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Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA CURSO: LETRAS∕PORTUGUÊS-EAD PROFESSORA: RAULIETTE DIANA LIMA E SILVA DATA: ____/___/____ Mafalda, personagem dos quadrinhos do cartunista argentino Quino (1932), é uma menina bem informada e contestadora, que faz constantemente perguntas difíceis sobre ética, política e cultura para seus pais. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA SER HUMANO Entre dois mundos (Natureza e Cultura) “O que é o ser humano? Assim pode ser sintetizada a reflexão de Blaise Pascal, filósofo e cientista francês (1623-1662). Qual o lugar do homem no Universo? E o que é o Universo para o ser humano?” Não podemos falar do ser humano sem mencionar o mundo no qual os homens e mulheres estão inseridos, como também não podemos nos referir ao mundo sem falar da presença do ser humano que o transforma e lhe confere significação. O mundo marca e condiciona o ser humano, mas, também, sofre a sua intervenção. A Ação Instintiva O comportamento de grande parte dos animais é basicamente determinado por reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias. Isso faz com que o comportamento de um inseto seja praticamente igual ao de outro de sua espécie, hoje e sempre. Comprova-se isso observando, por exemplo, a atividade das abelhas nas colméias ou das aranhas tecendo as teias. Os animais que se situam nos níveis mais baixos da escala zoológica de desenvolvimento como, por exemplo, as aranhas, agem, sobretudo por reflexos e instintos. A ação instintiva é regida por leis biológicas, idênticas na espécie e invariáveis de indivíduo para indivíduo. Essa rigidez dá a ilusão de perfeição, pois o animal, especializado em determinados atos, os executa com extrema habilidade. Não há quem não tenha ainda observado com atenção e pasmo o "trabalho" paciente da aranha tecendo a teia. Todavia, esses atos animais não têm história, não se renovam e permanecem os mesmos ao longe do tempo, salvo no que se refere às modificações determinadas pela evolução das espécies e às decorrentes de mutações genéticas. Mas, ainda que ocorram essas alterações, elas continuam valendo para todos os indivíduos da espécie, passando a ser transmitidas hereditariamente. O psicólogo Paul Guillaume explica que um ato inato às vezes não surge logo no início da vida, podendo aparecer apenas mais tarde, no decorrer do desenvolvimento. Por exemplo, andorinhas novas, incapazes de voar até certa idade, realizam o primeiro vôo sem grande hesitação: gatinhos não esboçam qualquer reação diante de um rato, mas após o segundo mês de vida apresentam reações típicas da espécie, como perseguição, captura, brincadeira com a presa, ronco, matança etc. Os atos instintivos são "cegos", ou seja, os animais ignoram a finalidade da própria ação. A vespa "fabrica" a célula onde deposita o ovo junto ao qual coloca aranhas, para que a larva, ao nascer, encontre alimento suficiente. Se retirarmos as aranhas e o ovo, mesmo assim o inseto continuará realizando todas as Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 2 operações, terminando pelo fechamento adequado da célula, ainda que vazia. Esse comportamento é "cego" porque não leva em conta o sentido principal que deveria determinar a "fabricação" da célula, ou seja, a preservação 'do ovo e da futura larva. Há animais, contudo, mais livres do que outros da dependência dos instintos ou reflexos automáticos. Nesse caso, seu comportamento será mais flexível, mais imprevisível, mais maleável às circunstâncias ambientais. Dependendo do animal, podemos encontrar atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocínio. É o caso, por exemplo, de chimpanzés e gorilas. Entretanto, há grande abismo entre o comportamento dos animais e dos seres humanos. Mesmo o chim- panzé mais evoluído apresenta apenas rudimentos do raciocínio e de tudo que dele resulta: aprender, reelaborar o conteúdo o aprendido e fazer surgir o novo (inventar). A vida de cada animal é, em grande medida, uma repetição do padrão básico vivido pela sua espécie. Já o ser humano, individualmente, é capaz de romper e criar a novidade futura. Ele não nasce pronto pelas “mãos da natureza”. Sua vida depende do parto de sim mesmo, num processo de “nascer sem parar”. O ato humano voluntário, em contrapartida é