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1Princípios e Métodos de Alfabetização I Universidade Federal de Uberlândia Curso de Pedagogia a Distância Princípios e Métodos de Alfabetização I Marília Villela de Oliveira 2 Princípios e Métodos de Alfabetização I Princípios e Métodos de Alfabetização I 3Princípios e Métodos de Alfabetização I PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAÇÃO Fernando Haddad UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA/CAPES Celso José da Costa UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA - UFU REITOR Alfredo Júlio Fernandes Neto VICE-REITOR Darizon Alves de Andrade NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DIRETORA E REPRESENTANTE UAB/UFU Maria Teresa Menezes Freitas UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFU COORDENADOR UAB/UFU Marcelo Tavares SUPLENTE UAB/UFU José Benedito de Almeida Júnior FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED – UFU DIRETORA Mara Rúbia Alves Marques CURSO DE PEDAGOGIA A DISTÂNCIA COORDENADOR GERAL Eucidio Pimenta Arruda COORDENADORA DE AVALIAÇÃO Gizelda Simonini COORDENADOR DE PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO Guilherme Saramago de Oliveira COORDENADORA DE TUTORIA Marisa Pinheiro Mourão 4 Princípios e Métodos de Alfabetização I EQUIPE DO CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DA UFU (CEaD) ASSESSORA DA DIRETORIA Sarah Mendonça de Araújo EQUIPE MULTIDISCIPLINAR Alberto Dumont Alves Oliveira Leonor Teixeira Dias Otaviano Ferreira Guimarães COORDENADOR DE TECNOLOGIA Eucídio Pimenta Arruda COORDENADORA PEDAGÓGICA Marisa Pinheiro Mourão EQUIPE DO CURSO DE PEDAGOGIA SECRETÁRIA Patrícia Cardoso Rocha APOIO PEDAGÓGICO Carla Souza Santos Fabiano Goulart Maria Helena Cicci Romero REVISORA Carina de Nascimento ESTAGIÁRIOS Ana Rafaella Ferreira Ramos Edson Silva Barbosa Lorraine Rodrigues de Vasconcelos Márcia Kyo Sato Santusa Junqueira Silvana de Jesus Gonçalves Thiago Henrique Pereira Freitas Vinícius Ferreira de Oliveira 5Princípios e Métodos de Alfabetização I SUMÁRIO Sumário SUMÁRIO 5 FIGURAS 6 INFORMAÇÕES 7 INTRODUÇÃO 8 ANOTAÇÕES 10 MÓDULO 1 11 História da Escrita e Uma Breve Introdução aos Métodos de Alfabetização 11 1. História da escrita e da imprensa 11 2. Introdução aos métodos de alfabetização: como se ensinou e se ensina a ler e escrever 15 REFERÊNCIAS 20 MÓDULO 2 21 O Conceito de Letramento e as Contribuições da Linguística ao Processo de Alfabetização 21 1. Letramento e Alfabetização 21 2. Contribuições da Linguística ao Processo de Alfabetização. 22 REFERÊNCIAS 28 MÓDULO 3 29 Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos 29 REFERÊNCIAS 34 MÓDULO 4 35 Psicogênese da Língua Escrita: o que as crianças sabem sobre a língua escrita antes de serem ensinadas 35 REFERÊNCIAS 40 MÓDULO 5 41 Por que e como saber o que sabem os alunos 41 REFERÊNCIAS 46 6 Princípios e Métodos de Alfabetização I FIGURAS Figuras Figura 1: Escrita cuneiforme 18 Figura 2: Escrita hieroglífica 18 Figura 3: Iluminura medieval 22 Figura 4: Iluminura medieval 22 Figura 5: Fase pré-silábica 40 Figura 6: Variação interfigural 40 Figura 7: Fonetização 41 Figura 8: Período silábico-alfabético 42 7Princípios e Métodos de Alfabetização I INFORMAÇÕES Prezado(a) aluno(a), Ao longo deste guia impresso você encontrará alguns “ícones” que o ajudarão a identificar as atividades. Fique atento ao significado de cada um deles, isso facilitará a sua leitura e seus estudos. Você usará, também, o espaço ao lado de cada página para fazer suas anotações. Destacamos alguns termos no texto do Guia cujos sentidos serão importantes para sua compreensão. Para permitir sua iniciativa e pesquisa não criamos um glossário, mas se houver dificuldade interaja no Fórum de Dúvidas. 8 Princípios e Métodos de Alfabetização I Caros alunos, Meu nome é Marília Villela de Oliveira. É uma grande satisfação compartilhar meus conhecimentos sobre alfabetização com vocês. É um tema que me encanta desde o início de minha formação. Sou Pedagoga e Especialista em Alfabetização pela Universidade Federal de Uberlândia, Mestre em Educação – Supervisão e Currículo – pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, e Doutora em Educação pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba. Trabalho há muitos anos com a disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização no curso de Pedagogia da UFU e tenho desenvolvido junto ao NEIAPE – Núcleo de Educação Infantil, Alfabetização, EJA e Práticas Educativas vários trabalhos de pesquisa e extensão na comunidade escolar Uberlandense. Conteúdo básico Módulo I - História da Escrita e Uma Breve Introdução aos Métodos de Alfabetização. Módulo II - O Conceito de Letramento e as Contribuições da Linguística ao Processo de Alfabetização. Módulo III - Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. Módulo IV - Psicogênese da Língua Escrita: o que as crianças sabem sobre a língua escrita antes de serem ensinadas. Módulo V - Por que e como saber o que sabem os alunos. Objetivo Para que você se organize melhor para o estudo e a realização das atividades, apresento aqui os objetivos gerais da disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização I: • Refletir sobre o ensino da língua escrita sob diferentes ângulos: o conhecimento epistemológico, linguístico, as relações entre leitura e escrita, entre ensino e aprendizagem e a intervenção educativa • Compreender a dinâmica envolvida no ensino e aprendizagem na alfabetização. Gostaria de comentar que essa disciplina, bem como a disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização II, não têm como objetivo apresentar um método único e que automaticamente os transforme em excelentes alfabetizadores. O fracasso escolar na alfabetização, que se apresenta como um dos maiores gargalos em nosso sistema educacional, permite-nos perceber que não é (apenas) o conhecimento técnico que permitirá ao professor alfabetizador desenvolver um bom trabalho. Nosso maior objetivo, como já foi destacado anteriormente, é permitir que compreendam o fenômeno multifacetado da alfabetização e possam construir seu próprio processo de ensino, partindo de pressupostos linguísticos, epistemológicos, psicológicos e pedagógicos coerentes. INTRODUÇÃO 9Princípios e Métodos de Alfabetização I A disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização I tem duração de 60 horas distribuídas em 5 semanas e, para desenvolver toda a programação prevista, é necessário que vocês dediquem pelo menos 12 horas por semana às atividades de leitura do material impresso e dos hipertextos apresentados no Ambiente Virtual de Aprendizagem, realizem as anotações necessárias e as atividades avaliativas presenciais e a distância, participem dos espaços coletivos de debate e produção (fóruns e chats). Como vocês viram em nosso cronograma, as atividades avaliativas serão desenvolvidas no decorrer dessas 5 semanas, totalizando 50 pontos e, ao final, haverá uma avaliação presencial, com o valor dos 50 pontos restantes. Não deixem de fazer as leituras do Guia Impresso que os ajudarão a se localizarem na trajetória acadêmica e também de ler os textos base e complementares apresentados no Ambiente Virtual de Aprendizagem. Desenvolvam todas as atividades, pois sem elas será impossível acontecer o aprendizado. Se possível, façam novas pesquisas na internet, pois elas podem aprofundar seus conhecimentos, e leiam todos os textos complementares indicados. Entretanto, lembrem-se: o conhecimento é de quem o produz! Respeitem os direitos autorais, sempre registrem a fonte das citações que porventura venham a fazer, produzam o próprio texto. Como nos diz Luiz Carlos de Menezes, professor da Universidade de São Paulo (USP): “A educação é um mundo sem fronteiras em que aprendemos e ensinamos, mas a caminhada é de cada um de nós, e nãotem atalhos”. Agora, mãos à obra e vamos começar nossa caminhada!!! 10 Princípios e Métodos de Alfabetização I ANOTAÇÕES 11Princípios e Métodos de Alfabetização I É facilmente aceito que aqueles que inventaram os primeiros signos escritos queriam perpetuar rastros de suas lendas. Os primórdios da história da escrita são bem menos... românticos. (...) Notas de compra e venda não podem ser registradas oralmente. Por essa razão tão prosaica nasceu a escrita. (Jean, 2008: 11-12). MÓDULO 1 História da Escrita e Uma Breve Introdução aos Métodos de Alfabetização 1. História da escrita e da imprensa Para iniciar nossa reflexão sobre Princípios e Métodos de Alfabetização, precisamos ter noção de como se deu, na história da civilização humana, o desenvolvimento do nosso sistema de escrita e, paralelamente, como se ensinava outras pessoas a fazerem uso dele. Sei que já tiveram, na disciplina Metodologia da Língua Portuguesa 2, a possibilidade de assistir ao Vídeo “História da Escrita”. Caso julguem necessário, vejam-no novamente (disponível em http://revistaescola. abril.com.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/alfabetizacao-video-profa-construcao-escrita- parte-1-545605.shtml). Ele nos permite ter uma boa ideia de como a humanidade desenvolveu a escrita como sistema substituto, um conjunto organizado de signos ou símbolos por meio dos quais seus usuários puderam materializar e fixar claramente tudo o que pensavam, sentiam ou sabiam expressar, chegando ao nosso alfabeto e línguas escritas de hoje. Você já pensou sobre como a nossa escrita surgiu? O que teria motivado a criação de um sistema de escrita? Ela já surgiu como a conhecemos hoje, ou foi se desenvolvendo no decorrer da história? Anote aqui suas reflexões. 