma vez que na metrópole se encontrava a prova de que fora dela só havia selvagens recém-saídos das trevas. Evidentemente, os zoos humanos nada revelam sobre as “populações exóticas”. Por outro lado, constituem um instrumento extraordinário de análise das mentalidades do final do século XIX até os anos trinta. Na verdade, zoos, exposições e jardins tinham o objetivo básico de mostrar o raro, o curioso, o estranho, todas as expressões do não habitual e do diferente, por oposição a uma construção racional do mundo, elaborada segundo padrões europeus.[9] Não seriam essas dissimulações raivosas, afinal, a imagem invertida da ferocidade – esta, bem real – da própria conquista colonial? Não haveria a vontade – deliberada ou inconsciente – de legitimar a brutalidade dos conquistadores por meio da animalização dos conquistados? Nesta animalização, a transgressão dos valores e das normas do que representa para a Europa a civilização constitui um elemento-chave. A ambivalência do fascínio No domínio do sagrado, a norma sexual é evidentemente a primeira. A poligamia toca, assim, num dos fundamentos sociorreligiosos da família cristã. O fato que os zoos humanos acolham famílias inteiras – com as diferentes esposas do chefe de família – é significativo. Na melhor das hipóteses, o espectador vem contemplar uma coisa bizarra e incompreensível, e na pior, a manifestação de uma lascívia animal, trazendo, na interrogação expressa no olhar, o desejo insaciado de um fantasma que, mesmo no Ocidente, constitui o inversodo proibido. O tema da sexualidade é particularmente desenvolvido. Para os “negros”, cresce o mito de uma sexualidade bestial, plural. Nesse mito, que abrange considerações físicas (uma grande vitalidade e órgãos genitais considerados superdesenvolvidos, tanto no homem quanto na mulher), cristaliza-se a ambivalência do fascínio por seres que se encontram no limiar entre a animalidade e a humanidade. A própria vitalidade sexual remete a uma vitalidade corporal de conjunto – visível, por exemplo, em inúmeras gravuras dos grandes jornais ilustrados da época, que evocam o combate vigoroso de “tribos” quase nuas diante das tropas coloniais –, provocando um fascínio pelo corpo do “selvagem”. Esse fascínio é o produto da preocupação, vivida no final do século XIX, com a “degeneração biológica” do Ocidente.[10] No capítulo da transgressão do sagrado, a recorrência ao tema da antropologia é reveladora. No momento em que (final do século XIX) quase nada se sabe a respeito de uma prática social fortemente ritualizada e, de qualquer maneira, extremamente limitada à África subsaariana, as imagens de “selvagens antropófagos” invadem os meios de comunicação e são um dos argumentos que mais contribuem para vender os zoos humanos (até a Exposição Colonial Internacional de 1931 e a presença periférica dos kanak).[11] O canibalismo rompe, na verdade, um tabu importante; a aproximação com o mundo animal torna-se evidente. Com relação a isso, as encenações realizadas nas exposições ou nas salas de espetáculos revelam a força do tema. A era da “missão civilizadora” A partir da exposição universal de 1889 e até o final do período entre as duas guerras, vão se multiplicar as exposições, em particular as coloniais. Em sua quase totalidade, são propostos à curiosidade dos visitantes: uma aldeia “negra”, “indochinesa”, “árabe” ou “kanak”. Simultaneamente, essas aldeias “negras” ou senegalesas – sinal de uma evolução 22 AULA 2 • COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA semântica muito interessante no período que se seguiu à grande guerra – tornam-se atrações autônomas, itinerantes e perfeitamente instrumentalizadas no interior do país, mas, também, por toda a Europa e nos Estados Unidos. As apresentações se sucedem, ano após ano, com quatro ou cinco trupes distintas que percorrem as grandes exposições regionais como Amiens, Angers, Nantes, Reims, Le Mans, Nice, Clermont-Ferrand, Lyon, Lille, Nogent, Orléans e as grandes cidades (e jardins zoológicos) europeias como Hamburgo, Antuérpia, Barcelona, Londres, Berlim ou Milão, onde chegam a afluir de 200.000 a 300.000 visitantes por exibição. As encenações passam, então, a ser muito mais “etnográficas” e as “aldeias” parecem enfeites fabricados em papelão, dignos das produções hollywoodianas da época sobre a África misteriosa[12]. São admirados os produtos típicos e o “artesanato” comercializado (provavelmente uma das primeiríssimas exposições de “arte