Buscar

Olavo de Carvalho - 01 - História das Histórias da Filosofia

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 33 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 33 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 33 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

Coleção História Essencial da Filosofia 
História das Histórias da Filosofia - Aula 1 por Olavo de 
Carvalho 
 
Aula 1: A História das Histórias da Filosofia 
Nomes dos capítulos: 
• História x Essência 
• Estilos de Histórias da Filosofia 
• Modelo expositivo – visão aristotélica 
• Modelo filosófico – visão hegeliana 
• Narrativa histórica – Leopold von Ranke 
• Filosofia como expressão cultural 
• Crítica às estruturas de Karl Marx 
• Visão social 
• Metodologia de um novo modelo: o Projeto Filosófico 
• Os princípios deste novo modelo 
• As condições dos projetos humanos 
• Síntese dos métodos hegeliano e científico 
• Unidade problemática de um projeto 
• Crítica à expressão “um homem de seu tempo” 
• Causalidade mecânica de Isaac Newton 
• Indeterminações de Leibniz 
• Senso de eternidade e consciência histórica 
• Transformações do Projeto Filosófico (fatores endógenos e exógenos) 
• O projeto filosófico originário, tradições nacionais e doutrinas religiosas 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O título deste curso já é, de algum modo, o enunciado do problema que 
trataremos de resolver no curso das aulas. Este título contém duas expressões que 
enunciam pólos opostos de uma realidade. Quando falamos de História Essencial, 
por um lado nos referimos a algo que é história e, por outro, a algo que é essência. 
Essência, como se sabe, é aquilo que uma coisa é, conforme sua natureza ou sua 
constituição íntima, considerada desde o ponto de vista lógico e independentemente 
das transformações temporais que ela possa sofrer, e até de sua existência ou não. 
Pelo ponto de vista essencial, Napoleão Bonaparte já era Napoleão Bonaparte antes 
de nascer, continuou sendo enquanto viveu e é Napoleão Bonaparte até hoje; ou 
seja, sua morte não o transformou em outra pessoa. 
O ponto de vista da essência é, por excelência, supratemporal, portanto, 
supra-histórico. A palavra história, ao contrário, designa várias coisas. Designa desde 
logo a sucessão temporal dos acontecimentos, considerada materialmente. Designa, 
em segundo lugar, a ciência que estuda esta associação e também a própria dimensão 
temporal da vida humana. Designa, enfim, as obras, os livros escritos com a narrativa 
dos acontecimentos históricos. Em todos esses casos, é evidente a referência à ideia 
de que algo sucede no tempo e de que o suceder é necessariamente o aparecimento 
de fatores que não existiam antes e a desaparição de outros que existiam. É, portanto, 
uma dimensão de mutação estranha à esfera da essência à qual nos referimos na 
primeira expressão. 
Escolhi propositadamente a expressão "História Essencial" justamente 
para dar a ideia dessa tensão entre dois pólos, a tensão que nos mostra, de um lado, 
algo que permanece irredutivelmente igual ao que era no começo e que, de outro 
lado, muda de aparência, muda de figura. Quase que poderíamos dizer, com um 
pouco de exagero, que muda de identidade ao longo dos tempos. Essa tensão, a meu 
ver, é insolúvel; é uma das muitas tensões que definem polarmente a própria 
existência humana. Existem inúmeras dessas tensões, e veremos, no próprio curso 
da História da Filosofia, que muitas filosofias às vezes procuram resolvê-las 
mediante a amputação de um dos pólos, criando então uma visão um pouco artificial 
ou exagerada de uma faceta da existência. Todo nosso esforço será, ao contrário, 
para conservar todos os pólos opostos cuja tensão não possamos resolver, porque às 
vezes é essa tensão mesma que nos coloca de pé, nos faz ir para frente e, em última 
análise, marca toda a dignidade e a força da inteligência humana. 
Uma vez enunciado, explicado mais ou menos esse título, temos que ver 
que essa disciplina, a História da Filosofia, tem sido tratada de um certo número de 
maneiras. Há uma quantidade definida de estilos de História da Filosofia. Faremos 
uma breve resenha desses estilos para mostrar por que eles não nos satisfazem e, 
portanto, por que achei que deveria narrar a História da Filosofia de acordo com 
uma outra maneira, que não se enquadra em nenhuma das três modalidades 
costumeiras que vou passar a descrever. 
A primeira amostra de História da Filosofia que temos está nas obras de 
Aristóteles. Ele nunca escreveu uma obra chamada "História da Filosofia", mas cada 
problema filosófico que atacou, ele sempre começou por abordá-lo desde a narrativa 
das tentativas anteriores, feitas pelos seus antecessores, e com isto, evidentemente, 
quase sem querer, inaugurou essa disciplina chamada História da Filosofia. O modo 
como Aristóteles fazia essa resenha histórica dos problemas, antes de oferecer a 
solução que ele próprio achava a mais adequada, consistia em colocar todas as 
doutrinas, todas as alternativas na mesa, umas ao lado das outras, como se fossem 
contemporâneas. Quer dizer, são várias respostas possíveis para um mesmo 
problema - e estas podem ser, sob o ponto de vista aristotélico, cotejadas, 
comparadas umas com as ou outras, armando-se, portanto, uma dialética e uma 
discussão. 
Desses primeiros esboços aristotélicos surgem, bem mais tarde, nos 
séculos XVII e XVIII, algumas resenhas narrativas de História da Filosofia, que, na 
verdade, não fazem senão expor várias doutrinas, não sobre um problema particular, 
mas sobre doutrinas filosóficas inteiras, também as colocando todas mais ou menos 
no mesmo plano, como se fossem respostas ao mesmo problema, e como se os 
vários filósofos estivessem reunidos em torno de uma mesa discutindo 
contemporaneamente. É evidente que isto tem a vantagem de nos colocar dentro da 
discussão, porém, de certo modo, é a própria dimensão histórica que se perde. 
Embora uma obra assim organizada possa ostentar o título de História da 
Filosofia, na verdade não é história nenhuma: há apenas uma coleção de doutrinas 
que, estando organizadas cronologicamente, não estão coeridas entre si por nenhum 
laço temporal, mas apenas por seus pontos de encontro e desencontro lógicos, isto é, 
pelo acordo ou desacordo de seus respectivos conteúdos - o que não impede que 
essas obras sejam, do ponto de vista da exposição de cada uma das doutrinas, muito 
fiéis e meticulosas e de consulta necessária até hoje. Algumas delas são às vezes 
acompanhadas das apreciações que o autor da história julga dever fazer sobre cada 
uma das doutrinas, como se fosse o mediador ou o juiz do debate que está ali 
montado. 
À medida que se produzem histórias desse primeiro tipo - que 
chamaremos simplesmente de "histórias expositivas" -, a simples comparação de 
doutrinas acaba sugerindo a idéia de que umas saem de dentro das outras, ou seja, de 
que uma teoria aparece para responder uma anterior, para confirmá-la, para 
continuá-la, para aperfeiçoá-la, pura impugná-la, e assim por diante. Portanto, não 
existe somente a possibilidade do cotejo lado a lado, mas uma espécie de ligação 
interna entre as doutrinas. À medida que se vão percebendo essas conexões, vai-se 
formando com mais clareza a noção de escolas e de tradições que se prolongam no 
tempo, que são confrontadas ou impugnadas por outras escolas e tradições, as quais, 
por sua vez, também como respostas ou como alternativas, saem de certo modo de 
dentro das primeiras. 
A verificação da existência dessas conexões acaba por sugerir a idéia de se 
obter uma visão unitária do conjunto da evolução filosófica até aquele ponto em que 
está o próprio sujeito que faz esse exame. Surge, então, a idéia da História da 
Filosofia como uma disciplina filosófica ela própria, ou seja, como uma interpretação 
filosófica dessa seqüência de acontecimentos históricos que se chama “A História da 
Filosofia". O próprio nome passa a ser usado em dois planos: por um lado, para 
designar o desenvolvimento temporal e dialético interno da Filosofia e, por outro, o 
estudo reflexivo, a interpretação global que se faz, a posteriori, desse movimento 
tomado como umconjunto. O modelo, o protótipo das histórias desse tipo são as 
famosas lições sobre a História da Filosofia, de Hegel. 
Hegel entendia que o conteúdo da Filosofia era a própria História da 
Filosofia, ou seja, que o desenvolvimento temporal da História da Filosofia era uma 
dialética interna pela qual essa dimensão filosófica ia se revelando no tempo, como 
uma espécie de tomada de consciência do espírito por si mesmo. Então, a História da 
Filosofia já passa a ser a manifestação externa de um fenômeno de ordem interna ou 
espiritual. Aquela série de produtos objetivados do espírito, que são os livros, as 
doutrinas, as idéias, etc., vai se exteriorizando ao longo do tempo, mas como 
manifestações de um fenômeno único e a própria unidade do espírito humano. Os 
filósofos individuais - funcionando aí mais ou menos como bonecos de ventríloquo 
nas mãos da própria razão ou do próprio espírito que fala através deles - tornam-se 
elos de uma cadeia contínua da qual eles não precisam necessariamente ter 
consciência, mesmo porque a unidade dessa cadeia só se revelaria nas suas etapas 
finais, das quais justamente o próprio Hegel acreditava ser a testemunha e o 
porta-voz. Isso quer dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como uma espécie de 
conclusão do movimento global da História da Filosofia até aquele ponto. 