12 Princípios e Métodos de Alfabetização I Figura 1: Escrita cuneiforme Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Cuneiform A placa quadrada de ângulos arredondados, datada de 2360 a.C., possui o formato característico da época da renascença suméria do império de Ur III. É um documento de economia que representa uma leva de jumentos para diversas pessoas – um agricultor, um ferreiro, um curtidor. A mais antiga escrita conhecida, ou escrita cuneiforme, era produzida pelos povos sumérios, no oriente médio, entre o sexto e o primeiro milênio a.C. (provavelmente perto de 4000 a.C.), e usava pictogramas, ou seja, desenhos simplificados para representar objetos ou seres específicos. Combinando vários pictogramas pode-se expressar uma ideia, o que deu origem ao termo ideograma. Os pictogramas primitivos não eram desenhos livres de cada escriba, pois foram encontrados vários dicionários primitivos, catálogos, listas produzidos pelos escribas na tentativa de padronizá-los. Os símbolos cuneiformes se espalharam por toda a Mesopotâmia, com adaptações para uso por povos que usavam línguas diferentes da Sumeriana. Paralelamente, outros tipos de escrita se desenvolvem no antigo Egito, bem como na China, já mais distante. A escrita do antigo Egito, diferentemente da escrita cuneiforme, é feita de desenhos estilizados: cabeças humanas, pássaros, animais diversos, plantas e flores. Figura 2: Escrita hieroglífica Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Egyptian_Hieroglyph 13Princípios e Métodos de Alfabetização I Os desenhos de hieróglifos sobre papiro exigiam muita paciência e minúcia. Ora, tal escrita, com seus signos esmerados, era inadequada à vida do dia a dia e à rapidez que certos trabalhos exigiam dos escribas. Então, inventaram uma escrita “cursiva” – que corre sobre o papiro, surgida mais ou menos na mesma época que a escrita hieroglífica, e também chamada de hierática ou sacerdotal, pois, segundo Herótodo, historiador grego, ela teria sido usada em sua origem pelos sacerdotes. Tal escrita apresenta os mesmos caracteres que a escrita hieroglífica (ideogramas, fonogramas, e os determinativos, símbolos que assinalavam de qual categoria de coisas e de seres se tratava), porém frequentemente ligados entre si e distanciando-se, pouco a pouco, do desenho. Cerca de 650 a.C., enquanto hieróglifos e a escrita hierática seguiam seu curso, apareceu uma cursiva mais clara, rápida, ligada (na qual as letras são ligadas entre si) e que se lia, como a escrita hierática, da direita para a esquerda. É a escrita demótica, ou popular, que se tornaria a escrita corrente no Egito. Na famosa Pedra de Roseta, por meio da qual Champollion desvendou o segredo dos hieróglifos, figura o mesmo texto escrito em hieróglifos, em demótico e em grego. E percebe-se que é muito difícil para um não especialista reconhecer, com base em caracteres demóticos, os hieróglifos originais. (Jean, 2008: 42). Uma grande evolução na história da escrita foi a invenção do fonetismo: em vez de designar objetos ou seres, os símbolos passaram a corresponder aos sons das palavras da língua falada. Isso aconteceu quando os sumérios e os egípcios começaram a usar um pictograma representando um objeto cujo nome lhe era foneticamente semelhante. O pictograma sumério da flecha “ti” designava vida, pronunciada também “ti”. Esse é somente um exemplo dos mais simples, pois o fonetismo se desenvolveu durante um longo tempo, elaborou-se de forma muito complexa, a ponto de os escribas sumérios terem de usar símbolos classificadores que permitissem saber se o signo evocava um objeto ou um som, para assim tornar mais fáceis a leitura e a escrita. A partir daí, tornou-se possível produzir qualquer escrita, incluindo códigos jurídicos, tratados científicos ou obras literárias. Entretanto, apesar de todo o desenvolvimento, a escrita permanece com uso restrito a uma elite, à qual confere poder e força. As pessoas que sabiam escrever, os Escribas, eram aqueles que sabiam desenhar os símbolos e conheciam a pronúncia e os significados, e passavam por um longo e trabalhoso período de formação, sendo uma casta aristocrática por vezes mais poderosa que os cortesãos iletrados e que o próprio soberano. A escrita fenícia é considerada a precursora do alfabeto: as sílabas eram representadas apenas pelas consoantes, e o leitor era quem vocalizava as vogais. O alfabeto fenício tinha 22 signos e deu origem às escritas aramaica, árabe e hebraica. Muito tempo depois, provavelmente entre os séculos VIII e V a.C., surgiu a escrita grega arcaica, tendo como novidade a incorporação das vogais. As línguas semíticas, como o árabe e o hebraico, possuíam poucas vogais e podiam ser grafadas apenas com as consoantes, o que não era possível numa língua como o grego, que possui grande número de vogais. O alfabeto passou a ter 24 signos ou letras, sendo 17 consoantes e 7 vogais. Essas vogais foram tomadas por empréstimo do alfabeto aramaico. No alfabeto aramaico havia algumas consoantes que não existiam na língua grega, e essas consoantes foram tomadas por empréstimo, assumindo no alfabeto grego o papel de vogais, surgindo assim o A (alfa), E (epsílon), O (ômicron), Y (ipsilon). Já o I (iota), foi uma inovação. O alfabeto grego podia ser escrito em letras maiúsculas ou minúsculas, sendo as primeiras usadas para grafar em pedras, e as segundas, sobre papiro ou placas de cera. Os materiais usados para escrever se tornaram menos caros, e surgiu, também por esse motivo, uma rica literatura. A escrita grega foi enormemente difundida pelo cristianismo, dando origem a quatro famílias de escritas: pelo glagolítico, surge o cirílico; pelo armênio, surge o georgiano; pelo etrusco, surge o latim e, enfim, a escrita copta que transcrevia a língua dos antigos egípcios e coexistia com o árabe. A escrita latina, considerada base da nossa escrita atual, surgiu de uma transformação da escrita grega. Foi ela quem originou o alfabeto das línguas românicas (aquelas dos territórios dominados pelos romanos). 14 Princípios e Métodos de Alfabetização I Nosséculos II e III d.C, surgem a “nova escrita comum”, a “uncial” (cursiva maiúscula), a semi-uncial (menor e mais redonda) que vão ser transmitidas, até as portas do ano 1000, a todas as regiões da Europa onde vivem romanos e onde se escreve o latim. A escrita cuneiforme, os hieróglifos e os caracteres chineses têm em comum transcrever palavras e sílabas. Saber ler e escrever, nesses sistemas, consiste em conhecer um grande número de signos ou caracteres. Já a escrita alfabética permite, com as 26 letras do nosso alfabeto, por exemplo, escrever tudo, mesmo considerando-se os problemas de ortografia de nossos alunos alfabetizandos, além, é claro, dos de nós todos, que ainda hoje temos dúvidas sobre a grafia de algumas palavras. Bem diferente dos mil caracteres que um alfabetizando chinês tem que aprender, bem como algumas centenas de hieróglifos que a criança egípcia tem que memorizar ou os seiscentos signos cuneiformes do aluno da Mesopotâmia. É essa a razão de muitos considerarem a criação do alfabeto a democratização do saber. Os portadores dos textos, à medida que a escrita evoluiu, se modificaram, sendo encontrados textos redigidos em paredes, monumentos, estátuas (de pedra ou barro), placas de barro (tábuas de argila), pedras diversas, cerâmica, madeira, metais variados, papiro (rolos feitos de um tipo de trançado do caule da planta papiro), pergaminhos de couro de animais, tecidos (linho, seda), placas de pedra encerada (que permitiam apagar e escrever novamente) e, finalmente, o papel. Apesar de em 842 o juramento de Estrasburgo marcar o primeiro aparecimento das línguas vulgares, sendo escrito em língua tudesca (antigo alemão) e em língua românica (antigo francês), durante mais de mil anos, com a propagação do cristianismo, em latim se continuou a escrever e copiar, e raros eram os laicos (aqueles que não eram monges) que dominavam a escrita. O aparecimento do pergaminho trouxe com ele dois avanços decisivos: de um lado, permitiu a utilização da pena de ganso que proporcionava possibilidades infinitamente mais variadas que o velho pincel de caniço; e, de outro, as folhas podendo ser dobradas e costuradas, chegava-se à generalização dos códices, ancestrais dos nossos livros, constituídos de folhas sobrepostas e ligadas entre si. (Jean, 2008: 82). No final do século XII, os escribas laicos que já colaboravam com os monges começaram a trabalhar para redigir documentos oficiais da burguesia comercial nascente e, principalmente, livros, que até então eram obras de luxo destinadas à nobreza, além de missais e manuais de teologia para o clero. Pela primeira vez a burguesia teve acesso à literatura e surgiram novas obras: tratados de filosofia, lógica, matemática, astronomia. Alguns autores, como Dante, começaram a redigir em língua materna. Os estudantes mais ricos também se tornaram clientes das oficinas de impressão (que ainda era caligrafada). Nesse período, assim como já ocorria com seus companheiros religiosos, os aspirantes a calígrafos eram aprendizes que se ocupavam de tarefas menores, como traçar linhas ou moer tinta e levavam pelo menos sete anos em sua formação. Para facilitar a divulgação e para ampliar a produção, aos poucos surgia a imprensa. No século II, os chineses já haviam inventado o papel e a prensa já era usada para gravar letras, imagens e cenas bíblicas na madeira. Gutemberg, em 1450, compreendendo a importância do uso do papel, feito de fibra de linho, e da fundição de caracteres com uma liga de chumbo e antimônio descoberta por seu amigo Schoffer, mecanizou a impressão, dando origem à história da tipografia e da imprensa. Entretanto, a história da escrita a mão não se findou com o desenvolvimento da imprensa. A partir do século XIX surgiram a caneta tinteiro, substituindo a pena, a máquina de escrever e a esferográfica. A imprensa divulgou, pouco a pouco, a palavra escrita, mas a escrita a mão continua sendo indispensável instrumento do pensamento. Pudemos pensar que a televisão, o rádio e o telefone dariam relevo à comunicação oral e à imagem, mas não foi isso o que aconteceu. O mesmo se anda, hoje, pensando sobre computadores, internet e e-books, mas a escrita continua sendo, assim como livro, espaço de produção e de liberdade. E todos desejamos, se não precisamos, aprender a ler e a escrever. 