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\, . o t ';.',.,,:. ; .. Il :( , . . , . ~ :~. . , ,',.' . , , ~ " ., ,. " '& i3 '~I~~~-_o<1>=_ ~ ~ ~ ~ = < o .= ~ - ~ C lI= C O Z = O O I) m ====:;; o ," c I)o o ,I) , 0 0 , o () J P O .. t<i/lW l,'l!'l,M n ~ U Il'iJ "li~ !lU ll .... , I!""h ,,'~ om il::olo lIO lU lO ~ :. J. .._.'- -- ..._-_.. . .. '-;-._ - --.----t-:..--...--~.~....._-.... - .--'--.._ ._ .-...._.' " ._ ' .- ... -- ... "-.._-_ •. ,..- .. -----'7'- --' - -"-'-- --.-------------- Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer JOGO, RITUAL E TEATRO um estudo antropológico do Tribunal do Júri Prefácio Paula Montero PosCácio Sérgio Adorno := TERCEIRO NOME fJ ~- 1 I Coleçio Antropologia Hoje ú"'s~1ho Etlitori4/ José Guilherme Cantor Magnani (diretor) - NAUIUSP Luiz Henrique de Toledo - UFSCar RtnmM=-MNIUFRj Ronaldo de Almeida - Unicamp/Cebrap Luis Felipe Kojima Hirano (Coord.) - NAU~USP EditQn. Ten:dro Nome Dinpio Mary Lou Paris EJjfáb Bruna Beber Estevão Azevedo Anistlnria «iitrJriaJ M2riana Küh1 Leme AdminÍJtra;ão ~ vmtÚu Dominique Rupreclu Saravaglioni Guilherme Dias Garcia João Paulo Pinheiro Paiv.a ~draFrota Prtparafáq tÚ 1Dett; Fábio BoniUo RnisiJJ Hebe Ester Lucas Projttogrdfto. diIlgrrnna;4c ~~"Pfl Antonio ICehl Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo OnogtiJico da Ungua Portuguesa. Dados Internacionais de CaCllogaçio na Publicação (CIP) 5379; Schriwncytt, Ana lúcia PastOK. Jogo. final C teatrO :wn estudo antropológico doTribW1a1do Júri I Ana Lúcia PastoreSchriamcyu; prú.l.cio P.l.ulaMonteiro; posfido Shgio Adorno. - 510 Paulo: Terceiro Nome, 2012. 296 p.; 21 em. Inclui bibliografia. ISBN-978-8~7816-103-3------------ 1. Direito c antropologia. 2Júri. Tribunais. 3.JOO .Etnologia.1. Monteiro, Paula. n. Adorno, Sttgio. m. TItulo. CDU 343.195:572 COD,340.1IS lndia: para cacilogosincRÚtloo: 1. AntrOpologia: Tribunais do júri 343.195:572 2. Obeiro: Antropologia 34:572 Copyright e Ana LúciaPastore Schrirzmeyer 2012 Resultado de uma parceria enrre oPPGAS/USp' a CAPES e a editora Terceiro Nome, aSérieAntropologia/PPGAS-USPpublica as melhores e mais atuais monografias, teses e coletâneas dos pesquisadores e profes- sores do Progr.una de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. A iniciativa visa se somar aos esforços da coleçãoAntropologia Hojeno sentido de contribuir para a divulgação da produção antropológica contemporânea. em suas mais variadas orientações e feitios, sublinhando a relevância da reflexão realizada pela Antropologia para as discussóes ---sociais;-culturais-e pollticas.da-atualidadee-- Fernanda Ar/as Peixoto, José Guilhenne Cantor Magnani tMarta Rosa Amoroso Comissão Editorial da Série Antropologia Todos os direitosdesta ediçfi.o reservadosà WITORA TERCEIRO NOME Rua Be1miro Braga 70 05432-020 - $10 Paulo - SP www.terceironome.com.br fone55 II 38160333 .._-/ ~--_. http://www.terceironome.com.br --------- Para Rafàel e Felipe, com gratidão por terem vindo, ( com um amor que cabe no colo embora maior que o mundo. / Épossível negar (..) quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a vertÚuie,o bem, Dros (. .. ), mas não ojogo. Mas reconhecer o jogo t,forçosamente. reconhew' o espírito, pois ojogo (...) nãoé matmaL (...).A própria existtnda do jogoéuma confirmação permanente da naturaA supra:dgica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, I porque são alguma coisa mais do que simpks seresmecdnicos. Se brir.camos ejogamos, et(11JOS consci- meia disso,éporque somos mais diJ que simples seresracionais ( ..). (Huizinga, 1980, 6) OsgraTlJ'ks julgamentos (...) levam a dramatização a seu mais alto grauIh intmsidade. Elesimpómt umaencenação,um cmdrio, pa- ptis, instâncias m:,"tas evío/hzci.ts, rroelaçõeseifeitos tk surp"sa que levam gn-almmteà confissãodo acusado. &correm ao extraor- dindrio, inclUJiveno arranjo do cerimonial judicidrio. Sdo calcados rm uma lógica implacdve! mas seufuncionamento provoca rmoções - desdea reprovaçdoaté a cólna e o ódio populares. (...) a meta . do dramai a morte fisica ou morttl daqueles que opoder acusa em nome da salvaguarda da forma e çhs vawres supremos da sociedack. (Balandier, 1982, 10) ,~ _._--;;-._..::- ..__ ._--- .1l!... 1t~ .!{ ( SUMÁRIO Prefácio - Paula MQntero , 11 Considerações iniciais 15 1 - Bastidores d. pesquisa. 25 2 - Júri - Jogo : 47 3 - Jogol'erethcto ••.......................••................................••.............................. 99 4 - Júri - Ritual 133 5 - Júri - Teatro ..: ::.: : =." ,.~~=w" 165 __ 6 - Júri - Texto etnográfieo 217 Considerações finais 267 Posfácio-SéJBWAdomo 273 Referências bibliográficas 277 Agradecimentos :287 --" ~--/-_. ~. ,:i i PREFÁCIO o campo da antropologia do direito é ainda bastante jovem no Brasil. Embora a questão da obediênciaà lei e o respeito às normas em sociedades sem organização estatal seja um tema clássico em nossa disciplina, em- preender o caminho inverso e projetar esse conhecimento antropológico sobre o aparato estatal moderno representa um grande desafio. Este repto supõe uma abordagem das instituições modernas que não exija, como pressuposto, a radical ruptura entre as esferas da moral, das crenças e da lei, ou, como diz a autora, entre a arte do comando e a arte da persuasão. O legado weberi~no nos acostumou a pensar que as formas burocráticas de po4er têm como fundamento a impessoalidade e a racionalidade. Este trabalho, ao propor uma etnografia de um conjunto particular de práticas jurídico-estatais, nos ~briga a pensar de Outro modo. Em vez do conceito weberiano de burocracia, a-autora prefere centrar sua análise na ideia huizinganiana de jogo. Não resta dúvida que a escolha do Tribunal do Júri para esse exercício foi estratégico. Como bem demonstra o trabalho de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, o que o Tribunal do Júri fazé encenar dramas da vida coridiana. Talvez outras instituições façam algo semelhante, como ,no caso dos testemu- -11- £ .1 I I, Jogo, ritual e teatro nhos rituais nos cultos pentecostais, ou os programas televisivos sobre violência. Assim como os Tribunais do Júri, estaS instituições também organizam as experiências cotidianas em narrativas. Mas não o fazem da mesma maneira. Quais seriam, então, as particularidades que caracteri~ za.m o rito do Tribunal do Júri como uma encenação panicu1ar? Essa é a principal questão que a autora procura responder ao longo deste livro tão inspirador. O caráter ritual e cerimonial do Júri é dissecado com maestria criativa. Quando a performance se inicia, uma única ceneza preside a sessão: temos uma mone violenta.O que está em julgamento, no en- tanto, no mais das vezes, não é se o acusado efetivamente matou outra pessoa, mas sim o que motivou aquela morte e se ela pode ser entendida ou não como um crime. Nesse lento trabalho ritual de reencenação do ato de matar exercitarn.se vários cenários possíveis de modo a decidir se a morte infringida a um outro foi legítima ou apenas um crime cruel. Mas as dinâmicas de" significação não são apenas processos mentais e tampouÇO se movimentam no vácuo.O trabalho de Ana Lúcia Pastare tem o mérito de revelar os mais tênues filtros que dão forma e limitam as possibilidades da significação: hierarquias socioespaciais do cenário, hierarquia das competências e saberes, corporalidade, gestos, vestimentaS dos atores, roteiro das narrativas, estilos de linguagem etc.O teatro do Tribunal do Júri é, antes de tudo, um ritual de persuasão sobre o que __ dev:e~s_er_entendidocomo "o"ce~o" e "o errado", o "justo" e o "injusto" no plano dos valores. E, além disso, como a aut~ra bem odemoiisüi~ esse teatro também tem a capacidade, como todo ritual, de micular diferen- ças sociais e de visões de mundo sem necessariamente eliminar umas em detrimento de outras. Em muitos casos, por exemplo, as justiças humana e divina se aniculam: emitida a sentença pelo juiz, os familiares saúdam e agradecem a Deus por Ele ter feito Justiça. Em uma sociedade tão desigual no planodas experiências de vida como a brasileira, esse efeito não é de pou~ monta. Também vale a pena sublinhar o modo como as narrativas da promotoria e da defensoria se enraízam no imaginário social popular para construir suas versóes do ocorrido. Na disputa entre o promotor e -12- --"--~"r.-'~--"-, ,: : sr "t Prerácio o defensor esgrime-se o medoversus a compaixão. Ao longo dos relatos desenha-se, de outro modo, a sociedade em que vivemos: angústias, sonhos e esperanças forjam os princípios que, nas palavras da autora, governam a vida das camadas médias e das classes populares na cidade de São Paulo, Este trabalho procura, ponanto, elaborar um novo caminho que possibi- lite empreender uma verdadeira etnografia dos sentimentos. E a escolha do Tribunal do Júri, por incluir pessoas comuns no ato de julgar, foi sem sombra de dúvida uma estratégia bem-sucedida, Chamo a atenção do leitor para o jogo de sedução que a própria autora exerce nas páginas deste bdo livro, ora se revelando, assumindo um tom quase confessional e intimista, ora voltando ao controle dos argumentos, por meio de análises mais abstratas e instigantes intuiçóes. Pontuando suas dúvidas e mudanças de perspectivas, relatando sua perplexidade no diálogo com seus entrevistados, respondendo aos seus interlocutores, Ana Lúcia Past?re vai atraindo o leitor para a trama de seus esforços e de seus achados criando cerra cumplicidade no aro mesmo da leitura e rellexão, Dessa ma- neira, parece-me"que o livro cumpre integralmente sua promessa de brincar com o leitor. Mas o faz sem superficialidade ou falta de comprometimento. Ao descartar sua questão original- serão os atores do Júri produtores de decisões democráticas? - e assumir uma abordagem claramente antropológi- ca - como o Júri narra a sociedade? -, a autora en&enta, a seu modo e com ~egância, problemas COllte..!t!po~"",sde <!iflcilsoluçá,<>,Em "articular, esse livro aborda a complexa questão das possibilidades do Estado de expressar, . em sociedades muito desiguais, uma identidade comum imaginada que produza vínculos de solidariedade cívica, Além disso, este livro também contribui para estimular medidas que instiguem os que são objero do direito a se tornarem, ao mesmo tempo, sujeitos de sua formulação. Por estas e muitas outras razões que seria tedioso enumerar, vale a pena, caro leitor, empreender o risco desta viagem. Paula Montero Professora TItular do Departamento de Antropologia da USP e presidente do Cebrap -13- "-~" ..