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Francesco Carnelutti AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL Tradução RICARDO RODRIGUES GAMA 1ª edição eBook 2013 Campinas/SP ÍNDICE Nota do Tradutor Dados Biográficos do Autor Prefácio do Autor Capítulo I – A Toga Capítulo II – O Preso Capítulo III – O Advogado Capítulo IV – O Juiz e as Partes Capítulo V – Da Parcialidade do Defensor Capítulo VI – Das Provas Capítulo VII – O Juiz e o Acusado Capítulo VIII – O Passado e o Futuro no Processo Penal Capítulo IX – A Sentença Penal Capítulo X – Da Execução da Sentença Capítulo XI – Da Libertação Capítulo XII – Além do Direito NOTA DO TRADUTOR A presente obra de Francesco Carnelutti não vem estampada de seu conteúdo simplesmente com o contado com o título, reclamando a leitura dos primeiros capítulos para tomar contato com a tentativa do autor em ensinar assuntos complexos para o homem leigo, isso sem deixar escapar os detalhes tão importantes que somente os doutores poderiam ter acesso. Além do prazer de transportar as ideias do autor para o nosso vernáculo, fomos tomados pela voraz vontade de mapear todos os desdobramentos gerados com blocos de ideias constantes em cada um dos capítulos. Verificamos a fusão da disposição para promover a tradução com a caminhada habitual de um leitor, ambos interessados no desfecho de cada uma das histórias contadas, nas lições que o autor pretendia passar com suas reflexões, nas comparações possíveis apenas para um exímio jurista e até mesmo na evolução dos temas abordados genialmente. A estrutura do poder judiciário, com o auxílio dos advogados e membros do Ministério Público, apresenta-se como perfeita, montada sobre a mais refinada técnica para excluir da sociedade o criminoso, faltando até consciência das dimensões malignas da decisão que rompe todas as barreiras do cumprimento da pena, marcando a pessoa delinquente para sempre. Na maioria das passagens, fica evidente o esforço do autor em fazer-se compreender, chegando a retornar a condição de criança, relatando suas experiências num período que não tinha envolvimento algum com o direito. Na passagem pela maior parte de sua vida, uma vez que o autor faleceu oito anos depois de escrever a presente obra, as mazelas cometidas pelo autor são exaltadas para evitar que outras pessoas possam assumir a frieza em nome da técnica, voltar-se à fantasia por puro descaso com a realidade, deixar de lado a religião em nome da expansão nos próprios conhecimentos, afastar-se da simplicidade para viver em plena contemplação à inutilidade... As falhas do processo penal não podem ser superadas com o conhecimento científico, claramente porque a realidade dos fatos não pode encontrar solução na norma jurídica, ainda mais quando se deixa de lado os sentimentos das pessoas envolvidas no processo por terem infringido à legislação penal ou como meio de expressar seus conhecimentos mais profundos... RICARDO RODRIGUES GAMA DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR Francesco Carnelutti foi advogado, jurista e professor em Milão, Catania, Pádua e Roma. Nasceu em Udine em 1879 e morreu em Milão em 1965. Graduou-se em Pádua em 1900 e tornou-se advogado no ano seguinte, livre docente em Direito Comercial em 1905, e professor de Direito Comercial em Catania em 1911, de Direito Processual Civil em Pádua em 1915 e em Milão em 1935 e de Direito Penal Puro em Milão em 1942 e finalmente de Direito Processual Penal em Roma em 1946. Quando completou 75 anos era professor emérito do mesmo ateneu. Fundou em Giuseppe Chiovenda a Rivista di Diritto Processuale Civil; e foi redator do projeto do Código Civil italiano. Escreveu inúmeras obras sobre Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Comercial e Direito do Trabalho. Em seus últimos anos escreveu obras literárias de caráter filosófico. PREFÁCIO DO AUTOR A Voz de São Jorge[1] é o veículo de comunicação do Centro de Cultura e Civilidade da Fundação Giorgio Cini[2], que tem sua sede em Veneza, cidade maravilhosa, naquela ilha situada defronte à Praça de São Marcos e ao Palácio Ducal[3], cuja arquitetura de Buora[4], de Palladio[5] e de Longhena[6] hoje ressurgida em seu antigo esplendor, estando circundado de tantas maravilhas. O Centro propõe-se a servir à cultura e à civilidade, ou seja, dizendo de forma mais simples, o saber servindo à bondade. Deveria ser este o destino do saber; nem sempre as coisas acontecem como deveriam acontecer. Também o saber, para citar um exemplo, como a energia atômica, pode servir ao bem ou ao mal, para tornar os homens piores ou melhores, fazendo-os erguer a cabeça em ato de soberba ou incliná-la em ato de humildade. O que se deveria fazer este ano, com tal objetivo, é concluir algo em torno do processo penal. Um raciocínio científico, à primeira vista, pouco conveniente para uma conversação com o grande público, o qual, especialmente no rádio, tem prazer em se divertir. Mas aqui está precisamente o nodo[7] da questão, em termos de civilização. Divertir-se quer dizer escapar da vida cotidiana, a qual é tão monótona, tão difícil, tão amarga, tornando irresistível a necessidade de evasão. Não estou fora da realidade ao extremo de não reconhecer, e ainda de não experimentar esta modesta necessidade. Mas existe outra saída para se evadir, além da diversão. É a saída oposta; e assim diz o provérbio que os opostos se atraem. Esta saída é o isolamento. Ao término e ao extremo, não há evasão mais completa do que a prece, que é a forma ideal do isolamento. Muitas pessoas não o sabem por que não experimentaram; mas aqueles que experimentaram o conforto da oração sabem o que pensar da diversão e do isolamento. Um pouco em todos os tempos, mas na atualidade cada vez mais o processo penal interessa à opinião pública. Os jornais ocupam boa parte das suas páginas para a crônica dos delitos e dos processos. Quem as lê, aliás, tem a impressão de que existem muito mais delitos do que boas ações neste mundo. A eles é que os delitos assemelham-se às papoulas que, quando se tem uma em um campo, todos delas se apercebem; e as boas ações se escondem, como as violetas entre as ervas do prado. Se dos delitos e dos processos penais os jornais se ocupam com tanta assiduidade, é que as pessoas por estes se interessam muito; sobre os processos penais assim ditos célebres a curiosidade do público se projeta avidamente. E é também esta uma forma de diversão: foge-se da própria vida ocupando-se da dos outros; e a ocupação não é nunca tão intensa como quando a vida dos outros assume o aspecto do drama. O problema é que assistem ao processo do mesmo modo com que deliciam o espetáculo cinematográfico, que, de resto, simula com muita frequência, assim, o delito como o relativo processo. Assim como a atitude do público voltado aos protagonistas do drama penal é a mesma que tinha, uma vez, a multidão para com os gladiadores que combatiam no circo[8], e tem ainda, em alguns países do mundo, para a corrida de touros, o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de incivilização. Com estes colóquios, o que se desejaria é fazer do processo penal um motivo de isolamento, em vez de sê-lo diversão. Não vale fazer oposição em torno desse processo no qual reúnem os homens da ciência; e não têm aqui o que fazer os homens comuns. Os juristas, certamente, o estudam ou, até agora, deveriam estudá-lo ainda melhor para conseguir que seu mecanismo, delicado como nenhum outro, aperfeiçoe-se; este é um problema com muito mais semelhanças do que se possa crer a respeito dos problemas de mecânica, que resolvem os engenheiros; e também dessas semelhanças as pessoas deveriam se dar conta. Mas porque também os homenscomuns se interessam pelo processo penal, daí resulta a necessidade de que não os confundam com um espetáculo cinematográfico, ao qual se assiste para conseguir emoções. Poucos aspectos da vida social afetam, tanto como este, à civilidade. Não é a primeira vez que me ocorre a vontade de advertir que a civilidade, com palavras mui singelas que raras vezes se leem assim nos livros, porque os homens infelizmente são, e querem ser ainda mais, ao contrário, terrivelmente complicados, não é outra coisa senão a capacidade dos homens de amarem-se e, por isto, de viverem em paz. Ora, o processo penal é uma pedra de toque da civilidade, não somente porque o delito, com cores mais ou menos fortes, é o drama da inimizade e da discórdia, senão porque apresenta a relação entre quem o tinha cometido, ou se diz que o tinha cometido e aqueles que a ele assistem. A propósito dos exemplos, relembrados há pouco, cumpre refletir em torno daquilo que acontecia sobre o espaldar do Circo Máximo[9], aos tempos de Roma, ou ainda acontece sobre aqueles das arenas de touros da Espanha, do México e do Peru. Eu pensava – em um dia de setembro passado, durante a projeção de um filme mexicano, no qual eu estava admiravelmente atento ao estado de ânimo do público bestializado contra o toureiro, porque não demonstrava um desprezo suficiente ao perigo – quem era mais estúpido, o público ou o touro? Aquela atitude não pode ser explicada senão mediante uma separação de quem assiste e de quem atua, tal qual o gladiador, antes que um homem, é considerado uma coisa. Considerar o homem como uma coisa: pode-se ter uma forma mais expressiva da incivilidade? Mas é aquilo que acontece, infelizmente, nove entre dez vezes no processo penal. Na melhor das hipóteses aqueles que