consciente da finalidade, isto é, o ato existe antes como pensamento, como possibilidade, e a execução resulta da escolha de meios necessários para atingir os fins propostos. Quando há interferências externas no processo, os planos também são modificados para se adequarem à nova situação. A inteligência concreta Nos níveis mais altos da escala zoológica, onde estão situados os mamíferos, por exemplo, as ações deixam de ser exclusivamente instintivas e adquirem maior plasticidade, característica dos atos inteligentes. Ao contrário da rigidez dos reflexos e instintos, a resposta ao problema ou à situação nova, para os quais não há programação biológica, é uma resposta inteligente, e, como tal improvisada e criativa. Experiências interessantes foram realizadas pelo psicólogo gestaltista Wolfgang Kohler, quando instalou nas ilhas Canárias uma colônia de chimpanzés, na década de 1910. Em um dos experimentos, o animal faminto não conseguia alcançar as bananas penduradas no alto da jaula. Depois de um tempo, o chimpanzé resolveu o problema puxando um caixote para colocá-lo abaixo da fruta a fim de pegá-la. Segundo Kohler, a solução encontrada pelo chimpanzé não é imediata, mas ocorre no momento em que o animal tem um insight (discernimento, "iluminação súbita"), isto é, quando a visão global do campo lhe permite estabelecer a relação entre o caixote e a fruta: esses dois elementos, antes separados e independentes, passam a fazer parte de uma totalidade. É como se o animal percebesse uma realidade nova que lhe possibilita a ação não-planejada pela espécie. Portanto, não se trata mais de resposta instintiva, de simples reflexo, mas de ato de inteligência. A inteligência distingue-se do instinto por sua flexibilidade, já que as respostas variam de acordo com a situação e também de animal para animal. Tanto é que Sultão, um dos chimpanzés mais inteligentes no experimento de Kohler, foi o único a realizar a proeza de encaixar um bambu em outro para alcançar o alimento. Esse, porém, é um tipo de inteligência concreta, porque depende da experiência vivida "aqui e agora". Mesmo quando o animal repete mais rapidamente o gesto já aprendido, seu ato não domina o tempo, pois, a cada momento em que é executado, esgota-se nesse movimento. Em outras palavras, o animal não inventa o, instrumento, não o aperfeiçoa, nem o conserva para uso posterior. Portanto, o gesto útil não tem seqüência e não adquire o significado de uma experiência propriamente dita. Ainda que alguns animais organizem "sociedades" mais complexas, e até aprendam formas de sobrevivência e as ensinem a suas crias, nada se compara às transformações realizadas pelo ser humano como criador de cultura. A linguagem humana Vejamos agora o que fundamentalmente nos distingue dos animais. Somos seres que falam: a palavra se encontra no limiar do universo humano. Se criássemos juntos um bebê humano e um macaquinho, não veríamos muitas diferenças nas reações de cada um nos primeiros contatos com o mundo e com as pessoas. O desenvolvimento da percepção, da preensão dos objetos, do jogo com os adultos se dá de forma similar nos dois. Em dado momento, contudo, por volta dos dezoito meses, o progresso apresentado pelo bebê humano torna impossível prosseguirmos comparando-o ao macaco, em razão da capacidade que o ser humano tem de Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 3 ultrapassar os limites da vida animal ao entrar no mundo do símbolo. Poderíamos dizer, porém, que os animais também têm linguagem. A natureza dessa comunicação,entretanto, não se compara à revolução que a linguagem humana provoca na relação do ser humano com o mundo. É interessante o estudo da "linguagem" das abelhas, ao apontar que, dançando, umas "comunicam" às outras onde acharam pólen. Ninguém pode negar que o cachorro expressa emoção por sons que nos permitem identificar medo, dor, prazer. Quando abana o rabo ou rosna, o cão nos diz coisas; e, quando lhe dizemos "vamos passear", ele nos aguarda: alegremente junto à porta. No exemplo das abelhas, estamos diante de uma linguagem programada biologicamente, idêntica em todos os indivíduos da espécie. No segundo exemplo, a reação do cachorro não se separa da experiência vivida; ao contrário, esgota-se nela mesma, não havendo uso dos "gestos vocais" independentemente daquela