•~ .1 / .:.t :~~, r ~; I CONSIDERAÇÕES INICIAIS Tramas envolvendo julgamentos por Tribunais do Júri ocupam, há muito tempo, espaço privilegiado em obras literárias, teatrais, cinematográficas, televisivas, trabalhos acadêmicos e textos jornalísticos. No Brasil, em plena ditadura militar, durante a década de 1970, alguns julgamentos pelo Júri, especialmente aqueles envolvendo homens acu- sados de matar suas companheiras, como oscasosUndomar Castilho! Eliane de Grammont e Doca Stteet/Ângela Diniz,já ptoduziam fortes reações populares. Mas foi a panir da abertura política, no final dos anos 1980, que mais julgamentos passaram a ganhar destaque nos meios de comunicação de massa e a chamar a atenção do grande público. Em parte, isso decorreu da habilidade com que setores contrários às políticas públicas de humanização das prisões e aos movimentos em defesa dos direitos humanos se valeram de jornais e revistas de grande circulação, bem como de programas de rádio e TV de grande audiência, para alar- deatseusdiscursos e atuações. Segundo Caldeita (2000: 348-349), tais setores se utilizavam basicamente de três estratégias: negar a humanidade de criminosos, valendo-se de estereótipos que os associavamà essência do mal e a monstruosidades; associar o processo de redernocratização ao -15- @ h.. -- 1- ._ _._.. . - .--_. P', i I i I :!: fl :i' I I \: li'i; -- .~._'-"j~ •."'tl.., ••• _. __ • aumento da criminalidade e da violência; compatat políticas públicas de humanização das prisõesà concessão de privilégios pata bandidos, contrapondo-as ao estreito acesso que "trabalhadores honestos" tinham aos mais elementares direitos sociais. Nesse turbulento contexto em que, não por acaso, se discutia a possibip Udade de implementação da pena de motte no pai>; tomou-se comum a veiculação ostensiva de hist6rias de homiddios e de abusos cometidos por "psicopatas cada vez mais perversos". Capas de cerras revistas e manchetes de vários jornais impressos e televisivos alardeavam "casos exemplares" dessas "aberrações humanas", como, por exemplo, nos anos 1990, o assassinato da atriz Daniela Perez; os estupros e mortes atribuídos ao matobay que ficou conhecido como "maníaco do parque"; e o caso do estudante de medicina que invadiu um cinema e atirou contra a plateia. A lista de "crimes monstruosos" cobertos pela núdia continuou crescendo nos anos 2000, quando outra estudante, agora de direito, Suzane von Richthofen, foicondena~apela morte de seus pais e, depois, o casal Natdoni foi condenado pela motte da menina Isabella, filha dele e enteada dela. Esses e vários outros casos colocaram o Tribunal do Júri no centro de acalorados debates, o que não s6 permitiu que a dinâmica técnico- -jurídica dos julgamentos fosse traduzida em linguasem coloquial para o grande público como fez com que explodissem posicionatnentos radicais relativos à pertinência de julgamentos por leigos,à pena de morte, ao endurecimento .£.s-pena.;ao reclusão, ao rebaixamento da menoridade------- - ----- penal e ao recrudescimento de medidas socioeducativas destinadas a menores de 18 anos. Esse conjunto de acontecimentos suscitou um crescimento significativo de pesquisas, dissettaçôes e tesesvoltadas pata os temas da criminalidade e da punição. Na esteira de trabalhos de inspiração foucaultiana e em um cenário político nacional e internacional de crescente formalização de políticas públicas bas.eadasem preceitos dos direitos humanos. firmou-se -16- como relevante, em várias áreas, investigar por que persistiam, no plano das ideias, imensas dificuldades pata se reduzir, em práticas legislativas e judiciais, o uso simbólico e efetivo de longas penas de prisão e mesmo da pena de morte. Por que inclusive muitos movimentos humaplsras e "progressistas" de direitos humanos demandavam. penas cada vez mais severaspata as violações dos próprios direitos humanos? (Pires, 1999 e 2004; Singer, 2000). Muitas das respostas apontaram desigualdades econômicas, étnico- praciais. de gênero e de várias outras ordens como responsáveis por essas persistências aparentemente paradoxais. Foucaultjá levantara a hipótese provocadora, bastante explorada, dequ~a prisão, apesar de ter sedemons~doum projeto "fracassado"desde o início, pecs.iste por produzir "beneficios", como a gestão de ilegalismos (Foucault, 1984; Teixeira, 2012). Outra resposta não excludente das já citadas é proposta por ÁlVatOPites, crimin6logo brasileiro radicado no Canadá, segund~a qual permanece forte, no Brasil e no mundo, a adesão ideológica, legislativa e judicial a um conceito de punição indissociável de duras penalidades porque, a partir do século XVIII, intervir nos corpos passou. a ser, cada vez mais, regulat a duração do sofrimento no tempo. Retomando Cesate Beccaria, o crimin6logo lembra que este jrnisra já afirmava, em 1764, não ser a intensidade da pena o que mais produz efeitos sobre o espírito hwnano, mas sua duração (Pires, 2012: 4). Assim, quanto mais valorizado um bem violado (no Brasil, a vida hu- mana é o único bem que, quando considerado doloSatnente violado, leva o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri e recebe as mais duras penas de reclusão), mais se entende que devem durar em anos, décadas e mesmo perpetuatnente as penas infringidas aos violadotes, excluindo-se possibilidades de reparaçóes de outras naturezas, como as monetárias ou de prestação de serviçosà comunidade (FulUn, 2012). Pata Pires, não conseguimos escapar da naturalização de fazercondenados sofrerem tern- -17- Jogo, ritual e teatro poralmente, na medida direta da valoração do hem que violaram, porque enfrentamos novidades a partir de velhas fórmulas. Temos dificuldade para reinvenrar e renomear o mundo. Para alcançarmos eficácia no que se demonstra ineficaz (longas penas de prisão, por exemplo), intensificamos o que já está ineficazmente em curso (penas de prisão ainda mais longas). É no interior dessa ampla e complexa problemática pertinente a várias áreas das Humanidades, e diante, ponanto, de um mundo cada vez mais caractetizado pdo que Geettz denominou "panoramas e colagens" (2001: 83) que situo este livro. A partir de emografias da dinâmica de sessóes de julgamentos realizados por Tribunais do Júti da cidade de São Paulo, entre 1997 e 2001, tento alcançar uma nova "compreensão" a respeito da justiça que neles se faz para, quem sabe. COntribuir para reinvenções e renomeações de certas tensões deste nosso mundo. Entendo "compreensão" não no "sentido de concordância de opiniões, união de sentimentos ou comunhão de com- promissos", mas de "aprender a apreender o que não podemos abraçar" (Ibid.: 84), tentando fazer "um ir e vir hermenêutico" entre os campos da antropologia e do direito a fim de formular questões morais, políticas e intelectuais imporrantes para ambos (Idem, 1998: 253). Vale reiterar que,àmedida que o fonalecimento de políticas públicas ba- seadas em discursos humanitários avançou no país, especialmente a panir dos anos 1980, apesar de persistirem violações a esses direitos, o número de trabalhos acadêmicos no campo da antropologia do direito aumentou significativamente e, em seu interior, pesquisas referentes ao Júri. O mestrado de Mariza Corrêa em ciências sociais pela Universidade de Campinas, "Os atos e os autos':. representaçõesjurídicas de papéis sexuais, 1975, hoje um clássico da área, foi um dos pioneiros sobre os Tribunais do Júri no Brasil.O rrabalho parriu da indignação de Corrêa diante da absolvição de um homem (Roberto Lobato) acusado de matar sua mulher, Oô de Souza Lima) em Bdo Horiwnte, o que se deu, segundo a defesa dde, "em nome da hont;' (Corrêa, 1983: 15). Diante da ausência de análises -18- ., .~. -; I Consideraçõe;i iniciais a respeito de situações de violência sofridas por mulheres no Brasil e de silêncios frente a outras tantas atrocidades corriqueiras, porém caladas. a pesquisa se concentrou em julgamentos de assassinatos, tentados ou con- sumados, que envolviam casais julgados nas dêcadas de 1950 e 1960 pelo Tribunal do Júri de Campinas. A análise teve como foco os estereótipos de masculino e feminino apropriados pelo sistema de justiça criminal e aceitos socialmente como papéis adequ~dos a homens e mulheres. justificando, muitas vezes e especialmente, mortes delas por eles "em nome da honra". Ainda na década de 1970, outro mestrado, o de Maria Alice Sestini, contou com uma pesquisa de campo desenvolvida nos10 e 20 Tribu- nais do Júri de São Paulo. Ela explorou aspectos relativos aos jurados ("homens médios" tidos como-representantes "da sociedade"), analisou debates referentes à "vida humana' como bem maior a ser preservado e investigou a questão do Júri ser ou "não uma instituição democrática c, consequentemente, dever ou não ser mantido (Sestini, 1979). A essas pesquisas inaugurais seguiram-se várias Outras sobre o Júri bra- sileiro. algumas das quais compõem, hoje, um referencial bibliográfico indispensável sobre o asSUnto. Destaque especial merecem os trabalhos de Roberto Kant de Lima, que nos anos 1980 iniciou comparações entre os julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri no Brasil e oTrial by Jury nos EUA com o objetivo de compreender formas de construção da verdade jurídica nesses dois Contextos sociais e políticos (Kant de Lima, 1989,1991,1993,1995 e 1999). Abordagens comparativas de modelos de administração de conflitos se tornaram, desde então, uma marca de suas pesquisas (2002, 2004a, 2004b, 2010), bem como das de vários de seus muitos orientandos. Especificamente sobre o Júri, além de alguns resultados produzidos por graduandos (Guimarães, 2010), cabe ressaltar o trabalho de Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira, cujo doutorado se voltou para o "Caso do ônibus 174", a partir do qual rea1iwu análises a respeito de como no julgamento, por meio da linguagem e do sistema de classificação jurídicos. assim como da apropriação de valores morais, foram produzidas "verdades" (2007, 2009, 2010) . -19- -------;r,..