15Princípios e Métodos de Alfabetização I 2. Introdução aos métodos de alfabetização: como se ensinou e se ensina a ler e escrever Acredito que para um professor alfabetizador produzir boas práticas de ensino é fundamental que conheça o que já se pensou epistemologicamente e se fez historicamente em termos de metodologia de ensino da língua escrita. Por esse motivo, será apresentada aqui uma breve introdução aos chamados métodos tradicionais de alfabetização, que serão melhor trabalhados na disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização 2. Em um primeiro momento, quero lembrar que todo método de ensino tem a ele subjacente as concepções do seu criador ou seu aplicador (o professor) sobre aluno, livro didático, ensino, aprendizagem. O método de ensino não é um conjunto de técnicas ou procedimentos de ensino “desencarnados”, abstraídos de uma realidade qualquer e que podem ser aplicados a qualquer aluno em qualquer escola e qualquer momento histórico. Trata-se, pelo contrário, de uma tomada de posição política, histórica, epistemológica, psicológica, pedagógica do profissional da educação. Implica o domínio de um referencial teórico suficientemente sólido para explicar a realidade vivenciada, mas também a percepção dos limites e possibilidades desse referencial no contexto em que será aplicado. Tendo isso em vista, precisamos nos lembrar de que a história da alfabetização se iniciou quando os primeiros escribas começaram a padronizar a escrita e a transmitir seus conhecimentos a outros aprendizes. Foi um longo tempo até chegarmos às formas de ensinar a ler e escrever que conhecemos hoje, e isso se deve ao processo de escolarização do ensino, em que se tornou necessário criar estratégias para ensinar a todos os alunos no mesmo tempo e espaço. Há três períodos principais na história da alfabetização: Da antiguidade até o século XVIII, aproximadamente, quando o método utilizado era exclusivamente sintético, normalmente o processo alfabético. A partir do século XVIII, com o início da oposição teórica ao método sintético, que só se efetivou no início do século XX com Decroly (lembrando que a partir desse período coexistiram os processos fônico e silábico, do método sintético, bem como os processos de palavração, sentenciação e global de contos, do método analítico). Na atualidade, vivemos a revisão crítica dos métodos tradicionais de alfabetização, provocada pelos índices continuamente alarmantes de fracasso escolar nessa fase da escolarização, e com questionamentos propiciados, a partir da década de 1980, pelas pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky sobre a Psicogênese da Língua Escrita (veremos esse assunto mais à frente). Vejam bem, vimos no tópico anterior que escrever e ler não era fácil para os antigos habitantes da Mesopotâmia que usavam a escrita cuneiforme. Relatos históricos mostram que as escolas de escribas tinham uma disciplina severa e os cursos, muitos anos de duração. Você se lembra de quando e como aprendeu a escrever? Foi fácil ou trabalhoso? Sua família acompanhava sua vida escolar? Qual método foi utilizado? Havia uma cartilha ou livro de alfabetização? Suas lembranças desse período são boas? Como era seu relacionamento com a professora e os colegas? Registre para que retomemos suas reflexões ao final desta unidade. 16 Princípios e Métodos de Alfabetização I Os escribas eram os mestres da escrita e, por conseguinte, os mestres do ensino, pois esse era, antes de tudo, o ensino da escrita. Um aprendizado árduo, quando se pensa na complexidadeda escrita hieroglífica. Admitidas na escola por volta dos dez anos de idade, as crianças lá ficavam somente alguns anos; os mais capazes prosseguiam os estudos até a idade adulta. O método empregado pelos mestres egípcios consistia tanto de exercícios de memorização quanto de leitura; os alunos passavam longas horas salmodiando em coro. A arte de escrever era adquirida por força de cópias e ditados, primeiro em letras cursivas, depois em hieróglifos. Os castigos físicos eram eficazes, se acreditarmos no preceito egípcio: “a orelha do menino fica nas costas, ele escuta quando apanha!” E, para os que faltavam à aula, a punição podia chegar à prisão. (Jean, 2008: 38) O aprendizado da escrita nunca foi considerado fácil, mas na Idade Média passou de registro de ideias e informações para um trabalho artístico ainda mais complexo. Devido ao tipo de escrita realizado inicialmente pelos monges, e posteriormente com apoio de laicos, esse trabalho se destacava não pela produção dos textos, mas pela arte da caligrafia: a bela escrita manuscrita – feita à mão, enfeitada com maravilhosas iluminuras. Figura 3: Iluminura medieval Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Porphyry_and_Plotinus.jpg Figura 4: Iluminura medieval Fonte:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:BookOfDurrowBeginMarkG ospel.jpg Silos Beatus, em sua obra Colofom, do século XII, afirma: “Se não sabes o que é a escrita, poderás crer que a dificuldade é pequena, mas, se quiseres uma esplicação (sic) detalhada, deixa-me dizer-te que o trabalho é penoso: embaralha a visão, encurva as costas, esmaga o ventre e as costelas, aperta os rins e deixa todo o corpo doendo. [...] Como o marinheiro que volta, enfim, ao porto, o escriba rejubila-se, ao chegar à última linha. De gratias semper”. (citado em JEAN, 2008: 83). Com a passagem dos séculos, a escolarização e a existência de maior número de alunos fizeram com que se começasse a padronizar o ensino da linguagem escrita. Existem, tradicionalmente, dois tipos fundamentais de métodos de alfabetização: os sintéticos, que partem de elementos menores que a palavra, como fonemas, letras e sílabas; e os analíticos, que partem de palavras, sentenças ou contos. Na história dos métodos temos dois marcos fundamentais: aqueles métodos que elegem subunidades da língua e que focalizam aspectos relacionados às correspondências fonográficas, ou seja, o eixo da decifração, e os métodos que priorizam a compreensão. Ambos têm como conteúdo o ensino da escrita, mas diferem em pelo menos dois aspectos: a) quanto ao procedimento mental, ou ponto de partida do ensino, que se daria das partes para o todo nos métodos sintéticos e do todo para as partes nos métodos analíticos; b) quanto ao conteúdo da alfabetização que ensinam (FRADE, 2007: s/p). 17Princípios e Métodos de Alfabetização I Os processos de marcha sintética iniciam a alfabetização ensinando a correspondência entre sons e letras, entre oral e escrito. Dividem-se em alfabético (que se inicia pelo ensino das letras), fônico (que ensina inicialmente o som das letras) e silábico (que se inicia com a apresentação das sílabas), combinando esses elementos em todos maiores (palavras, sentenças e textos). A ênfase na análise auditiva que ocorre no método sintético, principalmente no processo fonético, transforma a aprendizagem inicial da leitura e da escrita em simples transcrição gráfica da linguagem oral. “Pode-se pensar que um sistema de representação constituído seja adquirido por novos usuários como se se tratasse de uma codificação. Essa é uma convicção subjacente à maior parte das proposições pedagógicas relativas ao ensino da leitura: prepara-se a criança para reconhecer as unidades-letras por meios de exercícios de reconhecimento de unidades-fonéticas e procede-se à fixação da relação das unidades entre si (evitando ao máximo as ditas ‘exceções’ do princípio de biunivocidade entre letras e sons). As questões epistemológicas são, dessa forma, eliminadas; e, no entanto, as maiores dificuldades das crianças são exatamente de natureza epistemológica” (FERREIRO, 1994: 67). Um processo que estimula a atividade da escrita, como o silábico ou o fônico, e que exige discriminação visual e auditiva precisa e processamento analítico de unidades menores que a palavra, além de desvinculado de qualquer significação real para o educando transforma-o em mero receptor, anulando sua competência linguística e suas capacidades cognitivas. Esse processo, na verdade, está impedindo a interação do educando com a língua escrita, deixando de lado qualquer consciência metalinguística que já possua. Crianças que ainda não construíram a escrita alfabética não conseguem assimilar famílias silábicas, pois ainda não entendem que a vogal modifica o som da sílaba (b+a=ba, b+e=be, etc.), ou que uma sílaba pode possuir mais de um fonema a ser representado. A cada nova família silábica têm que decorar cinco novas sílabas, pois não conseguem transferir, automaticamente, de ba para be, etc. Quanto aos processos existentes no método analítico, se dividem em palavração (se inicia