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Síntese da obra CAROLINA

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Síntese da obra
Quarto de despejo é um relato de fatos verídicos vivenciados ou presenciados pela autora, que faz questão de registrá-los quase que diariamente. Em seu diário, Carolina Maria de Jesus descreve a favela do Canindé, as pessoas e o tipo de vida que levam. Relata as brigas constantes entre marido, mulher e vizinhos, a fome, as dificuldades para se obter comida, as doenças a que estão sujeitos os moradores da favela, seus hábitos e costumes, as mortes, o suicídio, a presença constante da miséria de uma sociedade marginalizada e esquecida pelos governantes.
“15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela.”
Assim tem início o diário de Carolina, que terminará em 1º de janeiro de 1960:
“1.º de janeiro de 1960. Levantei as 5 horas e fui carregar água.”
Ao longo desses anos, a autora registra a vida na favela, a sua luta diária contra a fome, o esforço para criar com dignidade os filhos José Carlos, João e Vera Eunice. A fome é uma constante ao longo da obra:
"Como é horrível ver um filho comer e perguntar: Tem mais? Esta palavra tem mais fica oscilando do cérebro de uma mãe que olha a panela e não tem mais. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! Eu estou triste porque não tenho nada para comer.” 
Quando consegue algum alimento, a narradora reflete sobre sua condição de pessoa expulsa do mundo humano:
“Quando eu levava feijão pensava: hoje eu estou parecendo gente bem, vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!”
A miséria que presencia é tão chocante que Carolina acha que alguém poderia não acreditar no que conta:
“.... Há existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.”
Com grande senso crítico, a autora destaca as visitas do padre à favela:
“De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter filhos ¬ se filhos de pobre tem que ser operário? (...) Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com pão. Não vestem e não calçam.”
O contraste entre a favela e a cidade é percebido com acuidade e senso crítico por Carolina:
“Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas.Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.”
Fatos corriqueiros como brigas entre marido e mulher, entre as mulheres e os bêbados, a presença da Rádio Patrulha, mortes por intoxicação com alimentos putrefatos são narrados com detalhes por Carolina:
“Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono. Despertei com um bate-fundo perto da janela. Era a Ida e a Amália.A briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim interviu pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.”
Ao olhar atento da narradora nada escapa:
“.... Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a gora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras [...] Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direito.As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão.”
Sempre em atrito com os vizinhos por causa dos filhos, Carolina diz:
“ Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.”
Carolina demonstra ser uma pessoa exatamente atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek.A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e consciente.
“.... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente 
que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olho o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.”
Sobre sua obra, Carolina afirma:
"Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade."
Outros trechos
22 de julho de 1955
... Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo! Virei na rua Frei Antonio Galvão. Quase não tinha papel.(...) Enchi dois sacos na rua Alfredo Maia. Levei um até ao ponto e depois voltei para levar outro. Percorri outras ruas. Conversei um pouco com o senhor João Pedro. Fui na casa de uma preta levar umas latas que ela tinha pedido. Latas grandes para plantar flores. Fiquei conhecendo uma pretinha muito limpinha que falava muito bem. Disse ser costureira, mas não gostava da profissõ. E que admirava-me. Catar papel e cantar.
Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.
7 de junho de 1958
Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida.
Eu e Vera fomos catar papel. Passei no Frigorifico para pegar lingüiça. Contei 9 mulheres na fila. Eu tenho mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos.
Encontrei muito papel nas ruas. Ganhei 20 cruzeiros. Fui no bar tomar uma média. Uma para mim e outra para a Vera. Gastei 11 cruzeiros. Fiquei catando papel até as 11 e meia. Ganhei 50 cruzeiros.
... Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
- Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
- Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os politicos distantes do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
- O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos. (...)
9 de junho de 1958
... Eu já estava deitada quando ouvi as vozes das crianças anunciando que estavam passando cinema na rua. Não acreditei no que ouvia. Resolvi ir ver. Era a Secretaria da Saude. Veio passar um filme para os favelados ver como é que o caramujo transmite a doença anêmica. Para não usar as aguas do rio. Que as larvas desenvolve-se nas aguas(...) Até a agua... que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos, não é puro, porque jogam lixo aqui na favela.