-" ~-.------- .---- @- ,logo. nu.IW c l.CAUU Ainda entre os trabalhos de colegas do Rio de Janeito. importantes são as pesquisas de Alessandra de Andrade Rinaldi sobre a oratótia no Triblttlal do Júri da capital fluminense (Rinaldi. 1999) e de Ângela Moreira-Leite (2006). na qual aboroa o "sabet-podet" que os profissionais do direito ("os vivos"), em plenário, exercem ao narrar acontecimentos que se passaram entre" os mortos". Além desses e de outrOSmestrados e doutorados em antropologia sobre os discursos produzidos no Júti. há pesquisas em vários ptogmmas de pós-graduação da área de letras voltadas pata a linguagem que juizes, promototes e advogados utilizam nos plenários. Algumas, do campo da linguística, enfatizam a interação oral entre juiz e réu durante o inter- togatótio (Petti. 2001). outras atentam pata detalhes das falas da defesa e da ptomotoria (Fagundes, 1987) e. também nos campos da filologia e da língua portuguesa. há trabalhos que se valem do Júri pata analisat estratégias discursivo-argumentativas (Miranda, 2011) e o tema da petsuasão (Pistori, 2008). Na Universidade Estadual de Campinas. fotam produzidas algumas dis- serrações e teses vinculadas ao Núcleo de Estudos de Gêneto Pagu cujas problemáticas se repottam a julgamentos realizados pdo Júri (Fetiani, 2009; Fetteira, 2010). A partit de uma pesquisa baseada em casos julgados em 2003 pelo 10Tribunal do Júti de São Paulo, uma equipe do Pagu desen- vqlveu uma investigação sistemática das sentenças e depreendeu haver um ~ ____11 •._ad!"áo_deabsolvição não rescriroàviolência doméstica ou entre gerações de £nniliares. mas estendido a outtas si~es (ij~bert, Ferreira&Uma, 2008:- 112). No que diz respeitoàviolência conjugal ena f.unili •• os pesquisadores analisam-na como "d.ifu.sa, invisívd" e, em muitos casos, "justificada até mesmo pelas insticuições do sistema de justiça, como o Triblttlal do Júri, em nome de uma idealizada hierarquia de papéis e posições" (Ibid.: 179). No sul do pais. Rifiotis (2011). que há muito se dedicaà interface entre an- tropologia e estudos teferentes a violências de gênero e doméstica, publicou recentemente um trabalho sobre quatto ptocessos de parricídio julgados -20- ____ .__OOM- em Florianópolis. Embora não Concentre sua análise nos plenários do Júri. recupeta a partit desses ptocessos práticas e valores morais dos operadores jurldicos. bem como atualiza o tema da adequação social dos envolvidos aos papéis de pais e filhos, demonsttando. mais uma vez, a fettilidade da pesquisa inaugural de Corrêa (1981). Nesse entreetuzamento entre gênero e justiça, também o Júti de Porto Alegre já foi objeto de detida análise em um recente doutorado em Sociologia (Fachinetto, 2011, 2012a e 2012b). Em telação aos jurados. o mestrado em antropologia do juiz Roberto Atriada Lotéa (2003), defendido na Univetsidade Fedetal do Rio Grande do Sul, se tornou um referencial. Na pesquisa, realizada em Porto Alegre, de conclui que os jurados. a princípio representantes de uma perspectiva leiga, reproduzem e reforçam uma lógica jurídica que, geralmente, não pende para a absolvição. Também são analisadas noçóes de justiça e o fato de que "jurados veteranos do Júri" interferem no resultado dos julgamentos. Se estendêssemos este breve balanço bibliográfico pata os campos da sociologia, do direito, da criminologia, da história, da literatura e de outras áreas afins, muitas mais páginas seriamn~árias para comentar o quanto cresceram e sediversificaram, no Brasil, dissertaçÕes, teses, artigos e livros referentes ao Tribunal do Júri, especialmente na última década, posteriormente à época em que eu defendi minha tese de doutorado. Diante disto, cabe esclarecer que, embora os capítulos deste livro guardem ---- Inuitasemdhança.com.os_datese,.des foram em parte alterados afim de tornar mais sucintas cenas passagens e para serem incluídas observaçóes referentes à atualização bibliogtáfica e a alterações por que passatam os artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (CPP) então vigentes à época de meu doutorado. mas modificados pela Lei 11.689 de 4 de junho de 2008 (tais artigos compõem o capítulo do Cpp referente ao "Processo dos crimes da competência do Júri"). Os títulos dos capítulos 2 a 6 foram mantidos. tal como concebidos pata a tese, pois se tratam de "títulos-conceitos" que refletem ideias-chave -21- --.---f _..----'- ~I Jogo, ritual e teatro advindasdo trabalho de campo: "jogo". "ritual". "teatro" e "narrativas" esravam presentes como metáforas organizadoras dos discursos de vários juízes,promotores. advogadose jurados a respeito de como compreendiam a dinâmica das sessóes de julgamento pelo Júri e como se percebiam nelas. Por essarazão. e aplicando a clássicalição de Malinowski de que se deve ir a campo "a par das últimas descobertas" e com o maior número possível de problemas. mas para que as teorias se moldem aos fatos e não o con- rrário (Malinowski, 1978: 22 e 23), esses tírulos-conceitos expressam os caminhos analíticos apontados por meus interlocutores eminhas leituras. O capítulo1. "Bastidores da pesquisa". contém aspectos metodol6gicos do anres, do duranre e do depois do rrabalho de campo. Nele manrive informações que julgo relevantes para os leitores compreenderem mi- nhas escolhas e também indico possíveis desdobramentos do trabalho. Não se trata de esperar que os leitores compreendam meus passos para concordarem com eles e muito menos para os seguirem. mas para os apreenderem e. quem sabe, considerá-los inteligíveis no interior de uma ampla gama de possibilidades interpretativas. Nos capítulos 2 e 3. "Júri - Jogo" e "JogoVeredicto". está em questão justamente que tipo de jogoéo do Júri: sua lógica, seus elementos e as características do espaço e do tempo em que se desenvolvem interações entre os "jogadores". Ao contrário do que se costuma afirmar, sugiro que não somente promotores e defensores jogam para persuadir jurados. Estes últimos, assimcomo juízes,assistentes eos pr6prios réus também se valem de uma linguagem persuasiva. não apenas verbal. caracterizando, assim. o jogo do Júri como um complexo sistema de persuasões. No capítulo 4, "Júri - Ritual". os plenários são analisados como espaços simb6licos privilegiados para a percepção. produção e reprodução de valores em torno da legitimidade e ilegitimidade de matar na cidade de São Paulo. Tais valores, normalmente inconscientes, são reelabo- rados e emergem rearticulados nas situações cerimoniais e ritualizadas dos julgamentos. -22- ,/ Considerações iniciais odebate em rorno da dramarurgia do Júriéobjero do capírulo 5: "Júri- Teatro". Nele está desenvolvida aestreita relação entre a arte do governo e a da cena. Assim como nos capítulos anteriores, a reromada de conceitos como teatrocracia, poder e drama serve de base para a interpretação de julgamentos em que osvários atores evidenciam uma luta pela conquista elou manutenção de valores relacionados ao poder de matar. No capítulo 6, "Júri - Texto etnográfico". os discursos elaborados nos Tribunais são reapresentados como textos imaginativos. plenos de imagens baseadas em sentimentos e construídos a partir de "materiais sociais". A pesquisa .decampo éenfatizada como acessoprivilegiado a algumas dessas imagens eà compreensão de como e por quem elas são construídas. de quais "materiais sociais" seus construtores se servem.e em que situações cognitivasasutilizam.A etnografia integral de uma sessãoestádescrita nesse capítulo. Relatada, do começo ao fim, elaéapresentada como. ao mes.r:no tempo. particular e típica. Particular porque trata de pessoas. espaços, tempos e ritmos compostos de forma única. e típica porque alcança um sistema de valores que ultrapassa as especificidades narradas. Nas "Con- . siderações finais", tento responderà pergunta que vários interlocutores. especialmente da áreajurídica. fizeram-me ao longo do trabalho de campo e durante todos os anos posteriores a de: (~a1. depois de tanta análise, você acha que oJúri deveou não continuar existindo no Brasil?"Acho que dou uma resposta antropológica a uma pergunta não antropol6gica, pois a expectativa que tenho com ~publicação deste trabalho é tão somente con- tribuir para um alargamento de nossa compreensão e de nossa imaginação a respeito dos Tribunais do Júri e do "material social" que nele se elabora. Aposto que, quanto mais amplos forem nossos horiwntes cognitivos. mais chances teremos de reinventar e renomear um mundo que segue lidando de forma bastante problemática e mesmo ineficaz com os de- safios que a ele se colocam. de, forma aguda. quando da ocorrência de mones violentas. ih. -23- -G? ! " 1 BASTIDORES DAPESQUISA Antes Meu interesse por julgamentos e Tribunais do Júri vem de longa data. Provavelmente começou naadolescência, com muitas leituras de tramas policiais e "de tribunal".Mas foi àépoca em que eu cursava, simultanea- mente, as graduações em ciências sociais e em direito, e apartir de uma cotúluência de disciplinas e textos, que descobri e escolhi,inicialmente no mestrado (Schritzmeyer, 2004) e depois no doutorado (Schrirzmeyer, 2002; 2007a; 2007b; 2008), o campo das decisões judiciais como objeto de estudo antropológico-jurídico. No mestrado, os tribunais estucUtdQ.lLnão foram_os_do_Júri,_já_qlle_os,~~ __ crimes abordados foram o curandeirismo e o charlatanismo. Minhas fontes de dados foram acórdãos publicados em revistas brasileiras de jurisprudência, através dos quais analiseiosmodos de juizes diferenciarem práticas mágicas, religiosas e científicas.Concluí que, em Iarga medida, eles se pautavam em pressupostos socioantropol6gicos evolucionistas, mesmo em décadas avançadasdo séculoxx. Cobri um universo temporal de acórdãos que se estendeu de 1990 a 1990. E foi durante o mesrrado, entre agOstode 1988 e março de 1989, que participei de uma pesquisa cujos objetivos e metodologia semearam o -25- ....