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TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 6 Profa. Monise Valente da Silva 2 CONVERSA INICIAL Assim como o movimento pós-colonial, o debate das questões de gênero também tem uma inserção tardia nos estudos das relações internacionais. Enquanto em outras áreas do conhecimento a dimensão do gênero vinha crescendo desde a década de 1960, nas Relações Internacionais isso só acontece a partir das décadas de 1980 e 1990, no âmago do movimento de perspectivas pós-positivistas que questionam as bases das teorias tradicionais da disciplina. Trazendo uma perspectiva política às Relações Internacionais, estas abordagens introduzem o gênero como categoria central de análise da política internacional e suas distintas nuances. Nesta aula, iremos observar a evolução dos debates de gênero e sua inserção na agenda e academia das Relações Internacionais contemporâneas. Estudaremos, também, as suas principais vertentes e embates perante as teorias tradicionais, assim como a sua problematização teórica no debate da disciplina. A todos, uma ótima aula! TEMA 1: A QUESTÃO DE GÊNERO: O DEBATE DA IDENTIDADE NA AGENDA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Antes de tratar do debate do gênero em si, cabe aqui distinguir a abordagem da desigualdade de gênero e o movimento feminista. Apesar de similares, o debate de gênero engloba um escopo mais amplo que discute, além da perspectiva feminina, também os impactos do papel de gênero assumido pelos homens e indivíduos que não se encaixam propriamente nas categorias de gênero tradicionais. A inserção das perspectivas de gênero à agenda das Relações Internacionais traz maior pluralidade à abordagem e epistemologia da disciplina, e maior complexidade aos estudos de alguns de seus temas centrais, tais como as análises de segurança, economia política internacional e política externa. 3 No campo da segurança internacional, a perspectiva de gênero tira o enfoque do âmbito estatal para valorizar a dimensão individual e das realidades marginalizadas pela política mundial. Assim, conforme explica Tickner (2001), as perspectivas de gênero examinam como os impactos da valorização realista da masculinidade e da necessidade de defesa, perante ameaças externas, afetam a reprodução da noção maximização de poderes nas RI, e acabam por legitimar o uso da violência estatal para fins domésticos e internacionais. Da mesma forma, as abordagens de gênero buscam trazer a perspectiva individual para a análise da guerra nas RI, dando especial atenção à condição de vulnerabilidade feminina e de outras minorias em situações de conflito, assim como seu papel reduzido nas negociações de paz e processos de reconstrução (SALOMÓN, 2016). Na dimensão da Economia Política Internacional, por sua vez, as abordagens feministas e de gênero trazem o enfoque para a dimensão local da desigualdade econômica, deixando de lado as interações entre os Estados e mercados para entender estruturas de gênero que constrangem possibilidades e estabelecem as hierarquias nas quais a dimensão do patriarcado é reforçada e reproduzida. A divisão sexual do trabalho, os fluxos migratórios e sua conexão com a economia mundial, assim como a crescente relação entre a pobreza e a condição feminina, especialmente no contexto das relações Norte/Sul globais, são alguns dos temas da abordagem de gênero nas R.I. (TICKNER, 2001). Por fim, quando tratam de Política Externa, as perspectivas de gênero enxergam, também, no reforço das masculinidades, um papel essencial nos processos de tomada de decisão e conformação do comportamento estatal. Da mesma forma, os efeitos das políticas estatais afetam de maneiras distintas as realidades masculinas e femininas. Dentre os pontos levantados pelas análises de Política Externa, as sanções econômicas, políticas de cooperação e decisões que afetem áreas de saúde, alimentação e educação, têm um impacto muito maior na esfera feminina que na masculina. Também parece haver uma relação causal entre a presença feminina nos processos de tomada de decisões e maiores possibilidades de cooperação e implementação de políticas igualitárias por parte dos Estados (SALOMON, 2016). 4 TEMA 2: OS ENFOQUES DE GÊNERO E O PANORAMA GERAL DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os enfoques de gênero nas Relações Internacionais emergem entre o final da década de 1980 e início da década de 1990, no contexto intenso de mudanças e de expansão da agenda, das abordagens teóricas e metodológicas das Relações Internacionais. Como explica Tickner (2001), enquanto neorrealismo e neoliberalismo se baseiam na tradição cientifica racionalista, as abordagens feministas e de gênero encontram-se ancoradas, majoritariamente, em perspectivas humanísticas das relações sociais. Baseadas em uma concepção mais ampla da política mundial, vão além da dimensão única do Estado e das questões de segurança e tratam das construções de identidades e da dimensão individual. Desta forma, as abordagens de gênero apresentam grande resistência na disciplina, pois questionam a própria epistemologia de suas teorias hegemônicas. O marco da abertura das Relações Internacionais à perspectiva de gênero é o final da década de 1980 e início de 1990, quando do lançamento de um número da revista Millenium intitulado “Women in