A objeção que podemos apresentar a esse tipo de História da Filosofia é a 
de que a idéia de desenvolvimento temporal unitário só se aplica, a rigor, a seres que 
têm uma existência contínua do ponto de vista orgânico, como, por exemplo, um 
animal ou uma planta. Um animal, desde seu nascimento até sua morte, conserva 
integralmente a sua forma intrínseca. Ele pode mudar um pouco na sua aparência 
exterior, mas continua funcionando de acordo com as mesmas regras. Isto significa 
que a mesma fórmula de funcionamento que faz um animal se alimentar e crescer 
quando é pequeno, esta mesma fórmula o fará definhar e morrer quando ele for 
velho. Então, evidentemente, quando estamos falando de fenômenos da natureza, 
existe uma continuidade óbvia na história dessas entidades ou desses organismos 
tomados como individualidades, e nós podemos captar essa unidade justamente 
porque a existência de todos os seres da esfera do campo orgânico é uma existência 
limitada no tempo; não existe nenhum ser destes que dure indefinidamente, não 
existe nenhum animal eterno ou perene, nem animal nem planta. Corno existe um 
término definido para a existência do bicho, podemos, evidentemente, raciocinar 
sobre ele concebendo começo, meio e fim, porque esta é sua vida ou sua biografia. 
Quando nos transpomos para a dimensão histórica - seja a História em 
geral, seja a História da Filosofia em particular -, o processo não tem término 
temporal definível, não sabemos quando isso vai terminar. Ou seja, em nenhum 
ponto da História da Filosofia jamais alguém pôde assegurar com plena certeza se a 
Filosofia era jovem, madura ou velha, se ela estava nascendo ou morrendo, se estava 
terminando ou começando, porque esta afirmação exigiria uma previsão do término 
da própria existência humana - não da existência do indivíduo filósofo, mas da 
existência da espécie humana ou pelo menos do término da sua capacidade 
filosofante. O fato é que nenhum de nós tem essa capacidade. 
As lições sobre a História da Filosofia, de Hegel, terminam mais ou menos 
artificialmente nele próprio, considerado como término e coroamento do processo 
filosófico, devendo a Filosofia, logo em seguida, desaparecer ou ser transformada 
numa coisa totalmente diferente que não pudesse ter pontos de conexão com a sua 
origem primeira. O fato é que isso não aconteceu; continuou havendo atividade 
filosófica, algumas dentro da linha de transformação que Hegel havia previsto, 
outras completamente fora disso. A sobrevivência da História da Filosofia em 
relação ao tempo de Hegel é um simples fato que não temos como negar. 
Dizemos também aí que a idéia de contemplar o movimento temporal das 
idéias filosóficas como um movimento único, como uma dialética, uma lógica 
interna, essa idéia não é de todo má; continua sendo uma necessidade, pelo próprio 
instinto unificante que o ser humano tem. Nossa mente é rebelde à idéia de uma 
pluralidade caótica, e em tudo procuramos resumir e unificar, até por força dessa 
mesma exigência. A idéia de Hegel - de unificar num só movimento a totalidade do 
desenvolvimento das idéias ao longo do tempo - continua sendo um esforço 
necessário, embora de certa maneira já declarado de início como utópico e destinado 
a ter de ser refeito em novas bases a cada nova geração que ataque esse problema. 
Temos aí mais uma tensão. Por um lado, teríamos que buscar na História 
da Filosofia a unidade do movimento, ou seja, teríamos que pegar a massa de fatos 
registrados em livros e depoimentos ao longo de dois mil e tantos anos e tentar 
captar neles algum perfil, de modo que pelo menos a história pudesse ser contada - e 
contada como uma história única, pelo menos como uma mesma história ou como a 
história da mesma coisa, não como um simples ajuntamento de fatos dispersos e 
inconexos. Por outro lado, sabemos que essa tentativa de unificação só pode ter um 
sucesso parcial, porque qualquer linha unitária de desenvolvimento que tenhamos 
conseguido discernir até o ponto em que atamos - mesmo que tenha sido discernida 
da maneira mais correta, mais exata e mais real que se possa imaginar -, no instante 
seguinte o rumo das coisas pode tomar uma direção completamente diferente. Sua 
interpretação de conjunto irá por terra, embora até aquele momento deva ser 
considerada correta, quando tiver que ser integrada numa outra interpretação, que 
toma os fatos numa escala temporal maior. 
Tendo em vista as deficiências ou falhas desses dois modelos de História 
da Filosofia - o modelo expositivo e o modelo filosófico, dos quais o primeiro 
continua sendo usado em muitos manuais e obras introdutórias até hoje -, aconteceu 
que, ao mesmo tempo em que Hegel estava fazendo esse esforço de interpretação 
filosófica do arco percorrido pela Filosofia até o seu tempo, mais ou menos 
contemporaneamente estava se constituindo a História como ciência organizada tal 
como hoje nós a conhecemos. O grande responsável por isso foi Leopold von 
Ranke, que era uma espécie de contemporâneo e antagonista de Hegel. Ele não era 
antagonista no campo filosófico - Ranke não se metia em discussões filosóficas -, 
mas representava a alternativa oposta. 
A alternativa oposta consistia apenas em o historiador ter consciência de 
que sua função não era, em primeiro lugar, obter alguma interpretação de conjunto 
daquilo que está acontecendo, nem produzir uma narrativa unitária à força, mas 
simplesmente reconstituir, com base nos documentos, nas provas, aquilo que tinha 
acontecido, exatamente como tinha acontecido. Dizia ele: "A função da história é 
contar as coisas como efetivamente se passaram, quer essa reconstituição possa levar 
a uma interpretação, a uma compreensão de conjunto, quer, ao contrário, a narrativa 
dos fatos, justamente por ser exata, só leve a problemas e contradições". 
Entre uma narrativa que se compreende perfeitamente, que parece 
inteiramente lógica, mas que não reflete a realidade dos fatos conforme aparece nos 
documentos, e uma outra narrativa que, embora comprovada nos documentos e nos 
fatos, pareça no fim das contas incompreensível e enigmática, o historiador deverá 
preferir esta última. 
Ou seja, a missão da História não é filosofar, mas contar a História com o 
máximo de exatidão científica que se possa, tomando por base sobretudo o exame 
crítico dos testemunhos e dos documentos e a reconstituição exata das várias linhas 
de sucessão e contemporaneidade cronológica. 
Essa ciência, a ciência histórica, foi talvez a que mais progrediu nos 
últimos duzentos anos. Temos a idéia de que a ciência da natureza,sobretudo a 
Física e a Biologia, está sempre na vanguarda do conhecimento, e isso não é 
absolutamente verdade. A ciência histórica, em matéria não só de abrangência de 
volume de fatos, mas também de exatidão e de critério na sua triagem, vem 
alcançando vitória atrás de vitória há duzentos anos, e hoje se pode considerá-la 
talvez a mais confiável das ciências - não na linha do Hegel, da interpretação de 
conjunto, mas, ao contrário, na linha do velho Leopold von Ranke - e, de contar as 
coisas como elas efetivamente se passaram, embora disso não resulte às vezes nem 
uma compreensão filosófica adequada, apenas enigmas e problemas. A função do 
historiador seria, então, contar as coisas, narrá-las, e não explicá-las filosoficamente, 
não explicá-las pelas suas causas últimas. Seria apenas reconstituir os elos causais 
mais imediatos, mais materiais e mais comprováveis. 
As duas linhas de evolução possível, a inaugurada na Filosofia por Hegel e 
aquela inaugurada por Ranke, ambas progrediram ao mesmo tempo, e houve vários 
pontos de encontro e desencontro. Estes constituiriam por si matéria para todo um 
curso - as relações entre Filosofia e História nos últimos duzentos anos -, uma 
narrativa que se complicaria ainda mais e se tornaria muito mais interessante pelo 
fato de que, logo em seguida, aparece a idéia de uma ciência não narrativa, de uma 
ciência sistemática e explicativa da realidade social humana. Aí começa a se constituir 
o que hoje nós chamamos as Ciências Sociais, cuja função, evidentemente, não é 
apenas narrar, mas justo o contrário, tentar encontrar os nexos causais repetíveis 
constantes, etc. 
Não são, portanto, apenas duas linhas que se fundem, mas três: a de 
Hegel, com a idéia da História da Filosofia como manifestação unitária do espírito ao 
longo do tempo; a idéia de Ranke, da História Científica, que tem cada um dos seus 
elementos escorado em documentos e testemunhas; e a idéia das Ciências Sociais, 
que surge mais ou menos contemporaneamente com Durkheim, Comte, Karl Marx, 
com o objetivo, jamais alcançado, de conseguir captar os fatores estruturais e 
permanentes que explicariam a sociedade humana e sua história. Temos aí um 
campo enormemente complexo. 
O que resultou desse triplo conflito é um terceiro tipo de História da 
Filosofia, considerada como uma ciência social, por sua vez. Se o primeiro tipo 
apenas colocava as doutrinas umas ao lado das outras para que as pudéssemos 
comparar no seu conteúdo lógico, e se o segundo tipo, hegeliano, as emendava umas 
às outras como se fossem etapas de um único raciocínio, de uma única dialética ao 
longo do tempo, agora surge um tipo de História da Filosofia que busca explicar de 
algum modo o surgimento temporal das várias filosofias com base nos elementos 
culturais, sociais, econômicos, jurídicos, psicológicos e religiosos do ambiente no 
qual elas nasceram. Isso quer dizer que as filosofias são aí consideradas expressões da 
cultura tomada no seu sentido mais amplo, variando, evidentemente, a noção que 
cada autor tem a respeito do que vem a ser "cultura": uns acreditam que aí 
predominam os fatores de ordem intelectual-espiritual; outros, os fatores 
econômicos; outros, os fatores militares, e assim por diante. 
Qualquer que seja a visão que o indivíduo tenha da estrutura e da dinâmica 
da cultura, ele encarará as idéias filosóficas como manifestações ou expressões desta 
mesma máquina cultural, considerada nas transformações que ela sofre ao longo do 
tempo. É claro que a variedade de interpretações também é muito grande, mas, 
grosso modo, a idéia é essa: a Filosofia surge como uma das muitas expressões de um 
outro fenômeno chamado "cultura". 