-.. /-'- ,, I I: . -- Jj Jogo, ritual e teatro futuro doutorado. Nesse período, analisamos 297 autos de processos penais, todos transitados em julgado, entre janeiro de 1984 e junho de 1988 pelo 4" Tribunal do Júri da comarca de São Paulo. Durante seis meses, frequentei as dependências desse Tribunal, li processos e deles extrai dados referentes a perfis de réus e vítimas. testemunhas, jurados. bem como informações sobre a "dinâmica dos acontecimentos": como os casos eram processualmente registrados, desde sua detecção policial até as sentenças proferidas pdo Júri. A pesquisa privilegiou a comparação entre o perfil social dos condenados e o dos absolvidos, com vistas a verificar os m6veis extralegais que intervêm nas decisóes judiciárias, o contraste entre a formalidade dos códigos e da organização burocrática e as práticas orientadas pela cultura institucional. o entrécruzamento entre os pequenos acontecimentos que regem a vida coti- diana e os fatos que regem a concentração de poderes no sistema de justiça criminal, bem como a intersecção entre o funcionamento dos aparelhos de contenção da crirnlnalidade, a construção de trajetórias biográficas e as operações de controle social (Adorno,1994:' 134-135). Alguns dos principais resultados quantitativos desse trabalho (como o predomínio de sentenças condenatóriasCom penas moderadas; de teste- munhas de acusaçáo; de jurados de classemédia; de condenações de réus já detidos, provenientes do próprio estado de São Paulo, antes ocupados em atividades mal definidas e, em juízo, representadospor advogados dativos) suscitaram meu interesse e minha vontade de aprofu~dar e am- pliar a investigação, estendendo-a a outros Tribunais do Júri da capital. Do mesmo modo, certos procedimentos metodológicos adotados (ne- gociações e convívio cotidianos com funcionários do cartório, leitura sistemática de várias peças processuais e entrevistas informais com pro- fissionais do direito) instigaram-me a imagi~ar como seria realizar uma "etnografia" daquele e de outros Tribunais do Júri. Fiz uma primeira tentativa ao elaborar umpaper para o 130 Encontro Anual da Anpocs (Schritzmeyer, 1989). Nesse texto, sistematizei algumas anotações de meu diário de campo, especialmente as relativasaos signifl- -26- -.=.:_--..----.-- :", 'oi Bastidore:; dapesquis.l cados dos espaços fisicosdo 4"Tribunal.do Júri para as pessoasque por ali circulavam. Como eu passava horas lendo processos, sentada em alguma sala ou corr~or, eram os espaços exteriores ao plenário do Júri os que eu mais emelhor observava: a rampa de acessoao edificio; o pequeno balcão que funcionava como porraria; os elevadores;a garagem para uso exclusivo de juízes,de promotores e carros oficiais;os arquivosmortos; o canório do Júri; assalasdo juiz presidente, dos promotores, do cafezinho e da votação secreta. Registrei, portanto, o que esseslugares aparentemente impessoais significavam para diversas pessoas, bem como posições e relações que neles elasmarcavam, definiam e redeflniam em seus trânsitos co~dianos. Depois da apresentação dessepaper e já concluída a pesquisa para o Cedec, segui acalentando a vontade de apr~morar reflexões paralelas e, especialmente, de prosseguir investigando algo que até então eu mal observara: o que se passava nos plenários, do momento em que os jurados convocados chegavam para o sorteio dos sete que comporiam o Conselho de Sentença, até o desfecho do julgamentos. Esse projeto Iicouengavetado, de 1989 até 1995, período em que concluí o mesttado, iniciei minha carreira docente e realizei várias outras pesquisas. Quando do ingresso no doutorado, portanto, eu contava com um inte- resse pelo Júri decorrente de uma somatória de experiências pessoais e profissionais. Desse conjunto e de alguns acasos nasceu o projeto que, apesar de aceito pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, modificou-se substancialmente no decorrer do trabalho. O texto que Sérgio Adorno publicou referente à nossa pesquisa no40 Tribunal do Júri (Adorno, 1994) foi decisévo para o que me propus inicialmente a estudar. Nele está desenvolvida a ampla reflexão que menciono nas considerações iniciais deste livro. relativa aos dilemas e desafios que se colocam à justiça criminal em uma ordem democrática, especificamente o hiato entre enunciados legais igualitários e situações concretas de discriminação e exclusão. -27- ~ Jogo. ritual e teatro Uma pergunta-chave desse artigo de Adoroo particularmenre me in- quietou: .Como é possívd estabelecer a identidade entre justiça social e igualdade jurídica em sociedadesmodernas, nas quais essesprincipios não se encontram assegurados?" (Ibid.: 134). Ao respondê-la, Adoroo retoma a questão do Júri e afirma que, assim como certas demandas em torno da racionalizaçáo da justiça pouco contribuem para assegurar tratamentos jurldicos igualitários, como demandas por códigos aperfeiçoados e mo- dernizados, por quadros administrativos bem preparados e por procedi- mentos formais céleres,rambém aextinção do Júri pouco contribuiria para diminuir desigualdades jurídicas, pois o problema reside na incapacidade dessa justiça de fundar o consenso em meio a diferenças e desigualdades. Essas colocações me inspiraram e reforçaram minha convicção de que seria relevante, tanto teórica quanto empiricamente, retomar o estudo do Júri e analisá-lo enquanto perpetuador de desigualdades e diferenças em meio a tentativas legais e teóricas de fundarconsen~os. Assim. quando da elaboração do projeto da tese, tomei coma ponto de panida teórico a problemática da permanência de práticas autoritárias em processos de consolidação de regimes democráticos e nda procurei inserir reflexões sobre a permanência ou extinção dos Tribunais do júri no B;""'il. Através de leituras principalmente de artigos e livros jucldi- coso levantei os principais argumentos contrários e favoráveis ao júri. os comentários e expectativas mais corriqueiros de manipuladores técnicos a respeito de seu funcionamento_ede_p_oLq!,1~~ratnde sua co:npetência somente os crimes dolosos contra a vida. Minha estratégia apontava para a investigação de como o júri era. avaliado, externamente, por aqudes que dde participavamelou propunham-se a entendê-lo. O foco inicial, portanto, voltava-se para os discursossob" o júri. Após as primeiras revisões do projeto, no decorrer de 1996. ficou-me elaro que esse foco implicava,aprion. considerar práticas autoritárias e desigualdades sociojurldicas como impedimentos para a consolidação de regimes democráticos. Em outras palavras, tratava-se de um pressu- -28- D85tIQOm as pesqwsa posto que não abria espaço para a compreensão das lógicas reguladoras internas dessas "práticas autoritárias" nem para as prováveis concepçóes evivências idiossincráticas de regimes ditos democráticos. Tal enquadra- mento ideológico da problemática obsrava. de antemão, uma percepção antropológica de sutilezas envolvidas no Júri, a partir de seu prõprio funcionamento. composição. rotina. "casos". Depois de muiras rdeiruras do projeto. quase todos os seus itens origi- nais foram revistos e substancialmente alrerados. O primeiro desafio foi deslocar a problemática do eixo "autoritarismo-democratização" para uma nova abordagem centrada noobjeto !!mpMeo Júri. Embora com a pesquisa ainda mal delineada, eu ansiava por "autores que me ajudassem a pensar" e solicitavaà orientadora, que ora prefacia este livro, urna bibliografia que me indicasse caminhos. Sua sugestão, de acordo com o que também aponta Renato janine Ribeiro a respeito do mau uso da bibliografia em ciênciassociai~.foi a de que eu não me prendesse a um referencial te6rico. mas explorasse vários. Desse modo, eu diminuiria o risco de condicionar os primeiros passos da investigação a trajetórias já legitimadas, reiteradas, paradigmáticas, embocando, ralvez,a possibilidadede reIlexõesinovadoras, fundamenradas em matetia! inédito. Um pesquisador deve expor-se a seuobjeto mais.do que o faz. (... ). Naleirura querdos clássicosda"área, quer dos referenciaisimportantes, tem que se ce. cupem o senso daaventura., (... ). Perde-sede vista, na profissão acadêmica, _quer entre os inici.antes, quer mesmo entre os pesquisadQfeSjá mais titulados. _ o senso do que se está.fazendo. Insiste-sedemais na forma, nas referências. Dá-se demais importância àsautorictata. Toda wna nova escolástica assim seespraiapelaprofissãouniversitária(Ribeiro,1999: 191, 194e 195). Portanto. minhas primeiras observaçóes empíricas sobre os julgamentos progrediram sob esse incentivo de arriscar opiniões próprias e funda- mentadas. sem desprezar referenciais importantes. mas não os tornando camisas de força. Visitar os tribunais, percorrer seus corredores, observar suas salas, perceber seus funcionários e'seu público, entrar nos plenários. assistir aos julgamentos e, quando possível, trocar ideias com os presen- -29- --- I " " , ;~ !: II ~ Jogo, ritual e teatro [es,mesmo sem saber, ao certo, o que lhes perguntar foram, de início, experiências aparentemente caóticas, mas, talvez por isso. decisivas. Nas primeiras visitas aos Tribunais do Júri, espaços e pessoas que os ocupavam me diziam mais do que eu conseguia apreender. tanto que, durante os primeiros meses, fui tomada por uma estagiária de direito que, com uma "curiosidade ingênua",percorria corredores. entrava em plenários, assistia a julgamentos e anotava tudo. Foi nesse ritmo, um pouco ao sabor do acaso e da curiosidade, que