negra” destinada ao grande público); formas originais de organização social são progressivamente reconhecidas e geralmente mostradas como traços de um passado que a colonização deve necessariamente abolir. As reconstituições fantasiosas de “danças indígenas” e os episódios históricos famosos são espaçados e acabam sumindo. Outra conjuntura se revela: o “selvagem” volta a ser doce, cooperativo, à semelhança, para dizer a verdade, de um império que quer, às vésperas da primeira guerra mundial, passar a imagem de definitivamente pacificado. Nessa época, os limites territoriais do império são, de fato, traçados. À conquista sucede-se a “missão civilizadora”, discurso que será ardentemente defendido pelas exposições coloniais. O administrador sucede ao militar. No momento em que o tema propriamente racial tende a desaparecer, sob a influência “benéfica” da França das Luzes, da República colonizadora, os “indígenas” voltam a ocupar a base da escala das civilizações. As aldeias negras substituem os zoos humanos. Certamente, o indígena continua sendo um ser inferior, porém “domesticado”, em quem se descobre o potencial de evolução que justifica o gesto imperial. Esta nova percepção do outro indígena encontrará sua maior intensidade por ocasião da Exposição Colonial Internacional de Vincennes, em 1931, que, com uma área de centenas de hectares, constitui a mutação mais bem conduzida do zoo humano sob o manto da missão civilizadora, de boa consciência colonial e de apostolado republicano. Os zoos humanos constituem, portanto, um fenômeno cultural fundamental – até aqui totalmente oculto – por sua amplitude e também por permitirem compreender como se estrutura a relação com o outro pela França colonial e também pela Europa. De fato, não estaria a maior parte dos arquétipos encenados pelos Zoos humanos projetando a raiz de um inconsciente coletivo – que assumirá, ao longo do século, múltiplas faces –, e que se torna indispensável desconstruir,[13] com base numa pesquisa[14] recente que revela que mais de dois terços dos franceses são racistas? Texto traduzido por Nena Mello Referências [1] Plakate, 1880-1914, Historiches Museum, Frankfurt. [2]N.T.: Trata-se de uma tela panorâmica, sem bordas que, projetada em sala escura, produz a ilusão de movimento, graças ao efeito do jogo de luzes. O primeiro diorama foi instalado em Paris em 1922 por Daguerre e Bouton. Cf. Petit Larousse en Couleurs. Paris: Librairie Larousse, 1972, p. 281. [3] N.T.: Os daomeanos eram, até 1975, os habitantes de Daomé, hoje República Popular do Benin. Béhanzin foi seu último rei, tendo governado entre 1889 e 1893, quando foi aprisionado e derrotado pelos franceses. [4] Palavra que designava em Atenas o estrangeiro residindo na cidade. Hoje, de sentido pejorativo, é utilizada para designar o estrangeiro vivendo em um país. (NT) [5] Nem todos os grupos “importados” dispunham de um mesmo e único status. Os “fueguinos”, por exemplo, habitantes da Terra do Fogo, situada no extremo Sul do continente sul-americano, parecem ter sido “transportados” como espécimens de zoológico propriamente ditos; enquanto, os “gaúchos”, espécie de artistas contratados, tinham plena consciência da máscara que vestiam em cena para os visitantes. [6] Ler, de Nicolas Bancel, Pascal Blanchard e Laurent Gervereau, Images et Colonies, Ed. Achac-BDIC, Paris, 1993. 23 COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA • AULA 2 [7] Ferida artificial cujo fim é provocar uma supuração permanente. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª ed. (NT). [8] Ler, de Gérard Collomb, “La photographie et son double. Les Kaliña et ’le droit de regard’ de l’Occident”, in L’Autre et Nous. Éditions Syros-Achac, 1995. [9] Ler, de Anne McClintock, Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. Ed. Routledge, Londres, 1994. [10] Ler, de Christian Pociellot e Daniel Denis (org.). A l’école de l’aventure. Ed. PUS, Voiron, 2000. [11] Ler, de Didier Dæninckx, Cannibale. Ed. Gallimard (coleção Folio) e Éditions Verdier, reedição, 1998. [12] Nome de uma trupe itinerante apresentada no Jardim Zoológico da Aclimação. [13] Ler, de Nicolas Bancel e Pascal Blanchard. De l’indigène à l’immigré, col. “Découvertes”. Ed. Gallimard, 1998. [14] Ler, de Sylvia Zappi, “Un sondage révèle une progression du racisme et de l’antisémitisme”, Le Monde, 16/3/ 2000. A unidade biológica e a diversidade cultural da espécie humana Uma das questões principais trazidas pelo texto “Os