se vão ver, fechados nas prisões como os animais do jardim zoológico, parecem homens fictícios ao invés de homens verdadeiros. E se, todavia, alguém percebe que são homens de verdade, parece-lhe que são homens de uma outra raça ou, quase, de um outro mundo. Este não lembra, quando sente assim, a parábola do arrecadador de impostos e do religioso fervoroso, nem suspeita que a sua é justamente a mentalidade do religioso: eu não sou como este. O que precisa, ao contrário, para merecer o título de homem civilizado, é a mudança de tal comportamento somente quando cheguemos a dizer, com sinceridade, eu sou como este, então seremos verdadeiramente dignos de civilidade. Para tentar provocar esta inversão de mentalidade, trataremos juntos de compreender o que seja um processo penal. Ao trabalhar assim, eu não faço, depois de tudo, mais do que retomar o meu caminho. Também eu, como a maior parte de vocês, quando criança, sentia a curiosidade, já que não era verdadeiramente apaixonado por este espetáculo. A respeito, contarei daqui a pouco num episódio. Na universidade, por uma série de circunstâncias, com as quais eu compreendi mais tarde o verdadeiro desígnio, desviaram- me do Direito Penal para o Direito Civil. Assim, durante longos anos, eu venho sendo mais um civilista do que um penalista; também a minha atividade científica desenvolveu-se mais amplamente no terreno do Direito Civil. Mas, subsistiu em mim uma atração secreta dirigida ao Direito e ao Direito Processual Penal. Existia uma espécie de corrente subterrânea que, ao chegar a certo ponto, emergiu à superfície da terra. Estaria fora de lugar a recordação de detalhes das ocasiões que a vida me ofereceu; o fato é que, um dia, da cátedra de processo civil fui passado àquela do Direito e depois à do processo penal. E aconteceu como acontece na montanha quando, depois de um longo caminho encravado entre as rochas, se alcança o cume e finalmente se abre defronte aos olhos a paisagem iluminada pelo sol. Assombram-se alguns por esta comparação? O Direito Penal não está no vale, melhor posicionado do que em elevações? Não é o direito da sombra melhor que o direito do sol? A verdade é que, segundo uma admirável intuição de São Paulo, nós olhamos as coisas no espelho e por isso as vemos invertidas. O Direito Penal, sim, é o direito da sombra; mas é preciso atravessar a sombra para se chegar à luz. Ao menos para mim foi o que aconteceu. Cada um faz o seu caminho; e o caminho, como a fisionomia de cada um, é diferente do caminho dos outros. Eu me dediquei a tratar com os chamados homens de bem, considerei-me um homem de bem; e não dei um passo para cima. Foi o conhecimento dos trapaceiros que me fez reconhecer que não sou, de fato, melhor que eles ou que eles não são, de fato, piores do que eu; e era isto que necessitava, para um homem como eu, mais inclinado ao orgulho, senão propriamente à soberba. Quero dizer que também estive por muito tempo nas arquibancadas do circo olhando do alto os gladiadores, como se não fossem meus irmãos. Se aqueles que estão lá no meio arriscando a vida fossem nossos irmãos, não é certo pensar que correríamos para eles, para separá-los e para salvá-los? Com precisão, não poderia dizer como ocorreu que, pouco a pouco, de estranho se converteram em irmão. Mas, em definitivo, isso aconteceu; e é o que importa. Desde aquele dia abriu-se diante de mim um magnífico horizonte, iluminado pelo sol. Certamente, eu não faço ilusão em torno da eficácia das minhas palavras. Porém, segundo os ensinamentos daquele sensacional filósofo que todos deveriam ver em Cristo, ainda que queiram considerá-lo somente como filho do homem, não esqueço que as palavras são sementes. Ainda que, com o meu jardim infelizmente misture-se muita erva daninha, algum grão aqui pode ser capaz de germinar. Por isso, sem presunção mas com devoção, os semeio. Não pretendo que a colheita me remunere com cem, nem com sessenta, nem com trinta por um. Assim, ainda que um só dos meus grãos germinasse, não teria semeado em vão. [1] La Voce di San Giorgio era o período do Centro para o qual Carnelutti escreveu inúmeros artigos. [2] A Fundação Giorgio Cini foi instituída pelo conde Vittorio Cini, em memória de seu filho Giorgio, com o escopo de restaurar a Ilha de San Giorgio Maggiore, gravemente degradada depois de quase 150 anos de ocupação militar, de reinseri-la na vida de Veneza e de, ali, construir um centro internacional de atividades culturais de grande importância. A Fundação foi construída em 20 de abril de 1951 e, inicialmente contava com quatro Institutos, o da História de Arte, o da História do Estado e da Sociedade Veneziana, o de Literatura, Música e Teatro e o Instituto Veneza e o Leste. [3] O Palácio Ducal está situado no extremo oriental da Praça de São Marcos, é um dos símbolos de Veneza e exemplo maravilhoso do estilo gótico, construído como obra prima das colônias da republica veneziana. Durante a Renascença o prédio foi reformado, com a construção da “Escada dos Gigantes”, feita por Antonio Rizzo e com decoração de Lombardo. É um estupendo museu com mil anos de história. [4] Giovanni Buora, 1450-1513, foi um dos arquitetos que desenhou e construiu parcialmente a Igreja de San Giorgio Maggiore e de vários edifícios conexos na ilha. [5] Andrea Palladio, 1508-1580, foi um dos arquitetos que projetou e construiu as igrejas San Giorgio Maggiore e Il Redentore. A obra de Palladio foi uma referencia obrigatória para os arquitetos ingleses e franceses do barroco. [6] O arquiteto Baldassare Longhena, 1598-1682, foi o responsável pela reforma da abóboda da Basílica de San Giorgio Maggiore, pela construção da biblioteca e da escada monumental da igreja. [7] O mesmo que nó. [8] Grande anfiteatro com camarotes e arquibancadas onde se realizam jogos e espetáculos públicos na Roma antiga. [9] Era a melhor e maior pista de corridas de Roma, em formato oval o Circo Máximo foi construído em um longo vale que se estendia entre as colinas romanas de Aventine e Palatine.As corridas eram praticadas por quatro principais equipes: a vermelha, a branca, a azul e a verde em carruagens puxadas por dois ou quatro cavalos, construídas em madeira. Os vencedores recebiam uma rama de palma e uma coroa de louros (laurel), além de dinheiro e fama. Muitos dos competidores eram escravos que almejavam ganhar dinheiro para comprar sua liberdade. CAPÍTULO I – A TOGA A primeira coisa que impressiona, que se apresenta em uma Corte, onde se discute um processo penal, é que certos homens que ali atuam vestem um uniforme, um fardamento. Esta foi a primeira impressão da Justiça, ainda nos anos da minha infância, quando, levado a presenciar um certo cortejo das janelas do Palácio, onde tem sede a Corte de Apelação de Florença[10], na via Cavour, vi sair de uma sala um magistrado em toga[11]; e fiquei de boca aberta. Por que os magistrados e os advogados vestem a toga? Não parece uma roupa de trabalho, como para os médicos o jaleco branco; para aquilo que terão que fazer, juízes e defensores poderiam não mudar de roupa ou não cobrir as vestes habituais. Há, de fato, alguns países nos quais a toga não é usada; assim se faz também entre nós, para os graus inferiores da hierarquia judiciária. Então, de que se trata? Só de uma homenagem à tradição? Mas, por que se estabeleceu à tradição? Creio que a resposta pode vir da mesma palavra. Certo, como se disse, a toga é um fardamento, como aquela dos militares, com a diferença que os magistrados e os advogados a usam somente em serviço, aliás em certos atos do serviço, particularmente solenes. Na França e, sobretudo, no Reino Unido, onde a tradição é mais estritamente observada, um advogado deve usá-la, em todos os casos, no interior do Palácio da Justiça. Pergunto-me por que o traje dos militares chama-se divisa[12]. Divisa vem, manifestamente, de dividir. O que teria a ver com a veste militar a ideia da divisão? A surpresa se esvanece rapidamente se o verbo dividir se substituísse por aquele afim, de discernir ou distinguir. É necessário separar os militares dos civis, não? A divisa é o símbolo da autoridade. Teria razão para dizer que a observação das palavras nos haveria orientado imediatamente: na corte de justiça exercita-se, por excelência, a autoridade; compreende-se que aqueles que a exercitam devem distinguir-se daqueles sobre os quais se exercitam. É a mesma razão pela qual, também, os sacerdotes vestem um fardamento; e, ainda mais, quando celebram as funções litúrgicas, endossam-se as batinas sagradas. A divisa se chama também uniforme; o significado desta outra palavra parece, porém, contradizer o da primeira, pois que alude a uma união ao invés de a uma divisão. Mas são, no fundo, dois significados complementares: a toga, verdadeiramente, como a veste militar, desune e une; separa magistrados e advogados dos delinquentes, para uni-los entre si. Esta união, observemos bem, tem um altíssimo valor. União dos juízes entre eles, em primeiro lugar. O juiz, como se sabe, não é sempre um homem só; comumente, para as causas mais graves, é formado por um colegiado; todavia se diz “o juiz” também quando os juízes são mais de um justamente porque se unem uns com outros, como as notas tiradas de um instrumento se fundem no acorde. A toga dos magistrados não é, portanto, somente o símbolo da autoridade, mas também o da união, ou seja, do vínculo que os liga em conjunto. Há, no fundo disso uma ideia de coral, que torna o