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A REVOLUÇÃO CHOMSKIANA E SEUS IMPACTOS NA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA1 Rafael Berg Esteves Trianon2 1. Introdução Noam Chomsky (1928-) é um nome bastante conhecido nos cursos de Linguística. Seus trabalhos, que se estendem desde a década de 1950 até os dias atuais, são frequentemente citados, mesmo em trabalhos que não seguem estritamente o quadro teórico da Gramática Gerativa. O termo gerativismo, cunhado por Chomsky, é utilizado até mesmo por trabalhos que não seguem à risca a perspectiva chomskyana da linguagem. Todas essas afirmações apontam para um único fato: a obra de Chomsky tornou-se um paradigma na Linguística. Alguns autores (como Harris, 1993) consideram o trabalho de Noam Chomsky tão importante que adotam o termo Revolução Chomskyana ao se referir ao período, na história da Linguística, dos anos 1950 e subsequentes. Mas, em que sentido podemos dizer que o que houve naquela época foi, de fato, uma revolução? Para que o termo revolução possa se referir a algo, é necessário que esse algo seja capaz de modificar toda uma estrutura existente; no nosso caso, para tratarmos a obra de Chomsky como uma revolução, é necessário que essa obra tenha sido capaz de mudar radicalmente aspectos da Linguística até então produzida – seja sua epistemologia (o conjunto de conhecimentos que uma ciência adota), seja sua metodologia (o método com o qual uma ciência trabalha). Podemos dizer isso? Este texto vai responder a essa pergunta. Primeiramente, precisamos entender como era feita a Linguística na primeira metade do séc. XX, especialmente nos EUA, país de onde surgiram as ideias de Chomsky. Convencionou- se chamar a corrente linguística desse período de estruturalismo americano, embora uma análise mais detalhada mostre que há pouca relação entre o estruturalismo europeu e o que era produzido na América. A primeira parte desse texto mostrará a especificidade do estruturalismo americano, para que tenhamos um background da Linguística quando Chomsky começou seu trabalho. Em seguida, trataremos um pouco do behaviorismo, abordagem à qual Chomsky se opõe ferozmente. Na seção 3, apresentaremos, em linhas gerais, o paradigma chomskyano da linguagem, e em que medida esse paradigma se distancia bastante do estruturalismo americano 1 Trabalho de fim de curso apresentado à profª Dr. Maria Carlota Rosa como requisito para a aprovação na disciplina LEF 801 – História do Pensamento Linguístico, no semestre de 2017.1. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). e do behaviorismo. Por fim, concluiremos na seção 4 com o impacto que a revolução chomskyana teve na Linguística pós-50. 2. O estruturalismo americano e Leonard Bloomfield Devido ao grande impacto que a Revolução Estruturalista teve no cenário dos estudos linguísticos, estruturalismo passou a ser um nome comum dado à maioria dos trabalhos em Linguística nas primeiras décadas do séc. XX, reunindo sobre o mesmo rótulo trabalhos diferentes, mas que possuíam uma coisa em comum: a visão de que a língua é composta por uma estrutura, um sistema organizado em partes que se relacionam harmonicamente. Isso foi o que aconteceu com os trabalhos realizados nos EUA, que pouco tinham a ver com o que era produzido na Europa (exceto pela visão comum citada acima). De fato, os trabalhos nem poderiam ser parecidos, pois as necessidades dos estudos linguísticos na América eram bastante diferentes das que direcionavam a pesquisa europeia. A principal dessas diferenças foi o chamado “Imperativo Ameríndio”. Uma vez que a América era povoada por povos indígenas antes da chegada dos colonizadores, a diversidade linguística na região era desafiadora para os estudiosos em linguagem, especialmente pelo fato de que as línguas faladas pelos nativos americanos eram línguas não-europeias, bastante diferentes das línguas do tronco indo-europeu, sem nenhuma documentação escrita e, muito menos, análise gramatical. A necessidade de descrever e documentar línguas desconhecidas pelos pesquisadores fez com que fosse preciso um instrumental adequado a essa tarefa. Mas, em quê, especificamente, o estruturalismo americano diferia dos trabalhos europeus? Ou, reformulando essa pergunta de um modo mais voltado ao tema do nosso texto, quais eram as