E claro que esse modelo também produz inúmeros resultados, muito 
brilhantes; porém, após algumas décadas de prática, podemos ver também as 
limitações que existem nesse terceiro modelo, que vamos chamar provisoriamente 
de Histórias Científicas da Filosofia. Não que sejam científicas, mas têm a pretensão 
de sê-lo, na medida em procuram explicar o surgimento das ideias filosóficas como 
explicariam, por exemplo, o surgimento de um novo estilo artístico, de um 
movimento religioso- político, de um novo estilo de vestuário, de um novo estilo 
arquitetônico e assim por diante. Ou seja, pega-se a cultura como um todo, e cada 
uma das suas expressões particulares é vista como uma expressão, manifestação ou 
efeito de fatores causais que o transcendem. 
O grande problema com esta terceira modalidade é que ela só pode ser 
praticada se dermos por resolvidos alguns dos problemas filosóficos fundamentais - 
que justamente não estão resolvidos - e se, de certo modo, "desproblematizarmos" o 
conteúdo de alguns desses problemas fundamentais. Por exemplo, o peso relativo 
dos vários fatores na produção do acontecer cultural é, ele mesmo, um problema não 
só metodológico, mas filosófico. Se aceitamos a idéia de Karl Marx de que toda 
sociedade tem uma infra-estrutura econômica que se define pelo seu sistema de 
produção e pela estrutura de propriedade - e baseado nesse esquema aparece o que 
ele chama de uma superestrutura, que seria a cultura, as leis, as formas políticas, os 
valores, os hábitos e a linguagem -, então, evidentemente, teríamos que explicar a 
superestrutura em função da infra-estrutura, e explicar a história cultural em função 
da história econômica. Esta é uma alternativa possível. 
O fato é que isso nunca deu certo. Por exemplo, certas idéias aparecerem 
num período em que teoricamente a estrutura da economia não dava as condições 
para que alguém pensasse daquele jeito. A tentativa de fazer as várias idéias 
individuais corresponderem a grupos sociais definidos, o que é evidentemente uma 
exigência básica do método marxista, também nunca funciona. O número de casos 
em que o filósofo individual aparece falando contra o grupo social que teoricamente 
representava parece ser até mais freqüente do que o oposto, quer dizer, o sujeito que 
é um "porta-voz fidedigno" do seu grupo social. 
Na tentativa de encaixar a superestrutura na infra-estrutura e de coerir a 
história cultural e psicológica com a história econômica, não é necessário dizer que 
os autores marxistas chegaram às maiores bararidades e invencionices que alguém já 
teve a ocasião de criar. Em algumas aulas do Seminário de Filosofia, por exemplo, 
tivemos até a ocasião de analisar um texto de Marilena Chauí, no qual, seguindo uma 
certa tradição marxista (não foi ela quem inventou isso também), diz que a ideia 
aristotélica do predomínio, da primazia da contemplação sobre a ação, refletia uma 
concepção da aristocracia grega, porque a aristocracia "não pega no pesado" e 
viveria, então, teoricamente, uma vida contemplativa. Mas se fosse uma filosofia 
produzida por proletários ou por pequenos agricultores, ela enfatizaria, ao contrário, 
a ação e não a contemplação, a vida prática e não a vida teorética! Quando se vê isso 
pela primeira vez, parece que tudo está combinando, mas a dura realidade é que a 
aristocracia grega não tinha atividade contemplativa alguma, era uma casta 
essencialmente militar, na qual aquele pequeno grupo, ou seja, os filósofos da 
Academia platônica e aristotélica aparecem como uns tipos anormais e totalmente 
dissidentes. Portanto, a associação que aí se faz entre o conteúdo de uma idéia e uma 
classe social é completamente inventada. 
Não por uma coincidência, a mesma autora, para fazer um contraste com 
a idéia da "contemplatividade" aristocrática aristotélica, lança a idéia de que, já na 
fase moderna, outras doutrinas que enfatizam a experimentação e a prática 
refletiriam uma visão burguesa, em contraste com a visão aristocrática que teria sido 
a de Aristóteles. Mas, por uma infortunada coincidência, justo os autores que ela cita 
como representantes do novo estilo burguês de pensar eram todos exatamente 
aristocratas, como Descartes e Bacon,em particular. A bibliografia hoje utilizada nas 
universidades é constituída praticamente só de falsas analogias desse tipo, entre uma 
idéia e o fundo cultural e social que, em teoria, a estaria embasando. 
O fato é que as Ciências Sociais, no sentido moderno e organizado da 
palavra, são algo muito novo ainda - e nenhuma dessas ciências alcançou o ponto de 
maturação que nos assegure que, dentro da dinâmica da cultura, tal ou qual fator 
predomina sempre. O fato é que não conhecemos nenhuma lei geral e constante da 
produção dos acontecimentos históricos. Simplesmente não sabemos se, como regra 
geral, tal ou qual fator determina tais outros ou se é determinado por eles. 
Ora, se pretendemos contar a História da Filosofia de acordo com 
cânones da Ciência Social, estamos procedendo como se já possuíssemos todos os 
critérios metodológicos explicativos suficientes para mostrar como, socialmente, as 
idéias filosóficas se produzem, e o fato é que não os temos. E é fato também que a 
discussão desse mesmo assunto prossegue dentro da própria Filosofia. Digamos, 
então, que a História Científica da Filosofia começa por eliminar a existência mesma 
do seu objeto, que é a própria Filosofia. 
Se o conteúdo das várias filosofias ao longo do tempo, assim como sua 
forma e estrutura, pudesse ser explicado tendo em vista a estrutura social, a cultura, a 
psicologia do seu tempo, um dos problemas filosóficos essenciais estaria resolvido, 
ou seja, nós já saberíamos quais são as molas mestras, os motores do acontecer 
humano. Como isso continua em discussão dentro da própria Filosofia, então o 
pressuposto básico desse tipo de história é, evidentemente, uma falsidade. Não 
obstante, ele também continua sendo um tipo de esforço útil e necessário do qual 
nós também não podemos fugir, porque, de algum modo, alguma conexão com os 
fatores culturais, econômicos, políticos, etc. as idéias filosóficas têm. Certamente, 
têm algum tipo de ligação, e não podemos fazer de conta que não. 
Esse terceiro tipo de História da Filosofia surge, então, em resposta aos 
defeitos que foram encontrados nos dois anteriores - e o defeito principal é que tanto 
as histórias expositivas quanto a história filosófica consideravam apenas o 
movimento interno das idéias e não a realidade sociocultural. Essa crítica é 
verdadeira, e, portanto, a tentativa de resolver a situação mediante a criação desse 
terceiro tipo de História da Filosofia é também um esforço legítimo. E, note bem, 
nenhum desses três tipos resolve o problema, mas devem ser considerados 
patamares que, uma vez atingidos, não se pode mais descer abaixo deles. A partir do 
momento em que conseguimos simplesmente descrever cada doutrina filosófica e 
colocá-las numa ordem cronológica, não podemos mais ignorar esses elementos 
quase "filológicos" da reconstituição da doutrina. Ao percebermos a possibilidade de 
um desenho unificado do trajeto, seja este tão coerente quanto supõe Hegel, seja 
incoerente e problemático, não podemos desistir dessa visão unitária. E assim que 
nós percebemos que a Filosofia necessariamente tem alguma conexão com fatores 
de ordem não filosófica - como fatores sociais, econômicos, políticos, religiosos, 
etc.-, também não podemos desistir de estudá-los de algum modo. Tudo o que 
podemos fazer é, então, tentar dar um passo a mais e alcançar um outro patamar. 
Este, idealmente, também deve conquistar alguma coisa. Se for firmemente 
apropriado, as futuras gerações de historiadores da Filosofia não poderão prosseguir 
o seu trabalho ignorando a etapa e o patamar conquistados. 
Se decidi contar a História da Filosofia com um outro padrão, segundo 
um outro modelo, é por ter constatado que realmente existem esses problemas, e de 
maneira alguma esse esforço de conquistar um patamar a mais nega o valor ou a 
importância atual de cada um desses três modelos. Cada um, no instante em que foi 
descoberto, praticado, representa naquele momento o máximo de conhecimento 
que se podia obter a respeito. Mas chega um ponto em que aquela linha de investi-
gações atinge seu limite, quer dizer, começa a dar problemas, então é preciso inventar 
algo novo. Acho que as chamadas Histórias Científicas da Filosofia de fato chegaram 
ao seu limite e estão se perdendo. Está na hora de inventarmos alguma coisa que 
possa tampar esses buracos e permitir que o navio da História da Filosofia continue 
a sua viagem. 
Ora, se os dois modelos, o de Hegel e o científico acadêmico atual, partem 
de uma crítica dos anteriores, o fato é que essa crítica nunca foi empreendida de 
maneira sistemática e muito profunda. Foi mais ou menos casual, suscitada pela 
simples constatação de um estado de fato; quer dizer, havia certos problemas que o 
modelo anterior não conseguia explicar, não conseguia dar conta, e era necessário 
fazer alguma coisa. Mas, quando o terceiro desses modelos começa a se tornar tão 
problemático, quando começa a revelar o que ele mesmo tem de deficiente e de 
encrencado, aí a coisa se torna grave demais para que consigamos dar mais um passo 
decisivo apenas constatando por alto os seus defeitos. Uma nova modalidade de 
História da Filosofia teria que se escorar num exame crítico muito sério e muito 
aprofundado, em busca de pontos de apoio que oferecessem um grau de certeza 
suficiente. Teríamos que contar a história com base em princípios que, uma vez 
fixados, não pudessem mais ser questionados, por serem auto-evidentes demais. 
Esses princípios delimitariam o campo da ciência e as possibilidades do seu 
envolvimento futuro. 
É também necessário dizer que tudo aquilo que forma o princípio 
fundante de uma ciência não faz parte dela. 
O desenvolvimento posterior da ciência não mudará esses princípios, ela 
evoluirá sobre uma linha coerente enquanto esses princípios §r mostrarem, por um 
lado, auto-sustentáveis e, por outro, suficientes para dar conta do campo. Isso quer 
dizer que o princípio jamais pode ser impugnado, pode continuar sendo admitido 
como verdadeiro, mas, a partir de um certo ponto, o campo do fenômeno estudado, 
ou seja, o campo das idéias filosóficas pode transcendê-lo, de maneira que ele não 
sirva mais como princípio explicativo. 