também avançaram leituras de livros jurídicos,de outras pesquisas antropológicas sobre o Júri e de debates publicados pda imprensa ou promovidos por universidades e associações de profissionais da área. Essa abertura, aparentemente desordenada dos sentidos, propiciou-me chegar a um conjunto de impressões, incompreensões, dúvidas einsights que, mais do que qualquer lista bibliográfica, ajudou-me, finalmente, a criar um recorte do objeto e definir melhor um referencial teórico. Portanto, por caminhos sinuosos, fortemente marcados pela experiência de campo, revi o modo frágil como eu inicialmente delineara "justiça penal" e "Tribunal do Júri" e considerara "tensões presentes em processos de consolidação de regimes democráticos" passíveis de serem observadas, simples e mecanicamente, no objeto empírico Júri. Partindo do pressuposto de que o Brasil enfrentava um tenso processo de consolidação democrática, eu apontava o debate em torno da permanência ou extin~o do Júri como uma espécie de termômetro dessa tensão. Estava implícita a hipótese de que os defensores da permanência representavam o "lado democrático' e seus detratores, o "lado consetvador"o Esses pressupos- tos ideológicos bastante maniqueísras não condiziam com o que o trabalho de campo me apresentava: o Júri como instituição polissêmica, presente em um contexto em que convivem e interagem múltiplas significações. Novas questões passaram a conduzir meu -trabalho. Como, no Júri, os participantes gerenciam significados ao produzir o ato de julgar? Qual é a gramática do ritual dos julgamentos? Quais são suas regras formais, Bastidores da pesquisa previstas na legislação vigente e como elas são apreendidas e utilizadas pelos profissionais do direito e jurados? Essas novas questões recortaram, no vasto universo da "justiça penal", composto por várias formas de julgamentos, algumas inclusive ilegais como linchamentos (Martins,1996),o microuniverso dos tljulgamentos pelo Tribunal do Júri", permitindo-me pesquisá-lo não maiS'Sob o prisma do "autoritarismo versus democracia", mas em busca de lógicas internas responsáveis pela dinâmica das sessões de julgamento. Sob essa nova perspectiva, que apontava os julgamentos pelo Júri como rituais orientados por regras próprias a serem compreendidas "em ato", não mais cabia enfatizar a "incapacidade da justiça penal de fundar o consenso em meio a desigualdades e diferenças" (Adorno, 1994: 149), pois, para aquilatar-se tal incapacidade, seria necessário adotar um "cri- tério externo de capacidade", procedimento esse que deslocaria a análise do Júri, em si, para discussões externas a ele. Estava, portanto, definindo-se uma das linhas mestras do que se encontra neste livro: investigar narrativas do júri sobre a sociedade,elaboradas du- rante as sessões, e não maisnarrativas dasociltiade sobre ojúri, elaboradas pela imprensa, por profissionais do direito, em debates públicos etc. Descartei, portanto, uma das principais perguntas-problema original- meme formuladas ("Serão os atores do Júri produtores de decisões que podem ser consideradas democráticas?") e decidi enfrentar outras, que me assustaram bastante, de início, por sua complexidade. Quais valores, afetividades e influências estão presentes no caleidosc6pico campo dos julgamentos pdo Tribunal do Júri e transparecem no decorrer das sessões? Como, nesse campo em que múltiplos vetores interagem,égerenciado o ato de julgar e comoé conduzido tal gerenciamemo?1 Como se expres- I O conceito de "campo", aqui utilizado, aproxima~se do que Bourdieu elaborou ao definir campo científico como "( ...) o lugar. o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida. de maneira inseparável, como capacidade técnica -o- -30- ".,. -31- ~.8;. ----r--- Jogo. mutU c ...,.." sam e se combinam (mais do que se opõem), na situação do julgamento, textos legais, tegras técnicas e bagagens existenciais, também ca1eidos- cópicas, de manipuladores técnicos do Júri e de jurados? Segundo sua "gramática lega!" e sua "prática coloquial", o titual dos julgamentos pelo Júri objetiva diferenças e desigualdades? Mantém assimetrias? Preserva hierarquias? Quais? Como essa "gramática" e essas "práticas"organizam tais diferenciações? A questão abandonada pressupunha democracia como um conceito po- sitivo e eu o adotava, vagamente, para avaliar atitudes e valores precisos dos atores doJúri, perdendo de vista o problema propriamente antro- pológico de investigar a produção do ato de julgar no campo especifico .do Tribunal do Júri, a partir da lógica própria produzida nos interstícios dessa instituiçáo. Esse reenquadramento de meu olhar sobre o Júri implicou considerar o conjunto de valores e afetividades em jogo, nos plenários, como algo que ganhava sentidos específicos naqudes espaços simb6licos. os quais deveriam ser observados "de deorro", através de etnografias das sessóes, e não "de fora", através de debates técnico-legais. notícias veiculadas pela midia e filmografia disponível ao grande público. Até hoje costumo dizer ameus alunos de métodos e récnicas de pesquisa que delimitar um objeto de estudo é como lapidar uma pedra bruta: é preciso não ter pena de perder lascas, pois o valor final da pedra resultará da arte de alcançar _____ e 4es_~C<U'_s~_F-a~mais b~_por vezes pequena. O que se perde pode ser, na verdade, um ganho. Mas falar é sempre mais f.kifCloque fazer. Durante De 1997 a 2001, excluindo o anO2000, tranSitei por cinco Tribunais do Júri dio.cidade de São Paulo. Embora, em momento algum, tenha havido . e poder social. (...) capacidade de falar e agir legitimamente (istoé, de ma."leira autorizada e com autoridade)" (Bourdieu, 1983: 122-123). , _32- I ", Bastidores da pesquisa a intenção de trabalhar com amostras estatísticas das sessóes ocorridas nesse período, orientei minhas visitas aproximando-as ao máximo do volume anual de julgamentos realizados em cada Tribunal. Minha rotina de trabalho, inicialmente estimada, foi a seguinte: Tnbunals l' ,. ,. 4' 5' To14l média de 160 40 40 40 20 300 julgamentos/mês 154%) 113%) (13%) 113%) (7%) (U)O%) OS' aproximado de 40u5 1 t 1 0,5 8 visitaslrnk (mês sim, mês não) (2lsemana) Esses cálasloslevaram em conta o número de plenários existentes, em 1997, em cada um desses CI"ICOTnbunals do Júri(8, 2, 2, 2, 1, respectivamente)e o fato de que em cada plenário poderia haver até um Julgamento por dia útil (aproximadamente 20 dias/mês), Com base nessas estimativas, o ritmo previsto para a realizaçáo da pes- quisa de campo, de março a novembro de 1997 e de março a novembro de 1998,foi, Tnbunais I' 2' 3' 4' 5' Total visitas em 1997 3' 8 8 8 4 64 visitas em 1998 3' 8 8 8 4 64 Total de julgamentos 72 16 16 16 8 128 a assistir ~,%) (13%) 113%) (13%) ~%) 1100%) Em virtude de imprevistos do Er6pE~_campo, como oadiame.p.t~d~ _ sess~: ger.ilinent~.por ausência do réu preso ou de seu advogado, bem como de outros compromissos relacionados às demais atividades da pesquisa, o cronograma estimado concretizou-se da seguinte maneira: Tribunais I' 2' 3' 4' s' To14l visitas em 1997 25 S , S 3 44 visitas em 1998 23 5 5 7 2 42 Totalde júlgamentos 48 10 11 12 S ••assistidos 156%) 112%) 113%) 114%) ~%) (100%) -33-:' ...:.._',7 .-,-_ ...-:----~_.-----------"_._-_.~--- i I, Jogo, ritual eteatro Durante 01<> semestrede 1999 eao longo de 2001,assistia maisalgumas sessóes (sete e catorze, respectivamente), todas no1°Tribunal do Júri, totalizando, assim,107. Essa decisãodecorreu de dois motivos: comple- mentar observações devido ao I' Ttibunal tet se mudado de endereço. no final de 1999, econhecere analisar seusnovos plenários. Enfim, apesar de não ter em mente realizar uma pesquisa estatística. com vistas a generalizar conclusões, o resultado do trabalho de campo me permite afirmar queforam abordadas, qualitativamente, sessões de Júri realizadas em cinco tribunais paulistanos. entre 1997. 1998. 1999 e 2001: Tribunais " 2' 3' 4' 5' Total julgamentosassistidos em 69 10 11 " 5 1071997,1998,1999 e 2001 (65%) (9%1 (10%) (11%) (5%) (100%) o que mais importa em relação a essesnúmeros, todavia, não é a quan- tidade de sessões assistidas, mas a relevância que o conjunto formado por elas teve na construção da problemática, das estratégias metodo- lógicas e das redefinições do enfoque te6rico deste trabalho. Também importante, metodologicamente, foi o fato de o trabalho de campo ter se desenvolvido ao longo de quase cinco anos, permitindo que a coleta de dados empíricos não se dissociassedas reflexões teóricas e vice-versa, o que resultou em uma recíproca influência entre elas. As primeiras vinte ou trinta das 107 sessóesserviram-me, antes de tudo, para "apurar" uma sensibilidade em relação ao Júri: como acontece com quase todos os antropólogos em seus trabalhos de campo, passei por um período de adaptação durante o qual, pouco a pouco, imernalizei o alcance da famosa expressão "estranhar o familiar e familiarizar-se com o estranho". Revendo hqje as primeiras sessões registradas em meus cadernos de campo e comparando-as às últimas, noto o quanto transfor- mei meu modo de percebê-las, à medida que se refinava a problemática teórica e vice-versa. Bastidores da pesquisa Foram três os cadernos de campo em que cada passo do trabalho ficou registrado cronológica e "evolutivamente", Retrabalhá-Ios implicou sub- vence sequências. Trechosde diferentes conversas. descriçõesde espaços, de rostos, gestos, olhares, sorrisose lágrimas, ruídos, tumultos e vazios, enfim. registros do queé diflcll traduzir em palavras passaram por uma espéciede assepsiapara caberem no esqueleto limpo e estruturado de um texto etnográfico. Ponanto, os vários rrechos de sessõese entrevistas que preenchem este livro, sob a forma de citações exemplares, estão, por um lado, desconectados de seusencadeamentos crono16gicose de seusCOntex- tos originais, mas, por outro, passaram a integrar novas sequências argu- mentativas porque eles próprios, somados e em interação, levaram a elas. Cabe relembrar que, como não me foi permitido gravar o transcorrer das sessões de julgament.o, todos os trechos de falas transcorridos nos plenário e nas salas secretas foram anotados nos cader~os de campo, tendo eu me valido de um "método taquigráfico pessoal" qu~ aperfeiçoei ao longo dos anos. Quanto às entrevistas realizadas fora'dos plenários, todas foram gravadas em fitas cassete, com o consentimento dos entrevis- tados, mediante a garantia de que suas identidades seriam resguardadas. Entrevistei, em cada um dos cinco Tribunais do Júri: Entrevistas em cada Tribunal Total de entrevistas nos 5 Tribunais 1 juiz presidente 5 1 juiz auxiliar 5 2 promotores 10 2 defensores 10 2 ré(u)s 10 assistentes (familiares de réus" estagiários de direito) 13 jurados 52 Total de entrevistados 105 (aproximadamente 30 horas) No caso dos jurados, embora sem a intenção de alcançar fidedignidade estatística, levei em conta a proporção do número de inscritos em cada Júri, de acordo com a seguinte tabela: r .1 .'