com o aprendizado da palavra), sentenciação (parte de sentenças) e global de contos ou historietas (se inicia com a memorização de histórias ou contos). Partem de unidades de significado, como as palavras, sentenças ou textos, e trabalham sob a perspectiva de realização da análise, ou seja, destacam, das unidades linguísticas maiores, os elementos menores, como sílabas e letras. Mesmo os processos analíticos, que se preocupam com a coerência e o significado do que vai ser escrito ou lido, caem nesse artificialismo, visto que se restringem a cartilhas e não propiciam um uso social da língua escrita. Considerando que ler é buscar significado e escrever é expressar significado, qual o sentido de se trabalhar com exercícios estruturais que pretendem a fixação do que já foi aprendido através da repetição contínua? Outra grave crítica aos processos analíticos, mas que também se aplica aos sintéticos, é que não permitem a exploração, a escrita de “novidades”, o uso de palavras que ainda não foram aprendidas, por exemplo, impedindo que o aprendiz explore e se aproprie do objeto conceitual que é a língua escrita, pois, segundo a concepção desses métodos, caso erre o erro será fixado. Os métodos tradicionais acarretam como séria consequência de seu uso o fato de o alfabetizando se recusar a escrever o que ainda não foi aprendido na escola. Ele não tem confiança suficiente para buscar o seu conhecimento, torna-se mero receptor das informações transmitidas pelo professor. Esse fato implica que, do ponto de vista escolar, o educando aprende a reproduzir os estímulos apresentados pelo professor, mas, do ponto de vista conceitual, seu desenvolvimento é restrito, pois a aprendizagem foi descontextualizada, centrada em situações artificiais; então, ele não consegue raciocinar e transferir seu conhecimento para os outros contextos, ou seja, generalizar. Os processos sintéticos concebem a leitura como codificação, ou seja, transcrição de unidades sonoras em unidades gráficas. Assim sendo, consideram essencial para a alfabetização a discriminação perceptiva, tanto visual quanto auditiva, e habilidade motora. Já os processos de marcha analítica entendem a escrita como objeto a ser memorizado. Entretanto, se considerarmos escrever como a construção “de uma representação de regras socialmente codificadas”, e ler como a reconstrução de “uma realidade linguística, a partir da 18 Princípios e Métodos de Alfabetização I interpretação dos elementos fornecidos pela representação”, o processo de alfabetização ocorrerá pela compreensão da natureza desse sistema de representação, ou seja, o educando vai reconstruir esse sistema, comparando suas hipóteses sobre a escrita com a escrita convencional, até construir uma representação alfabética. Em linhasgerais, podemos dizer que os métodos sintéticos: Propõem progressão de unidades menores (letra, fonema, sílaba) para unidades mais complexas (palavra, frase, texto); Privilegiam aspectos de decodificação, análise fonológica, relações entre fonemas (sons) e grafemas (letras). Embora focalizem capacidades essenciais à alfabetização, os métodos sintéticos, se considerados isoladamente, apresentam limitações: não exploram as complexas relações entre fala e escrita (semelhanças e diferenças); descontextualizam a escrita, seus usos e funções sociais, pela ênfase em situações artificiais de treinamento de letras, fonemas ou sílabas. Quanto aos métodos de marcha analítica, podemos afirmar que: propõem progresso de unidades de sentido mais amplas (palavra, frase, texto) a unidades menores (sílabas e sua decomposição em grafemas e fonemas); privilegiam compreensão de sentidos e aprendizagem ideovisual (reconhecimento global pela silhueta da palavras ou frase). Embora focalizem capacidades essenciais à alfabetização, os métodos analíticos, se considerados isoladamente, apresentam limitações: mantêm rígido controle da sequência do processo e das possibilidades de interação da criança com a escrita; enfatizam a apresentação artificial e repetitiva de palavras, frases e textos curtos, em função da repetição e da memorização. Retome as reflexões que fez no início desse tópico. Você se lembrou da forma como foi alfabetizado(a)? Conseguiu identificar o método utilizado? Agora que já tem algumas ideias sobre métodos e processos de alfabetização, como avalia o processo vivido? Registre aqui. 19Princípios e Métodos de Alfabetização I Síntese do Módulo: Nesse módulo, você tomou conhecimento de algumas informações sobre a História da Escrita, desde seu surgimento até a forma como a utilizamos nos dias de hoje. Conheceu pictogramas, ideogramas e fonogramas. Leu sobre a invenção do livro, desde os escribas até a imprensa. Houve também uma introdução à temática de como se ensinou a ler e escrever no decorrer da história (assunto que será retomado na disciplina Princípios e Métodos de Alfabetização 2 com o aprofundamento do estudo sobre os métodos e sobre o uso das cartilhas e livros de alfabetização) e como ainda hoje se ensina, além de alguns questionamentos sobre o uso dos métodos tradicionais de alfabetização. 20 Princípios e Métodos de Alfabetização I REFERÊNCIAS Módulo 1 FERREIRO, Emílio. Reflexões sobre alfabetização. 23 ed. São Paulo, Cortez, 1994. FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999. 15ª ed. FRADE, Isabel C.A.S. Alfabetização hoje: onde estão os métodos? Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 9, n. 50, mar/abr. 2003. JEANS, Georges: A Escrita: memória dos homens. Rio de Janeiro, Objetiva, 2008. OLIVEIRA, Marília Villela. Algumas considerações sobre os métodos tradicionais de alfabetização. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, MG, v. 1, n. 1, p. 19-21, jan./dez. 1992. Sugestões de Leitura: BRASLAVSKY, B. La querella de los métodos em la ensenãnza de la lectura: sus fundamentos psicológicos y la renovacion actual. Buenos Aires: Kapelusz, 1992. Como nasceu a escrita. http://www.klickeducacao.com.br/materia/21/display/0,5912,P OR-21-98-844-5771,00.html SOARES, Magda. Alfabetização: em busca de um método? Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 12, dez. 1990. MORAIS, Artur Gomes. Concepções e Metodologias de Alfabetização: por que é preciso ir além da discussão sobre velhos métodos? Seminário Alfabetização e Letramento em Debate. SEB/MEC. Brasília, 2006. Disponível em portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alfbsem.pdf em 22/09/2006. MORTATTI, Maria Rosário Longo. História dos Métodos de Alfabetização no Brasil. Seminário Alfabetização e Letramento em Debate. SEB/MEC. Brasília, 2006. Disponível em portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ Ensfund/alfbsem.pdf em 22/09/2006. Organizando as classes de alfabetização: Processos e métodos. http://www.tvebrasil.com.br/salto/ boletins2004/ale/tetxt4.htm RIZZO, Gilda. Os diversos métodos de ensino da leitura e da escrita: estudo comparativo. Rio de Janeiro, Papelaria América Ltda, 1983. 21 Princípios e Métodos de Alfabetização I 1. Letramento e Alfabetização No dicionário, encontramos as definições de letrado como “versado em letras, erudito”. O iletrado é aquele que não tem conhecimentos literários. Esse sentido não é exatamente o mesmo que atualmente atribuímos ao termo LETRAMENTO na área da educação, particularmente da alfabetização. Consta que foi usada no Brasil com um segundo significado pela primeira vez pela educadora e linguista Mary Kato, no ano de 1986, em seu livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”. Em 1988, Leda Verdiani Tfouni também usou o termo no livro “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”. Já Ângela Kleiman usou-o em 1995 em seu livro “Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita”, enquanto Leda Verdiani Tfouni novamente o usou em 1995, com a publicação de “Letramento e Alfabetização”. Mas qual será o motivo de essas autoras, entre outros, terem criado um novo significado para a palavra letramento? Sempre aparecem palavras novas quando fenômenos novos ocorrem, novas ideias, fatos, objetos surgem ou são inventados, e então é necessário ter um nome para aquilo, porque o ser humano não sabe viver sem nomear as coisas: enquanto nós não as nomeamos, as coisas parecem não existir. Exemplo disso são as palavras televisão, globalização, computador, internauta, deletar, entre muitas outras. Mas qual o significado da palavra letramento? Por que surgiu e de onde tiramos essa palavra? Foi trazida do inglês, em que tem um significado diferente do sentido original em português, de pessoa culta, erudita. Em inglês, literate é o adjetivo que caracteriza a pessoa que domina a leitura e a escrita, e literacy designa o estado ou condição daquele que é literate, daquele que não só sabe ler e escrever, mas também faz uso competente da leitura e da escrita. Há, portanto, a partir do uso desse termo, uma demarcação da diferença entre ser alfabetizado (viver na condição/estado de quem sabe ler e escrever) e ser letrado (atribuindo a essa palavra o sentido de literate, ou seja, o que utiliza com competência da língua escrita). A pessoa que aprende a ler e escrever – alfabetizada – e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas práticas sociais de leitura e escrita – letrada – é diferente da pessoa que não sabe ler e escrever – analfabeta –, ou que, mesmo sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita – é O Conceito de Letramento e as Contribuições da Linguística ao Processo de Alfabetização MÓDULO 2 Você já ouviu falar em letramento? Sabe o que significa? Redija aqui o que você pensa que seja letramento e o que tem a ver com alfabetização. 