Dizia Husserl que, no começo das investigações científicas, a maior 
preocupação que devemos ter é de delimitar muito corretamente o campo, o grupo, 
o conjunto dos fenômenos que vamos estudar, para que ali não se metam de 
contrabando fenômenos de ordem especificamente diferente, sobre os quais 
projetaremos explicações tiradas de outros fenômenos que não servem para ele. No 
curso da história de qualquer ciência, o número dessas mesclas indevidas é enorme, 
e, a cada vez que isso acontece, às vezes temos dois, três, quatro séculos de 
investigações infrutíferas ou de conclusões medonhamente erradas. Isso acontece 
com freqüência. 
Husserl dizia também que é necessário termos uma idéia muito clara de 
onde uma investigação científica pretende chegar, isto é, qual o tipo de resposta que 
se pretende dar e qual o nível de validade que se pretende atribuir a essa resposta. No 
entanto, essas considerações geralmente são negligenciadas em inúmeras 
investigações científicas, pelo simples fato de que existe uma rotina do trabalho 
científico. O indivíduo retoma o trabalho de onde um outro parou ou, então, 
limita-se a seguir as pautas, os protocolos do método científico tal qual está sendo 
habitualmente praticado naquele campo, de modo que, se houver alguma 
absurdidade inicial, algum erro de princípio no fundamento, o número de desvios e 
erros vai proliferar muito. 
Nunca podemos esquecer que a ciência, por um lado, é um certo ideal de 
conhecimento e pretende ter uma validade - que é definida por certas exigências 
lógicas internas mas, por outro lado, também é uma profissão, é um modo de vida 
para muita gente. Então, entre os fatores internos, que constituem a ciência, eos 
fatores externos, que permitem a sua existência como prática, existe também uma 
tensão permanente. Por exemplo, se existe um erro metodológico embutido numa 
investigação há cinqüenta anos, e se muitas carreiras científicas já se fizeram com 
base nesse erro, é muito difícil voltar atrás. É difícil não por causa de alguma 
dificuldade lógica inerente ao problema, mas pelo fator humano e social - em torno 
das idéias e dos projetos científicos se formam grupos humanos, aglomerados de 
interesses, de expectativas e de poderes. Há nisso até a interferência de um fator 
financeiro, que é a disputa pelas verbas de pesquisa. Isto quer dizer que, se a 
hipótese, a critica metodológica e a nova proposta criarem problemas a um certo 
grupo científico importante naquele momento, simplesmente não se terá verbas para 
trabalhar naquela linha e jamais se poderá saber quem tinha razão. A interferência 
desses fatores puramente extracientíficos - e na verdade, até irracionais - dentro do 
campo científico é uma realidade, nunca podemos escapar disso. 
Claro que, dependendo da ciência com que se está lidando, a pesquisa 
custa muito barato ou muito caro. 
A História da Filosofia é daquelas cuja pesquisa custa mais barato porque 
todo o seu material é constituído de papel. Não são precisos reatores atômicos, um 
laboratório montado, tudo custa mais barato Para um indivíduo, é relativamente 
caro, mas para um certo grupo de pessoas não o é. Mas se a pesquisa fosse numa área 
zoológica, geológica ou física - não sendo física teórica, que também só envolve 
papel -, a simples possibilidade de se averiguar qual a linha mais frutífera de 
investigação já poderia ser bloqueada logo de início. 
Vejamos o caso do estatístico dinamarquês Lomborg. Ele lançou um 
livro, O ambientalista cético1, no qual, juntando todos os dados probabilísticos 
 
1 Bjorn LOMBORG, O ambientalista cético. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002. 
oficiais dos vários países, mostra que a "crise ecológica" não está acontecendo, ou 
pelo menos não é tão grave quanto dizem; que as reservas naturais do planeta não 
estão se esgotando de maneira alguma; que, de modo geral, a sociedade industrial 
tem se encaixado bem ao ambiente e, ao contrário, tem criado meios suficientes para 
resolver todos os problemas ecológicos que aparecem; enfim, que não há motivo 
para se acreditar que o planeta Terra está acabando. Ele tem razão ou não tem? Não 
sei! Mas não vai dar para saber. Por quê? Porque, a esta altura, todos os cientistas 
interessados neste negócio já arrumaram emprego em alguma ONG ecológica. 
E a ONG ecológica, como arruma dinheiro para pesquisa? Chegando nos 
políticos e empresários e traçando-lhes um panorama alarmista, dizendo: "Olha, se 
vocês não me derem dinheiro para pesquisar esse negócio, o mundo vai acabar!". De 
repente, chega um sujeito e diz que o mundo não está acabando. É um perigo 
temível. Houve uma mobilização mundial de cientistas para tapar a boca do sujeito, 
mas não sei se ele tem razão ou não. Sei que a possibilidade de uma investigação 
científica sobre a hipótese que ele lançou já está muito difícil de se realizar. A 
investigação passou do domínio científico para o domínio político. O domínio 
político é aquele no qual não interessa saber quem tem razão, mas saber quem tem 
mais adeptos. Como dizia Carl Schmidt, você vai somar os amigos contra os 
inimigos. Se os amigos forem mais que os inimigos, você ganhou; se não forem, você 
perdeu. E é exatamente assim que está a questão do Ambientalista cético, assim 
como milhares de outras questões científicas. 
Felizmente, em História da Filosofia, não dependemos tanto de verbas, 
porque o nosso material de estudo, embora caro na escala do indivíduo, já não é 
assim tão inacessível, tanto que eu pude realizar toda esta pesquisa e posso estar 
dando este curso sem nenhuma verba de departamento - não tive que pedir verba 
para nenhum chefe, não tem chefe não dependendo de universidade alguma; 
simplesmente agora já fiz, agora não podem impedir de fazer porque já está feito. 
Minha ideia foi partir de certas realidades básicas que não fazem parte da 
História da Filosofia, mas que determinam a simples possibilidade de existir uma 
Filosofia. Quais são as condições objetivas, de reais até materiais, que estão dadas no 
início do surgimento da Filosofia e sem as quais ela não seria possível? Esta pergunta 
tem que ser respondida de uma maneira não apenas empírica - não vamos investigar 
cientificamente esses fatos para demonstrar que eles aconteceram -, mas de uma 
maneira puramente teórica e apodíctica, quer dizer, absolutamente irrefutável no seu 
próprio enunciado. 
A primeira das regras que formulam meu método pode ser enunciada 
assim: 
1ª - Se existe uma História da Filosofia, é porque a Filosofia não nasceu pronta. 
 
 
Alguém é capaz de refutar esse enunciado? Estou falando de uma reali-
dade óbvia, até banal, mas justamente por ser óbvia e banal constitui um desses 
pontos de referência que podemos tomar como baliza durante todo o conjunto da 
nossa investigação, sabendo que qualquer conclusão a que cheguemos na 
investigação dos fatos particulares que pareça desmentir esse princípio será falsa; 
portanto, estaremos na pista errada. 
O segundo princípio, que pode ser derivado do primeiro, é que, se a 
Filosofia não nasceu pronta - porque se nascesse pronta não teria história -, seria o 
simples enunciado de um fato que se completou num determinado momento. 
 
2a - Se a Filosofia não nasceu pronta, ela não pode ter nascido como uma realidade 
existente, como uma estrutura dada, mas tem que ter d parecido sob a forma de um projeto ou de uma 
ambição a realizar. 
Isto quer dizer que, se a Filosofia tem um começo no tempo, e se 
podemos chamar esse começo no tempo de um primeiro filósofo, embora haja 
vários primeiros, temos que admitir que o primeiro filósofo, quando começou a 
filosofar, não tinha filosofia alguma. Se a tivesse pronta desde o primeiro momento, 
como uma espécie de intuição única, então a própria atividade caracteristicamente 
filosófica, sobretudo dos começos da Filosofia, que é justamente a discussão 
filosófica, ela simplesmente não teria acontecido. Existiria o enunciado de uma 
doutrina pronta, que teria que ser aceita ou rejeitada em bloco, mais ou menos como 
acontece com as religiões, mas que não poderia ser discutida, nem validada ou 
invalidada de modo parcial, o que é justamente uma característica dos sistemas 
filosóficos. 
Dificilmente se verá um filósofo impugnando ou validando o sistema do 
outro por inteiro. Ao contrário, numa doutrina religiosa, se você impugnou um 
pedaço, o que você fez? Você acabou de fundar uma heresia. Você não é 
considerado mais um crente ou um seguidor daquela religião, mas sim o fundador de 
outra - uma outra que, para os seguidores da primeira, será necessariamente herética. 
E você vai dizer que heréticos são eles. Isso significa que o tipo de discussão que 
vemos acontecer no curso da História da Filosofia é especificamente diferente da 
discussão que aparece em Teologia, em Religião. 
 
3a - A Filosofia surge com consciência desse projeto e ambição. 
Se a Filosofia não nasceu pronta, se, portanto, ela nasce como um projeto 
ou uma ambição e, mais ainda, se os primeiros filósofos transmitem algo desse 
projeto ou dessa ambição aos seus discípulos - os quais, por sua vez, continuam 
empenhados de algum modo em realizá-la -, isso significa que os próprios 
fundadores tinham consciência de que se tratava de um projeto, de uma ambição e 
de algo a realizar, e não de algo que já estivesse pronto. 
Estes três princípios – 1º) "A Filosofia não nasceu pronta"; 2º) "A 
Filosofia é um projeto ou ambição"; 3º) “A Filosofia surge com consciência desse 
projeto e ambição" - mostram que a História da Filosofia, mesmo que não tenha 
nenhuma constante, como dizia Hegel,tem, não obstante, uma constante negativa. 
Podemos dizer que ela obedece às condições gerais da realização de qualquer projeto 
humano, está limitada por essas condições. 