-~-7"..-,.:-----~-. -. -34- ----'------_._----- -35- ----~. e-. 2 Além deserem poucos, no Brasil. os estudos sociojurídicos empíricos sobre os Tribu- nais do Júri, menos ainda são aqudes baseados em (ou que fazem uso de) entrevistas _a _jurados _e_demais_participant~_ dQ_Júri. DesJa-.a~se,_como_aceç:io, ..0_traba1ho .'~ realizado por Guilherme de Souza Nucci junto a 574 jurados do3R lIibunal do Júri . de São Paulo (Nocci, 1999: 219-363). Referencial, tamblm, IUI11.l J>=lWsa que analisou rodas as listas de jurados, processos julgados pdo Júri e noteias de jornais a des referentes desde o surgimento da comarca de Americana (SP), em 1954, até 1994. Nesse estudo foram realizadas entrevistas com profissionais que participaram dos julgamentos e com jurados, com vistaS a entender a insc:rção de mulheres no Conselho de Sentença (Fontolan, 1994: 67-88). No Rio Grande do Sul, Unia Stte- ck investigou duas com:lfql$: a de Rio Pardo, pobre e de imigração ponuguesa. e a de Santa Cruz do Sul, rica e de imigração alemã. Ele con&on~ou'o que Chamou de "índole e ideologia"dos jurados e concluiu que na11havia muito mais absolviç6es (72.32%) do que na 21 (31,23%) e que, portanto, a "índole da comunidade lusa" facilittva o esqu.ecimento e o penlão das infrações cometidas, enquanto a "{ndole da ~~ ••••••••••• <> ••••••• u Tribunais ,. 2' 3' 4' 5' Total total aprox. de 10.000 2.400 2.400 2.400 1150 . 18.450 inscritos(199n ~4"1 (13") (13"1 (13") (7%) (100%1-- 27 7 7 7 2' 50entrevistas realizadas 35 4 6 5 2 52 Além de o total dessasentteVÍstasnão permitir quaisqueranálisesquanti- tativas, como percentualizaçóes e generalizações de resultados, não segui um roteiro único e estruturado de perguntas, preferindo privilegiar, em cada situação, aquilo que o contexto melhor propiciasse. Minhas per- guntas, portanto, apesar de sempre buscarem significações que jurados. promotores, defensores, testemunhas, réus, juízes e p~oas do público davam a ocorrências do desenrolar das sessões, elas variaram de acordo com as sutilezas de cada julgamento. O mais importante é destacar que os conceitos de jogo. ritual, drama e teatro, conforme já apontado nas considerações iniciais. os quais acaba- ram por estruturar os capítulos, surgiram de forma recorrente em várias entrevistas e arguiçóes, alertando-me para a possibilidade de considerá- -los teoricamente e de estruturar as últimas entrevistas em função deles.2 "1I, _dapeoqu;.. Enfim, os dados empíricos que compõemeste livro tiveram papd fun- damental na de6nição de seus contornos te6ricos e vice-versa. pois a coleta dos primeiros redimensionou problemas e hipóteses e esses, por sua vez, orientaram meu olhar sobre o objeto. O amaq.urecimento do projero inicial deu-se em função dessa influência reciproca. Dal, dentre outras razões, o motivo de registrar, neste capitulo metodológico, alguns passos do caminho percortido e alguns trajetos desfeitos e abandonados. Todos tiveram algum peso no resultado final. Lascas da lapidação Entre asfontes de dados que cheguei a considerar para o trabalho mas acabei desprezando, destacam-se a produção jurisprudencial recente sobre o Júri brasileiro, reporragens e artigos publicados pelaFolha tÚ S. Paulo, estatísticas elaboradas pela Secretaria dos Neg6cio~ da Segurança Pública do Estado de São Paulo e pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), além dos longas-metragens norre-americanos e ingleses sobre Júri mais alugados nas principais videolocadoras da eidade. Embora eu não tenha levado a cabo a utilizaçãodessasfontes por referirem-s~ a discursos da sociedade sobre o Júri e não a discursos do Júri sobre a sociedade, comojá foi dito, elas podem rer grande valia para futuras pesquisas. Esl'edalmente lIos doi~pJimeiros .anos do_doutotado_(l996_e -1997), examinei vádos livros que tratavam do Tribunal do Júri no Brasil e que se encontravam. disponíveis nas principais bibliotecas jurídicas e livrarias de São Paulo. Assim como ocorreu com as 107sessõesde jul- gamento assistidas, várias ideias decorrentes dessas leituras não foram diretamente aproveitadás no resultado final. mas orientaram.no e estão em seu subtexto. comunidade 'germânica" revelava rigidez na observ4.ncia do cumprimento de regras de conduta (Streek, 1998: 87 e ss). " -36- : I! -37- .--_. _~J, Jogo, ritual e teatro Quase invariavelmente na maioria dos livros jurídicos que tratam do Júri, os autores fazem um breve "histórico" da instituição, apontando suas orip gens na antiguidade clássica greco-romana (séculoN a.C.),] na Palestina (Nucci, 1999; 31), na "noite dos tempos'" ou até na "Sanra Ceia' para, em seguida, referirem-seàMagna Carta(Inglaterra, 1215) e atribuírem a esse "momento histórico" as "feições modernas do Júri". A partir dessa gênese, os autores costumam saltar para o século ~ mencionando que, durante esse largo intervalo. a instituição "modelou-se" e espraiou-se pelo Ocidente (Nucci, 1999;32). Desse ponto da cronologia, vários passam para a chegada do Júri no Brasil, em 1822, onde foi criado para julgar crimes de imprensa. Segue-se, então, uma sequência cronológico-legal das constituiçóes brasileiras e decretos que alteraram a competência do Júri. até que vários autores finalizam seus "históricos" concluindo ou pelo atual "caráter democrático" do Júri brasileiro, garantidor de direitos e garantias individuais, ou "antidemocrático", perpetuador de discriminações sociais, econômicas e políticas. Tanto em um caso quanto no outro, o Júri parece ser tomado co~o uma espécie de termômetro da democracia brasileira sem, contudo, se discutirem os diversos contextos sociopolíticos pelos quais passou o país, bem como os diferentes perfis de legisladores envolvi- dos nas discussões e definições a respeito da competência do Júri e mesmo do que se entende por "sociedade", "democracià' e "cultura brasileira". Após constatar o quanto se repetia esse modelo de "histórico" nos livros doutrinários sobre o Júri no Brasil, propus-me a analisar como a maioria dos autores mais lidos por alunos e profissionais do direito faziam essa "história do Júri". Elaborei a hipótese de que, para esses formadores de novos profissionais do direito, a cronologia das leis e a sequência de 3 DarioMartins deAlmeida.Olivro dojurado. Coimbra, LivrariaAlmedina, 1977.p. 135. ~ Paulo Bonavides,Curso tk Dirdto Constitucional,São Paulo, Malheiros. 1997. p. 156. 5 OrlandoSoares,CursofÚ Direito Procroual Proal,RiodeJaneiro,JoséKonfinoEditor. 1977.p.311. -38- .-=::~;::=--::- :/.' I ~ j \~, g., ,I Y Bastidores da pesquisa suas alterações são percebidas como registros históricos dos caminhos e descaminhos da democracia no país. Ém outras palavras. a meu ver, eles legitimam uma abordagem legalista da história. embora sem desen- volver essa premissa. Enfim, como a partir de um certo momento do trabalho me distanciei da discussão referente ao "caráter democrático" do Júri e deixei de lado a leitura dessas "incursões históricas" feitas em livros doutrinários relativos ao Júri. aqui me limito a registrar o quanto é importante endossar a crítica que Luciano Oliveira faz em seu clássico texto "Não fale do Código de Hamurábi!". Ao se reportar aos muitos vícios de várias pesquisas sociojurídicas realizadas em programas de pós- -graduação em Direito, ele afirma: O problemaéque o jurista-autor (...) adora um viés evolucionista (...) pelo fato de essasincursões históricas não serem o fruto de uma pesquisa original, mas, via de regra, uma compilação de informações e autores os mais diversos e variados - muitas vezes colocados lado a lado sem um fio que os Costure-, hauridos mais uma vez.em manuais ou livrosde divulgação. e não em literatura c:specialiZ3:dae especifica (Oliveira. 2003: 309). Outra fonte de dados que considerei válida de início. mas depois des- cartei, foram notícias sobre o Júri veiculadas pela mídia. Achei, em um primeiro momento. que elas poderiam, em alguma medida, influenciar os discursos elaborados durante as sessões de Júri e vice-versa. Comecei investigando. notícias veiculadas pelaFolha de S. Pauloentre 1° de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1998. Valendo-me dos textos integrais, disponíveis em CD-ROM, de todas as edições desse período, elaborei um formulário para analisar as notícias, mês a mês, segundo algumas variáveis. A análise me deixou ciente dos casos que foram "paradigmáticos" para esse jornal6, levando-me a pensar que eles (; Em relaçãoa 1995. por exemplo. selecioneio julgamento de O.J. Simpson, nos EstadosUnidos, pois, de um rota!de237 norlciassobre Júris publicadas ao longo daqueleano,34% trararamdessecaso.Nessemesmoano, consequenrerneme,norlcias sobrejulgamemosporJúrisesrrangdrossuperaramasreferenresaJúrisno Brasil(57% e43%. respecrivamente).Consideradassóasprimeiras.o"casoO.J." respondeupor -39- .