situação. Quanto a entender o que o dono diz isso se deve ao adestramento, e os resultados são sempre medíocres, porque mecânicos, rígidos, geralmente obtidos mediante aprendizagem por reflexo condicionado. A linguagem animal não conhece o símbolo, mas somente o índice. O índice está relacionado de forma fixa e única com a coisa a que se refere. Por exemplo, as frases com que adestramos o cachorro devem ser sempre as mesmas, pois são índices, isto é, indicam alguma coisa muito específica. Por outro lado, a linguagem humana se utiliza do símbolo, que é universal, convencional, versátil e flexível. A linguagem animal visa à adaptação à situação concreta, enquanto a linguagem humana intervém como forma abstrata que nos distancia da experiência vivida e nos torna capazes de reorganizá-la em outro contexto, dando-lhe novo sentido. É pela palavra que somos capazes de nos situar no tempo, para lembrar o que ocorreu no passado e antecipar o futuro pelo pensamento. É certo que muitos animais, a maioria, possuem um sistema para se comunicar, mas nenhum é comparável com os seres humanos. Este, para começar, não é possuído por instinto. É transmitido por aprendizagem dentro de uma determinada cultura. Além disso, não está limitado a servir em situações importantes, mas em qualquer circunstância. Permite o dialogo, quando a maioria dos animais responde a uma mensagem por uma ação e não por outra mensagem. E, sobretudo, só o ser humano pode construir frases novas para se referir a situações novas e entender discursos ouvidos pela primeira vez. A linguagem é o que une os membros de uma mesma comunidade. Costuma-se dizer de duas pessoas que se entendem, inclusive sem se falar, que “falam o mesmo idioma”. Saber que se compartilha um mesmo idioma com as pessoas com quem cruzamos todos os dias nos dá a sensação de que compartilhamos algumas idéias, ou talvez não, mas sempre haverá solução, porque “falando a gente se entende”. Às vezes essa cumplicidade com os outros se manifesta até quando não se quer comunicar nenhuma mensagem, no entanto, se fala, por simpatia ou para consolidar a relação que nos une com as pessoas de nosso meio. Se a linguagem, por meio da representação simbólica e abstrata, permite que nos distanciemos do mundo, também é o que nos possibilitará o retorno a ele para transformá-lo. Portanto, se não tivermos oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, enfraqueceremos a capacidade de compreender e agir sobre o mundo que nos cerca. Na literatura, é singela, e triste, a história de Fabiano, que Graciliano Ra- mos nos conta em Vidas secas. A pobreza de vocabulário do protagonista prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetido, e a intuição da situação vivida não é suficiente para ajudá-lo a reagir de outro modo. Sempre se considerou que a palavra podia chegar a ter um poder de fascínio. Com uma palavra dominamos um objeto, podemos manipulá-lo de mil maneiras em nossos pensamentos. Podemos simular sua presença somente pronunciando uma palavra. Ela pode até nos fazer sentir a presença de algo ou de alguém que sabemos já está desaparecido. A força da poesia ou de uma canção pode ter alguma coisa a ver com esse poder da palavra. Com a palavra podemos também causar dano ou seduzir, assustar ou tranqüilizar. Aquele que sabe falar possui um grande poder. O trabalho O trabalho constitui uma dimensão essencialmente humana e primordial para o homem. Uma das características diferenciadoras do ser humano em relação aos animais é justamente o trabalho. Foi pelo trabalho que o homem se distanciou da natureza e do mundo selvagem, e fundamentou a vida cultural e a Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 4 civilização. O homem elevou-se acima do reino animal pela capacidade de produzir bens materiais por meio da transformação da natureza. É um animal que produz, o que o torna diferente de todos os outros animais. Não podemos negar que também os animais "trabalham", porém, esse tipo de trabalho é diferente, pois visa satisfazer exclusivamente as necessidades básicas imediatas de si ou de seus filhotes. O trabalho animal é determinado pelas necessidades instintivas de sobrevivência. Nesse sentido, o trabalho animal nunca evolui, permanece sempre o mesmo. Os animais não aprendem com a experiência; não desenvolvem novas técnicas de