Se a Filosofia é um projeto, e um projeto humano, quaisquer que sejam as 
condições gerais de natureza ontológica, antropológica, sociológica, histórica que 
delimitem as possibilidades da realização de qualquer projeto humano, a Filosofia 
também estará submetida a essas limitações e condições. Isso quer dizer que o 
enunciado do método cientificamente válido para o estudo da História da Filosofia 
teria que começar com um breve estudo fenomenológico dos projetos humanos. O 
que são projetos humanos? Quais são as limitações e as condições internas da sua 
realização no tempo? 
Enunciados esses princípios, que ninguém é capaz de impugnar por serem 
princípios absolutamente auto-evidentes - como idealmente devem ser 
auto-evidentes todos os princípios de quaisquer ciências -, se de fato esses princípios 
foram apreendidos, é necessário que passemos a usá-los daqui para diante como 
regras ou parâmetros com os quais iremos validar ou invalidar as conclusões a que 
chegaremos na investigação, agora material, dos fatos da História da Filosofia. Mas 
os princípios são tão gerais, tão universais e tão obviamente válidos que é meio difícil 
aplicá-los diretamente aos fatos: temos que fazer uma espécie de mediação e 
transição, ou seja, temos que fazer dos princípios um conjunto de critérios, uma 
criteriologia que nos oriente passo a passo na narrativa da História da Filosofia para 
sabermos se estamos ainda operando dentro do mesmo campo de princípios ou se 
entramos numa grave contradição com os princípios da ciência e, portanto, já 
passamos para um outro domínio completamente diferente. 
Existem algumas condições a que todo e qualquer projeto humano 
sempre obedece. A primeira delas é a de que nenhum projeto se transmite 
automaticamente aos seus continuadores - qualquer idéia ou sugestão de algo a 
realizar que se queira transmitir a outras pessoas não as obriga, de maneira alguma, a 
aceitar. Em segundo lugar, mesmo que o aceitem, isto não quer dizer que devam 
conservá-lo intacto; elas podem, afinal, ter suas próprias idéias e achar que, em vez 
de fazer isso, talvez devêssemos fazer alguma coisa parecida ou uma outra coisa 
totalmente diferente. E mesmo que aceitem o projeto tal e qual foi transmitido e 
tentem realizá-lo o mais fielmente possível, pode ser que nãoi consigam, pode ser 
que o seu desenvolvimento, nas condições reais em que os indivíduos estão vivendo, 
que são diferentes das condições em que viveu o autor do projeto, imponham a eles 
uma mudança no curso da realização. 
Se essas condições se impõem de maneira mais evidente no curso da 
realização de qualquer projeto bem simples, como, por exemplo, o projeto de fazer 
uma casa, com quanto mais força elas não deveriam se impor a um projeto cuja 
realização tomasse várias gerações? Mesmo dentro do campo arquitetônico, existem 
algumas igrejas muito antigas, cuja construção atravessou várias gerações, que 
possuem um pedaço construído num estilo completamente diferente do anterior. 
Por exemplo, algumas igrejas góticas possuem duas torres completamente diferentes 
uma da outra. Por quê? É porque alguém veio depois e achou que devia fazer uma 
coisa diferente ou não conseguiu fazer exatamente igual. Ora, mas se isto é assim até 
mesmo dentro do campo arquitetônico, quanto mais não o será na idéia de um 
projeto complexo como o da História da Filosofia, como o da criação de uma 
filosofia! 
A partir do momento em que tivermos enunciado qual o conteúdo do 
projeto inicial filosófico - "a idéia inicial da Filosofia era esta" - isso quererá dizer que 
só existe uma maneira cientificamente válida de contar a História da Filosofia: é a 
história da sucessão das etapas da consecução de um projeto originário. Portanto, a 
história desse projeto terá que ser acompanhada não só nas tentativas de realizá-lo 
literalmente, mas também nas tentativas de impugná-lo, de modificá-lo ou de 
substituí-lo parcialmente ou no todo. Este método nos permite, ao mesmo tempo, 
atender à reivindicação hegeliana da busca da unidade do movimento como um 
todo, sem cair na falácia hegeliana de projetar uma unidade sobre acontecimentos 
que, às vezes, não têm unidade nem conexão alguma. Permite atender também à 
demanda da escola histórica de se ater aos fatos como eles realmente aconteceram, 
mesmo quando a sucessão real dos fatos, longe de nos sugerir uma unidade lógica, 
nos sugere apenas a unidade de um problema, a unidade de uma confusão ou a 
unidade de um enigma. 
Ao longo da História da Filosofia, veremos que o projeto filosófico, 
sofreu uma multidão de alterações, mas que não se pode dizer que ele foi 
abandonado totalmente pelo simples fato de que as pessoas que introduziram essas 
modificações continuam a acreditar que estão fazendo um negócio chamado 
"filosofia" e que, deste modo, elas de alguma maneira vinculam a sua atividade atual 
ao projeto originário, mesmo que ele seja o contrário dela. Ou seja, se o indivíduo 
acha que o projeto filosófico originário é totalmente inviável, contraproducente, 
absurdo, e que ele deve trocá-lo por alguma outra coisa, veremos que, em alguns 
casos, esta "alguma outra coisa" se apresentava como uma não-filosofia, como uma 
alternativa à Filosofia, ou seja, como algo que deveria suprimir a prática filosófica. 
Em outros casos, essa objeção se apresenta como a verdadeira e autêntica 
filosofia, ou seja, como uma substituição crítica do projeto originário por um outro 
projeto que teoricamente expressaria melhor a natureza da própria Filosofia do que 
o projeto originário. Portanto, mesmo as impugnações não são de maneira alguma 
uniformes. Além do mais, existem impugnações totais e parciais. 
Em certos casos, não se trata de impugnações, trata-se de uma sutil e 
quase imperceptível mudança de assunto. Começa-se tentando fazer algo que está 
bem dentro da linha do projeto filosófico originário, mas, por algum fator 
interveniente, mudou-se de rumo, acaba-se fazendo uma coisa completamente 
diferente. 
Podemos desde já saber que a História da Filosofia, se ela tem alguma 
unidade, só pode ser a unidade problemática de um projeto que, no tempo, continua, 
pára, se altera, se modifica, retoma o ponto originário num outro plano, e que, enfim, 
não apenas luta para se realizar, mas luta para saber se deve se realizar; e luta para 
descobrir os modos de se realizar e, às vezes, para ser cancelado e substituído por 
outra coisa. Estamos longe da idéia de que a evolução do pensamento filosófico 
segue uma dialética interna totalmente coerente, como em Hegel. Mas também 
estamos muito longe de tentar explicar as idéias filosóficas pelas condições da cultura 
do tempo, porque, quaisquer que sejam as condições da cultura do tempo, o fato é 
que a simples presença do projeto filosófico originário, que o novo filósofo conhece, 
exerce sobre ele uma influência que não vem do seu tempo, mas de um tempo muito 
remoto. Por exemplo, o indivíduo que, hoje em dia, passa uma boa parte da sua 
existência tentando assimilar as idéias de Leibniz, de São Tomás de Aquino ou de 
Aristóteles, está recebendo uma influência que não é de maneira alguma do seu 
tempo, mas de um tempo remoto. 
Como existe na Filosofia uma espécie de uma tradição, ou seja, uma 
contínua referência ao passado filosófico, absolutamente todos os filósofos sempre 
se reportam a alguma coisa dos anteriores, seja para endossá-los, seja para 
contestá-los, seja para discutir com eles. Como existe uma tradição, é absolutamente 
necessário que entendamos que ela tem um peso específico próprio, que não 
depende de forma alguma da cultura do seu tempo. Essa tradição é acumulativa, vai 
entrando mais material, mais material, mais material, e o material acumulado que 
você recebe(...) é tão avassalador que ela se superpõe à influência da cultura do 
tempo em que o sujeito está vivendo. 
Se estudarmos, por exemplo, as obras de Franz Brentano (Franz Brentano 
é um grande filósofo do século passado, que passou a vida inteira resolvendo 
problemas aristotélicos), poderemos descobrir alguns elementos da presença da 
cultura do seu tempo por sinais indiretos, mas a presença aristotélica estará por toda 
parte: Aristóteles é onipresente. É claro que esta influência, que veio de 2200 anos 
antes, predomina sobre a influência da cultura do seu tempo. 
Essa história de dizer que "o sujeito é um homem do seu tempo" é uma 
grandessíssima bobagem; ninguém pode ser exclusivamente "homem do seu 
tempo". Se cada um fosse homem "do seu tempo", simplesmente não teríamos 
História. Só podemos ter uma dimensão histórica justamente porque transcendemos 
o nosso tempo e, de alguma maneira, nos conecta- mos com outros tempos, 
passados e futuros. Se os elementos presentes em nosso meio cultural e social - de 
criação atual -, que estão sendo manipulados agora, delimitassem o nosso universo a 
ponto de sermos criaturas do nosso tempo, jamais poderíamos, por nós mesmos, 
buscar elementos em outros tempos e introduzi-los na corrente contemporânea, às 
vezes modificando totalmente o rumo das coisas. 
Quando, por exemplo, vemos que nos últimos trinta ou quarenta anos 
existe um interesse retroativo cada vez maior dos biólogos pela física aristotélica - 
que na verdade não é uma física, mas uma metodologia da ciência - e que, se 
pensarmos bem, a grande novidade em biologia nos últimos trinta anos se chama 
"Aristóteles", veremos que esta possibilidade de buscar num outro tempo um 
elemento esquecido e de modificar o panorama contemporâneo realmente acontece 
de quando em quando. 