Mandaram os favelados fazermictorios.
11 de junho de 1958
... Já faz seis meses que eu não pago a agua. 25 cruzeiros por mês. E por falar na agua, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar agua. Quando as mulheres aglomeram na torneira, enquanto esperam a sua vez para encher a lata vai falando de tudo e de todos. (...) Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estva no céu. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios (...).
Leitores da década de 1960/70 devem se lembrar de Quarto de Despejo, o super best-seller escrito por Carolina Maria de Jesus. Ela era mulher, negra e pobre, mas foi contra todas as estatísticas e conseguiu vender mais de um milhão de cópias do livro em que contou o cotidiano da vida que levava na extinta favela do Canindé, na zona norte de São Paulo.
Mesmo tendo estudado apenas até o segundo ano do primário, Carolina gastava o tempinho que lhe sobrava quando não estava cuidando dos filhos ou catando sucata lendo e escrevendo em diários. Diários que, aliás, usava como válvula de escape, trampolim (pois sempre teve a intenção de publicá-los) e arma. Vocês acreditam que ela ameaçava vizinhos e afins dizendo que iria expô-los em seus livros se eles continuassem fazendo papelão?
E foi dessa forma que a até então aspirante conheceu o jornalista Audálio Dantas. Ele estava fazendo alguma reportagem na favela e a encontrou batendo boca com os moradores, dizendo que iria colocá-los nos diários. Audálio ficou interessado e, pronto, em 1959 conseguiu publicar um texto de Carolina na revista O Cruzeiro. Mais alguns meses e Quarto do Despejo foi publicado.
Com o sucesso instantâneo (acho que era a primeira vez que o Brasil via uma negra da favela falando por si), Carolina conheceu Clarice Lispector (que estava no lançamento do livro!), mudou-se da favela que tanto odiava e viajou em eventos literários pelo mundo. Só que suas obras lançadas a partir daí não deram muito certo, e a escritora foi esquecida. Morreu em 1977, aos 62 anos, no sítio que comprou na zona sul de São Paulo.
Como o reconhecimento costuma vir quando o escritor já não está mais aqui, em 2014, Carolina recebeu muitas homenagens em virtude de seu centenário. Na ocasião, sua filha, a Vera Eunice que aparece tanto nos diários e hoje é professora, deu algumas entrevistas relembrando a mãe.
Minhas impressões sobre o livro Quarto de Despejo 
O diário foi escrito, com períodos de interrupção, entre 1955 e 1959. O conteúdo não tem muito segredo, é algo no estilo: acordei, fui pegar água, só tinha arroz para comer... Mas acho que o poder da narrativa está justamente na repetição. Chegou uma hora da minha leitura que eu pensei: "gente, ela só fala sobre comida". Só que é este o ponto... Para uma mãe solteira com três filhos, comer era o grande desafio. Fome é uma palavra que a autora usa praticamente todos os dias.
Outro ponto que a repetição evidencia é que são cinco anos de mesmisse. Trocam-se os políticos, mas nada muda para os favelados.
E quando Carolina fala de favela, não está se referindo ao que nós conhecemos como tal hoje em dia. Por um lado, não há relatos no livro sobre tráfico, violência policial e afins. Por outro, eram lugares completamente isolados da cidade, com gente se alimentando de comida podre e crianças morrendo, tipo, pisoteadas pelos pais durante uma briga conjugal.
Ah, os editores optaram por publicar o texto na íntegra, sem alterar os erros ortográficos de Carolina (que, diga-se de passagem, eram muito poucos considerando-se sua baixa escolaridade). Não gostei da escolha. Sei que ajuda a fazer o leitor a entrar no clima, mas também acho que a escritora merecia o mesmo tratamento dado a qualquer outro literato. Ou vocês acham que Clarice mandava originais impecáveis para as editoras? Duvido.
Frases de Carolina Maria de Jesus 
Por fim, deixo com vocês minhas frases favoritas de Quarto do Despejo.
"Nunca vi uma preta gostar tanto de livros como você."
"Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando."
"Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos."
"A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país, tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos, fraquíssimos. E tudo o que está fraco, morre um dia."