trabalho, não acumulam conhecimento que vise a um melhor aproveitamento do trabalho. O trabalho desenvolvido pelo homem é radicalmente diferente se comparado com o dos animais, pois se para os animais o trabalho é fator de integração indissolúvel com a natureza, para o homem o trabalho é o meio pelo qual ele se liberta da natureza, afastando-se dela. No processo de trabalho, o homem não se limita às condições que a natureza oferece, transforma-a e molda-a conforme as suas exigências, ou seja, é pelo trabalho que o homem transforma a natureza de acordo com suas necessidades e capacidades. O trabalho humano é uma ação transformadora da realidade, dirigida por finalidades conscientes. Ao reproduzir técnicas já usadas e ao inventar outras novas, a ação humana se torna fonte de idéias e, portanto, experiência propriamente dita. Por isso dizemos que o animal não trabalha - mesmo quando cria resultados materiais com essa atividade -, pois sua ação não é deliberada, intencional. Dessa forma, o animal não produz propriamente sua existência, apenas a conserva agindo instintivamente ou, quando se trata de animal de maior complexidade orgânica, resolvendo problemas por meio da inteligência concreta. Esses atos visam à defesa, a procura de alimentos e de abrigo. Assim, não devemos pensar que o castor, ao construir o dique, e o joão-de-barro, a sua casinha, estejam “trabalhando”. Nesse processo de transformação da natureza, o ser humano modifica a si mesmo, no sentido de estar sempre descobrindo e transpondo suas limitações. O trabalho transforma o homem, pois exige dele raciocínio, planejamento, previsão das possíveis dificuldades e, o que é mais importante, exige que o homem acumule todo o conhecimento já adquirido. O processo civilizatório só vingou em virtude dessa acumulação de conhecimento. Foi pela transformação da natureza pelo trabalho e pela acumulação de conhecimento que a vida social tornou-se possível. Basta observarmos ao nosso redor para constatar que tudo o que existe e que compõe nossa vida cotidiana não surgiu por acaso, como num passe de mágica, como sugerem as histórias em quadrinhos do professor Pardal (personagem de Walt Disney); tudo é fruto de um processo evolutivo, possível graças à acumulação de conhecimento pelo homem. Por exemplo, o papel que compõe este livro é conseqüência de um desenvolvimento que durou milhares de anos desde os pergaminhos egípcios. Se o trabalho animal não exige acumulação de conhecimento, no trabalho humano essa acumulação constitui uma característica fundamental. É pela acumulação de conhecimento que o homem inventa e desenvolve instrumentos (ferramentas) que facilitam o seu próprio trabalho e que a transformação da natureza se torna mais rápida e efetiva. Asferramentas assumem a forma de extensão do corpo humano, resolvendo as suas limitações físicas. Por fim, podemos afirmar que o trabalho estabelece uma ponte de mão dupla entre a teoria e a prática, ou seja, entre o conhecimento acumulado e a ação transformadora da natureza. A teoria orienta a prática, que altera a teoria, que, refeita, aprimorará a prática, num processo infinito. Ao mesmo tempo em que transforma a natureza adaptando-a as necessidades humanas, o trabalho altera o próprio indivíduo, desenvolvendo suas faculdades. Enquanto o animal permanece sempre o mesmo na sua essência, já que repete os gestos comuns à espécie, nós mudamos as maneiras pelas quais agimos sobre o mundo, estabelecendo relações também mutáveis, que por sua vez alteram nossa maneira de perceber, de pensar e de sentir. Ou seja, pelo trabalho, nós nos autoproduzimos. Por ser atividade relacional, além de desenvolver habilidades, o trabalho favorece a convivência que, por sua vez, não só facilita a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos instrumentos, mas também enriquece a afetividade: experimentando emoções de expectativa, desejo, prazer, medo, inveja, aprendemos a conhecer a natureza, as pessoas e a nós mesmos. O trabalho é, portanto, condição de transcendência e, como tal, expressão da liberdade. Se o trabalho é a atividade pela qual o homem se faz plenamente homem, transformando a natureza e produzindo sua própria vida, ele é a condição de realização do ser humano. Mas como falar em trabalho que Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 5 realize o