Jardins Zoológicos Humanos” é a articulação entre racismo (e as teorias racistas do século XIX) e o sentido de evolução e progresso que considerava a Europa como única detentora de cultura, como se esta fosse a única a existir, e justificando o tratamento dado a outros povos colonizados por países europeus. Estamos falando, na realidade, de culturas. De uma diversidadede culturas que não eram compreendidas, naquele momento, em sua totalidade. Vejamos. Artefatos, desenhos, poemas, manuscritos e construções são alguns dos registros que documentam a produção da humanidade ao longo dos tempos. Desde o século XIX, chamamos a produção humana de cultura. Embora ainda não nomeassem dessa forma, os relatos de viajantes europeus que partiam ao encontro desses “outros” foram essenciais para o acúmulo de um conhecimento sobre o que mais tarde se chamaria “cultura”. Antecederam o conceito de cultura o termo germânico Kultur, cunhado ao final do século XVIII e princípio do XIX, para significar os aspectos espirituais de uma comunidade. Esse termo se opunha à palavra francesa Civilization, utilizada para designar as realizações materiais de um povo. O vocábulo Culture, formulado por E. Tylor, só surgirá no século XIX. Mas o que é cultura? Atenção Hoje, afirma-se que a diversidade das culturas relaciona-se às circunstâncias geográficas, históricas e sociais, não podendo ser explicada pela constituição anatômica ou fisiológica dos negros, dos amarelos ou dos brancos. Como sabemos, em cada sociedade moderna existe um número ilimitado de culturas e um número limitado de classificações, baseadas nas diferenças aparentes existentes entre os homens. 24 AULA 2 • COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA Como vimos no texto “Os Jardins Zoológicos Humanos”, durante o século XIX, as Ciências Biológicas formulam o atualmente superado conceito de raça. Acreditava-se que a humanidade era formada por raças diferentes entre si, biológica e psicologicamente. Nessa perspectiva, eram desiguais em valor absoluto, mas também diversas nas suas aptidões particulares. Essas ideias foram adotadas pela Ciência Social da época para explicar as diferenças entre as culturas. No campo social, surgem as chamadas teorias racistas que pressupõem uma hierarquização entre os seres humanos. Cabe lembrar que essas afirmações foram contestadas pela genética moderna. A obra de Charles Darwin sobre a evolução humana revolucionou as ciências naturais e provocou um grande impacto na Europa do século XIX. Em A Origem das Espécies (1859), ele confirma cientificamente a unidade de espécie humana, daí a inoperância do termo raça. Influenciado pelas ciências naturais, Edward Tylor (1832-1917) assim define Cultura: “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem com o membro de uma sociedade”, ou seja, todo conhecimento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética. Tylor considerava cultura como um fenômeno natural. A diversidade cultural presente na espécie humana era explicada como resultado da desigualdade dos estágios existentes no processo de evolução. Sendo assim, todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução. A perspectiva do evolucionismo unilinear, adotada por Tylor, supunha que todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução. Situando cada sociedade dentro de uma escala que ia da menos à mais desenvolvida. Desse modo, as diferentes sociedades humanas eram classificadas hierarquicamente. Nessa escala evolutiva, as sociedades europeias eram consideradas civilizadas. Mas Tylor não era o único autor evolucionista a aparecer naquele período. Lewis Henry Morgan (Estados Unidos, 1818-1881) e James Frazer (Escócia, 1854-1941) foram importantes pesquisadores que fomentaram, não apenas a emergência da disciplina, como, também, o evolucionismo cultural, que pressupunha, na mesma humanidade, um único caminho possível de ser seguido. Fosse em temas como etnologia e história dos indígenas americanos e de um estudo sistemático das relações de parentesco, no caso de Morgan ou dos estudos sobre as diversas religiões, no caso de Frazer, a perspectiva de evolução das sociedades “primitivas” para as “civilizadas” era uma constante, assim como o trabalho de gabinete, aquele que buscava conhecer outros grupos por meio da literatura etnográfica disponível em cartas, diários, relatórios, livros, sem estabelecer, de forma constante, um contato com os nativos que buscasse conhecer melhor e mais