22 Princípios e Métodos de Alfabetização I alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado de quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita. Sendo assim, letrada é aquela pessoa que, além de saber ler e escrever, faz uso frequente e competente da leitura e da escrita, e iletrado ou iletrada são seus antônimos. Letramento é, portanto, o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais. Em nossa sociedade grafocêntrica, em que saber ler e escrever é básico para qualquer atividade, um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e escrever. O que tem acontecido é que as pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não incorporam à sua vida a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura ea escrita, para envolverem-se com as práticas sociais de leitura e escrita: não leem livros, jornais, revistas; não sabem redigir um ofício, uma declaração, nem preencher um formulário; muitos sentem dificuldade para escrever um simples telegrama, uma carta, um bilhete, ou não conseguem encontrar informações em um catálogo telefônico, num contrato de trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio. Essas pessoas são consideradas alfabetizadas, porque sabem ler e escrever, mas não são letradas, pois não fazem o uso social ou funcional da linguagem escrita em sua vida. Assim, podemos considerar a diferença conceitual entre ser alfabetizado e ser letrado: ser alfabetizado é saber ler e escrever, enquanto ser letrado é não apenas saber ler e escrever, mas cultivar e exercer as práticas de leitura e escrita. Agora você deve rever seu conceito de letramento que redigiu no início desse módulo e ver o que aprendeu depois da leitura do texto. Poste no fórum sua resposta sobre o conceito de letramento e comente o tópico com pelo menos dois colegas. Faça em seguida a leitura do texto complementar de Magda Soares, Letramento e Alfabetização: as muitas facetas, e veja quais desdobramentos têm acontecido no Brasil e no mundo a respeito das concepções de alfabetização e letramento, e como essas discussões têm causado impacto no processo de alfabetização no Brasil, particularmente no que a autora designa como “desinvenção da alfabetização”. 2. Contribuições da Linguística ao Processo de Alfabetização. Historicamente a alfabetização tem sido um “território sem dono”. Vou explicar: psicólogos, historiadores, médicos pediatras, psiquiatras e neurologistas, linguistas, pedagogos, entre outros profissionais, todos debatem sobre os problemas da alfabetização. Esse fato, que por si só deveria oferecer muitas contribuições para a problemática do fracasso escolar na alfabetização, infelizmente o transforma em campo de batalha, pois cada área acaba por enxergar o território multifacetado da alfabetização como seu espaço de trabalho, não percebendo a importância de um trabalho multidisciplinar e, desejavelmente, interdisciplinar. Segundo Luiz Carlos Cagliari, linguista e professor de Fonética e Fonologia no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, escrever e ler são atos linguísticos, mas só recentemente tem havido participação significativa dos linguistas em projetos educacionais. Para ele, muito do que ele próprio sofreu na escola, e os alfabetizandos sofrem até hoje, poderia ser entendido e, provavelmente, solucionado se o alfabetizador compreendesse as questões da fala, a natureza da escrita, suas funções e usos. É claro que não basta a formação linguística para resolver os problemas da alfabetização, pois esses Atividade do Moodle 23Princípios e Métodos de Alfabetização I abrangem muitos fatores, mas, segundo ele, quanto mais o professor conhecer os aspectos da aquisição do conhecimento pela criança (ou adulto analfabeto), maior a possibilidade de ter sucesso no processo de alfabetizar seus alunos. Bom, o primeiro ponto no qual a linguística pode ajudar o professor alfabetizador é oferecendo-lhe o entendimento de que uma criança de 6 anos que inicia na escola seu processo de alfabetização tem competência linguística, ou seja, aprendeu a falar e entender a linguagem, usando-a e aperfeiçoando seu uso desde o seu primeiro ano de vida. Essa criança não precisou ser ensinada a falar, mas se encontrou entre pessoas que falavam e aprendeu a linguagem oral, sendo considerada um falante nativo da sua língua, dispondo de um bom vocabulário e das regras gramaticais. Lembre-se de que isso aconteceu sem um ensino sistemático, e mesmo assim a criança construiu todas as regras próprias da comunidade linguística em que está inserida. Entretanto, cada criança é falante do dialeto da sua comunidade, que tem, além de um vocabulário, um conjunto de regras gramaticais específicas. A criança vai aprender a dizer “nós vai” ou “nós vamos” não porque é menos ou mais dotada para a linguagem, mas porque se tornou falante de um ou outro dialeto. Por outro lado, pelo fato de aprender a falar, com a complexidade que isso envolve, com apenas 3 anos, prova que tem capacidade intelectual extremamente desenvolvida e apta para a fala, sem precisar de professores e métodos específicos, bastando para tanto ter convívio com uma comunidade falante. (Cagliari, 1992:19). Entretanto, essa criança que aprendeu a falar “nós vai”, porque esse é o dialeto de sua comunidade de origem, vai fatalmente ser discriminada na escola. O que ela já sabe sobre a língua (que é muita coisa!) vai ser completamente desconsiderado, e ela será taxada de ignorante, deficiente, entre outros adjetivos pejorativos. Normalmente são essas as crianças que são reprovadas e que, no ano seguinte, recomeçarão a trajetória escolar do zero, como se não tivessem aprendido nada no ano anterior. Mesmo se tiverem sucesso no processo de alfabetização, serão constantemente consideradas incompetentes porque escreveram “nóis vai”, ou “inté onti”. E serão encaminhadas a médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, na tentativa de resolver um problema que, na verdade, é uma diferença dialetal e não uma dificuldade de aprendizagem. Por outro lado, uma criança que vive em um ambiente rico em contato com material escrito (livros, jornais, revistas, gibis), que vê os pais lendo diariamente o jornal, fazendo a lista do supermercado, o avô usando a lista telefônica, o irmão fazendo as tarefas escolares, ou usando a internet, e brincou de desenhar e escrever desde pequena encara a escola como uma continuidade do seu ambiente doméstico, tendo, portanto, muito maiores possibilidades de sucesso na empreitada educacional. Emília Ferreiro e Ana Teberosky, em seu livro “Psicogênese da Língua Escrita”, apresentam os enormes e rápidos avanços da psicolinguística a partir da década de 1960. Segundo elas, até esse período dominavam as concepções condutistas ou associacionistas, e a maior parte dos estudos e pesquisas sobre a linguagem infantil se ocupava do léxico, ou seja, da quantidade e variedade de palavras utilizadas pelas crianças. Como já vimos antes, um vocabulário, ou conjunto de palavras, não constitui por si mesmo uma linguagem: são necessárias regras específicas para combinar esses elementos. Hoje sabemos que não há como explicar a aquisição dessas regras pela imitação ou pelo reforço seletivo que são dois elementos centrais das fracassadas explicações associacionistas para a aquisição da linguagem. Vejamos: O modelo tradicional associacionista da criação da linguagem é simples: existe na criança uma tendência à imitação (tendência que as diferentes posições associacionistas justificarão de maneira variada), e no meio social que a cerca (os adultos que cuidam dela) existe uma tendência a reforçar seletivamente as emissões vocálicas da criança que correspondam a sons ou a pautas sonoras complexas (palavras) da linguagem própria desse meio social. [...] Quando a criança produz um som que se assemelha a um som da fala dos pais, esses manifestam alegria, fazem gestos de aprovação, demonstram carinho, etc. Dessa maneira, o meio vai “selecionando” do vasto repertório de sons iniciais saídos da boca da criança somente aqueles que correspondem aos sons da fala adulta. A esses sons é preciso dar um significado para que se convertam efetivamente em palavras. Nesse modelo, o problema resolve-se da seguinte maneira: os adultos apresentam um objeto, acompanham essa apresentação com uma emissão vocálica (isto é, pronunciam uma palavra que é o nome desse objeto); por reiteradas associações entre a emissão sonora e a presença do objeto, aquela 24 Princípios e Métodos de Alfabetização I termina por transformar-se em signo dessa e, portanto, se faz “palavra”. (Ferreiro e Teberosky, 1999:24). Entretanto, a visão da psicolinguística contemporânea é radicalmente diferente: a criança não recebe passivamente esses estímulos familiares, mas procura ativamente compreender a natureza da linguagem que é usada a sua volta, tomando seletivamente as informações que obtém, formula hipóteses, faz antecipações, busca regularidades e irregularidades, enfim, cria sua própria gramática que progressivamente vai sendo lapidada até se aproximar da gramática do dialeto que seu grupo social usa. Por exemplo, é típico das crianças pequenas, com seus 3 ou 4 anos, passarem a dizer “fazi”, embora, às vezes, antes dissessem “fiz”. Quando fazem isso, ou seja, passam a dizer “fazi”, estão generalizando, para o verbo fazer, a regra seguida pelos verbos regulares da 2ª. conjugação, como ver (vi), comer (comi), beber (bebi). Esse é um erro comum, mas que