homem diante das situações existentes atualmente, como desemprego, mecanização da mão-de- obra, informatização das fábricas, falência de empresas, expulsão do homem do campo, crescimento da economia informal e desrespeito para com os avanços conquistados com a organização das classes trabalhadoras? Atingir por meio do trabalho esse patamar superior de condição de liberdade, no entanto, não depende apenas da vontade de cada um. Ao contrário, inserido no contexto social que o torna possível, o trabalho é muitas vezes instrumento de alienação e de desumanização, sobretudo nos sistemas em que as divisões sociais privilegiam alguns e submetem a maioria ao trabalho imposto, rotineiro e nada criativo. Em vez de contribuir para a realização do ser humano, esse trabalho destrói sua liberdade. Cultura e Humanização O mundo que resulta do pensar e do agir humanos não pode ser chamado de natural, pois se encontra transformado e ampliado por nós. Portanto, as diferenças entre pessoa e animal não são apenas de grau, porque, enquanto o animal permanece mergulhado na natureza, nós somos capazes de transformá-la, tornando possível a cultura. “A palavra cultura tem vários significados, tais como cultura da terra ou cultura de uma pessoa letrada,” "culta”. Em antropologia, cultura significa tudo que o ser humano produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os valores materiais e espirituais. Se o contato com o mundo é intermediado pelo símbolo, a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo. Dada à infinita possibilidade humana de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas: são inúmeras as maneiras de pensar, de agir, de expressar anseios, temores e sentimentos em geral. Por isso mudam as formas de trabalhar, de se ocupar com o tempo livre, mudam as expressões artísticas e as maneiras de interpretar o mundo, tais como o mito, a filosofia ou a ciência. Em Antropologia, cultura significa tudo que o homem produz ao construir sua existência. Já para Paulo Freire, é tudo o que o homem cria e recria. Nesse sentido, abrangem conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades adquiridas socialmente pelos homens. A cultura pode ser considerada, portanto, como amplo conjunto de conceitos, de símbolos, de valores e atitudes que modelam uma sociedade. Se o contato com o mundo é intermediado pelo símbolo, a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo. Dada à infinita possibilidade humana de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas: são inúmeras as maneiras de pensar, de agir, de expressar anseios, temores e sentimentos em geral. Ou seja, a cultura engloba o que pensamos, fazemos e temos como membros de um grupo social. Mediante a cultura, o ser humano criou para si um "mundo novo", diferente do cenário natural originalmente encontrado. Em outras palavras, dentro da biosfera (a parte do planeta que reúne condições para o desenvolvimento da vida), os humanos foram construindo a antroposfera (a parte do mundo que resulta do ajustamento da natureza às necessidades humanas). Essa antroposfera, criada pelas diferentes culturas, é a morada do ser humano no mundo. Ela constitui o cosmo humano, um espaço construído pelos conhecimentos e realizações desenvolvidos e compartilhados pelos diferentes grupos sociais. O que se pode afirmar com segurança, com base nos estudos antropológicos, é que os homens têm uma tendência "espontânea" a "descobrir" o que é o mundo que os circunda, a conhecer, a compreender esse mundo e a si mesmo nesse mundo, a Natureza e a sociedade. Ora, o que as ciências antropológicas nos revelam? Que o primeiro dado humano perceptível é a existência de seres humanos vivos, corpos orgânicos, fisicamente constituídos, inseridos num ambiente natural, com uma necessidade intrínseca fundamental, primordial: a de manter essa existência material, necessidade que compartilham originariamente com todos os seres vivos. Todo ser vivo tende a se manter vivo, a se conservar, já que a primeira finalidade da vida é exatamente esta: viver. Mas também se perceberá que nesse esforço de manutenção da própria vida, os homens revelam uma diferença significativa: eles, ao contrário dos demais seres vivos, passam a produzir os meios de sua própria existência... Viver, para os homens, identifica-se com conservar sua existência