"Tem pessoas que, aos sábados, vão dançar. Eu não danço. Acho bobagem ficar rodando pra aqui, pra ali. Eu já rodo tanto para arranjar dinheiro para comer."
"Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer."
Em uma conjuntura tão conturbada em nosso país, em que as instituições e seus representantes protagonizam os noticiários e dominam os debates na esfera pública, é necessário que voltemos à realidade, que voltemos a nos chocar com a vida que está nas ruas dos bairros de nossas cidades, que observemos os problemas e injustiças sociais em seu caráter humano.
Por Ricardo Juozepavicius Do Justificando
Foto: Audálio Dantas
É sempre valioso ouvir e amplificar a voz de quem nos oferece a lucidez de que há seres e problemas humanos demais, concretos demais, apesar das instituições.
O livro Quarto de Despejo (1960), escrito por Carolina Maria de Jesus (1914 –1977) entre 1955 e 1960, é um retrato literário que cumpre perfeitamente essa função. Trata-se de uma escrita testemunhal sobre o cotidiano da autora e dos moradores da Favela do Canindé, em meio a explosão urbana que São Paulo passava na época, com os consequentes sofrimentos, indignações, revoltas e angústias que a população marginalizada era obrigada a superar diante de sua situação de miséria e desamparo.
A escritora Carolina Maria de Jesus, por Audálio Dantas.
A autora, Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe de João, José Carlos e Vera Eunice, favelada, catadora de lixo e escritora, escreveu seu diário em cadernos que encontrava nos lixos de São Paulo. A autora escreve em forma de diário as tarefas e os acontecimentos de seus dias, não poupando expressões para detalhar suas dores e os absurdos da vida que levava em condições de extrema marginalização.
Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade (p. 72).
O livro veio a público quando o jornalista Audálio Dantas, visitando a Favela do Canindé, conhece Carolina por acaso e se encanta com seu diário, promovendo e auxiliando na publicação da obra. Quarto de Despejo foi um sucesso de vendas no Brasil e no exterior[3] e, na época, levantou uma curiosa polêmica acerca da veracidade de sua composição, suspeitava-se que o jornalista teria forjado a obra para alcançar o sucesso comercial, diante de relatos tão caprichosos e intensos houve a desconfiança infundada e preconceituosa de que não poderia realmente ser uma mulher negra, pobre e pouco letrada a real autora da obra.
Os relatos são tristes e cruelmente reais. As frases curtas, impactantes, e a linguagem real e cheia de vida, transformam a leitura de suas memórias em algo vívido e perturbador. É inevitável que o leitor – contando com um mínimo de empatia – sentirá o peso da vida naquele lugar, as angústias da fome e a esperança – e falta dela – de Carolina levar uma vida mais digna junto aos seus filhos.
O título Quarto de Despejo é uma alusão à metáfora que a autora utiliza em algumas oportunidades para expressar a posição da favela e de seus moradores em relação à cidade:
“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (p. 33).”[4]
“Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas.Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras.  As favelas(p. 76).”
O motor do livro é a indignação. A situação de pobreza e marginalização não é nunca naturalizada, a autora manifesta seus desgostos, sua indignação, reclama de seu sofrimento e sonha com mudanças pessoais e também com mudanças na esfera política que façam a situação coletiva prosperar.
Em conversas com outros moradores frequentemente é esse o assunto junto a política, políticos, eleições, governo, economia, e também os acontecimentos cotidianos da própria comunidade, pessoas que chegam e que vão, brigas entre moradores, problemas conjugais, entre outros.
Um dos aspectos que mais marcam a dor vida da autora e o incômodo que a leitura causa é a fome que, além de Carolina, também é personagem principal do livro. As palavras pão, água, café, ao lado da própria fome, repetem-se em quase todos os dias do diário. Aluta contra a fome – sua e de seus filhos – é constante e conduz toda a vida de Carolina no período do diário.
“Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou aos meus olhos.
A comida no estômago é como combustível nas máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. Meu corpo deixou de pesar. […] Eu tinha a impressão que eu deslizava no espaço. Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida (p. 36).”
“É quatro horas. Eu já fiz almoço- hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e reponho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está no alcance do favelado, fico sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante (p.44).”
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (p. 27).”