International Relations” (SALOMÓN, 2016). Neste mesmo contexto, são publicadas diversas obras de autoras feministas do período, e se observa a abertura do debate da dimensão do gênero em instâncias acadêmicas de relevância internacional. Estas publicações tiveram impacto significativo no sentido de trazer a atenção à dimensão do gênero nas relações internacionais, a reconhecer sua relevância analítica e a fornecer maior visibilidade ao papel da mulher nos jogos e dinâmicas da política internacional. Ainda que tenha aumentado sua representatividade nas análises da disciplina, é importante destacar que, se comparada a outras áreas das ciências sociais, as RI apresentam certa relutância em abarcar amplamente estas perspectivas. O impacto da abordagem humanística das relações sociais e da tentativa do estabelecimento do gênero como uma categoria de análise socialmente construída e variável, assim como a aproximação metodológica das teorias feministas das análises pós-positivistas, podem ser alguns dos motivos da negligência deste movimento e da dificuldade de sua conciliação com os demais debates teóricos das RI. (TICKNER, 2001). 5 TEMA 3: AS VARIANTES DA TEORIA POLÍTICA FEMINISTA: FEMINISMO LIBERAL, MARXISTA/SOCIALISTA E RADICAL A inserção das dinâmicas de gênero na disciplina das Relações Internacionais se dá baseada em estudos já desenvolvidos em outras áreas das ciências humanas e sociais. Neste arcabouço teórico referencial, destacam-se as teorias políticas feministas, que acompanharam o desenrolar prático do movimento feminista no século XX. Destacaremos aqui cinco perspectivas que auxiliam na compreensão do aporte destas teorias às análises das Relações Internacionais. A primeira perspectiva é a do feminismo liberal. Esta perspectiva é comumente associada à “primeira onda do feminismo” e às lutas por direitos políticos entre os séculos XIX e XX. Com bases em premissas liberais, reivindicavam, especialmente, o sufrágio feminino e o fim de políticas discriminatórias em termos de gênero, que impediriam as mulheres de exercerem plenamente sua liberdade e racionalidade (TICKNER, 2001). Nas abordagens das RI, por sua vez, a categorização do feminismo liberal vem comumente associada às concepções positivistas da condição da mulher nas dinâmicas globais. Apesar de seu caráter emancipatório, em termos de conteúdo, o feminismo liberal se distancia das abordagens mais críticas da questão de gênero, sendo por eles recriminado por não romper com modelosde análises tradicionais da disciplina (SALOMÓM, 2016). Em oposição às concepções do feminismo liberal, as teorias feministas marxistas e socialistas apontam as diferenças materiais e o controle do homem sobre o trabalho feminino como principal forma de opressão de gênero (MONTE, 2013). Enquanto a dimensão marxista apresenta um enfoque especial no sistema capitalista de classes, os socialistas falam da relação intrínseca entre capitalismo e patriarcado como determinadores da opressão feminina. É da perspectiva marxista que emerge o chamado “feminismo de ponto de vista”, que afirma a existência de dominação masculina na própria esfera da construção do conhecimento científico. Por fim, a teoria feminista radical emerge no seio da “segunda onda do feminismo” nos EUA, em meio aos movimentos mais amplos de luta por direitos 6 humanos das décadas de 1960 e 1970. A esta vertente se atribui a diferenciação entre sexo biológico e uma dimensão de gênero que é socialmente construída e cheia de nuances (SALOMÓN, 2016). Por meio de uma ideia de construção radical da sexualidade, esta vertente busca subverter os modelos propostos pelas teorias liberais e marxistas/socialistas, vistas como reflexos de dimensões patriarcais e valores masculinos. Desta forma, promovem uma contracultura que destaca a dimensão feminina, seus papéis e valores no sistema, e mesmo uma separação de homens e mulheres para o avanço do movimento feminista. TEMA 4: AS VARIANTES DA TEORIA POLÍTICA FEMINISTA: FEMINISMO PÓS-MODERNO E PÓS-COLONIAL Além das variáveis liberais, marxista/socialista e radical, as perspectivas pós-modernas e pós-coloniais também ganham destaque e trazem influências às análises da política internacional contemporânea. A abordagem pós-moderna traz para as Relações Internacionais a negação do projeto iluminista de modernidade, afirmando que o discurso de neutralidade e universalidade das teorias científicas esconde em si uma tradição epistemológica com viés de gênero (TICKNER, 2001). Esta vertente rejeita a existência de uma única história da condição humana, assim como rejeita a existência de uma visão essencialista da experiência feminina, conforme apresentado pelas demais escolas feministas. A partir disso, a corrente pós-moderna questiona a existência de um único projeto emancipador feminino e procura observar o gênero e a sexualidade como questões socialmente construídas, entendidas a partir da dos discursos de dominação e seus impactos nas relações sociais. No movimento pós-colonial, por sua vez, a questão de gênero é mais uma perspectiva de análise. Esta perspectiva parte do mesmo ponto de crítica à dominação dos modos de produção de conhecimento ocidental, à marginalização de determinados grupos e à subjugação de realidades para tratar das mulheres como grupo dominado. Indo além, fornece, também, uma crítica às teorias