material individual, produzindo-a ao produzir os meios de sua conservação e ao garantir a sua reprodução enquanto espécie. A diferenciação do mundo propriamente Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 6 humano em relação ao mundo puramente animal se caracteriza inicialmente por essa capacidade que os humanos têm de prover os meios de sua existência, relacionando-se então diferenciadamente com a natureza. Os homens desencadeiam uma forma diversa de agir para sobreviver, criando ou recriando novos meios de existência, pela reorganização ou modificação dos recursos naturais disponíveis. Essa capacidade é o dado novo, essa disponibilidade de um equipamento que lhes permite modificar, de acordo com uma intenção subjetivada, a ordem instrumental mecânica do mundo natural. Nesse processo de transformação, vale lembrar que a ação humana é coletiva, por ser exercida como tarefa social, pela qual a palavra toma sentido pelo diálogo. Ninguém pode ser considerado verdadeiramente solitário, nem mesmo o ermitão, porque sua escolha de se afastar faz permanecer a cada momento, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, erigidos contra os da sociedade, se situam também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação. Assim, a consciência humana se inaugura como impulso vital originário, como uma espécie diferenciada de instinto, sem rigidez de um puro mecanismo. E, nesse nível, a consciência faz corpo com o agir dos homens que assumem então um papel de sujeitos dessa ação, subjetividade até então puramente vivenciada, que não se dava ainda conta de si mesma. É interessante observar que ao atuar através de sua atividade produtiva sobre a natureza, pelo trabalho, cuidando de prover sua existência mediante a apropriação e incorporação dos recursos naturais transformados, os homens não estabelecemapenas relações individuais com a natureza: ao mesmo tempo em que vão estabelecendo essas relações técnicas de produção, vão instaurando outras tantas relações interindividuais, eles criam a estrutura social. Só que essas relações sociais encontram-se numa determinada correspondência com as relações que uniam os homens à natureza. É certo que o ser humano faz parte da natureza, pois tem um corpo sujeito às leis físicas e biológicas, mas graças ao desenvolvimento de seu psiquismo pode observar a natureza, criar uma linguagem e, assim, analisar, julgar o mundo em que vive. Nesse sentido, o comportamento humano é fundamentalmente diferente do dos animais. Graças ao desenvolvimento de seu psiquismo, o homem tornou-se, simultaneamente, um ser biológico e cultural. Nele ocorre uma síntese, isto é, uma integração de características hereditárias e adquiridas, aspectos individuais e sociais, elementos do estado de natureza e de cultura. Por isso, o ser humano é contraditório, ambíguo, instável e dinâmico. Um produto da natureza e da cultura. Criatura e criador do mundo em que vive. Um ser capaz de, em muitos aspectos, dominar a natureza mesmo fazendo parte dela. Capaz não só de criar coisas extraordinárias, mas também de destruir de modo devastador. Capaz de acumular um saber imenso e, no entanto, permanecer angustiado por dúvidas profundas que o fazem sempre propor novas perguntas e novos problemas a si próprio. O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra o mundo de valores já dados, aonde ela vai se situar. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de se sentar, andar, correr, brincar, o tom da voz nas conversas, as relações familiares; tudo, enfim, se acha codificado. Até na emoção, que nos parece uma manifestação tão espontânea, ficamos à mercê de regras que educam desde a infância a nossa expressão. O corpo humano nunca é apresentado como mera anatomia, a ponto de não se poder pensar em "nu natural": toda pessoa já se percebe envolta em panos e, portanto em interdições, pelas quais é levada a ocultar sua nudez em nome de valores (sexuais, amorosos, estéticos) que lhe são ensinados. Portanto, quando se desnuda, o faz a partir de valores, transgredindo aqueles estabelecidos ou propondo outros novos. Todas as diferenças existentes no comportamento modelado em sociedade resultam da maneira pela qual são organizadas as relações entre os indivíduos. É por meio delas que se estabelecem os valores e as regras de conduta