--- ~ Jogo. ntua! e teatro poderiam fornecer elementos complemenrares relacionadosà discussão dos significados em jogo no Júri. Abandonei esse material porque se tratava de uma fonte de discursossobreo Júri e não provenientesdo Júri; ficou-me claro que, quando promotores, defensores e juizes faziam uso de notícias veiculadas pela mídia no traoscorrer dos julgamentos, o que mais imponava não era verificar a propriedade desses usos em'si, mas analisar como eles ganhavam novos significados nos próprios contextos discursivos do Júri. Pelos mesmos motivos) perdeu o sentido investir esfurços no levanta- mento e aoálise de dados estatísticos poiiciais e judiciais a respeito de homicídios registrados no município de São Paulo, como número de ocorrências, inquéritos instaurados, processos e sentenças condenatórias e absolutórias proferidas pelos cinco Tribunais do Júri por mim pesqui- sados.7 Era minha intenção original elaborar um mapa do município de São Paulo segundo áreas de circunscrição das delegacias de polícia, agrupadas, por sua vez, segundo o Tribunal do Júri ao qual são remetidos os inquéritos policiais) tornando visível uma'macrovisáo georreferenciada da competência de cada Tribunal e dos resultados que produziam. Como em vários momentos das sessões de Júri - depoimentos de dele.., gados, de policiais militares e civis, intenrenções de juízes e argumentos tanto de defensores quanto de promotQres - eram mencionadas estatís- ticas criminais, considerei) inicialmente, que valeria a pena pesquisá-las em suas _(Qrlt~_J~rimárias. Porém) mais UJlla vez). no cruciaLmomento _ de qualificação da tese, foi-me possível perceber que somente na repre- sentação cênica das estatísticas elas ganhavam os significados que me 60% delas. Com base nesses dados, levantei a hipótese de que os leitores desse jornal interessados em Júri, durante 1995, teriam recebido muito mais infurmaç6es sobre o ritual nane-americano do que sobre o brasileiro, tanto que o caderno Mundo, sozinho, produziu 46% de todas as notícias em questão. , Fontes: Secretaria da Segurança Pública (SSP), Delegada Geral de Policia (DGP), Departamento de Planejamento e Conuole da Policia Civil (Depbn), Centro de Análise de Dados (CAD) e Fundação EstadualAnálise de Dados Estaclsticos (Seade). -40- utIlM.IUUR2l \,lU pesquua interessava analisar) baseando, portanto, atentar para essa representação e cabendo deixar de lado questões como: O que os mais recentes dados estatísticos apontam sobre os crimes de competência do Júri? Passei) assim, a considerar outras questões: Como e por que advogados e pro~ motores utilizam estatísticas em suas arguiçóes nos plenários do Júri? Que efeitos pretendem produzir e produzem com tais mençóes? Outra estratégia de pesquisa pensada mas não levada_ a cabo referia-se à filmografia sobre Júri disponível e mais procurada nas principais vi- deolocadoras da cidade. Ao conversar sobre o Júri brasileiro com várias pessoas sem formação jurídica e mesmo com algumas formadas em direito, mas não ocupadas na área penal, elas me revelaram uma imagem dessa instituição muito pautada no modelo norte-americano ou inglês, devido a filmes a que haviam assistido. Uma de minhas primeiras constatações foi a de que) dentre uma grande . variedade temática de filmes disponíveis em várias videolotadoras de São Paulo, os que incluíam julgamentos realizados por Tribunais do Júri nos Estados Unidos estavam entre os mais alugados. Segundo funcionários de algumas videolocadoras visitadas, havia verdadeiras legióes de fãs de filmes jurídicos, de julgamento, de tribunalou de Júri. Cheguei a realizar um levantamento preliminar) entre março e abril de 1999,dos títulos mais procurados. Como eram m1,1itasas videolo- cadoras da cidade, escolhi a maior rede delas, Blockbuster) e, de posse dos -endereços-e-telefones-das-trinta--Iojas então existentes, -selecionei intencionalmente cinco) cuidando para que cada uma estivesse em bair- ros correspondentes às circunscrições dos cinco Tribunais do Júri que pesquisei. Visitei-as, perguntando se a loja dispunha de algum registroestatístico, semanal ou mensal dos filmes mais locados. O que mais se aproximou de tal levantamento foi uma revista mensal, de publicação da própria rede, com uma seleção dos títulos mais cotados a cada mês, o que só fornecia, contudo, uma vaga noção de algum que abordava julgamentos pelo Júri. Minha pergunta seguinte aos funcionários era: -41- J ------ ..",7'.- "II .---- Jogo, ritualc teatro 'Quais filmes norte-americanos ou ingleses sobre julgamentos pelo Tribunal do Júri mais têm sido alugados nessa loja?" Ao registrar as respostas, eu considerava a ordem de citação dos títulos como indi- cadora de sua relevância, sempre insistindo para que o funcionário mencionasse "todos" os mais alugados. Cruzando informações, os dez filmes indicados como os mais alugados naquelas lojas e naqueles. meses foram:Doze homem e uma sentença, Advogado do diabo, Tempo de matar,O homem que jazia chover, Assassinato em primeiro grau, S/"pers, Segredosde um crime,Osegredo,julgamento fina/eJusta causa, Aproveitando uma oportunidade, analisei a opinião de 57 alunos de direitos a respeito do filmeDo~ homem e uma sentençae cheguei a uti- lizar em algumas entrevistas com jurados e operadores técnicos certos elementos de tensão desse e dos demais filmes mencionados, com o intuito de fomentar debates e posicionamentos. Eu tinha, ainda, OUtrasintenções em relaçãoà utilização desses filmes, como debatê-los.com grupos de jurados e operadores técnicos, mas elas também foram descartadas frente aos rumos que apesquisa tomou, espe- cialmente devido ao enfoque cada vezmais centrado na dinâmica lúdica, ritual e cênica do que se passa nos plenários durante os julgamentos. Além disso, uma das primeiras ideiasque me ocorreu ao decidir estudar os Tribunais do Júri de São Paulo foi a de, seguindo o exemplo da estratégia adotada por Maria Alice T. Sestini em seu mestrado (1979), tornar-me jurada, o que, provavelmente, não seria difícil, pois, por indicação de algum professor da Faculdade de Direito da USp, onde eu me formara, eu acabaria incluída na lista de jurados do ano seguinte e, em algum momento, seria sorteada para compor o Conselho de Sentença. Quais seriam, todavia, as implicações de estudar o ritual do Júri ocupando uma posição tão definida? 8 Tal "pesquisa de opinião" foi realizada junto a estudantes de111e 311 anos dapue ~SP,em agOStode 200 1, sob a orientação da professora Ora. Sílvia Pimentel, a quem especialmente agradeço por me ceder o material para análise. -42- Bastidores da pesquisa Refleti muito a respeito e concluí que, embora ficar na "plateia" também fosse assumir uma posiçáo definida, eu a considerava melhor do que qualquer outra, pois a partir dela eu considerava ter maior liberdade (física, intelectual emesmo moral) para observar e registrar adinâmicado Júri, Ao concluir o trabalho, considerei que poderia ter tentado combinar as duas possibilidades, mas hoje, passados dez anos da defesa da tese, constato que, justamente após todas as análises, votar pela absolvição ou condenação de alguém implicaria para mim um alto custo emocional. Todas as escolhas implicam perdas e ganhos e quase nunca é fácil o processo que leva à decisão. No caso da seleção de técnicas adotadas em uma pesquisa, parece-me tão importante quanto a apresentação dos resultados uma exposição crítica de como foi possível chegar a eles, pois não se deve perder de vista que as limitações e potencialidades do trabalho intelectual residem nesse processo decisório. Talvez nele resi- da uma semelhança entre um pesquisador e um juiz: ambos precisam decidir e sabem que suas decisões poderiam ser outras, bem com~ seus desdobramentos.O que geralmente se procura é fazer o mais adequado diante das circunstâncias que se apresentam e d~ acordo com valores compartilhados pela comunidade na qual estamos mais inseridos. Depois Não bastasse converter dados "brutos" fixados em cadernos de campo e em anotações de leituras em um texto articulado denominado "tese de doutorado'\ trabalhar novamente esse texto após dez anos, para transformá-lo em livro.é uma tarefa desafiadora. Seria este um empreendimento equiparável a enfrentar um quebra- -cabeça, uma charada, um jogo de armar, uma paciência ou um tiro ao alvo?Afinal, a produção de um texro autoral implica, para o autor, l'jogar" com seus limites e potencialidades, ainda que respeitando certas regras externas que legitimarão ou não a aceitação dos resultados. -43- .. /" - -.,'" " 1/ l1.2? Jogo, ritual e teatro Se,conforme verem . por se deseorol osnos dois pIÓximoscapíw1os, ""jogos secaracterizam . ar deorro de li' ' por' I'ruptura com qual cerras nure&temporaJS, unp 1= uma finalidade em quer realidade exterior a simesmos, por possuírem uma participam, a':: P.IÓPriarealização e por existir, da pane dos que deles . clênciad' . . 'Ld Ihporclona algo<Üsti e partiCIparemde uma anv1ua e que espro- um livro equip ntodastensóesdavidacoódiana,consideroqueescrever ata-se a nfren E b e lar umjogo solitdrio de destr= •aplictlfão. m ora o autOr afisme que essas COmquem mais dialogo nOSpróximos dois capírulos à ciência, esp<Ci:,"cterísricas gerais dos jogos não devem ser estendidas mente às"'" I' das" •contato com o aenclas ap lca • porque mantem estreito que asque não lhesé cercam. c, portanto, possuem uma temporaliclacle . prÓptia . d dalnda assim co. mas marcada porntmOS e eman as externas. nstdeto ha ,. el I'd'produção de vervarIOS ementOS U lCOSenvolvidos na um text . tlfi Itematizar e um o Clcn co, como. por exemp o, a tendência a sis- (Huizinga, 198~.rtoimpulso competitivo. geralmente de autossuperaçáo ,226 e227). Por várias vezes,esp 'alanos quanto ag CCI mente nos momentOS de escrita. tanto há dez Ota, retir ••; m d 'dian 1eum espaçoSó ~~ e o con o para ançar-me em wn tempo meusn . d .,pois se tratava de ' os quaIS, para oxaimenrc, seno angustia e prazer, estipuladas pcl urna competição comigo mesma, com as exigências Os prazo .parâmetros da s e ajustes que me foram propostos e com os E. é COmunidade profissional à qual pertenço. _se__quecabe difetanto aos olhos d rencia:r-ciência:"puran.