demonstra a tentativa de encontrarem um padrão no uso de verbos, tornando assim regulares os que são irregulares. Estão tentando construir sua própria gramática e não simplesmente absorvendo passivamente o modelo adulto. Então pensem comigo: essa criança não regulariza os verbos irregulares porque alguém lhe ensinou, pois quase nenhum adulto fala assim ou lhe ensina. Ela usa essa forma do verbo porque busca coerência no funcionamento da língua. Isso nos demonstra claramente que não recebe passivamente as informações, mas as processa, usando critérios lógicos e inteligentes. Essa criança pequena, sem que ninguém lhe tenha ensinado, qualquer que seja a língua que fale, já distinguiu entre radical verbal e desinência, usando o paradigma descoberto para tentar fazer uma conjugação regular e coerente. Vemos, portanto, que o processo de aprendizagem da língua não passa pela aquisição de elementos isolados que se unem pouco a pouco, mas pela constituição de um sistema complexo que vai sendo explicado pouco a pouco através de seu uso. Concluímos, então, que a criança que chega à escola para ser alfabetizada não é uma “tabula rasa” que nada sabe, mas já tem notável conhecimento sobre sua língua materna, que já usa eficientemente no cotidiano como instrumento de comunicação. Ferreiro e Teberosky questionam enfaticamente em suas pesquisas o fato de a escola continuar atuando como se a criança nada soubesse ao entrar nela, como se fosse necessário que ela esquecesse tudo que já sabe sobre a sua língua para aprender a transcrevê-la em código gráfico. Concluindo, vimos que a escola tem tratado a criança de qualquer classe social como incapaz, pois não aceita o conhecimento trazido por ela, como se ela necessitasse apagar sua história de aprendizagem sobre a língua para começar do zero, pelos pequenos fragmentos da língua. Pior ainda, exerce com tranquilidade o preconceito linguístico, quando considera inadequada a linguagem da criança usuária do dialeto de um determinado agrupamento de menor status social. O que acontece? Para essa criança, a língua falada é uma, e a escrita é outra. Isso causa dificuldades praticamente intransponíveis, em grande parte das vezes inviabilizando o aprendizado da linguagem escrita. Além disso, a criança, ao ter sua forma de falar discriminada, sente-se discriminada, diminuída, inadequada, o que lhe provoca um sentimento de exclusão. A escola também dá valor excessivo à escrita, levando o aluno a pensar que a linguagem escrita é a correta, e a linguagem oral é decorrente dela. O ensino da Gramática normativa faz com que os alunos acabem por escrever textos pobres em conteúdo e pertinência comunicacional, ainda que com nenhum ou poucos erros gramaticais. Para que serve tal escrita? Afinal, para que lemos ou escrevemos se não para comunicar, transmitir e buscar ideias? O ensino do português tem sido tão dirigido para a escrita que acontece a aberração de a escola se preocupar mais com a aparência da escrita que com o seu uso. Como a linguagem é um fenômeno dinâmico que muda com o tempo, conforme o uso dela feito em diferentes espaços, surgem inúmeros dialetos que não são tratados na gramática normativa. Mas os alunos precisam saber que seu dialeto também é valorizado e também tem sua gramática e seu prestígio e que, para estudar uma variante como o dialeto da escola que representa instrumento de promoção social e intelectual não precisam abandonar seu dialeto de origem. Para auxiliar as crianças nesse aprendizado podemos desmontar certos preconceitos e adotar certas posturas e procedimentos. Vejamos alguns exemplos: 1 - Podemos grafar uma mesma letra de diversas formas: 25Princípios e Métodos de Alfabetização I Essas letras são encontradas em todos os lugares pelos quais a criança passa: outdoors, cartazes, folhetos informativos, embalagens em geral, televisão, livros, revistas... E ela convive com elas desde pequena, mas precisa ser informada sobre seus usos. Como a escrita de forma é muito mais fácil de aprender que a cursiva, tanto pela facilidade de leitura quanto de grafá-la, é conveniente começar o processo de alfabetização usando a letra de forma. Isso não quer dizer que os alfabetizandos não devam saber grafar corretamente as letras, ou que a escrita cursiva não precise ser ensinada, mas apenas que, para iniciar o ensino da língua escrita, devemos informar às crianças sobre a existência de diversos tipos de alfabetos em uso, e manter o uso da letra de forma pelo menos até que ela se familiarize mais com a escrita. 2 - A escrita, na escola, é frequentemente imposta sem um motivo que a justifique. Cópias, exercícios mecânicos de escrever sem preocupação com possíveis significados, muitas vezes formas indesejáveis e inúteis de escrita. Para os aprendizes, além de ensinarmos a ler e escrever, devemos ensinar para que isso serve. Novamente lembro: se uma pessoa vive em um ambiente rico em materiais escritos que são constantemente usados, estará familiarizada com seu uso. Se viver em um ambiente em que, no máximo, algumas pessoas assinam o nome ou escrevem pequenos bilhetes e grande parte das restantes é analfabeta, é necessário que a escola a informe sobre os usos possíveis da língua escrita, a fim de que tenha motivação tanto para aprender quanto para utilizá-la depois. 3 - A relação entre os sons que falamos e as letras que usamos para representá-los é muito complexa, por não ser biunívoca, ou seja, não ser sempre a mesma letra que representa um som (mexer/encher; ganso/pança), nem sempre se ler uma letra utilizando o mesmo som (boca[ô]/coca[ó]; fácil[u]/facilidade[l]). O objetivo de um sistema de escrita alfabético é o registro dos sons da língua, mas como as línguas mudam com o tempo, fazendo surgir muitos dialetos, e a escrita começa a ser lida no dialeto de quem lê, aos poucos, as formas ortográficas começam a ser lidas de forma diferente, e o sistema de escrita acaba se tornando mais arbitrário. Por exemplo, a palavra menino, mesmo sendo grafada sempre da mesma forma, pode ser lida mininu, menino, minino, meninu, minin, dependendo do dialeto de origem do leitor. Também sabemos que as letras são uma realidade escrita, enquanto os fonemas são uma realidade falada, mas essa relação também tem sua complexidade. Temos que levar todos esses fatores em consideração, quando cobramos uma escrita ortograficamente correta de nossos alunos. Esse é um aprendizado que se inicia na alfabetização, mas continua ao longo da vida. As crianças devem poder escrever o que quiserem e da forma como quiserem. A partir dessa produção escrita e das orientações e comentários do professor é que elas vão, assim como fizeram com a linguagem oral, se apropriando progressivamente das formas de funcionamento dessa língua. 4 – A fragmentação do ensino com a apresentação gradual de determinadas letras ou sílabas é prejudicial ao aluno. A produção de um texto envolve aspectos maiores que o registro das letras no papel: o escritor precisa ter um motivo para escrever, ou seja, definir o leitora quem destinará seu texto e o que quer transmitir, para, a partir disso, estruturar seu discurso com coesão, argumentação, organizar suas ideias e escolher as palavras que vão ser usadas. Esses são aspectos não fonográficos da língua escrita que a diferenciam da língua oral e devem ser trabalhados pelo professor. Meu filho Erick, de 6 anos acaba de me escrever um bilhete amoroso: Um professor que valorize exclusivamente a ortografia acabaria por destruir toda a intencionalidade desse texto. É claro que ele precisa aprender a escrever ortograficamente, a pontuar, acentuar e separar as palavras, mas não é esse o objetivo nesse momento. Queremos que ele saiba inicialmente se expressar por escrito, e isso ele faz maravilhosamente. maeamovoçe vamoparnoça novacasa 26 Princípios e Métodos de Alfabetização I Uma criança de 8 ou 9 anos que esteja no segundo ou terceiro ano do ensino fundamental e produza um texto de 2 ou 3 páginas para contar uma história por desejo próprio pode deixar progressivamente de fazê- lo, quando percebe que quanto mais escreve, mais erra e, quanto mais erra, mais o professor diminui sua nota. Conclusão tirada por esse aluno: “Quanto menos escrevo menos erro. Isso é o esperado de mim pelo professor”. Um professor que deseje oferecer ao seu aluno o acesso ao mundo da leitura e da escrita, ou seja, deseje que ele, além de aprender a ler e escrever, seja letrado, no sentido mais amplo do termo, nunca deveria usar o texto produzido pelo aluno como pretexto para corrigir caligrafia, ortografia, regência ou concordância, mas sim para conhecer seus progressos e dificuldades e, daí, programar atividades em que essas dificuldades ou dúvidas possam ser trabalhadas, além de momentos de explicações e de oferecimento de novas informações. 5 - Podemos e devemos ser escribas da criança. É o melhor modelo que podemos oferecer a ela durante a alfabetização. Criando momentos em que estamos sozinhos com uma ou duas crianças, podemos transcrever suas pequenas histórias da forma como nos ditarem e, depois, ler essa história, podendo, em seguida, propor-lhes alterações e melhorias, mas não modificando o teor do texto. Assim que estiverem mais instrumentalizadas, podem produzir seu texto sozinhas ou com ajuda de colegas, e o professor pode sempre sugerir melhorias. É nesse momento que crianças ativas e motivadas colocam em jogo todos os conhecimentos que já têm sobre a escrita e podem construir muitos mais. 6 – A sala de aula deve ser rica não apenas de materiais escritos, mas também de atos de leitura. O professor deve ler para os alunos textos de gêneros diversos, além de incentivá-los a escrever os seus próprios textos. Como eu já disse anteriormente, a criança deve ser incentivada a buscar sempre melhorar sua produção, através da autocorreção, da crítica produtiva, de desafios propostos pelo professor, de atividades coletivas em que é possível aprender com o colega e ensinar coisas a ele. O professor também deve escrever seus próprios textos e compartilhá-los com os alunos. 