que nortearão a construção da vida social, econômica e política. . Como fica, então, a individualidade diante do peso da herança social? Haveria sempre o risco de o indivíduo perder sua liberdade e autenticidade? Martin Heidegger, filósofo alemão contemporâneo, alerta para o que chama de "mundo do man": man equivale em português ao pronome reflexivo se ou ao impessoal a gente. Veste-se, come-se, pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 7 maioria o faz. Os sistemas de controle da sociedade aprisionam o indivíduo numa rede aparentemente sem saída. Entretanto, assim como a massificação pode ser decorrente da aceitação sem crítica de valores impostos pelo grupo social, também é verdade que a vida autêntica só pode ocorrer na sociedade e a partir dela. Justamente aí encontramos o paradoxo de nossa existência social. Como vimos, se o processo de humanização se faz por meio das relações pessoais, será dos impasses e confrontos surgidos nessas relações que a consciência de si poderá emergir lentamente. Ao mesmo tempo em que nos reconhecemos como seres sociais, também somos pessoas, temos uma individualidade que nos distingue dos demais. Portanto, a sociedade é a condição da alienação e da liberdade; nela o ser humano pode se perder, mas pode também se encontrar. O sociólogo norte-americano Peter Berger usa a expressão êxtase (ékstasis, em grego, significa "estar fora", "sair de si") para explicar o ato possível de o indivíduo "se manter do lado de fora ou dar um passo para fora das rotinas normais da sociedade", o que permite o distanciamento crítico do próprio mundo em que se vive. A função de "estranhamento" é fundamental para serem desencadeadas forças criativas, e se manifesta de múltiplas formas: quando paramos para refletir na vida cotidiana, quando o filósofo se admira com o que parece óbvio, quando o artista desperta a sensibilidade já embaçada pelo costume, quando o cientista inventa nova hipótese para explicar um fenômeno. O "sair de si" representa um esforço para nos livrarmos de convicções inabaláveis e, portanto paralisantes. É a condição para que, ao voltar de sua "viagem", o ser humano se torne melhor, menos dogmático ou preconceituoso. Educação e Cultura Vimos que a cultura é uma criação humana: ao tentar resolver seus problemas, o homem produz os meios para a satisfação de suas necessidades e com isso, transforma o mundo natural e a si mesmo. Por meio do trabalho instaura relações sociais, cria modelos de comportamento, instituições e saberes. Nada disso, porém, será completo senão enfatizarmos que a ação humana é uma ação coletiva, no entanto, só é possível pela transmissão dos conhecimentos adquiridos de uma geração para outra, permitindo a assimilação dos modelos de comportamento valorizado. É a educação que mantém viva a memória de um povo e dá condições para a sua sobrevivência material e espiritual. Na realidade, o ser social não nasce com o homem, não se apresenta na constituição humana primitiva, como também não resulta de nenhum desenvolvimento espontâneo. Espontaneamente, o homem não se submeteria à autoridade política, não respeitaria a disciplina moral, não se devotaria, não se sacrificaria. Nada há em nossa natureza congênita que nos predisponha a tornar-nos necessariamente, servidores de divindades ou de emblemas simbólicos da sociedade, que nos leve a render-lhes culto, a nos privarmos em seu proveito ou em sua honra. Foi à própria sociedade, na medida de sua formação e consolidade, que tirou de seu próprio seio essa grande força moral, diante das quais o homem sente a sua fraqueza e inferioridade. No homem as múltiplas aptidões que a vida social supõe, não podem organizar-se em nossos tecidos, aí se materializando sob a forma de predisposições orgânicas. Segue-se que elas não podem transmitir-se de uma geração a outra, por meio da hereditariedade – é pela educação que essa transmissão se dá. Ora, exclusões feitas de vagas e incertas tendências sociais atribuídas à hereditariedade, a criança não trás, ao entrar na vida, mais do que sua natureza de indivíduo. A sociedade se encontra a cada nova geração, como que em face de uma tabula rasa, sobre a qual é preciso construir quase tudo de novo. É preciso que, pelos meios mais rápidos, ela agregue ao ser egoísta e associal, que acaba de nascer, uma natureza de