-de-ciência_~aplicada~,_talvez, trabalho se confi e ptofissionais do diseito quanto da antropologia, este não sugere, objeti rOle .como lúdico, pois aparenta ser "inaplicávd". Ele para alguns dos ~ente, encaminhamentoS técnicos, políticos e sociais ou manutenção ;:Uemas do Júri no Brasil, COIDOa ampliação, tedução mesmo a man' e sua competência ou a forma de selecionar jurados ou eltadeo d d' Elcomo deve ser o J" pera ores técnicos se con uwem. e não sugere como jogo, ritualUnno Brasil, mas, ao apresentá-lo antropologicamente • teatro e como uma espécie de texto literário. a pretenp -44- .--r--- " i/ :I[ -'j i --. ....-t- são é que possamos nos perceber como dabotadores sofisócados dessas fotmas de conhecimento, de julgamento e de conrrole social. Todos nós somos, de algum modo, autores, jogadores, participantese atores dessa dinâmica. A esperança subjacenteéque, ao conhecermos melhor como da opera e como nela nos inserimos,po~os nos perceber capazes de rever daboraçóes já formul~das, especialmente as que não têm se demonstrado aptas a melhorar nossa convivência neste mundo cada vez mais heterogêneo e desafiador que nós mesmos criamos. <ij)~ií -45- _.~_. ",> : 1/ S;, !,, 2 JÚRI -JOGO Em 15 de junho de 1938, o historiador holandês Johan Huizinga (1872- 1945), que mor~eria sete anos depois em um campo de concentração nazista, concluía o prefácio de seu livroHomo ludens: o jogo como e!e- menta da cultura.Nas páginas introdutórias. ele explica que, desde 1903, quando começou a desenvolver a tese "(...) de que é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve", alguns de seus interlocutores se equivocaram ao achar que sua proposta era :=.presentaro conceito de jogo como uma das manifestações da cultura. Para deixar claro que entendia ser o jogo bem mais do que isso- um elemento integrante e constituinte da cultura-, ele escreveu esse livro. Ainda nesse prefácio, ele comenta: "Se eu quisesse resumir meus argu- mentos sob a forma de teses, uma destas seria que a antropologia e as ciências a ela ligadas têm. até hoje. prestado muito pouca atenção ao conceito de jogo eà importância fundamental do fator lúdico para a civilização" (Huizinga, 1980, penúltimo ~). Desde então. alguns cientistas sociais (talvez não tantos antropólogos quanto Huizinga gostaria) trabalharam com o conceito de jogo em suas análises.Na maioria delas. predominam afirmações de que onde há jogos -47- 4?)-- Caráter lúdico da cultura e do Júri há dominação, uma vez que elesenvolvem poder e constituem arenas de lutaS. Em OUttaspalavtas, ptevalece uma abordagem dos espaços lúdicos, especialmente dos uibunais, como lugares de dominação e sujeição. Neste capítulo, o júri não s6é apresentado como um jogo inserido em uma dinâmica de podet, mas como capaz de transcender polarizações, permitindo a construção de múltiplas subjetividades e redefinindo ex- periências sociais, daí poderem ser as sessóesde julgamento entendidas como rituais de caráter lúdico e agonístico. Trata-se, assim, ao seestudar jogos, de captar o valor e o significadodessas imagens e dessa "imaginação" que des produzem (Ibid.: 7). Partindo dessepressuposto e estendendo-o às sessõesde Júri, a proposta é percebê-las como jogos baseados na manipulação de imagens mativas à regulamentação do poder de um indivíduo matar outro. Não é esse poder de matar, enquanto ação, que está em jogo, pois de já foi exercido por alguém sobre alguém.O caráter estético do Júri, sua intensidade, fascínio e excitação residem na construção de julgamentos a respeito das circunstmcias que tornam o uso dessepoder legítimo ou ilegítimo. Depe~dendo de como as mortes são contadas, imaginadas e transfor- madas em imagens a serem julgadas, possíveis usos do poder de matar Segundo Huizinga (1980: capo 1, passim), várias e divergentes teorias são socialmente legitimados ou não. Portanto, captar quais valores e psicológicas e fisiológicaslevantam hip6teses, não necessariamente exclu- motivaçóes estruturam a legitimação desses usos é perceber como os dentes, porém parciais,ao tentarem definir as funções do jogo.Asprincipais . participantes do júri regulam não asmones ocorridas, mas o andamento apontam-no como descarga de energia vital superabundante; satisf.J.ção , de suas ptÓprias vidas.O fundamental, portanto, é entender o valor e •de um certo "instinto de imitação"; preparação do jovem para exigências o significado das imagens que manipulam as mortes, pois transcendem davida adulta; exercício de autocontrole; desejo de dominar e competir; as necessidades imediatas da vida e alcançam significaçõ~ mais amplas. escapepara impulsosprejudiciaiseloucompensação de desejosinsatisfeitos. Ad "d' .. c . d 'b'-. mlOn o,assrm,que t3.1SImagens relerem-se a um Jogo e atn wçao Embora o pressuposto comum a todas essas hipóteses seja o .de que .1 de sentidos atrelados ao poder de matar, cabe acrescentar que os atores no jogo existe alguma coisa "em jogo", que transcende as necessidades .! do Júri, ao elaborarem e expressarem essasimagens através de discursos, imediatas da vida e confere um sentidoà açáo, Huizinga as considera : : gestualidades e decisões, atualizam o mundo regrado da cultura, suas reveladoras de preocupaçóes superficiais, uma vez que apontam somente convençóes morais, sociaise econômicas. Eles transformam mortes f1sicas 0_que o jogo-é-ou-o-queele significa-para-os~ogadores,.nãoavançando na em metáforas de_d~as da Y~~t.pois cadáveresmotiva,m reflexõesa r~~-__ análise de seu caráter «profundamente estético" e no fato de que em sua peito de conflitos entre vizinhos, parentes, amantes, colegas de trabalho, intensidade, em seu poder de fascinação e em sua capacidade de excitari; integrantes de redes de tráfico de drogas e de armas. Cada sessãode júri, reside a própria «essência"jogo (Ibid.:3.5). .~ nesse sentido,-é um exercício em que os sentidos dessas metáforas são E . al d bo d . ló' b' i revistos por todos os participantes: juízes, promotores, advogados, réus, m outras p avras, on e se esgotam as a r agens pSICOglca e10- ?1:' . •. , ló ' d . ul háb' d' .. ,"l testemunhas, funClonarlOse asSIStentes, gtca os Imp sos e !tos que con IClonamo Jogo começa a teona I' de HUizi.nga,para quem o jogo é fator cultural significante, b.aseadona .' , Se quisermos ir um pouco mais além, talvez possamos dizer que esses manipulação de imagens, em uma certa "imaginação" da realidade ou j participantes são capazesde formular e reformular tais sentidos, percebê- mesmo na transformação em imagens do que se entende por.r:ealidade.. -los e utilizá-los porque de algum modo já os têm internalizados. Dão-se :fi .T,r.•_. -48- -49- .----" :;,1, i I i i Jogo, ritual e teatro coma deles e os materializam nos plenários do Júri porque ali, diante de casos concretos, expõem-seà necessidade de julgar e decidir a vida de acusados dehomiddio. Portanto, O que aparentemente criam em parte já existe, pois as regras do jogo do Júri são regras da vida social, mas, por serem dinâmicas - e porque também o ato de aplicar implica interpretar e poder inovar -, o Júri permite uma leitura de regras "em ato". em fluxo entre abstrações e materialidades. Algumas características dos jogos e do Júri Jogos voluntários e obrigatórios Certas características gerais dos jogos (Huizinga.1980: capo I, passim) permitem paralelos com a.dinâmica de algumas regras sociais que emergem nos plenários do Júri. Uma dessas característicasé o fato de a maioria dos jogos consistir em atividades voluntárias que, especialmen- te quando realizadas entre adultos, podem ser adiadas ou suspensas. Contudo, quando se ligam a noções de obrigação e dever. passando a ter uma função culturalmente reconhecida, seja sob a forma de cultos ou de rituais, tornam-se atividades lúdicas necessárias. As sessões de Júri, por terem reconhecidamente a função de fazer parte de uma instituição de controle da criminalidade, não só são legalmente ritualizadas como se ligam a noções de obrigação e dever e, assim, se tor- nam necessárias, não podendo ser "facilmente" adiadas ou suspensas. Esse caráter obrigatório das sessões, todavia, não significa que juízes, promoto- res, advogados e jurados lá estejam apenas para cumprir uma obrigação. Seguir carreira no Júri, seja como juiz ou promotor de justiça. e mesmo ser jurado voluntári09 implica optar, ao menos de início, por algum tipo 9 No Brasil os jurados sáo alistados anualmente pelo juiz presidente do Júri entre cida- dãos de notória idoneidade.O juiz poderá requisitar às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culrurais, instituiçóes de ensino em -50- ____ o f-- ~ .. " <' .'i/ I j 1 ~ >'1 r I Júri -Jogo de prazer; são corriqueiras declarações como as que se seguem. proferidas por um promotor durante urita sessão: "Quando eu era estudante, acom- panhava as sessões e me imaginava nelas. Adoro isto aqui. Não saberia fazer Outra coisa. (. ..). Aqui ocorre algo que me completa".10 Outro, ao finalizar a "Introdução" de seu livro, escreve: (...)° trabalho apresentado, como não poderia deixar de ser, tem o cacoete do Promotor de Justiça. E talvez tenha mais do que isso (e56 compreende- rão aqueles: que são ou que foram protagonistas do Júri). Possivelmente ele inclua, subjacente, uma declaração de amor (Trein,1996: 15). Vários advogados que dissertam sobre o Júri fazem "declarações" seme- lhantes: (... ) este livro se faz imprescindível a ~odos que atuam no Tribunal Popular (Magistrados, Promotores de Justiça, Advogados), bem como estudantes que já sintam paixão por essa maravilhosa. instituição (Almeida, 2001: 14, prefácio de Roberto Delmanto Júnior). Quanto aos jurados, embora os voluntários sejam minoria frente aos compulsoriamente convocados11 e apesar de muitos dos mais antigos geral, universidades, sindicatos, repartiçóes públicas
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