Mais ainda, no século XVIII, a Europa estava em plena época de glória da 
física de Newton, quer dizer, a física mecanicista, a física que acreditava que, partindo 
de três ou quatro princípios auto-evidentes (os princípios são leis da natureza), 
praticamente todo o restante da fenomenalidade cósmica poderia ser conhecida 
quase que por pura dedução lógica ou matemática, ou seja, que se chegaria a 
descrever tão bem a mecânica natural que praticamente nenhum fato escaparia da 
malha dos princípios newtonianos. Isto no século XVIII. Ao mesmo tempo, tinha 
um sujeito chamado Leibniz que dizia que não era nada assim, que haveria, no 
campo da natureza, um certo coeficiente de indeterminação que, longe de ser uma 
margem de erro apenas, era um dos elementos fundamentais, um dos pilares na 
natureza. Ou seja, a natureza, longe de obedecer a uma causalidade mecânica 
inteiramente lógica, tinha em si mesma, na sua própria constituição, algo de 
essencialmente incerto e essencialmente imprevisível. 
Ora, quando Leibniz disse isso, ninguém prestou a menor atenção e a 
física continuou, e não só a física, mas todas as ciências da natureza continuaram 
raciocinando dentro da linha da mecânica de Newton, com um sucesso tão grande 
que, no final do século XIX, um outro sujeito disse que a ciência já tinha descoberto 
praticamente tudo e que, no século seguinte, só restaria calcular alguns decimais 
faltantes (já existia a formula geral, faltava só acertar as frações). De repente, chega 
um sujeito chamado Einstein, outro chamado Max Planck, e viraram tudo isso de 
cabeça para baixo. A conclusão é que o elemento indeterminístico, que tinha sido 
ressaltado por Leibniz, revela-se realmente decisivo, a ponto de que hoje ninguém 
teria coragem de negá-lo. 
Dentro de uma época cultural totalmente impregnada do mecanicismo 
newtoniano, alguém volta lá atrás, pega um elemento esquecido, um elemento morto 
do passado filosófico e científico - que seria o indeterminismo leibniziano -, o 
reenxerta na corrente dos acontecimentos e muda de repente todo o panorama 
científico-filosófico-cultural do “seu tempo”. Se os homens fossem "filhos do seu 
tempo", eles nunca poderiam ir para fora dele, nem sondar possibilidades que já não 
fazem parte do repertório do seu tempo, muito menos modificar a história do seu 
tempo a partir de elementos colhidos em outros tempos. 
Quando um homem é totalmente "filho do seu tempo", isso significa que 
ele não enxerga um centímetro para além do horizonte de visão da cultura do seu 
tempo, que tudo aquilo que não está no repertório atual não existe para ele. Podemos 
dizer que, nesse sentido, todo sujeito inculto e inconsciente é um filho do seu tempo, 
ou seja, a vida mental, a vida intelectual de um homem inculto é todinha filha do seu 
tempo descontando a hipótese de que ele tenha uma alma imortal que esteja de 
algum modo vinculada a uma dimensão chamada eternidade. Mas mesmo 
descontando isso, veremos que, se um indivíduo realmente nada enxerga para além 
daquilo que é afirmado e acreditado no seu tempo, então ele é de fato um filho do 
seu tempo e, portanto, um idiota perfeito. Sempre que usamos essa expressão com 
relação a pessoas que viveram num passado remoto, ela funciona como atenuante, 
mas quando usamos no necrológio de alguma pessoa que morreu agora e que 
portanto, se refere ainda ao nosso tempo, ela tem um sentido elogioso. Ninguém 
nunca usa essa expressão, por exemplo, com relação a Stálin ou a Hitler, porque, se 
eram "homens do seu tempo", seria o mesmo que dizer "fomos nós que os 
produzimos", e ninguém quer arcar com essa responsabilidade. 
Geralmente, usa-se isso com relação a intelectuais e filósofos, quando se 
quer dizer que eles eram indivíduos que estavam metidos de fato no fluxo vital dos 
problemas da época. Mas estar simplesmente metido fluxo vital dos problemas da 
época, qualquer varredor de rua está. Qualquer brasileiro, por exemplo, que sofre 
com a alta dos impostos e com problema de desemprego, esse é um homem do seu 
tempo, ele está dentro da maré, está dentro e sabe que está. 
O fato é que alguns homens não são só de seu tempo; eles são de outros 
tempos também, são capazes de colocar a cabeça para fora de seu tempo e 
compará-lo com outros tempos. Se você fosse exclusivamente homem do seu 
tempo, jamais poderia julgá-lo como um todo. Quando um poeta, ou um filósofo, 
condena o seu tempo como um tempo mau, um tempo de decadência, um tempo 
medíocre (o famoso verso de Rilke: "Para que um poeta em tempos medíocres"), 
quando faz isso é porque ele tem consciência de que certas possibilidades humanas, 
que existiam numa outra época e que talvez possam voltar a existir no futuro, não 
existem no seu seu tempo. Ele se superpõe e julga - essa é uma capacidade humana 
específica. Podemos também dizer que todo animal é uma criatura do seu tempo; o 
anterior à sua biografia não existe e o posterior também não. A rigor, a consciência 
temporal de um animal é bastante estreita: de algumas horas, alguns minutos, às 
vezes alguns segundos. 
"Ser um homem do seu tempo" significa, então, vestir uma carapaça de 
limitação temporal, que cabe para os animais ou para aquelas multidões de criaturas 
que, por um motivo ou por outro, foram reduzidas a vítimas inermes do acontecer e 
que não podem sequer levantar a cabeça para fazer um julgamento sobre o que está 
acontecendo. Claro que, às vezes, elas acham bom e acham ruim, mas não estão 
julgando o seu tempo, estão apenas expressando a sua situação. O sujeito que está 
desempregado e acha isso muito ruim não está fazendo um julgamento do seu 
tempo, ele está consciente de que a situação dele é temível; mas isso um cachorro ou 
um gato também podem fazer: se você pisar no pé do cachorro, ele vai reclamar. Por 
outro lado, homens que, dentro do seu tempo, estão até socialmente ou 
economicamente muito bem podem, ainda assim, julgar o seu tempo como maligno. 
A capacidade especificamente humana que determina a possibilidade da 
História é, bem ao contrário, algo que podemos chamar de senso da eternidade ou 
sensoda simultaneidade. É porque podemos apreender possibilidades humanas que 
eram efetivas em outras épocas e compará-las umas com as outras (note-se que o 
primeiro tipo de História da Filosofia que mencionei é exatamente isto) que 
podemos ter História, senão estaríamos imersos no fluxo exatamente como uma 
gota d'água está dissolvida dentro do rio que corre, sem podermos jamais levantar a 
cabeça para fora, nem para vermos para onde o rio está indo. Se temos consciência 
histórica é porque realmente não somos homens do nosso tempo. 
Quando Cristo disse "Estamos no mundo, mas não somos do mundo", já 
nos deu essa dica: existe algo dentro de cada ser humano que lhe permite olhar não 
só a sua própria vida como um conjunto e julgá-la - que é uma coisa que fazemos nos 
momentos de auto-avaliação crítica, dizendo "eu errei, dei um rumo errado à minha 
vida" -, estamos então nos sobrepondo ao nosso arco, à nossa curva biográfica e 
tentando corrigir seu movimento inteiro. E podemos fazer isso não somente com a 
nossa vida, mas com a vida do nosso país, da nossa época, do Universo inteiro. 
Esse senso da eternidade ou da simultaneidade é a marca característica do 
ser humano, é uma condição indispensável da possibilidade mesma de existir uma 
História, porque, nesse sentido, os animais não têm história a cada geração; a história 
deles termina e começa outra, de uma geração que ignora totalmente a anterior. 
No próprio linguajar cotidiano, no linguajar da mídia, da cultura em geral, 
das conversações, introduzem-se às vezes certas noções que têm, sobre a mente 
humana, um efeito hipnótico paralisante e lesivo. Esse famoso "homem do seu 
tempo" é uma dessas expressões perigosas. É como um vírus, que introduzido num 
sistema o perverte por inteiro! Pela idéia do "homem do seu tempo" pode-se chegar 
à idéia de um historicismo absoluto, em que cada idéia, cada doutrina ou cada crença 
só valem como expressão do seu tempo e nada dizem a nós, que estamos num outro 
tempo. 
(...) Isto resultaria em você dizer o seguinte: "Olha, um princípio 
geométrico que tenha sido descoberto na Grécia no tempo de Aristóteles só 
funciona como expressão da cultura do tempo de Aristóteles, mas não como 
expressão de alguma realidade geométrica que continue vivendo ainda hoje". Se você 
pegar o Teorema de Pitágoras, ele teria sido uma expressão da situação histórica do 
tempo de Pitágoras, mas, depois disso, triângulos mudaram e começaram a se 
comportar diferentemente, o que é um absurdo total! 
Na verdade, a história de qualquer outro tempo e de qualquer outra época 
só tem interesse para nós porque os homens daquele tempo transcendiam o seu 
tempo e conseguiram perceber algumas coisas que não valiam só no seu tempo, 
valem também para nós. Se não, por que contar sua história? Se a história deles só 
vale para eles, melhor esquecê-la; ela não nos dirá absolutamente nada. Isso quer 
dizer que a idéia de que também as crenças, as idéias, as doutrinas são expressões do 
seu tempo neutraliza o motivo mesmo que nós temos para estudá-las. E também 
quer dizer que qualquer idéia de historicismo absoluto - de se dissolver todas as 
dimensões da vida humana exclusivamente na dimensão histórica anula a própria 
possibilidade da História. É como se disséssemos: "Se só existe História, então não 
existe nem História". 
É porque algumas coisas têm história e outras não têm que podemos 
contar a História! (SOOU ESTRANHO, CONFERIR) Por exemplo, os triângulos 
não têm história; se considerados geometricamente, eles não têm história. Fazem a 
mesma coisa desde que o mundo é mundo; aliás, antes de o mundo existir eles 
também já faziam a mesma coisa. Antes de o mundo existir, a soma dos quadrados 
dos catetos já dava o quadrado da hipotenusa, embora ninguém tivesse percebido 
isso. E depois que o mundo acabar, vai continuar a mesma coisa. Um mais um dava 
dois; dois mais dois dava quatro, e depois de acabar o mundo também. 