ambiente também mais solene. Se vemos, por exemplo, a Corte de Cassação[13] em sessões conjuntas, onde atuam, togados, pelo menos quinze magistrados, vindo a mente uma reunião de frades, quando cantam os completórios[14] e as matinas[15], emoldurados nos assentos do coro. Quem sabe como funciona a justiça colegiada não achará demasiado atrevimento esta imagem de acordo e de coro. O conceito de uniforme serve ainda mais para aclarar a razão pela qual vestem a toga não semente os juízes, mas também os membros do Ministério Público e os advogados. Daqui a pouco, trataremos de compreender a necessidade destas outras figuras ao lado dos juízes; de todas as maneiras, todos sabem que não são eles que julgam, porém, ao invés, também eles são julgados: acusadores e defensores ouvirão dizer, ao final, do juiz, se estavam com a razão ou não. Não é isto um “ser julgado”? Eles são, portanto, em relação ao juiz, do outro lado da barricada. Dir-se-ia, então, se a toga é o símbolo da autoridade, quem não a deveriam usar; e ainda, se é o símbolo da união, por que enquanto o acordo reina entre os juízes, o desacordo, pelo contrário, não tanto divide quanto deve dividir o acusador do defensor? Em uma palavra, enquanto o juiz está lá para impor a paz, o Ministério Público e advogados estão lá para fazer a guerra. Precisamente, no processo, é necessário fazer a guerra para garantir a paz. Ora, esta fórmula pode ter sabor de paradoxo; mas haverá o momento no qual poderemos apreciar a verdade. A toga do acusador e do defensor significa, pois, que aquilo que fazem e é feito a serviço da autoridade; em aparência estão divididos, mas na verdade estão unidos no esforço que cada um realiza para alcançar a justiça. Em conjunto esses homens com toga dão ao processo – e especialmente ao processo penal – um aspecto solene. Se a solenidade é ofuscada, como ocorre infelizmente não poucas vezes, por negligência dos advogados e dos próprios magistrados, os quais não respeitam, como deveriam, a disciplina, isto redunda em prejuízo da sociedade. No tribunal deveria estar com igual isolamento, como de dá na igreja. Os antigos reconheceram um caráter sagrado ao acusado porque, diziam, era desatinado à vingança dos deuses; assim tinham eles a intuição de uma verdade profunda. O juízo, o verdadeiro, o justo juízo, o juízo que não falha está somente nas mãos de Deus. Se os homens, todavia, se encontram na necessidade de julgar, tenham ao menos a consciência de que fazem, quando julgam, as vezes de Deus. A afinidade entre o juiz e o sacerdote não é desconhecida nem sequer entre os ateus, que falam a esse respeito de um sacerdócio civil. A toga, sem dúvida, convida ao isolamento. Infelizmente hoje sempre mais, sob este aspecto, a função judiciária está ameaçada pelos opostos perigos da indiferença ou do clamor: indiferença pelos processos pequenos, clamor pelos processos célebres. Naqueles a toga parece uma armadura inútil; nestes se assemelha, lamentavelmente, a um disfarce teatral. A publicidade do processo penal, a qual corresponde não somente à ideia do controle popular sobre o modo de administrar a justiça, senão também, e mais profundamente, ao seu valor educativo, está, infelizmente, degenerada em um motivo de desordem. Não tanto o público que enche os tribunais a um limite inverossímil, mas a invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar-se com aqueles aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de julgar. As togas dos magistrados e dos advogados, assim, se perdem na multidão. São cada vez mais raros são os juízes que têm a severidade necessária para reprimir esta desordem. Quase cinquenta anos faz, discutindo-se em Veneza um processo por homicídio, sobre o qual convergia a mórbida curiosidade de todos, na sessão do Tribunal do Júri, incrivelmente lotado, quando se levantou para ser interrogada, emergindo do cárcere em sua estupenda figura, Maria Nicolaieva Tarnowska[16], qualquer centena de senhores, que apinhavam os locais reservados, num salto puseram- se em pé e assentaram sobre ela monóculos[17] e binóculos, Angelo Fusinato[18], presidente insigne, exclamou com contida indignação: “Amanhãeste espetáculo incivil não se repetirá mais”. Mais que as medidas que ele soube tomar e inflexivelmente manter durante o longo curso do processo, recordo, agora, como o ouvi pronunciar, suas memoráveis palavras: “Este espetáculo incivil!” Era o mesmo presidente, o qual não tolerava que um advogado se comportasse no falar, no gesticular, no vestir de modo não conforme à dignidade de seu ofício e, de outra parte, quando percebesse, decidindo uma causa civil, ter cometido um erro, não tinha tranquilidade até que não lhe fosse dado corrigir-se publicamente[19]. Eis aqui um magistrado que tinha compreendido o valor que tem o processo penal para a civilidade de um povo. Os advogados de Veneza, para exaltarem o seu exemplo de firmeza, de dignidade, de abnegação, ornaram com seu busto o grande átrio superior da Corte de Apelação e eu, agora, quero lembrar a sua figura quase para colocar sob sua proteção aquilo que estou dizendo em torno desta mais alta experiência de civilização, que deveria ser o processo penal. [10] Até hoje a Corte de Apelação de Florença se mantém no mesmo endereço, Rua Cavour, 57, Palazzo Buontalenti, local onde também funciona a Ordem dos Advogados local. [11] Beca, vestimenta de magistrado. [12] Por derivação, na língua portuguesa, o termo divisa emprega-se com sentido próprio no âmbito militar, qual seja o de insígnia de posto ou patente dos militares. Assim, as divisas são usadas em suas fardas. [13] É o órgão jurisdicional cuja competência é, entre outras, uniformizar a jurisprudência. Equivale ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. [14] Se diz da última hora canônica da recitação do oficio divino ou breviário. [15] São os cânticos da primeira parte do ofício divino, geralmente da liturgia católica, que acontecem entre a meia-noite e o raiar do sol. [16] Escândalo ressonante ocorrido nos primeiros anos de 1900; uma história de amores, perversão, traições e homicídios que ressume de modo exemplar a hipocrisia, o cinismo, a falta de moral que reinavam nas classes altas europeias da belle époque e a frieza de uma bela mulher. Nascida Maria Nicolaieva O’Rurke, de sobrenome nobre, em Kiev, 1877, casou-se com o conde Vassili Tarnowsky e se tornou a condessa Maria Nicolaieva Tarnowska. O ápice do escândalo se deu em 1910, em Veneza, por ocasião do julgamento de Maria Tarnowska e seus dois amantes, o jovem Nicola Naumaff e o advogado Maximilliano Prilukoff, que foram presos em 1907 pela morte do conde Paul Kamarovsky. Pelo menos seis homens foram arruinados por ela; dois deles tiveram morte trágica e quatro deles deserdaram esposas e filhos. A história de Maria Tarnouwska envolveu muitos homens, muitos tiros, e muitos finais catastróficos; ela foi a verdadeira “mulher fatal”. Prilukoff foi considerado o mentor do plano para o assassinato de Kamarovsky e foi sentenciado a dez anos de prisão. A condessa e seu jovem amante Naumoff, que disparou os tiros fatais, foram condenados a oito anos cada um. [17] Monóculo é a lente, provida ou não de aro, que se usa encaixada entre os músculos da cavidade orbitária, geralmente para correção visual. [18] Angelo Fusinato era o presidente do Tribunal de Veneza, em 1910, onde estavam sendo julgados Maria Nicolaieva Tarnowska e seus amantes. [19] Francesco Carnelutti, um então jovem advogado de Direito Civil, a propósito do julgamento, definiu o comportamento de Maria Nicolaieve Tarnowska como sendo cobiça porque: “não a paixão, não o amor, não o ódio, mas só o desejo vil do dinheiro a tinha impelido, causando a morte de um pai de família e levando à perdição um jovem que, até então, tinha sido honesto”. CAPÍTULO II – O PRESO À solenidade, para não dizer à majestade, dos homens em toga contrapõe-se o homem no cárcere. Não esquecerei nunca a impressão, que deste tive a primeira vez na qual, ainda adolescente, ingressei na Corte de uma seção penal no Tribunal de Turim. Aqueles, dir-se-ia, sobre o nível do homem; este, em baixo, preso na cela, como um animal perigoso. Sozinho, pequeno, apesar de sua elevada estatura; perdido, ainda que procurasse ser desembaraçado; pobre, miserável, necessitado... Cada um de nós tem as suas preferências, também em matéria de compaixão. Os homens são diferentes entre eles até no modo de sentir a caridade. Também este é um aspecto da nossa insuficiência. Existem aqueles que concebem o pobre com a figura do faminto, outros com a de vagabundo, outros com a de doente; para mim, o mais pobre de todos os pobres é o encarcerado. Digo o encarcerado[20], observe-se bem, não o delinquente. Digo o encarcerado, como disse o Senhor, naquele famoso sermão referido no Capítulo XXV do Evangelho de Mateus[21], que exerceu sobre mim uma fascinação incalculável; e até ontem, pode dizer-se, acreditei que encarcerado ali fosse dito como sinônimo de delinquente, mas me equivocava e a equivocação foi um de tantos episódios, aptos para demonstrar que nunca se meditam o bastante sobre os sermões de Jesus. O delinquente, até que não seja encarcerado, é uma outra coisa. Confesso que o delinquente repugna- me; em certos casos me causa horror. Para mim, entre outros, o delito, o grande delito, ocorreu-me de presenciá-lo pelo menos uma vez, com os meus próprios olhos. Os que brigavam pareciam duas panteras; e fiquei