vida moral e social. Eis aí a obra da educação. Basta enunciá-la dessa forma para que percebamos toda a grandeza que encerra. A educação não se limita a desenvolver o organismo, no sentido indicado pela natureza ou a tornar tangíveis os germes, ainda não revelados. Ela cria no homem um ser novo, essa virtude criadora, é, aliás, o apanágio da educação humana. O homem não nasce humano, pois precisa da educação para se humanizar. A educação é, portanto, fundamental para a socialização do homem e sua humanização. Trata-se de um processo que dura à vida Profª.Rauliette Diana Lima e Silva 8 toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o homem faz a história. “O que demonstra claramente, apesar das aparências, que aqui, comoalhures, a educação satisfaz, antes de tudo, as necessidades sociais“. Na verdade, o homem não é humano se não porque vive em sociedade, por isso se vê a que se reduziria o homem, se retirássemos dele tudo quanto à sociedade lhe empresta: retornaria à condição de animal. A educação condiciona todas as facetas daquilo que chamamos de existência propriamente humana. O homem se torna humano graças à educação. Conclusão Por mais que adestremos os animais superiores e os façamos se aproximarem de comportamentos semelhantes aos humanos, jamais eles conseguirão transpor o limite que separa a natureza da cultura. Como vimos, esse limiar se encontra na linguagem simbólica, no trabalho criativo e intencional, na imaginação capaz de efetuar transformações insuspeitadas. A cultura é, portanto, um processo que caracteriza o ser humano como ser de mutação, de projeto, que se faz à medida que transcende que ultrapassa a própria experiência. Quando o filósofo francês contemporâneo Gusdorf diz que "o homem não é o que é, mas é o que não é", não está fazendo um jogo de palavras, porque o ser humano não se define por um modelo, por uma essência nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Define-se pelo lançar-se no futuro, antecipando, por meio de projetos, sua ação consciente sobre o mundo. Não há caminho feito, mas a fazer, não há modelo de conduta, mas processo contínuo de criação de valores. Nada mais se apresenta como absolutamente certo e inquestionável. É evidente que essa condição de certa forma fragiliza o ser humano, pois a vida animal, ao contrário, está sempre em harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo, o que parece ser sua fragilidade é justamente sua força, a característica humana mais perfeita e mais nobre: a capacidade de produzir sua própria história e de se tornar sujeito de seus atos. A natureza como um aspecto do mundo ganha significado a partir da presença humana. A cultura é o resultado da ação efetiva do ser humano no mundo. Por suas ações homens e mulheres convertem a natureza em cultura, incorporando-a a história. Transformam não só a natureza, mas modificam continuamente o que já foi transformado. O ser humano diante dos problemas que a realidade social apresenta assume uma atitude filosófica. Por que existo? Por que há algo em vez de nada? O ser humano diante do mundo começa a interrogar e a filosofar. Filosofar pressupõe a consciência de que estamos enraizados em problemas que a condição humana apresenta. O Ser humano filosofa também, segundo epíteto, por defrontar-se com situações-limites, situações essencialmente idênticas e instransponíveis como morrer, sofrer estar sujeito ao acaso. E a tomada de consciência destas situações faz homens e mulheres filosofarem e buscarem soluções através: do domínio da natureza (pelo conhecimento e técnica); da colaboração humana (laços de solidariedade) e da fé (busca do transcendente). Em conseqüência, na origem da própria humanidade com o desenvolvimento da capacidade perceptiva e pensante do ser humano sobre a sua vida em relação com o mundo é que está a origem da filosofia. Fontes Bibliográficas ARANHA, Maria Lúcia de A. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO. 2º edição: Moderna, São Paulo, 1996. ARANHA, Maria Lúcia de A. MARTINS, Maria Helena P. TEMAS DE FILOSOFIA. 1º Edição. São Paulo: Moderna, 1992. _______________________________________________. FILOSOFANDO: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA. 3º Ed.rev.atual. São Paulo: Moderna, 2004. CHAUÍ, Marilena. 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