feministas ocidentais, cuja pretensa universalidade estaria baseada em concepções circunscritas a determinado contexto, classe e raça. Assim, a abordagem feminista pós-colonial busca reconhecer a multiplicidade de 7 experiências femininas, e dar voz às dinâmicas de gênero marginais, não- hegemônicas e não-ocidentais. TEMA 5: O GÊNERO COMO INSTRUMENTO TEÓRICO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Com panos de fundos distintos e influências variadas, os estudos de gênero nas Relações Internacionais apresentam, de maneira geral, um enfoque normativo que busca estabelecer concepções teóricas a partir da prática, levando a uma forma mais plural de abordagem da disciplina (SALOMÓN, 2016). Este movimento tem como base principal as análises pós-positivistas, ou reflexivistas, com um caráter dissidente e questionador perante os modelos de análise tradicionais e as principais formas de abordagem das teorias dominantes. É o movimento pós-positivista quem traz as análises de gênero para as RI, na busca de formas alternativas de observar e entender a disciplina e suas nuances a partir de influências de autores como Foucault e Derrida, e seus métodos genealógico e de desconstrução. Apesar de grande crítica e receio por parte da corrente pós-positivista, as análises positivistas, das questões de gênero, vêm ganhando força nas últimas décadas. Geralmente vinculadas a teorias já estabelecidas ou suas subáreas, estas análises aproximam a abordagem do gênero às dinâmicas e moldes das ciências sociais, acrescentando novas perspectivas e, em certa medida, respondendo à dificuldade metodológica de inserção do gênero nas categorias de análise dos assuntos e atores da política internacional. Neste esforço, acabam por tornar mais difusas as barreiras entre positivistas e pós-positivistas, aproximando e aprofundando as relações entre suas formas de estudo e percepção da questão do gênero nas RI. TROCANDO IDEIAS Para maior aprofundamento acerca das abordagens feministas e suas diferentes perspectivas teóricas, leia o artigo ‘O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais’, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2013000100004 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2013000100004 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2013000100004 8 NA PRÁTICA A relação entre mulheres e terrorismo figura como um exemplo interessante de análise da questão feminina sob a ótica das vertentes de gênero nas Relações Internacionais. Conforme observado, as dinâmicas de guerra e o uso da violência no sistema internacional são tomadas pelo senso comum - e mesmo por grande parte das análises acadêmicas - como uma prática essencialmente masculina. Na observação das práticas terroristas, a invisibilidade feminina também é bastante evidente. A percepção da dinâmica feminina nas práticas terroristas se dá, em grande parte, em papéis secundários, ou vinculados a motivos alheios à sua vontade, como o estímulo dos maridos e pressão familiar. Neste sentido, sob a ótica de gênero, pouca ou nenhuma agência é conferida às mulheres, cujos papéis permanecem obscurecidos por modos de construção de conhecimento e percepção da realidade essencialmente masculinizados. A negligência do papel da mulher, a negação de sua agência política na perpetração de atos terroristas seria essencial, segundo os enfoques de gênero, para a manutenção de noções idealizadas da mulher e a reprodução de suas dinâmicas de opressão. Busque alguns casos de atos terroristas perpetrados por mulheres e analise a forma como é retratada e apresentada a dimensão feminina. SÍNTESE A inserção da questão do gênero nas Relações Internacionais apresenta um desafio às concepções centrais de análise e às formas tradicionais de construção de conhecimento na área. Sua abordagem crítica traz mais pluralidade à disciplina, ao denunciar as construções de gênero na política global e promover novos enfoques de análise. As abordagens de gênero são influenciadas, fortemente, pelo movimento pós-positivista/reflexivista, com bases no movimento feminista e nas teorias que permearam sua construção e principais conquistas, ao longo de todo o século XX. Tendo sido inserida tardiamente nos estudos das Relações Internacionais, a questão de gênero vem promovendo uma reflexão acerca do papel da mulher e sua relevância como variável de análise nas mais variadas dimensões da abordagem internacional. De maneira ampla, as abordagens de gênero promovem uma dimensão política 9 clara de maior emancipação feminina e do fim de seu silenciamento na teoria e prática das RI contemporâneas. REFERÊNCIAS MONTE, Izadora. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013. NOGUEIRA, João; MESSARI, Nizar. Teorias das Relações Internacionais:Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. SALOMON, Monica. Teorias Contemporâneas das Relações Internacionais. Curitiba: Editora Uninter, 2016. SJOBERB, Laura; GENRY, Caron. Women, Gender and Terrorism. University of Georgia Press: Athens and London, 2011. SYLVESTRE, Christiane. Feminist International Relations: an unfinished journey. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. TICKNER, Ann J. Gendering world politics: issues and approaches in the post-Cold War era. New York: Columbia University Press, 2001.
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