absolutamente horrorizado; contudo bastou que visse um dos dois homens, que tinha derrubado o outro com um golpe mortal, enquanto os policiais, providencialmente acudiam, colocando-lhe as algemas, para que do horror nascesse a compaixão. A verdade é que, apenas algemado, a fera converteu- se num homem. As algemas, também as algemas são um símbolo do direito; talvez, pensando bem, o mais autêntico de seus símbolos, ainda mais expressivo do que a balança e a espada. É necessário que o direito nos ate as mãos. E justamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, que é, segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito. Quidquid latet apparebit[22], repete ele a este propósito, com o dies irae[23]: tudo aquilo que está oculto virá à luz. Aquilo que estava escondido, na manhã na qual vi o homem lançar-se contra o outro, sob a aparência de fera, era o homem; tão logo ataram seus pulsos com a corrente, o homem reapareceu: o homem, como eu, com o seu mal e com o seu bem, com as suas sombras e com as suas luzes, com a sua incomparável riqueza e a sua miséria espantosa. Então nasceu, do horror, a compaixão. Não me permiti, agora, arrastar pela literatura, ao falar, a propósito do delinquente, do mal e do bem, da sombra e da luz, da miséria e da riqueza, deixando-me arrastar pela literatura? Censuraram-me muitas vezes, ainda por último, na ocasião de uma infeliz batalha pela abolição do calabouço, uma coisa que qualquer um definiria como uma ingenuidade. Oxalá que fosse isso! A verdade é que Francisco[24], justamente porque melhor do que qualquer outro interpretou Cristo, desceu mais ao fundo que qualquer outro no abismo do problema penal. Francisco, só Francisco compreendeu, beijando o leproso, o que quis dizer Jesus com o convite a visitar os encarcerados. Os sábios, os quais continuam a considerar a pena, segundo uma fórmula célebre, como um mal que sofre o delinquente pelo mal que ele causou, ignoram ou esquecem aquilo que Cristo disse a propósito do demônio que não serve para expulsar o demônio: não é com o mal que se pode vencer o mal. Já Virgílio[25], antes que baixasse aos homens a luz de Cristo, havia cantado: omnia vincit amor[26], o amor sozinho é sempre vitorioso. Não se pode fazer uma nítida divisão dos homens em bons e maus. Infelizmente a nossa curta visão não permite avistar um e germe do mal naqueles que são chamados de bons, e um germe de bem, naqueles que são chamados de maus.E essa visão tão curta depende de nosso intelecto e que ele não esteja iluminado pelo amor. Basta tratar o delinquente, antes que uma fera, como um homem, para avaliar nele a incerta chama de pavio fumegante, que a pena, ao invés de apagar, deveria reavivar. Poucas vezes vi uma expressão tão pavorosa como aquela de um homicida, que defendi, anos faz, diante de um Tribunal do Júri na extrema Calábria[27]: tinha matado dois homens, premeditadamente, desferindo dois tiros de pistola pelas costas; não vi naquele rosto sombreado por um capacete de cabelos escuros nem sequer um alvor de luz. Defendia junto com ele também seu irmão, acusado de havê-lo instigado a matar. No colóquio que tive com ele, apenas chegado lá embaixo, lhe devia dizer que infelizmente para ele não havia esperança; tudo o mais se podia tentar, com as atenuantes genéricas, de converter a prisão perpétua em trinta anos de reclusão. Ele me ouviu impassível; depois disse: “não se ocupe de mim, advogado; não importa; eu sou um homem perdido; pense para salvar meu irmão, que tem nove filhos”. Então, um raio de amor iluminou a sua fronte. Não era a sua riqueza aquele amor fraterno, que o fazia esquecer até seu terrível destino? A verdade é que o germe do bem em qualquer um de nós, não só nos delinquentes, está aprisionado. Há aqueles que têm mais, há aqueles que têm menos; mas nenhum de nós tem todo o espaço que deveria ter. Todos, em uma palavra, estamos na prisão, uma prisão que não se vê, mas que não se pode deixar de sentir. Aquela angústia do homem, que constitui o motivo de uma corrente da filosofia moderna, de grande notoriedade e de indiscutível importância, não é outra coisa que o sentido da prisão. Cada um de nós está aprisionado enquanto esteja fechado em si, na solicitude por si, no amor de si mesmo. O delito não é mais que uma explosão de egoísmo, na sua raiz. O outro não conta; o que importa é somente ele mesmo. Somente abrindo-se para com outro o homem pode sair da prisão. E basta que se abra para com outro, para que entre pela porta aberta a graça de Deus. Quidquide latet apparebit[28], canta o dies irae[29]. Poucas instituições foram mais felizes do que aquela do filósofo que expressou com esta frase a eficácia do direito. A prisão ou as algemas, dizíamos, são um símbolo do direito, e por isso revelam a natureza e a desventura do homem. O homem acorrentado, ou o homem na prisão é a verdade do homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós esta fechado em uma prisão que não se vê. Não nos parecemos com os animais porque estamos na prisão, mas estamos na prisão porque nos parecemos com os animais. Ser homem não quer dizer não ser, mas poder não ser animal. Esta capacidade é a capacidade de amar. Quem teria imaginado estas coisas quando vi, ainda criança, um homem na prisão, na corte escura do Tribunal de Turim? Quem teria imaginado que o espetáculo daquele homem enjaulado eu não haveria de esquecer nunca? É curioso como certos fatos, que parecem insignificantes, se inserem indelevelmente na fita da nossa memória. Fato é que ainda agora, depois de haver visto tantos, o homem encarcerado tem um fascínio misterioso para mim. É esta a experiência que me abriu o caminho da salvação. [20] Naquele tempo, pessoas portadoras de doenças infectocontagiosas, ou tidas como tal, eram segregadas em guetos ou encarceradas, como forma de excluí-las do convívio social para evitar contaminação. [21] Versículos 31 a 46: E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, a não me destes de beber; Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes. Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim. E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna. [22] Tudo o que se esconde, há de aparecer. [23] Dia da ira. [24] São Francisco de Assis foi viver enclausurado com os portadores de hanseníase (leprosos) e acabou por se tornar o santo protetor dos acometidos dessa doença. [25] Poeta latino que viveu nos anos 70 a 19 a.C. [26] Todos vencem com o amor. [27] Diz se da cidade de Reggio Calabria, denominada província, que faz parte da região da Calábria, na Itália. [28] Tudo o que se esconde, há de aparecer. [29] Dia da ira. CAPÍTULO III – O ADVOGADO Carlo Majno, que hoje é um dos melhores advogados em Milão e foi, naquela universidade, um dos meus discípulos mais queridos, me doou, precisamente no dia em que eu deixei a cátedra de Milão pela de Roma, um belíssimo desenho a pastel avermelhado, do pintor Mentessi[30], que representava as mãos de um encarcerado, presas nas algemas. Mentessi não tinha certamente experiência particular do problema penal; todavia, aquele desenho demonstra como são proféticas as obras de um artista: uma das mãos, a esquerda, tombada para baixo, inerte, em ato de desalento; a outra, sobreposta, volve a palma para o alto, como aquela do pobre que pede a caridade. Há toda a psicologia do preso naquele pequeno quadro. A minha felicidade foi que eu vi tantas vezes, no curso da vida, estenderem para mim aquela mão aberta, na espera do donativo. As pessoas imaginam o advogado como um técnico, ao qual se requer um trabalho que quem o pede não teria capacidade de fazer por si mesmo, figurando no mesmo plano do médico ou do engenheiro; é verdade também isto, mas não é toda ela; o restante da verdade é descoberto, sobretudo, pela experiência do preso. O preso é, essencialmente, um necessitado. A escala dos necessitados foi traçada naquele sermão de Cristo ao qual já tive ocasião de acenar, referido no Capítulo XXV de Mateus[31]: famintos, sedentos, despidos, vagabundos, doentes, presos; uma escala que conduz o meio animal da essencial necessidade física à necessidade essencialmente espiritual; o preso não tem necessidade nem de alimento, nem de roupas, nem de casa, nem de medicamentos; o único remédio, para ele é a amizade. As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao advogado é a esmola da amizade antes de qualquer outra coisa. O nome mesmo de advogado soa como um grito de ajuda. Advocatus, vocatus ad, chamado a socorrer. Também o médico é chamado a socorrer; mas só ao advogado se dá este nome. Quer dizer que há entre a prestação do médico e a do advogado uma diferença que, não voltada para o direito é, todavia, descoberta pela rara intuição da linguagem. Advogado é aquele, ao qual se pede, em primeiro plano,a forma essencial de ajuda, que é propriamente a amizade[32]. E da mesma forma a outra palavra “cliente”, a qual serve a denominar aquele que solicita ajuda, reforça esta interpretação: o cliente, na sociedade romana, pedia proteção ao patrono; também o advogado se chama patrono. E a derivação de patrono, de pater, projeta sobre a relação a luz do amor. Aquilo que atormenta o cliente e o impede a pedir ajuda é a inimizade. Já as causas civis e, sobretudo, as causas penais são fenômenos de inimizade. A inimizade ocasiona um sofrimento ou, ao menos, um dano como certos males, os quais, tanto mais quando não são descobertos pela dor, debilita o organismo; por