Se não existissem essas realidades trans-históricas ou meta-históricas, não 
existiria também a dimensão histórica - ou pelo menos nós seriamos incapazes de 
percebê-la, assim como uma gota d'água não percebe que está dissolvida num 
montão de água. A História seria apenas um fluxo inconsciente de átomos anônimos 
dissolvidos na unidade maior do movimento que eles próprios desconhecem. 
Como é possível que um sujeito que pretende fazer História, ou pretende 
até filosofar sobre a História, comece por enunciar uma impossibilidade deste 
tamanho sem perceber que ele está serrando o próprio galho no qual está sentado, 
está cortando os próprios pés para andar melhor ou, como se diz, está arrancando os 
próprios olhos para poder observá-los melhor? A história do pensamento 
infelizmente está cheia desses curtos-circuitos, que fazem parte do que vamos 
chamar de "a teratologia intelectual". 
O que é teratologia intelectual? São as alterações falhadas do projeto. 
Alterações falhadas não por uma coincidência, porque muitas vezes o sujeito tem 
uma boa idéia, mas não consegue executar; são alterações falhadas porque o próprio 
enunciado da alteração já enunciava alguma coisa impossível de se fazer, que o 
sujeito não percebeu que era impossível. Aí estão as famosas "penas de amor 
perdidas": o sujeito passa a vida tentando fazer um negócio e há um enunciado que já 
disse que ele não ia fazer. 
A História da Filosofia é uma história de um projeto humano realizado 
por seres humanos, então vamos sempre ter que contar com a distração humana, 
com a burrice humana, com a teimosia humana, com o esquecimento humano, com 
tudo isso que na nossa própria vida pessoal nos induz freqüentemente ao fracasso e 
ao erro, e que por certo levou ao fracasso e ao erro uma multidão de filósofos. 
Podemos sempre voltar a levantar como hipótese alguma coisa que já foi 
demonstrada como perfeitamente inviável, absurda, mas que não sabemos que é 
inviável, absurda, ou seja, não fomos avisados disso ou, mesmo avisados, não 
compreendemos direito. Espero, por exemplo, que este meu projeto "História da 
Filosofia", contada como projeto humano, não seja inviável. A experiência que já 
tive, a de lecionar quatro vezes este curso e de escrever uma boa parte dele, não me 
parece ter levado a nenhuma contradição, a nenhuma absurdidade, pelo menos 
intrínseca. Acredito que este método permite que se tenha uma visão muito mais 
realista do que foi o desenvolvimento da história das idéias filosóficas do que os 
outros métodos existentes até agora. 
[Aluno: Partindo do pressuposto de ato e potência - porque você colocou, 
pela sua exposição, que Aristóteles seria o primeiro grande filósofo (...), ou melhor, o 
primeiro historiador da Filosofia -, eu me lembrei depois da relação de Aristóteles e 
Tomás de Aquino. Pelo que você colocou, dá para entender que (...) eu posso 
concluir daí que há alguma espécie de alternância entre a maior obediência da 
Filosofia ou da religião?] 
Não sei. Se houvesse essa alternância... Se conseguíssemos, no conjunto 
da História da Filosofia, descobrir uma alternância, teríamos descoberto uma lei 
geral e, portanto, cairíamos numa espécie de módulo hegeliano: "Nós já temos a 
fórmula". O fato é que não descobrimos essa fórmula até agora - e acho que a idéia 
mesma de descobrir uma "fórmula" do desenvolvimento das idéias filosóficas é 
autocontraditória com a própria definição da Filosofia. Se entendemos que ela é um 
projeto, a execução de um projeto, mesmo dentro da continuidade da mesma vida do 
sujeito que teve a idéia ela já passa por muitas alterações. Ao transmiti-la para outras 
gerações, ela passa por mais alterações ainda. 
Em princípio, então, não deve haver nenhum módulo constante e 
repetível, mas uma multidão de transformações possíveis, que continuarão depois da 
gente ir embora desse planeta. Nunca serão totalmente ilógicas, porque estão 
vinculadas à própria discussão de um projetooriginário - elas se referem a ele. Nunca 
vão ser completamente heterogêneas, embora às vezes aconteça a intromissão de um 
fator heterogêneo, ou seja, um fator que não tem nada a ver com a História da 
Filosofia - e muito menos com a própria Filosofia -, mas que suscita nos homens de 
uma determinada época um certo interesse de saber determinadas coisas que 
escapam completamente das possibilidades da Filosofia existente até então. 
Esses fatos podem ser, por exemplo, de ordem religiosa. Surge uma nova 
religião, essa religião vem com um monte de doutrinas que não foram desenvolvidas 
dentro da linha de continuidade do pensamento filosófico. Tiveram, por assim dizer, 
uma outra origem, mas interferem na discussão filosófica. A narrativa das relações 
entre cristianismo e Filosofia já é, por exemplo, um capítulo especial da História da 
Filosofia. Às vezes, o fator que intervém não é sequer de ordem doutrinal. Porque 
uma religião se parece com uma filosofia pelo menos sob este aspecto, é uma 
doutrina; distingue-se por milhões de características, mas que é uma doutrina é - pelo 
menos esse ponto elas têm em comum. Às vezes, o rumo da História da Filosofia é 
totalmente alterado por intervenção de fatores que não são doutrinas, são fatos 
puros e simples, como uma guerra, ou até fatos da ordem natural. Por exemplo, no 
século XVIII, o famoso terremoto de Lisboa, em que morreram umas 120 mil 
pessoas, era um negócio absurdo para a época! Matar 120 mil pessoas hoje é 
"aceitável", mesmo que não seja a natureza quem matou... Mas, naquela época, o 
choque dessa catástrofe natural suscitou imediatamente, em toda Europa, a 
discussão de um problema filosófico que fazia séculos ninguém estava muito 
interessado: o da Teodicéia, ou justificação de Deus, baseada na pergunta: "Como é 
que Deus permite algo assim?". 
Ninguém vai dizer que um terremoto é uma doutrina filosófica. É um fato 
de ordem totalmente heterogênea, que, no entanto, repentinamente, modifica o 
repertório das discussões filosóficas. Hoje, quando acontece, por exemplo, esse 
problema ecológico (a crise ecológica, quer exista, quer não exista, ela não é uma 
doutrina filosófica, é um fato da natureza, é um fato que existe ou que alguém 
pensou que existe), instantaneamente isso suscita uma multidão de discussões que 
interferem no curso da Filosofia. Por exemplo, a descoberta da possibilidade de 
produzir clones. Qual é o estatuto antropológico do clone? O estatuto sociológico? 
O estatuto familiar? O que é essa criatura? Nós de fato não sabemos! Então, 
naturalmente, o indivíduo que estava investigando isso não estava nem um pouco 
preocupado em Filosofia, mas apenas preocupado em descobrir uma técnica que 
pudesse ser patenteada e que lhe desse um montão de dinheiro, e ele fez isto. Só que 
agora está feito, é um fato consumado. Esse é, então, um fato que veio de uma 
origem totalmente estranha às discussões filosóficas e que muda o panorama. 
A história dessas intervenções externas é importante, porque são 
modificações externas do projeto filosófico. Nesse sentido, o cristianismo é um fator 
externo, assim como o terremoto de Lisboa, ou seja, é uma modificação que não 
surge diretamente do confronto entre as doutrinas, do diálogo filosófico. 
Modificações internas são as que surgem dentro do debate filosófico; quer dizer, um 
filósofo, analisando uma coisa que o outro disse, descobre uma possibilidade de 
atuar de uma maneira diferente e enuncia uma outra hipótese. Esta é uma 
modificação interna, endógena, mas há aquelas que são exógenas. 
O enunciado da filosofia de Hegel - quando ele diz que o conteúdo da 
Filosofia é constituído pela própria História da Filosofia, o que ninguém tinha 
pensado antes - é uma modificação endógena. Até aquele momento, contar a 
História da Filosofia não era considerado como uma tarefa especificamente 
filosófica ou essencialmente filosófica, mas apenas acidentalmente filosófica. Se 
Hegel tem razão, a principal atividade filosófica é contar a História da Filosofia, 
então, modifica-se o projeto, modifica-se desde dentro. 
 
[Aluno: O senhor coloca a História da Filosofia como a sucessão das 
vicissitudes de um projeto humano. (...) É possível pensar nas diversas filosofias 
existentes (...) não digo articuladas nem coerentes, mas pelo menos com qualidades 
em comum?] 
A resposta é: às vezes sim, às vezes não! Isso depende não de uma teoria 
geral ou de uma interpretação geral que nós vamos fazer a posteriori, mas dos próprios 
personagens envolvidos terem se reportado consciente e voluntariamente a um 
projeto originário ou não. 
Só existe um projeto originário, inicial. E existem as modificações 
posteriores. 
 
[Aluno: Mas existem várias filosofias no gênero humano. É possível falar 
de todas elas como um projeto, ou reportáveis a um projeto?] 
Não! Elas se reportam a um projeto, mas às vezes se reportam para 
abandoná-lo, ou para impugná-lo, ou para substituí-lo por outra coisa. Por um lado, 
a História da Filosofia é a história das tentativas de realização de um projeto, mas, 
por outro, é o conjunto das tentativas para impugnar, para modificar esse projeto, 
para transformá-lo em outra coisa completamente diferente. Isto também faz parte 
da História da Filosofia... 
Você não vai ter, então, uma unidade simples, como dizia Hegel, que é a 
unidade de um desenvolvimento dialético interno, e também não vai ter uma 
multiplicidade caótica de puros fatos. Mas existe uma tensão entre a unidade do 
projeto, que de algum modo se conserva até hoje, porque até hoje tem gente 
tentando realizar o projeto originário, e, por outro lado, há a multiplicidade das 
forças internas e externas que o modificam. Então, não estamos tentando chegar a 
uma explicação unificada no sentido de captar leis ou constantes do 
desenvolvimento. Não, nós estamos tentando realizar a tarefa que nos foi prescrita 
por Leopold von Ranke: "contar as escolhas como elas realmente aconteceram". 