profundamente as culturas estudadas. Culturas, a partir de agora, no plural. Entre o final do século XIX e o início do século XX, esses dois quadros (evolucionismo e trabalho de gabinete) passam a mudar. Primeiro com Émile Durkheim (1858-1917) e seu sobrinho Marcel Sugestão de estudo CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 25 COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA • AULA 2 Mauss (1872-1950), considerados fundadores da Escola Sociológica Francesa e primeiros teóricos da Antropologia e com Bronislaw Malinowski, que inaugura não apenas o Funcionalismo, mas, também, o trabalho de campo em Antropologia. Porém, a perspectiva evolucionista é finalmente contestada e superada pelo método comparativo iniciado por Franz Boas (1858-1949). Esse antropólogo, crítico do evolucionismo unilinear, inaugura uma nova abordagem multilinear, o método comparativo. Nele, cada grupo humano desenvolve-se por meio de um caminho próprio, que não pode ser simplificado em estágios. A partir dessa constatação, a interpretação evolucionista da cultura só tem sentido quando ocorre em termos de uma abordagem multilinear. Essa possibilidade de desenvolvimento múltiplo orienta a produção das várias definições contemporâneas de cultura. Dentre os teóricos que consideram a cultura como sistemas simbólicos, temos o antropólogo americano Clifford Geertz. Esse antropólogo afirma que cultura não é um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores chamam de programa) para governar o comportamento. Para Geertz, todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, e esse programa é o que chamamos de cultura. Concluímos, a partir de Clifford Geertz, que a cultura distancia o homem dos outros animais, tornando-o o único ser possuidor de um mapa orientador, ou seja, de um conjunto de orientações conscientes ou não, mas que o ajudam a viver em sociedade. Por exemplo, a intenção de oferecer flores como presente ou a arte de transformar um conjunto de sementes em colar são marcas da presença do homem interagindo com o mundo e se apropriando do meio ambiente. A partir dessa interação, damos outro significado, diferente do original, às flores ou sementes, e que será diferente também para cada um de nós. Nesse exemplo, a flor e o conjunto de sementes assumem um significado simbólico tanto para o grupo quanto para o sujeito da ação. Outras tradições antropológicas quadro Produzido pelo Professor Vagner gonçalves – USP 26 AULA 2 • COMO EMERgE A AntROPOLOgIA EnqUAntO DISCIPLInA Se é verdade que a primeira metade do século XX definiu muitos parâmetros do que viria a ser a Antropologia moderna, não podemos desprezar outras escolas, fundamentais para a consolidação e difusão da disciplina. Sintetizando Vimos até agora: » o contexto em que a Antropologia surge enquanto disciplina; » o que foram os jardins zoológicos humanos e como eles se relacionam com a nossa disciplina; » as principais escolas e autores da disciplina, assim como suas contribuições. 27 Apresentação Nesta aula, apresentaremos conceitos utilizados na Antropologia que ancoram alguns dos principais debates sobre pluralidade cultural no campo da Educação. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: » Compreender os diversos conceitos que fazem parte desta disciplina, tais como natureza e cultura, indivíduo e sociedade, etnocentrismo e relativismo cultural, diversidade, raçae etnia, sexo e gênero. » Compreender a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural. 3 AULA PRInCIPAIS COnCEItOS AntROPOLÓgICOS E A RELAçãO EntRE AntROPOLOgIA, EDUCAçãO E PLURALIDADE CULtURAL 28 AULA 3 • PRInCIPAIS COnCEItOS AntROPOLÓgICOS E A RELAçãO EntRE AntROPOLOgIA, EDUCAçãO E PLURALIDADE CULtURAL Introdução: conceitos básicos da teoria antropológica natureza e Cultura A relação natureza e cultura se constitui numa matriz da filosofia ocidental. O processo de reflexão acerca da diferença entre essas duas esferas e a tentativa de entender os modos como elas se relacionam remonta ao período dos gregos. De modo que podemos perceber que, ao longo da História da Filosofia, essa temática vem agregando diversas questões, discussões, versões e formulações. Assim, questionamentos têm estimulado grandes e infindáveis debates, tais como: o que diferencia o ser humano de outros animais? Existe uma natureza humana? O que é natural e o que é cultural no ser humano? A Natureza tem sido definida em oposição à cultura. Em outras palavras, tem-se dito