isso, da inimizade surge a necessidade da amizade; a dialética da vida é assim. A forma elementar da ajuda, para quem se encontra em guerra, é a aliança. O conceito de aliança é a raiz da advocacia. O acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas mais graves, lhe parece que esteja contra ele todo o mundo. Não raramente, quando o transportam para a audiência, é recebido pela multidão com um coro de imprecações; não raramente explodem contra ele atos de violência, contra os quais não é fácil protegê-lo. Em estado de ânimo de Catarina Fort[33] que, quando se apresentou diante dos juízes, levou os imaginários de todos a chamavam de fera? É necessário, não somente pensar nestes casos, senão tratar de meter-se na briga destes desgraçados para compreender a sua pavorosa solidão e, com esta, a sua necessidade de companhia. Companheiro, de cum pane, é aquele que divide conosco o pão. O companheiro coloca-se no mesmo plano daqueles aos quais faz companhia. A necessidade do cliente, especialmente do acusado, é a seguinte: a de um que se sente ao lado dele, sobre o último degrau da escada. A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: permanecer sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. O povo não compreende aquilo que os demais, tampouco os juristas entendem; e riem, burlam e escarnecem. Não é um trabalho que goze da simpatia do público, e mesmo de cirineu[34]. No campo literário e também no campo litúrgico, as razões pelas quais a advocacia é objeto de uma difundida antipatia não são outras senão estas. E até Perfino Manzoni, quando teve que retratar um advogado, perdeu a sua honradez e a Igreja deixou introduzir no hino de Santo Ivo[35], patrono dos advogados, um verso afrontoso. As coisas mais simples são as mais difíceis de entender. Digamos com clareza: a experiência do advogado está sob o símbolo da humilhação. É certo que vista a toga; colabora, desde já, na administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo, e não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado. Ele está sujeito ao juiz, como está o acusado. Mas precisamente por isto a advocacia é um exercício espiritualmente saudável. Pesa o dever de pedir, mas é proveitoso. Habitua-se a suplicar. Que outra coisa é, senão um pedir, uma súplica? A arrogância apresenta-se com sendo o verdadeiro obstáculo à suplicação; e a arrogância é uma ilusão de poder. Não há nada melhor que advocacia para sanar tal ilusão de potencial. O maior dos advogados sabe que não pode fazer nada frente ao menor dos juízes; entretanto, o menor dos juízes é aquele que o humilha mais. É constrangido a chamá-lo à porta como um pobre. E nem sequer está escrito sobre a porta: pulsate et aperietur vobis[36]. Não raramente se chama em vão. A experiência se faz mais dolorosa e mais saudável. Se acreditava ter razão, se havia estudado tanto, se havia suado tanto, então... É necessário conhecer estes momentos para compreender. Os romanos denominavam a atividade do advogado no processo com o verbo postular[37]. Dizem os dicionários de língua clássica antiga que esse verbo significa pedir aquilo que se tem direito de ter. E é isto que agrava o peso de pedir. Não se deveria ter necessidade de pedir aquilo que se tem direito de ter. Em conclusão é necessário submeter-se o juízo próprio ao alheio, ainda quando tudo permite crer que não haja razão de atribuir a outro uma maior capacidade de julgar. Isto significa, no plano social, colocar-se junto ao acusado no último degrau da escada: um sacrifício; mas não existe sacrifício sem benefício. Por isto, eu disse que a nossa experiência é saudável. O benefício está quando se começa a descobrir, na escuridão, a pequena chama do pavio fumegante. Um benefício, como acontece sempre nas coisas do espírito que, ao mesmo tempo, se dá e se recebe: se aquela pequena chama se reaviva, o seu calor não aquece somente a alma do cliente, senão também a do patrono. Pelo pouco de bom que eu pude fazer para algum destes desgraçados, imenso foi o bem que deles recebi; do Senhor, entende-se, mas por meio deles; pois que o Senhor disse que quanto é dado a eles é recebido por Ele, os pobres são os enviados de Deus. O preso, as pessoas não sabem e menos ainda ele próprio o sabe, é faminto e sedento de amor. A necessidade da amizade provém da sua desolação. Quanto maior é a desolação, mais profunda e fecunda é a necessidade de amizade. Inconsistentemente ele pede aquilo que é indispensável a fim de que o defensor possa cumprir o seu ofício. O que o defensor deve possuir antes de tudo, afinal, é o conhecimento do acusado: não, como o médico, o conhecimento físico, mas o conhecimento espiritual. Conhecer o espírito de um homem quer dizer conhecer sua história; e conhecer uma história não é somente conhecer a sucessão dos fatos, mas encontrar o elo que os liga. Neste sentido a história é uma reconstrução lógica, não uma exposição cronológica dos acontecimentos. Tudo isto não é possível se o protagonista não abre, pouco a pouco, sua alma. Estes tipos de protagonistas, que são os delinquentes, têm, por definição, a alma fechada. Ao mesmo tempo em que pedem a amizade, opõem a desconfiança e a suspeição. Impregnados de ódio, veem ódio também onde não há mais que o amor. São como animais selvagens, que só com infinita delicadeza e paciência podem ser domesticados. Alguém dirá que eu vejo assim a advocacia sob o perfil da poesia. Pode ser. A poesia do seu ofício é algo que um advogado sente em dois momentos da vida: quando veste pela primeira vez a toga ou quando, ainda não a retirou, está para retirá-la: ao amanhecer ou ao entardecer. Ao amanhecer, defender a inocência, fazer valer o direito, fazer triunfar a justiça: esta é a poesia. Depois, pouco a pouco caem as ilusões, como as folhas da árvore, depois do fulgor do verão; mas, através do emaranhado dos ramos cada vez mais despidos, sorri o azul do céu. Agora não estou mais seguro nem de haver defendido a inocência, nem de haver feito valer o direito, nem de ter feito triunfar a justiça; contudo, se o Senhor me fizer renascer, começaria tudo de novo. Malgrado os insucessos, as amarguras, os desenganos, o balanço é positivo; se destes faço a análise me dou conta de que a ocasião capaz de suprir todas as minhas deficiências consiste justamente na humilhação de dever-me encontrar, ao lado de tantos desgraçados, contra os quais se desencadeia o vitupério[38] e se açula o desprezo, no último degrau da escada. [30] Giuseppe Mentessi, 1857-1931, pintor e professor italiano. Originário de família pobre, seu pai morreu quando ele tinha apenas 5 anos, ocasião em que sua mãe se encarregou de enviá-lo para uma escola de arte. Em 1880 Mentessi iniciou sua carreira de professor na Academia de Brera em Milão e em 1887 foi designado professor de pintura paisagística. Suas pinturas tinham cunho social, retratando a pobreza e o sofrimento e foram exibidas por toda a Europa,seu quadro “O Pão Nosso de Cada Dia” foi apresentado na 1ª Bienal de Veneza em 1895. [31] Vide nota 13. [32] “Il nome stesso dell’avvocato suona come un grido di aiuto. Advocatus, vocatus ad, chiamato a soccorrere. Anche il medico e’ chiamato a soccorrere; ma se solo all’avvocato si da’ questo nome, vuol dire che v’e’ tra la prestazione del medico e la prestazione dell’avvocato una differenza, che non avvertita dal diritto, e’ tuttavia scoperta dalla squisita intuizione del linguaggio. Avvocato e’ colui al quale si chiede, in prima linea, la forma essenziale dell’aiuto, che e’, propriamente, l’amicizia”, Francesco Carnelutti – Le Miserie del Processo Penale. [33] Natural de Friul, Itália, 31 anos, durante muito temo ela foi enganada por seu amante siciliano, Giuseppe Ricciardi, que se dizia solteiro e lhe havia prometido casamento. Ao descobrir o engodo e decepcionada, ela assassinou a mulher e os três filhos de Giuseppe, por estrangulamento e golpes de barra de ferro, num ato de selvageria, até então, nunca visto pelos habitantes da região. Foi condenada à prisão perpétua, porém perdoada em 1975. Morreu em 1988 aos 73 anos de idade. [34] Originário ou pertencente a Cirene, antiga cidade e colônia grega na Cirenaica. O mesmo que cirenaico. O que colabora ou auxilia, principalmente em trabalhos penosos. [35] Natural da Bretanha, França, Yves Hélory de Kemartin, Santo Ivo, nasceu em 17 de outubro de 1253. Filho de nobres, em 1267 ele foi mandado para Universidade de Paris, onde se formou em Direito Civil. Em 1277 se mudou pra Orléans pra estudar Direito Canônico, e, em 1280 voltou para a Bretanha onde foi designado oficial (juiz eclesiástico), da arquidiocese de Rennes. Sempre demonstrou zelo e lisura no cumprimento de suas obrigações e entregou-se à defesa dos miseráveis e oprimidos contra os poderosos, não vacilava em resistir às injustas taxações do rei, razões pelas quais ganho o título de patrono dos advogados, procuradores, juízes, juristas, notários, órfãos e abandonados. Dizia: “jura-me que sua causa é justa e eu a defenderei gratuitamente”. Santo Ivo inspirou a criação da “Instituição dos Advogados dos Pobres”, especialmente para lutar pelas causas dos pobres, viúvas, órfãos e revéis. Há total identidade entre os princípios da “Defensoria Pública” e a “Instituição dos Advogados dos Pobres”, bem a propósito, a data de sua morte foi escolhida para as comemorações do “Dia do Defensor Público”. Foi ordenado e designado para a paróquia de Trendez em 1285 e depois para