Essa narrativa não será apenas uma sucessão de fatos inconexos, porque 
existe uma constante referência ao projeto originário - com a ressalva de que esta 
referência não é unívoca, como, por exemplo, dentro de uma religião. Se pegarmos a 
evolução do dogma cristão, a história será internamente muito menos problemática 
do que a História da Filosofia, porque todos que retomam a exposição do dogma 
cristão estão simplesmente reafirmando a mesma doutrina, às vezes com uma ênfase 
um pouco diferente, mas é sempre a mesma doutrina. Na História da Filosofia isso 
não existe - a unidade da História da Filosofia é muito mais problemática do que a da 
história de qualquer religião existente. 
 
[Aluno: E no caso de outros projetos que ignorem esse projeto originário, 
portanto, que nem o continuem, nem o neguem, nem tentem modificá-lo?No caso 
de filosofias diferentes, em sociedades diferentes, que não têm contato com os 
produtos (...), aí se fala a história de cada uma das filosofias?...} 
Esses projetos totalmente alheios ao campo filosófico podem interferir 
nele. Num certo corte transversal no tempo, se você pegar uma época, vai ver que há 
vários desenvolvimentos ali que se ignoram mutuamente. Isso faz parte da própria 
problematiciclade do projeto. Mas é sempre possível que essas linhas, que durante a 
sua própria época se ignoraram, sejam unificadas na geração seguinte por alguém que 
ficou sabendo que um sujeito estava fazendo uma coisa aqui e outro estava fazendo 
uma coisa lá. 
Existe o problema dos meios materiais de informação, então há uma regra 
que todos os historiadores admitem - geralmente uma regra metodológica, que diz 
que a difusão dos fatos produz fatos. O fato de que um sujeito ficou sabendo de um 
certo fato é por si mesmo um fato, e ademais ele pode reagir de alguma maneira à 
notícia, então aí é duplamente um fato. A existência ou não de meios de informação 
e de meios decontato é um dos fatores que permanentemente estão atuando no 
desenvolvimento do projeto filosófico. 
Pode acontecer, também, que esse contato, essa reunificação, se dê não na 
geração seguinte, mas muitas gerações depois, mil anos de separação, tudo isso pode 
acontecer. E temos que levar em conta o fato de que existem épocas inteiras sem 
filosofia alguma; existem hiatos na História da Filosofia. Esses hiatos, claro que eles 
fazem parte da história! Eles mostram que o projeto filosófico pode ser retomado 
depois de muitas gerações, sem nenhum contato direto, sem nenhuma transmissão 
direta. Isso quer dizer que o projeto filosófico não se transmite só por tradição de 
pessoa a pessoa, mas pela reconquista de um legado escrito. 
A possibilidade do registro escrito é uma das condições básicas para a 
existência de uma História da Filosofia. 
Se você for escrever uma "História das tradições inhanbiquaras" - por 
exemplo, chega lá na tribo inhanbiquara e diz: "Eu quero escrever a história das suas 
tradições" - você vai ter um problema horrível para escrever aquilo, você não tem 
documentos! Quer dizer então que, de geração em geração, não é que não se 
conserve nenhum registro, mas se conserva um registro muito sumário, às vezes sob 
forma de síntese mitológica. Certas coisas que aconteceram não são narradas com 
toda sua ordem factual, são resumidas como numa figura poética. E você nunca sabe 
se aquilo aconteceu mesmo, se alguém inventou, se é uma interpretação que fizeram 
de algo que viram ou se foi uma invenção. Esses povos, Lévi-Strauss dizia que eles 
não têm história, mas é um modo de dizer. Eles não têm história no sentido de que 
nós não podemos escrever a sua história, mas é evidente que as marcas das coisas 
que aconteceram às sucessivas gerações podem ter se conservado de algum modo, 
mesmo que sejam desconhecidas das gerações seguintes. 
Veremos que a idéia de registro escrito não é só um componente externo 
da História da Filosofia, mas uma condição dela mesma, uma condição interna, 
existencial. Se todos tivessem feito como Sócrates, nós estaríamos mal-arrumados: a 
História da Filosofia como disciplina não poderia haver. Vejam que as sociedades 
secretas e os movimentos clandestinos, mesmo esses, que têm um belo interesse em 
esconder a sua história, também têm a preocupação de registrá-la de algum modo. 
Mantém-se o registro apenas escondido dos inimigos, mas para o pessoal de dentro 
algum registro se conserva, senão a própria sociedade perderá o rumo do que está lhe 
acontecendo. 
Esta dimensão humana da retomada da referência anterior é algo 
permanente na história. No dia em que não acontecer mais isso, não existirá mais a 
dimensão antropológica, nós não seremos mais gente. Somos gente porque 
podemos fazer isso. Não quer dizer que nós o façamos sempre, tampouco que a 
sociedade que não tem registro escrito não seja constituída de gente. Eles não o têm, 
mas têm a capacidade de ter! Eles apenas não a efetivaram, não a atualizaram. Por 
exemplo, as tartarugas, ou as minhocas, essas não têm essa possibilidade, então 
jamais notarão, as futuras tartaruguinhas ou minhoquinhas, a história dos seus 
antepassados. De geração em geração, a história do passado é anulada; só são 
conservados os fatores estruturais de ordem biológica. 
Os bichos causam dó porque são vítimas inermes do acontecer. Nunca 
sabem para onde estão indo. Se você extinguir uma espécie animal, o último a saber 
vai ser o membro da espécie animal. O último leão, ele não sabe que é o último! 
Então quer dizer que esse negócio de idealizar os animais, e até os 
primitivos, dizendo: "Não! Eles é que são felizes", só quem nunca viu o sofrimento 
animal é que diz uma coisa dessas. O animal que sofre, ele sofre duplamente, porque 
no sofrimento animal existe, além de tudo, o terror. Ele não sabe o que está 
acontecendo, está totalmente na mão de fatores externos. Graças a Deus, se você for 
o dono do animal, você é um desses fatores, e é um fator atenuante. Qualquer 
veterinário lhe dirá que, para curar um animal doente, um fator fundamental é a 
atenção e o carinho do dono. Agora, e quando você fica doente? Se não tiver 
ninguém para lhe dar atenção e carinho? Você pode, você mesmo, depois você reza 
enquanto se levanta. Isso aí para o animal está completamente fora. 
Esta dimensão histórica é uma maravilha da vida humana. É isso aí que 
lhe dá um privilégio especial, e sem você ter consciência deste privilégio toda sua 
visão da realidade é totalmente deformada e desproporcional. 
Hoje, por exemplo, existe uma tendência muito forte, mas muito forte, de 
enfatizar a tal ponto a semelhança do homem com certas espécies animais que as 
diferenças acabam desaparecendo. Qualquer geneticista lhe dirá: "Não, a diferença 
entre o homem e o macaco da espécie tal é de apenas 3%". Bom, 3% geneticamente; 
ou seja, a ciência genética, com seus métodos, com a delimitação do seu campo, não 
tem senão condição de enxergar 3%. Isso não quer dizer que toda diferença possa ser 
reduzida a esse percentual. Isso é uma limitação, não do homem, nem do macaco, 
mas da genética, evidentemente. 
Essa limitação de uma ciência em particular às vezes é extrapolada como 
se ela mesma tivesse um poder explicativo sobre o restante do fenômeno. Mas, por 
exemplo, quando qualquer indivíduo quiser argumentar sobre os 3%, tem algo que 
se pode responder imediatamente. Existe uma constante da História humana (que 
não é tão constante assim, mas é cíclica ou repetida ao longo do tempo): desde que 
apareceu o homem na Terra, ele nunca parou, nem uma vez, de chamar à sua 
responsabilidade, ao seu comando, a gerência e o direcionamento de processos 
naturais que antes eram totalmente espontâneos. Ele nunca parou de fazer isso. 
Sempre quer fazer mais, e rnais, e mais... Isto torna o homem não apenas "um 
pouco" diferente de todos os outros animais: é uma diferença de dimensão. Não 
existe nenhuma espécie animal que possa fazer isso! 
Quando você vê as pessoas discutindo crise ecológica e fazendo planos 
para alterar processos naturais de escala imensa, lembre-se de que isso começou 
desde a primeira vez que um sujeito plantou alguma coisa, da primeira vez que ele 
procurou orientar, dirigir o processo natural, de maneira que lhe fosse conveniente. 
Isso não quer dizer que antes não houvesse sementes, que as sementes não 
germinassem e que nada nascesse. Não, nascia, só que nascia como a natureza queria. 
O homem chama a si a gerência desse processo natural e... vamos ter que explicar 
tudo com 3%? Eu digo: "Olha, este é um problema gravíssimo para a genética", 
porque essa é uma ciência excepcionalmente burra. Ela pega um fenômeno desse 
tamanho e disso ela só consegue enxergar 3%! 
Agora, se o geneticista entende que esse fator genético está imbricado no 
meio de uma malha de outros fatores, ele dirá: "Olha, o que a genética tem a dizer a 
respeito é muito pouco, porque nós só sabemos dos 3%"... Mas o sujeito não vai 
dizer isso nunca; ele vai dizer que nós é que estamos limitados pelos 3%, não a 
ciência dele. Se ele faz isso, está demonstrando que não sabe o que é ciência. 
E vejam: nenhuma ciência estuda um objeto real, concreto, ela estuda 
sempre um recorte abstrativo que faz do seu próprio jeito. Esse recorte abstrativo 
pode corresponder a alguma diferença real existente no campo dos objetos, mas isso 
pode às vezes não acontecer. Pode ser que o território de uma ciência seja todo ele 
fictício. Por exemplo, se se descobrir que tudo aquilo que se chama de genética pode 
ter uma explicação química, acabou a genética, ela não existe como um recorte 
correspondente a uma diferença objetiva. As ciências são a toda hora absorvidas por 
outras. Isso prova que elas estavam estudando irrealidades e que, quando despertam 
do seu sonho, são imediatamente engolidas por uma estrutura científica maior. 
Isso também pode acontecer

Outros materiais