7 - Os alunos erram ortograficamente por vários motivos, entre eles: transcrição fonética da própria fala (biscreta, muié, tristi); uso indevido de letras (dici, licho, cei – esse uso se diferencia da transcrição fonética pois usa letras possíveis para representar a palavra, mas a ortografia usa outras); hipercorreção (jogol, chapel, pois já aprendeu que se escreve papel, gol), juntura intervocabular e segmentação (mimatou, eucazeicoéla, ou a gora, a fundou); forma morfológica diferente no dialeto (adispois, ni um, tá). Percebe-se que levam isso muito a sério e refletem bastante tentando aprender a ler e escrever. Estão tentando aplicar a lógica que já perceberam no sistema escrito. Esses erros podem ser trabalhados com cuidado e progressivamente pelo professor, por meio de exemplos e de comparações. 8 - A leitura é um processo diferente da escrita, por isso dizemos aprender a ler e a escrever. Embora profundamente interligados, são processos mentais diferentes. Muitas vezes alunos que se saíram mal em provas escritas são sabatinados por professores e demonstram saber todo o conteúdo. Apresentam, infelizmente, problemas de leitura, quando não entendem, ou entendem errado o que lhes é perguntado. Quase tudo na escola depende da leitura, e um aluno que não sabe ler terá problemas de desempenho em sua vida escolar. Mas é fato que o ensino da escrita é privilegiado em relação ao da leitura em nossas escolas. A leitura é um processo individual, de recuperação do pensamento registrado de outra pessoa, de busca de significado por cada um. Nenhum leitor lê um texto como o outro, pois suas referências são diferentes. Ler não é só decifrar, mas buscar significado. Muitos analfabetos se “dão bem na vida”, mas como vivemos em uma sociedade grafocêntrica, que pouco uso faz da tradição oral, veem-se excluídos de um mundo cultural que só pode ser vivenciado pela leitura. Cagliari afirma que ensinar a ler é o papel mais importante da escola, e a leitura não deve ser usada como pretexto para avaliar outros elementos como pronúncia, rapidez ou decifração. Como pode ser ouvida, vista ou falada, a leitura oral de histórias é uma introdução das crianças a esse mundo. Mas ler não é simplesmente falar a escrita. Exige, sim, do leitor a percepção dos fatores linguísticos relacionados à decifração, mas também, considerando as próprias características da linguagem escrita, aspectos fonéticos não registrados, como o ritmo e a entonação. Por isso, é comum que, para realizar uma leitura para outros ouvirem, seja preciso prepará-la, entendendo os significados subjacentes, optando por determinadas estratégias para que ela seja expressiva. Essa preparação é importante principalmente na fase da alfabetização, para que o aluno vá superando a leitura silabada e fragmentada que é normal, quando ainda está muito preso à decifração. Ele precisa se preparar, decifrar, entender o significado, escolher a entonação, as pausas, o ritmo, etc., pois assim estará aprendendo a fazer uma boa leitura. 27Princípios e Métodos de Alfabetização I Será que se pode aprender a ler antes de aprender a escrever? Será que se pode aprender a ler sem aprender a escrever? Sem dúvida; aliás, aprender a ler é mais fácil do que aprender a escrever. Uma criança pode começar ouvindo histórias, aprendendo a decifrar o som das letras (no seu dialeto e no da escola) em diversos contextos (palavras diferentes), e se pôr a ler pequenos textos de cujo conteúdo já tem conhecimento (já ouviu) ou que sabe de cor, como canções, provérbios, adivinhações, etc. Se esse tipo de atividade for intensificado, a criança passa a ter outro tipo de contato com a escrita, que não é simplesmente um jogo de montar e desmontar sílabas e palavras. Terá a vantagem de adquirir uma visão mais real do que a escrita é e de como funciona, o que lhe facilitará, inclusive, o aprendizado da própria forma ortográfica. Aprendidos os primeiros segredos da leitura, as crianças ficam ávidas por ler e, na grande maioria dos casos, frustram-se pela falta de material de leitura. (Cagliari, 1992: 168-9) Síntese do módulo: Nesse módulo você viu como e por que foi cunhado o termo letramento. Viu também as contribuições da linguística ao processo alfabetizador, tomando contato com informações importantes que devem ser conhecidas por qualquer educador que queira desenvolver uma boa prática ao ensinar seus alunos a ler e escrever. 28 Princípios e Métodos de Alfabetização I REFERÊNCIAS Módulo 2 CAGLIARI, L.C. Alfabetização e Lingüística. São Paulo, Scipioni, 1992. CAGLIARI, L.C. O príncipe que virou sapo. Considerações a respeito das dificuldades das crianças na alfabetização. Disponível em http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=lang_pt&id=krd6zhqih88C&oi=fnd&pg=PA19 3&dq=Cagliari+linguistica&ots=DRml0H3qoc&sig=9RCn_YlmatGGn3M7kg1ok2pmMU0#v=onepage&q=Cagliari%20linguistica&f=false em 01/06/2010. FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999. 15ª ed. KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo, Ática, 1986. KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, Mercado das Letras, 1995. SOARES, Magda. Letramento e Alfabetização: as muitas facetas. 26ª Reunião anual da ANPED, GT Alfabetização, Leitura e Escrita. Poços de Caldas, 2003. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/26/outrostextos/ semagdasoares.doc TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. São Paulo, Pontes, 1988. TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. São Paulo, Cortez, 1995. 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Ele observou que em sua maioria os professores eram inconscientes dos motivos que os levavam a tomar determinadas decisões pedagógicas, como destinar mais tempo para determinadas atividades e menos para outras, escolher determinado tipo de livro e/ou material didático, controlar a disciplina em sala de aula usando a estratégia X ou Y, por exemplo. Essa epistemologia, ou a ideia de conhecimento que o professor tem, apesar de inconsciente, embasa suas escolhas pedagógicas. Como profissionais da Educação, temos obrigação de fazer todas as opções didáticas, metodológicas, pedagógicas ou o que mais se puder fazer na escola e em situação de ensino-aprendizagem com toda a coerência e clareza possíveis. Não nos é permitido fazer porque assim nos ensinaram, ou porque sempre foi feito assim. Apesar do despreparo profissional que tal situação de inconsciência demonstra, é o que infelizmente vem ocorrendo. Roseli Schnetzler, professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba e minha professora no processo de doutoramento, sempre nos dizia durante suas aulas: “Para sermos bons professores temos que questionar, cada um de nós, a si mesmo, cotidianamente: Por que é que eu ensino como eu ensino? O que me motiva ou me permite ensinar assim? Quais são minhas crenças e valores a respeito de como se conhece, a respeito do ensino e da aprendizagem? Por que faço determinadas opções metodológicas e não outras?’’ Essas questões podem ter respostas diferentes ao longo da trajetória profissional de um educador, à medida que seu conhecimento e suas experiências vão modificando seu modo de ser pessoal e profissional, mas temos que ter clareza do que nos move como educadores e buscar sempre mais coerência em nossas opções Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos MÓDULO 3 Quando nós pensamos que não temos cultura nós deixa de ser culto. Quando nós pensamos que não sabemos nada nós deixa de saber e descobrir um mundo de sabedoria que nos leva a avoluir e crescer. Quando nós pensamos que somos incapazes, nós acaba sendo lezado e explorado por pessoas que não tem nem a capacidade que temos. Maria Aparecida Martins, Aluna adulta do Programa Municipal de Erradicação do Analfabetismo da Prefeitura Municipal de Uberlândia Texto produzido em sala de aula em 1992. 30 Princípios e Métodos de Alfabetização I pedagógicas. Afinal, não somos técnicos, aplicadores de teorias alheias, forjadas por outros, mas profissionais da educação, pensadores, conhecedores da experiência mais humanizadora: ensinar e aprender. Para termos essa clareza, a pergunta inicial que devemos responder é: “Como se dá o conhecimento?”