Louanne, onde morreu em 19 de maio de 1303. Foi enterrado em Tréguier e canonizado em 1347 pelo Papa Clemente VI. [36] Batei e abrir-se-á a vos. [37] Expor e requerer algo em juízo. [38] Ação vergonhosa, infame ou criminosa. Insulto, injúria. CAPÍTULO IV – O JUIZ E AS PARTES No ponto mais alto da escala está o juiz. Não existe ofício algum mais alto do que o seu e nem uma dignidade mais imponente. Ele é colocado, na sala de aula, como professor supremo, merecendo esta superioridade. A linguagem dos juristas promove o juiz com uma palavra, aproximando daquele profundo significado os juristas mesmos, e tanto mais os filósofos, deveriam deter-se, mais do que a detém, a atenção. Nós dizemos que diante do juiz estão as partes[39]. Denominam-se partes os sujeitos de um contrato: por exemplo, o vendedor e o comprador, o locador e o inquilino, o sócio e o outro sócio; e, por igual, os sujeitos de um litígio: o credor quer receber o pagamento e o devedor, que não quer pagar; o proprietário que quer a devolução de sua casa e o inquilino, que quer continuar a habitá-la; e, enfim, se chamam também assim os sujeitos do contraditório, isto é, daquela disputa que se desenrola entre os dois defensores nos processos civis ou entre o Ministério Público e o defensor nos processos penais. Estes, todos eles, denominam-se assim, porque são divididos e a parte provém, justamente, da divisão. Cada um tem um interesse oposto ao do outro. O vendedor quer entregar pouca mercadoria e ter entrada de muito dinheiro, enquanto o comprador quer exatamente o contrário; cada um dos sócios quer tomar a parte do leão; dos dois defensores, se um vence, o outro perde; cada qual puxa a água para o seu moinho. Os juristas utilizam por isto o nome de parte, mas o significado de parte é muito mais profundo; na parte convergem o ser e o não ser; cada parte é ela mesma e não é a outra parte. Mas, se é assim, todas as coisas e todos os homens[40] são partes; uma rosa é uma rosa e não uma violeta; um cavalo é um cavalo e não um boi; eu sou eu e não sou você. E esta de ser o homem[41] não outra coisa que uma parte é uma descoberta de inestimável valor. Por isto os filósofos deveriam dar mais crédito à linguagem dos juristas e prestar-lhes mais atenção. Assim, pois, se aqueles que estão diante do juiz para serem julgados são partes, quer dizer que o juiz não é parte. Com efeito, os juristas dizem que o juiz está acima das partes: por isso ele está no alto e o acusado abaixo, por baixo dele; um na prisão, o outro sobre a cátedra. Igualmente, o defensor está embaixo, com relação ao juiz; pelo contrário, o Ministério Público está ao seu lado; isto constitui um erro, que com uma maior conscientização em torno da mecânica do processo terminará por ser retificado. O juiz também é um homem; se é um homem, é também uma parte. Esta, de ser, ao mesmo tempo, parte e não parte, constitui uma contradição na qual se debate o conceito de juiz. O fato de ser o juiz um homem, e do dever ser mais que um homem, constitui seu drama. Um drama representado com insuperável maestria no Evangelho de João; e ainda fico assombrado quando me volve à memória aquela sublime representação de que Benedetto Croce[42], ainda que seja a partir do ponto de vista puramente estético, haja compreendido tão pouco sua grandeza até o ponto de ser denominado um quadrinho engraçado: “Jesus foi depois ao monte das Oliveiras, mas ao amanhecer estava no templo, e todo o povo acorria a Ele; e Ele se pôs sentado e ensinava; nessa ocasião os escribas e fariseus conduziam uma mulher que foi surpreendida em adultério; e, postando-a no meio, diziam a Ele: esta mulher foi apanhada em ato de adultério. Ora, Moisés, na legislação, nos tem ordenado que tais mulheres sejam apedrejadas. Tu, que nos dizes? E isto, perguntavam para colocá-lo à prova e ter meio de acusá-lo. Mas Jesus se inclinou e com o dedo se pôs a escrever sobre a terra. Insistindo aqueles a interrogá-lo, Ele se levantou e respondeu: quem é de vós sem pecado atire a primeira pedra”[43]. É o suficiente para ficar sem alento. “Quem é de vós sem pecado atire a primeira pedra”! Necessita, para sentir-se digno de punir, estar sem pecado; portanto, somente o juiz está acima daquele que é julgado. E, posto que o pecado não é outra coisa do que o nosso não ser, aquilo que deveremos ser; é necessário ser plenamente, sem deficiências, sem sombras, sem lacunas; em suma, é necessário não ser parte para ser juiz. Nada de quadrinho engraçado! O problema do juiz, o mais árduo problema do direito e do Estado, está estabelecido aqui com uma clareza espantosa. Certamente, assim, entenderam os escribas[44] e os fariseus[45] que tinham tentado confundir o Mestre, uma vez que o Evangelho continua narrando que Jesus “de novo se inclinou, e escrevia na terra”[46]. Esperava Ele, pensativo, o efeito de suas palavras. Então, escribas e fariseus “foram andando um atrás do outro, começando dos mais velhos até os últimos; e permaneceu somente Jesus e a mulher, que estava no meio”[47]. Nenhum homem, se pôs a pensar no que era necessário para julgar o outro homem, aceitaria ser juiz. E, contudo, é necessário encontrar juízes. O drama do direito é este. Um drama que deveria estarpresente a todos, dos juízes aos jurisdicionados no ato no qual se promove o processo. O Crucifixo que, graças a Deus, nas salas de audiência pende ainda sobre a cabeça dos juízes, seria melhor se fosse colocado diante deles, a fim de que ali pudessem com frequência pousar o olhar, este a exprimir a indignidade deles; és, não outra coisa, que a imagem da vítima mais insignificante da justiça humana. Somente a consciência de sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno. A legislação buscou todos os expedientes possíveis para assegurar a dignidade do juiz. O mais óbvio entre estes consiste no juízo colegiado[48], uma vez que o julgar um outro homem exige que quem julgue seja mais do que aquele que é julgado, o que se faz por mais homens colocados juntos. À primeira vista, o expediente parece ilusório; uma dignidade não se obtém com a soma de várias indignidades. Mas o certo é que uma coisa deve ser considerada a soma de vários juízes, e outra sua unidade; não se trata, no colégio, de agregar um juiz ao outro, como os somatórios de uma adição; mas de vertere plures in unum[49], dir-se-ia em latim, isto é, de convertê-los num só. Apresenta-se aqui, por meio misterioso, o conceito de acordo ou acorde, chave da música e chave do direito; misterioso porque ainda não sabemos, e talvez não saibamos jamais, como acontece quando entre dois homens ocorre verdadeiramente a união e, portanto, forma-se a unidade, comunica-se a cada um a ser o outro, mas não é o não ser, o bem, mas não o mal. Pode parecer que a associação de delinquentes desminta essa afirmação; mas refletindo aqui se dá conta de que, se os delinquentes são mantidos juntos pelo medo, trata-se de um falsa união como seria aquela de um feixe de galhos amarrados juntos, que nunca se formam com somente um galho; ou se tem entre eles o afeto, e isto é, em qualquer caso, um germe do bem, o qual pode sempre encontrar-se envolto e escondido sob a casca do mal. O princípio do colegiado no judiciário é verdadeiramente um remédio contra a insuficiência do juiz, no sentido de que, se não a elimina, ao menos a reduz. Em outras palavras, o juízo colegiado está menos longe do que o juízo singular daquilo que o juiz deveria ser; mas a condição para que o juiz alcance a sua unidade, ou seja, que entre os juízes singulares estabeleça-se o acordo, que não significa tanto a identidade de opiniões quanto paridade preocupante para a verdade. Tocou-se assim a raiz do problema. A justiça humana não pode ser mais do que uma justiça parcial; a sua humanidade não pode deixar de ser resolvida na sua parcialidade. Tudo que se pode fazer é tentar diminuir esta parcialidade. O problema do direito e o problema do juiz são a mesma coisa. Como pode fazer o juiz para ser melhor daquilo que já é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: é necessário sentirem-se pequenos para serem grandes. É necessário formar-se uma alma de criança para poder entrar no reino dos céus. É necessário, a cada dia mais, recuperar o dom de surpreender-se. É necessário, a cada manhã, assistir, com a mais profunda emoção, ao nascer do sol e, cada tarde, ao seu poente. É necessário sentirem-se, a cada noite, aniquilados ante a infinita beleza do céu estrelado. É necessário permanecer atônito ao perfume de um jasmim ou ao canto de um rouxinol. É necessário cair de joelhos frente a cada manifestação desse indecifrável prodígio, que é a vida. Outros dirão que o juiz, para ser juiz, deve complementar certos estudos, superar certos concursos, submeter-se a certos controles. Sobretudo hoje se ensina que, para ser juiz penal, precisa estudar, além do direito, a sociologia, a antropologia e a psicologia. Certamente que são estudos úteis e também necessários; mas não suficientes. Primeiro de tudo não necessita crer que se possa colocar sobre a mesa de anatomia, como se põe um corpo, também a alma humana. Não se deve confundir o espírito com o cérebro. Certamente o espírito está condicionado pelo corpo e vice-versa; em particular, a psicologia é a ciência que estuda estas relações; mas, além deste, encontra-se o campo que o juiz deve, sobretudo, conhecer; e temo tanto que para o seu conhecimento não contribuem nem a universidade nem os institutos