que Cultura é tudo aquilo que não é natureza, ou que é produzido pelo ser humano. Cultura é, num sentido amplo, definida como um conjunto de regras, símbolos, tradições, práticas rituais, formas de arte, cerimônias, mas, também, a linguagem, a fofoca, histórias e rituais do cotidiano, que podem se traduzir em objetos, sentimentos, pensamentos e comportamentos de grupos de indivíduos. Portanto, a cultura pode se constituir em material e imaterial. Para o antropólogo Edward Tylor (1832-1917), o primeiro antropólogo a formular um conceito de cultura (1871), esta se constituía em um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro pertencente a uma sociedade. De Tylor até hoje, o conceito de cultura ganhou novas roupagens, preocupações adicionais e tentou dar conta das próprias reflexões do mundo em que vivemos. Diversos autores formularam definições para ele. Bellah et al. (1985), por exemplo, definiram cultura como “aqueles padrões de significado que qualquer grupo ou sociedade utiliza para interpretar e avaliar a si próprio e sua situação” (Habits of the Heart, p. 333). Pierre Bourdieu (1979) definiu cultura como “um sistema adquirido e duradouro de esquemas de percepção, pensamento e ação, produzidos por condições objetivas, mas tendendo a persistir mesmo após uma alteração dessas condições” (The Inheritors, 1979). Harris (1979) afirmava que cultura referia-se “ao repertório aprendido de pensamentos e ações, exibidos por membros de grupos sociais – repertórios [transmitidos] independentemente da hereditariedade genética de uma geração à outra” (HARRIS, Cultural Materialism, p. 47). 29 PRInCIPAIS COnCEItOS AntROPOLÓgICOS E A RELAçãO EntRE AntROPOLOgIA, EDUCAçãO E PLURALIDADE CULtURAL • AULA 3 Para Geertz (1989), a cultura é como uma “teia de significados que o homem tece ao seu redor e que o amarra (p. 15)”; e ainda, valendo-se de Max Weber, Geertz afirmava “que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (p. 15). Nesse sentido, uma das tarefas do antropólogo é a de buscar apreender os seus significados. Etnocentrismo e Relativismo Cultural O relativismo cultural se fundamenta na ideia de que “os indivíduos são condicionados a um modo de vida específico e particular, por meio do processo de endoculturação”; em outras palavras, “adquirem seus próprios sistemas de valores e sua própria integridade cultural (MARCONI, 2001, p. 52)”. A perspectiva relativista cultural diverge sobre a ideia de normas e valores absolutos, pois seus adeptos defendem que avaliações e julgamentos “devem ser sempre relativos à própria cultura onde surgem (MARCONI, 2001, p. 52)”. Ao serem socializados numa cultura, as pessoas naturalizam seus padrões, tomando-os como verdade para a sua vida e passam ainda a utilizar tais padrões ou valores como parâmetros de juízos para avaliar os modos de vida (usos, costumes, rituais, crenças) distintos dos seus. O etnocentrismo é um conceito universal, é o que ocorre quando os indivíduos supervalorizam suas próprias culturas em detrimento das demais. Em geral, todos nós possuímos esses sentimentos, ou seja, ver o mundo sob as lentes de sua cultura e, em consequência, assumindo uma postura pretensiosa de considerar seu modo de vida como o mais correto e natural. Entretanto, é importante compreendermos a existência da grande diversidade cultural no mundo, e que, por conseguinte há modos de vida considerados bons para um grupo, ao passo que podem ser manifestados no comportamento agressivo ou em atitudes de superioridade e até de hostilidade (MARCONI, 2011, p. 52). Também outras maneiras de expressar o etnocentrismo aparecem na discriminação, no proselitismo, na violência, e na agressividade verbal. Sugestão de estudo Se você quer aprofundar o estudo sobre o conceito de etnocentrismo, sugerimos: ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Saiba mais Etnocentrismo, por Everardo Rocha: Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens, um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou, para os selvagens, contas, espelhos, pentes etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio. 30 AULA 3 • PRInCIPAIS COnCEItOS AntROPOLÓgICOS E A RELAçãO EntRE AntROPOLOgIA, EDUCAçãO E PLURALIDADE CULtURAL A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio. Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio. Essa estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível, demonstra alguns
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