. A informação externa emana dos objetos e vem do meio para o indivíduo? Ou esse indivíduo já possui estruturas endógenas que são impostas aos objetos? As epistemologias clássicas (o apriorismo, concepção que delega o conhecimento ao amadurecimento, em etapas organizadas e pré-determinadas, de fatores inatos ou programados na bagagem histórica do indivíduo, ou o empirismo, uma concepção que entende a gênese do conhecimento do indivíduo como obra da percepção, um “carimbo do meio”) postulam, apesar de seus caminhos diversos, a ideia de que, na relação desenvolvimento/aprendizagem, vinculada à relação sujeito/objeto do conhecimento, existem em todos os níveis um sujeito conhecedor de suas possibilidades e objetos existentes aos olhos desse sujeito, além de instrumentos de acesso do sujeito ao objeto ou vice-versa. Uma terceira corrente, porém, discorda desse postulado: para a epistemologia genética, o conhecimento não se origina nem do sujeito consciente de si mesmo nem dos objetos já constituídos que a ele se imporiam. Isso quer dizer que o instrumento inicial de mediação entre o sujeito que vai conhecer e o objeto a ser conhecido não é a percepção (não é apenas experimentar, ver, ouvir, tatear, sentir), mas vai além dela: é a ação do sujeito sobre esse objeto. “Conhecer significa organizar, estruturar e explicar o real a partir das experiências vividas” (Palangana: 1994:66). O conhecimento da criança pequena se dá pela construção de esquemas mentais que lhe permitem adaptar-se ao mundo. A partir de sua bagagem hereditária (nervos, músculos, reflexos) e da exercitação de seus reflexos, que são automáticos, o bebê constrói seus esquemas motores que nada mais são que o que pode ser generalizável em uma ação. “De acordo com a hipótese piagetiana, a criança age ‘no mundo’, organizando-o e estruturando-o e, concomitantemente, ocorre a construção (interna) das estruturas mentais – graças justamente a essa atividade motora” (Chiarottino, 1988:11). O pensamento parte de estruturas fundamentais à organização vital e as reconstrói num plano que lhes é específico: o da representação - os esquemas motores se tornam progressivamente representações, com as quais esses esquemas se transformam em operações do pensamento, inicialmente concretas e, gradativamente, formais. A concepção piagetiana da construção do conhecimento na interação entre o sujeito e o objeto de conhecimento é considerada interacionista.Bem, voltando ao nosso ponto de partida, a concepção de educação que o professor tem é diretamente proporcional à sua prática de vida e profissional. “A intervenção pedagógica do professor é influenciada pelo modo como pensa e como age nas diversas facetas de sua vida” (Langford, apud Sacristán, 1991:66). Alguns estudos mostram que o professor tende a ensinar pela forma como foi ensinado. Quando passamos por uma revolução conceitual, como a provocada pelas pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky a respeito da aprendizagem da linguagem escrita, que nos mostraram um aluno inteligente, reflexivo, cognitivamente e linguisticamente capaz, temos que nos posicionar frente a essa nova realidade. Segundo Ferreiro e Teberosky, quando analisamos a literatura sobre a alfabetização encontramos basicamente dois tipos de trabalhos: os dedicados a difundir tal ou qual metodologia como sendo a solução para todos os problemas do ensino da leitura e da escrita e aqueles destinados a estabelecer a lista de capacidades ou aptidões necessárias envolvidas nessa aprendizagem. Esclarecendo que suas pesquisas não se enquadram nem em um nem em outro caso, afirmam que têm buscado nessa literatura o sujeito cognoscente, ou seja, aquele que busca adquirir conhecimento, aquele que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e tenta resolver as questões que esse mundo apresenta. Não é um sujeito que aprende porque amadureceu e ficou pronto para aprender determinado conteúdo (como defende o inatismo), tampouco aquele que aguarda que alguém que possui o conhecimento lho transmita por um ato de boa vontade (como o diz o empirismo). Não! É o sujeito cognoscente piagetiano, aquele que conhece/aprende basicamente por suas ações sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias categorias de pensamento, ao mesmo tempo que organiza seu mundo. O que Ferreiro e Teberosky propuseram, partindo dos pressupostos psicogenéticos piagetianos, é que se distingam métodos de ensino de processos de aprendizagem, pois, se em um paradigma condutista, ou 31Princípios e Métodos de Alfabetização I empirista, o método de ensino e o processo de aprendizagem aparecem identificados (o estímulo controla a resposta, e o aprendizado nada mais é que a substituição de uma resposta por outra memorizada), segundo Piaget, pelo contrário, a distinção entre eles é clara, já que para a epistemologia genética os estímulos não atuam diretamente, mas são transformados pelos esquemas de assimilação do sujeito e, nesse ato de assimilação, esse sujeito interpreta o estímulo e não simplesmente o recebe e o absorve. Por esse motivo, se torna claro que um método fechado e de base condutista não responde às necessidades de aprendizagem do sujeito, pois não segue necessariamente o que se passa na cabeça do aprendiz, não podendo responder com antecipação pela orientação dos caminhos de sua aprendizagem. Perguntamo-nos: não acontecerá o mesmo com a lectoescrita? Até que ponto é sustentável a ideia de que se tem que passar pelos rituais de “ma-me-mi-mo-mu” para aprender a ler? Qual é a justificativa para se começar pelo cálculo mecânico das correspondências fonema/grafema para então se proceder, e somente então, a uma compreensão do texto escrito? É justificável essa concepção da iniciação da lectoescrita concebida como uma iniciação às cegas (isto é, com ausência de um pensamento inteligente) à transcrição dos grafemas em fonemas? (Ferreiro e Teberosky, 1999: 31) A teoria de Piaget permite introduzir a escrita como objeto de conhecimento e o alfabetizando como sujeito cognoscente, ativo, criativo e inteligente. Esse sujeito ativo não é aquele que faz muitas coisas ou que tem uma atividade observável. Tampouco aquele que está realizando materialmente algo, seguindo instruções ou copiando modelos. Segundo as autoras, um sujeito cognitivamente ativo é aquele que compara, categoriza, ordena, formula hipóteses, exclui, reformula, comprova hipóteses, reorganiza, tanto em ações interiorizadas – pensamento - quanto em ação efetiva, conforme seu nível de desenvolvimento. O sujeito ativo na alfabetização não é aquele para quem o professor organiza o ambiente e o deixa apenas explorar, no seu tempo e à vontade, os materiais escritos, sem a interferência ou a problematização do professor que aguarda que, no tempo certo, o aprendizado acontecerá. Esse é o aluno que o professor empirista espera: o tempo, o ritmo e a construção são do aluno e independem da intervenção do professor. Tampouco é aquele cujo professor, na tentativa de lhe provocar uma mudança conceitual, ou seja, uma aprendizagem, se perde num ativismo desenfreado, em que, apesar da enorme quantidade de atividades pré-programadas, quase nada exige do aluno em termos cognitivos, a não ser prosseguir copiando, copiando, copiando, memorizando, memorizando, memorizando, sem provocar reflexão, valorizando muito mais a interferência do meio na aprendizagem que a ação inteligente do aluno sobre o objeto de conhecimento. No construtivismo, apoiado na epistemologia genética e na psicologia sócio-histórica, a aprendizagem não é espontânea nem se dá por memorização, mas é construída pela atividade do sujeito que tenta sucessivamente criar esquemas para entender o mundo que o rodeia, internalizando a cultura, os símbolos (como a linguagem oral e escrita), tanto pela interação na família e no entorno social quanto (e aí se encontra o fundamental papel da escola!) pela socialização do conhecimento social e historicamente elaborado. O aluno analfabeto, tanto criança quanto adulto, já possui várias hipóteses sobre a linguagem escrita pelo convívio com os usos sociais que se fazem dela, mas ainda não sabe utilizá-la corretamente por não se ter apropriado dos seus mecanismos de funcionamento. Numa aprendizagem formal e escolar em que suas hipóteses sobre essa linguagem são constantemente questionadas e reconstruídas, até chegar ao uso que hoje a comunidade faz, será possível a esse aluno usá-la conscientemente, sem as limitações que poderiam ocorrer em outras situações de aprendizagem. Se observarem as concepções de conhecimento presentes no texto de Fernando Becker disponível em nosso Ambiente Virtual de Aprendizagem que conta alguns aspectos da história do desenvolvimento científico na história da humanidade, verão que em determinados momentos certos fatos não foram observados porque não se dispunha de uns “óculos” ou um esquema interpretativo para isso, sendo possível reconhecê-los só depois de um longo tempo, em outras condições que geraram novos esquemas que, aí sim, permitiram observar esses fenômenos ou fatos. Isso também acontece com os aprendizes: há uma progressão no que é possível ser observado, concomitante com o desenvolvimento dos esquemas interpretativos do sujeito. No Brasil, o Construtivismo chegou à sala de aula das pré-escolas e primeiras séries do ensino fundamental por meio dos estudos de Piaget sobre a aquisição do conhecimento lógico-matemático. Entretanto, em meados da década de 80, quando as pesquisas de Emília Ferreiro e colaboradores foram traduzidas para o 32 Princípios e Métodos de Alfabetização I português, a teoria foi significativamente mais divulgada. Causando inicialmente uma rejeição absoluta, pela ruptura dos valores há muito impregnados em educação, trouxe a enorme colaboração prática de resgatar o aluno como participante ativo na educação escolar. Ao mesmo tempo, permitia ao professor alfabetizador trazer à tona, de forma mais objetiva, como se dava o processo de aprendizagem da língua escrita pelo aluno. Eram questões óbvias, mas ninguém tinha conseguido perceber anteriormente como se dava esse processo. O professor se sentiu extremamente despreparado e incompetente, e esse foi um dos motivos para ele rejeitar a “invasão” da escola por essa teoria. Após esse choque inicial, a maioria dos professores começou
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