complementares. Narra uma fábula, que eu aprendi numa revista argentina, que às queixas dos anjos pela criação deste ser absurdo, meio anjo e meio animal, que é o homem, o Criador respondeu: o homem não é questão para congressos de filosofia, o homem não é questão para discutir em congresso de filosofia; e teria acrescentado: o homem é questão de fé no homem. Desde que tive oportunidade de lê-las, há anos, não me saíram da mente estas palavras. Poderia também dizer que é questão de fé no homem a questão penal. Mas a fé no homem adquire-se somente amando o homem. Mais do que ler muitos livros, eu queria que os juízes conhecessem muitos homens; se fosse possível, sobretudo santos e canalhas, aqueles que estão sobre o mais alto ou o mais baixo degrau da escada. Parecem imensamente distantes; mas sobre o terreno do espírito acontecem coisas estranhas. Necessita-se pouco para converter-se de canalha para santo. Cristo, com o exemplo do ladrão crucificado, nos tem ensinado! Em qualquer caso, basta que o canalha se envergonhe de ser canalha; e pode também bastar que um santo se envaideça de ser santo para perder a santidade. Estas são realmente as coisas essenciais; mas não se encontram em nenhum manual de psicologia. Pois bem, aprende-se na igreja ou na penitenciária. É curiosa também esta aproximação, não é certo? Entre a igreja e a penitenciária, qualquer coisa como colocar juntos o inferno e o paraíso? Mas o erro, o tremendo erro está em crer que aqueles que estão encarcerados na penitenciária estejam degenerados. [39] É a pessoa que figura num processo como autor, réu, litisconsorte ou terceiro interessado. Já no Direito Civil, costuma-se entender como partes principais, o autor e o réu e, como partes incidentais, os terceiros intervenientes. [40] Diz-se da raça humana; da humanidade. [41] Toda vez que se refere ao homem, Carnelutti nos remete ao ser humano considerado em seu aspecto morfológico, ou como tipo representativo de determinada região geográfica ou época, e não, ao gênero do ser humano. [42] Benedetto Croce, 1866-1952, foi escritor, conceituado filósofo e político italiano. [43] João, Capítulo VIII, versículos de 1 a 7. [44] Entre os judeus era o doutor da lei. Oficial das antigas chancelarias ou secretarias. Aquele que tinha por profissão copiar manuscritos, muitas vezes mediante ditado. [45] Dizia-se dos membros de uma seita judaica surgida no século II a.C., caracterizada pelo cumprimento rigoroso das prescrições da lei escrita, porém, nos Evangelhos, são acusados de hipocrisia e excessivo formalismo. Diz-se do seguidor formalista de uma religião. Pessoa hipócrita, fingida. [46] João, Capítulo VIII, versículo 8. [47] João, Capítulo VIII, versículo 9. [48] Diz-se de um órgão cujos membros têm poderes iguais. [49] Converter vários em um. CAPÍTULO V – DA PARCIALIDADE DO DEFENSOR Já se disse: um homem, para ser juiz, deveria ser mais do que um homem. E, vê-se que, em essência, é precisamente tal ideia a que inspira aquela forma de correção da insuficiência do juízo composto pelo colégio de juízes. Mas, não é este o único remédio que a experiência tem sugerido. Para compreender, é necessário partir da parcialidade do homem. Todo homem, temos dito, é uma parte. Precisamente por isto, nenhum homem chega a apoderar-se da verdade. Aquela que cada um de nós crê ser a verdade não é senão um aspecto dela; algo assim como uma minúscula faceta de um diamante maravilhoso. É o que Cristo nos ensinou, dizendo: Eu sou a verdade. Alcançar a verdade é alcançar a Ele e Nele. Amando-o, podemosnos aproximar indefinidamente; mas alcançá-lo não, porque Ele é infinito. A verdade é como a luz ou como o silêncio, os quais compreendem todas as cores e todos os sons; mas a física tem demonstrado que a nossa vista não vê e os nossos ouvidos não ouvem mais que um breve segmento da gama das cores e dos sons; estão aquém e além da nossa capacidade sensorial as infra e ultracores, assim como os infra e os ultrassons. Assim, explica-se um modo de dizer, o qual, para quem quer compreender este importantíssimo fato social, que é o processo, tem uma importância de primeiro plano. O juiz, quando julga, estabelece quem tem razão; isto quer dizer: de que lado está a razão. Qual razão é, e não pode ser mais do que uma, como a verdade; também nesse sentido, são equivalentes razão e verdade. Mas, como se explica, então, se a razão é uma só, que, precisamente no processo, cada uma das partes expõe suas razões? Aquelas que o e o defensor expõem, quando discutem, são as razões pelas quais o primeiro pede a condenação e o segundo a absolvição. Como se concilia a unidade da razão com a pluralidade das razões? Como pode alguém concluir que quem termina por não ter razão, disse que expôs as suas razões? A verdade é que, tomando em comparação, a razão se decompõe nas razões como a luz nas cores e o silêncio nos sons. Da mesma maneira que não podemos nos postar diante toda a luz nem gozar todo o silêncio, assim não podemos nos apoderar de toda a razão. As razões são aquelas frações de verdade que cada um de nós parece ter alcançado. Quanto mais razões expõem-se, tanto mais será possível que, juntando-as, um aproxime-se da verdade. No fundo, quando o juiz se prepara para julgar, encontra-se frente a uma dúvida: este é culpado ou inocente? Também a dúvida é uma palavra transparente: dubium vem de duo. Abre-se via dupla diante do juiz: de cá ou de lá. O juiz deve escolher. Mas, para escolher, deve recorrer a um ou outro caminho, do contrário não poderia ver onde elas vão terminar. Pois bem, compreende-se para que serve, para o juiz, o defensor e, por que diante do defensor coloca-se o acusador; são aqueles que guiam o juiz no percurso dos dois caminhos, a fim de que ele possa escolher uma deles. Acusador e defensor são, em última análise, dois raciocinadores: constroem e expõem as razões. O ofício deles é raciocinar. Mas um raciocínio permitido em circunstâncias bem limitadas. Um raciocínio de um modo diverso daquele do juiz. Talvez não seja muito fácil compreender; mas se não compreende isto, pouco compreenderá do processo; e não basta que compreendam os juristas, porque estes são o ponto sobre o qual os leigos podem ter em torno do processo as impressões falsas e nocivas à civilização. Raciocinar é, em palavras simples, colocar as premissas e tirar as conclusões. O acusado confessou ter matado, logo matou mesmo. Em termos de lógica, primeiro vêm as premissas e depois as conclusões. Assim procede o raciocinador imparcial. Mas o defensor não é um raciocinador imparcial. E é isto que escandaliza as pessoas. Apesar do escândalo, o defensor não é porque não deve ser imparcial. E porque não é imparcial o defensor, não pode e não deve ser imparcial o seu adversário. A parcialidade deles é o preço que se deve pagar para obter a imparcialidade do juiz, que é, pois, o milagre do homem, enquanto, conseguindo não ser parte, supera a si mesmo. O defensor e acusador devem procurar as premissas para chegarem a uma conclusão obrigatória. Tudo isso pode parecer absurdo. E, apesar disso, a chave do processo está aqui. Mal seria se o juiz contentasse em raciocinar assim: o acusado confessou ter matado, logo conclui-se que matou. Temos, entretanto, casos nos quais um homem confessa o delito que não cometeu: temos visto pais acusarem-se para salvar o filho e filhos submeterem-se ao mesmo sacrifício para salvar o pai. Isto é tão certo e, não somente pela razão que acabo de indicar, que até o código Penal pune aqueles que denunciam contra a verdade de serem autores de um delito[50]. Isto quer dizer que, também quando aqui temos provas evidentes da culpabilidade ou da inocência, antes de condenar ou absolver, é necessário continuar as investigações até que sejam exauridos todos os meios. Mas, para fazer isto, o juiz deve ser ajudado; sozinho não conseguiria. O seu ajudante natural é o defensor, este amigo do acusado, que, naturalmente, tem o interesse de procurar todas as razões que possam servir para demonstrar a inocência. O defensor é e deve ser um raciocinador em circunstâncias restritas, isto é, um raciocinador parcial: um raciocinador que traz a água para seu moinho. É claro, porém, que, desta maneira, o defensor é um colaborador precioso para o juiz, entretanto, muito perigoso, por conta de sua parcialidade. E, como concebê-lo como útil, porém inócuo? Contrapondo-lhe aquele outro raciocinador parcial no sentido inverso, que se chama Ministério Público e deveria chamar-se, mais exatamente, acusador. No procedimento atual do processo penal, o Ministério Público não é essencialmente um acusador; ao contrário, é concebido diferentemente do defensor como um raciocinador imparcial; mas há aqui um erro de construção da máquina que quanto a isto, funciona mal; ademais, de nove de cada dez vezes, a lógica das coisas arrasta o Ministério Público a ser aquilo que deve ser: o antagonista do defensor. Desenvolve-se assim, diante dos olhos do juiz, o que os técnicos chamam o contraditório[51] e que é, realmente, um duelo: o duelo serve para o juiz superar a dúvida; a propósito disto é interessante notar que também duelo, como dúvida, vem de duo. No duelo, personifica-se a dúvida. É como se, no cruzamento de duas ruas, dois valentes batessem-se para arrastar o juiz para uma ou para outra. As armas, que servem para eles combaterem, são as razões. Defensor e acusador são dois esgrimistas, os quais não raramente fazem uma má esgrima, mas, as