Além da condição de pobreza e fome, outros temas que incomodam Carolina são abordados diversas vezes e chamam a atenção pela atualidade e pelo seu conteúdo jurídico, sendo que o modo que a autora descreve e encara as situações permite notar uma visão do direito e de sua relação com a população de um ponto de vista mais humano e concreto, da forma como as questões aparecem em seu cotidiano, e como continuam a aparecer no cotidiano de milhões de brasileiros e brasileiras, ou seja, distante das instituições jurídicas, que nem mesmo alcançam aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade social e distanciamento das agências de poder e centros decisórios.
É o caso, por exemplo, das inúmeras descrições de violência doméstica entre moradores da favela, que é colocada como uma questão complexa e ligada a muitos outros fatores que condicionam a vida daquelas pessoas, além de assédios, abusos, estupros e do evidente caráter misógino de nossa sociedade, em que Carolina demonstra que o gênero as deixavam em posição extremamente mais vulneráveis do que os homens em todas as esferas sociais:
“Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil, porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra, só lia os nomes masculinos como defensores da pátria então eu dizia para minha mãe:
– Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por debaixo do arco íris você vira homem.
Quando o arco íris surgia eu ia correndo na sua direção mas o arco íris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante de povo. Eu cançava e sentava, depois começa a chorar. Mas o povo não deve cançar, não deve chorar, deve lutar para melhorar o Brasil para nosso filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para minha mãe:
– O arco íris foge de mim (Jesus, 1963, p. 48).”
Carolina também descreve comparecimentos ao Juizado de Menores para buscar seus filhos que estavam nas ruas enquanto ela trabalhava, ou esclarecer problemas de condutas consideradas como crimes. Também relata suas idas ao Juízo para retirar o dinheiro da pensão paga pelo pai de seus filhos, enfrentando filas, atrasos de pagamento, e burocracias que complicavam ainda mais a sua situação econômica, tendo que sustentar três filhos sozinha.
O problema do alcoolismo na comunidade também tem importante espaço no relato de Carolina. O álcool ligado muitas vezes às brigas conjugais, familiares e entre moradores, é normalmente combustível para violência física ou verbal na comunidade, ensejando em contextos de crimes e problemas graves de saúde.
As ocorrências de delitos, dentro e fora da favela, também chamam a atenção no relato da autora. Sobre isso, ela menciona à criminalização seletiva da população da favela por parte da polícia, em que pessoas com o estereótipo de “negro, pobre e favelado” normalmente são as selecionadas pela polícia:
“Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 96).”
A autora descreve situações em que o aparato repressor do Estado, através da rádio patrulha, intervém nos conflitos de maneira quase sempre neutralizadora; ou seja, encaminhando pessoas para a prisão ou detenção nas delegacias. Carolina relata também alguns furtos e roubos dentro da favela, acerto de contas de dívidas, e também o problema da vingança privada, através dos linchamentos, que reflete o total desamparo daquela população no tocante aos serviços governamentais.
O Estado está presente ali apenas para reprimir.
Carolina também escreve sobre as questões raciais dentro e fora da favela, relata sobre episódios de racismo, e deixa transparecer um pouco da estrutura racializada da cidade de São Paulo na época e da posição marginalizada que os negros e negras ocupavam, mas também exalta a sua cor e o desejo de igualdade:
“Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta […] O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém (p. 58).”
Cada leitor e leitora deve sentir o impacto da experiência que Carolina Maria de Jesus proporciona. O objetivo deste texto foi apenas ecoar o testemunho escrito da autora, e chamar atenção para suas questões jurídicas atuais e profundamente humanas, que às vezes ficam esquecidas diante das questões políticas do dia, das questões institucionais que nos parecem tão necessárias e urgentes, mas que muitas vezes colocam um véu sobre os problemas e sofrimentos tangíveis existentes em um Brasil que ainda pulsa e vive.
Ricardo Juozepavicius Gonçalves é Doutorando e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Edição Popular, 1963.
[2]Mais informações sobre a vida e obra de Carolina Maria de Jesus neste vídeo elaborado pela FAPESP: https://www.youtube.com/watch?v=T0ncwWD1C9g
[3]Publicada em inglês com o título Childof The Dark.
[4]Manteve-se a ortografia original nas citações.

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