vezes, ofereçam aos entendidos um espetáculo excelente. Também aqueles que não são entendidos, como acontece nos torneios, acabam por se apaixonarem por esse jogo. Esta é também para o público uma das mais fortes atrações no processo penal. Mas digamos, também, é uma coisa que dá ao processo penal o sabor de escândalo; e é, precisamente, por isso as pessoas o apreciam. E é, precisamente, por isso também que os advogados adquirem a fama de criadores de sofismas[52]. Em boa parte a sátira[53], que cresce excepcionalmente vigorosa contra nós, é devida a uma maligna interpretação deste fenômeno. Não se compreende que, se o advogado fosse um raciocinador imparcial, não somente trairia o próprio dever, mas contrariaria a sua razão de ser no processo e o mecanismo deste sairia desequilibrado. Sem dúvida, isto das duas verdades, a verdade da defesa e a verdade da acusação, é um escândalo; mas é um escândalo do qual o juiz tem necessidade a fim de que não seja um escândalo o seu juízo. E isto não só porque o juiz tem necessidade de que lhe sejam apresentadas todas as razões para encontrar a razão; e quantas mais lhes são apresentadas e mais em aparência parece que se complica, mas na realidade simplifica-se o seu cumprimento. Sob este aspecto, o combate entre defensor e acusador parece o choque de duas pedras, do qual sai faísca. As razões, como já dissemos, são para a razão como as cores para a luz; as arengas, os uniformes do defensor e do acusador assemelham-se a uma roda giratória de cores; mas girando velozmente se fundem na luz. De qualquer maneira a vantagem que o juiz tira não é somente de ordem intelectual. A verdade é que o contraditório o ajuda justamente porque é um escândalo: o escândalo da parcialidade, o escândalo da discórdia, o escândalo da Torre de Babel[54]. A repugnânciaà parcialidade converte-se para o juiz na necessidade de superá-la, e nesta necessidade a salvação do juízo. Eis que esta tentativa de análise do processo penal no seu momento mais tecnicamente delicado permite, talvez, escolher um resultado, que tem de per si uma certa importância para a civilização. Poder- se-ia falar, neste ponto, de reabilitação dos advogados. A do advogado é quiçá uma das figuras mais discutidas no quadro social; daí dizer-se a mais atormentada. Entre outras coisas, jamais, nem sequer nos momentos de maior convulsão história, proposta supressão dos médicos ou dos engenheiros, mas dos advogados sim. Em alguma ocasião, chegou-se até a suprimi-los; depois ressurgiram com rapidez. No fundo o protesto contra os advogados é o protesto contra a parcialidade do homem. A ver-se bem, eles são os cireneus[55] da sociedade: carregam a cruz por um outro, e esta é a nobreza deles. Se me pedissem para a Ordem dos Advogados um lema, proporia o virgiliano[56] sic vos non vobis[57]. Somos os que aramos o campo da justiça e não colhemos os frutos. [50] Pelo Código Penal brasileiro, trata-se do crime de autoacusação falsa capitulado no art. 341, por força do qual comete o crime quem acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por outrem, impondo-lhe a pena de detenção, de 3 meses a 2 anos, ou multa. [51] Diz-se quando há contestação das partes, em que há réplica, tréplica, impugnação. No processo ou julgamento em que ocorre discussão judicial e há igualdade entre as partes. [52] Argumento ou raciocínio aparentemente válido, porém, não conclusivo, e que supõe má-fé por parte de quem o apresenta. [53] Ocasião em que se faz ironia, mofa ou zombaria. [54] A Torre de Babel é descrita no livro bíblico do Gênesis (X:10; XI:1-9) como uma torre enorme construída pelos descendentes de Noé, com a finalidade de tocar os céus. Irado com a ousadia humana, Deus teria feito com que todos os trabalhadores da obra começassem a falar em idiomas diferentes, de modo a que não pudessem se entender, e assim, acabaram por abandonar a sua construção. De acordo com a Bíblia, daí se origina os idiomas da humanidade. Babel foi uma das primeiras cidades construídas após o Dilúvio, pertenceu ao reino mesopotâmico de Ninrode (Nimrod). Significa Babilônia e apesar de seu lado mitológico, a Torre de Babel realmente pode ter sido construída. [55] O que colabora ou auxilia, principalmente em trabalhos penosos. Vide nota 26. [56] Relativo a Virgílio (70-19 a.C.), poeta latino. Aquilo que tem caráter da poesia de Virgílio. Aquele que é grande admirador da obra de Virgílio. [57] Assim nós trabalhamos, mas não em proveito próprio. CAPÍTULO VI – DAS PROVAS A missão do processo penal está no saber se o acusado é inocente ou culpado. Isto quer dizer, antes de tudo, se ocorreu ou não ocorreu determinado fato: um homem foi ou não foi morto, uma mulher foi ou não foi violentada, um documento foi ou não foi falsificado, uma joia foi ou não subtraída? Seria necessário, antes de tudo, saber o que é um fato. São palavras que se empregam intuitivamente; se as compreendem de forma aproximada; mas é necessário que nos detenhamos a refletir sobre elas. Um fato é um pedaço de história; e a história é a via que percorrem, desde o nascimento até à morte, os homens e a humanidade. Um trecho da via, portanto. Mas do caminho que se percorreu, não daquele que se pode fazer. Saber se um fato aconteceu ou não, quer dizer, voltar atrás. Este voltar atrás é aquilo que se chama fazer a história. Não é mistério que no processo, e não só no processo penal, se faz a história. Digo: não é um mistério para os juristas, os quais, desde muito tempo, voltaram nele a sua atenção; mas, pode surpreender o homem comum, para quem é dirigido o meu discurso. Isto acontece porque nós estamos acostumados a considerar a história dos povos, que é a grande história; mas existe também a pequena história, a história dos indivíduos; aliás, não haveria aquela sem esta, igualmente não existiria a corda sem os fios, que estão enrolados. Quando se fala de história, o pensamento voa sobre as dificuldades que se apresentam para reconstituir o passado; mas são, tendo em conta a medida, as mesmas dificuldades que devem ser superadas no processo. Com isto de pior: o delito é um trecho do caminho, cujos rastros quem a percorreu procura destruir. Sucede o contrário daquilo que ocorre, normalmente, com relação ao contrato: em caso de compra, tanto mais se a coisa tem um valor relevante, conserva, em geral, mediante um documento, a prova de ter comprado; quando rouba, destrói, da melhor forma que se possa fazê-lo, as provas de ter roubado. As provas servem, exatamente, para voltar atrás, ou seja, para fazer, ou melhor, para reconstruir a história. Como faz quem, tendo caminhado através dos campos, tem que percorrer em sentido contrário o mesmo caminho? Segue os rastros de seus passos. Vem em mente o cão policial, o qual vai farejando aqui e ali, para seguir com o faro o caminho do malfeitor perseguido. O trabalho do historiador é este. Um trabalho de habilidade e paciência, sobretudo, para o qual colaboram a polícia, o Ministério Público, o juiz instrutor, os juízes de audiência, os defensores, os peritos. Prescindindo das crônicas dos jornais, os livros policiais e o cinema têm elevado as paixões, mais do que informado o público sobre este trabalho. A vantagem desta literatura, sob o aspecto da civilidade, está no difundir a impressão, para não dizer a experiência, da dificuldade de investigação, por causa da falibilidade das provas. O risco é errar o caminho. E o dano é grave, quando se erra o caminho, também a história feita somente por meio de livros. Porque, ainda quando os historiadores não se deem conta dele e os filósofos ou, ao menos alguns filósofos, o neguem, não se retorna ao caminho percorrido, senão para encontrar o caminho a ser percorrido; de qualquer forma, isso é tão manifesto quando o passado reconstrói-se para determinar o destino de um homem. Mas existe também o reverso da medalha; e qual reverso! A culpa não é toda da literatura policial; como possa ser compreendida. Esta, aliás, pode ser um sintoma melhor do que a causa de um fenômeno derivado de causas mais profundas. Talvez esta deveria buscar naquela, tendências para a diversão, a qual faz parte da crise da civilidade que estamos atravessando. Em uma palavra, é a história mesma que se converte em meio de diversão. A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim, o descobrimento do delito, de dolorosa necessidade social, tornou-se uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não somente colaboram como concorrem com os oficiais de polícia e aos juízes instrutores; e, o que é pior, fazem o trabalho deles. Cada delito desencadeia uma série de investigações, de conjecturas, de informações, de indiscrições. Policiais e magistrados passam de vigilantes a vigiados por um grupo de voluntários dispostos a apontar cada um de seus movimentos, a interpretar cada um de seus gestos, a publicar cada uma de suas palavras. As testemunhas são encurraladas como a lebre de cão de caça; depois, explorados, sugestionadas, comprados. Os advogados são o alvo dos fotógrafos e dos jornalistas. E, com frequência, nem sequer os magistrados logram opor a este frenesi a resistência, que requereria o exercício de seu ofício austero. Esta degeneração do processo penal é um dos sintomas mais graves da civilidade em crise. É até difícil representar todos os danos devidos à falta daquele isolamento que a nenhum outro dever é necessário como aquele
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