características do estruturalismo americano que depois seriam revolucionadas por Chomsky? A resposta a essa pergunta reside, em grande parte, na análise da obra de um pesquisador em especial: Leonard Bloomfield. Leonard Bloomfield é, sem dúvida, o nome mais conhecido do estruturalismo americano. Sua obra ditou o trabalho da Linguística americana da década de 1930 até meados da década de 1950. Podemos dizer que, se explanarmos as noções principais que norteiam o trabalho de Bloomfield, conseguiremos caracterizar o estruturalismo americano, dando o panorama necessário para a revolução chomskyana. A principal obra bloomfieldiana é o livro Language, publicado em 1933. Nesse livro, o autor estabelece uma metodologia rígida do trabalho linguístico, sendo essa uma das características marcantes do trabalho de Bloomfield. Apenas a título de exemplo, vejamos a metodologia estabelecida por ele para o estudo dos fonemas: “Suponhamos, por exemplo, que comecemos com a palavra pin: uns poucos experimentos em dizer palavras em voz alta brevemente revelam as seguintes semelhanças e diferenças: (1) pin termina com o mesmo som que fin, sin, tin, mas começa de modo diferente; esse tipo de semelhança é familiar a nós por causa da nossa tradição em usar rimas finais em versos; (2) pin contém o som de in, mas adiciona algo no começo; (3) pin termina com o mesmo som que man, sun, hen, mas a semelhança é menor que em (1) e (2); (4) pin começa com o mesmo som que pig, pill, pit, mas termina de modo diferente; (5) pin começa com o mesmo som que pat, push, peg, mas a semelhança é menor que em (4); (6) pin começa e termina como pen, pan, pun, mas a parte central é diferente; (7) pin começa e termina diferentemente de dig, fish, mill, mas a parte central é a mesma. Dessa maneira, podemos encontrar formas que parcialmente se assemelham a pin, ao alternar qualquer uma das três partes da palavra [...]: nós concluímos que os traços distintivos dessa palavra são três unidades indivisíveis.” (Bloomfield, 1933, p. 78, 79 - grifo do autor)3 Percebemos, com esse exemplo, que a metodologia de análise do estruturalismo americano, personificado em Bloomfield, partia da observação empírica, na tentativa de descrever uma certa língua através de elementos distintivos. Tais elementos eram identificados através da operação de comutação, como visto no exemplo acima. Esse método, chamado de distribucionalista, funcionou perfeitamente para a descrição de diversas línguas humanas, especialmente na fonologia e na morfologia. De fato, o grande sucesso do estruturalismo americano foi a descrição precisa da fonologia de diversas línguas, inclusive línguas não pertencentes ao tronco indo-europeu. Outra característica da abordagem bloomfieldiana é o descritivismo. Uma ciência pode se dedicar a descrever o seu objeto de estudo. Por exemplo, a Zoologia é uma ciência que busca 3 “[...] Suppose, for instance, that we start with the word pin: a few experiments in saying words out loud soon reveal the following resemblances and differences: (1) pin ends with the same sound as fin, sin, tin, but begins differently; this kind of resemblance is familiar to us because of our tradition of using end-rime in verse; (2) pin contains the sound of in, but adds something at the beginning; (3) pin ends with the same sound as man, sun, hen, but the resemblance is smaller than (1) and (2); (4) pin begins with the same sound as pig, pill, pit, but ends differently; (5) pin begins with the same sound as pat, push, peg, but the resemblance issmaller than in (4); (6) pin begins and ends like pen, pan, pun, but the middle part is different; (7) pin begins and ends differently from dig, fish, mill, but the middle part is the same. In this way, we can find forms which partially resemble pin, by altering any one of three parts of the word […]: we conclude that the distinctive features of this word are three indivisible units.” descrever aspectos dos animais: sua anatomia, seu comportamento, sua alimentação etc. Por outro lado, existem ciências que procuram explicações para seus objetos de estudos. Dando outro exemplo, a Física possui, além do desejo de descrever os fenômenos dos quais se ocupa, uma necessidade de explicar por que esses fenômenos ocorrem: por que o céu é azul, por que o arco-íris existe etc. Nós podemos dizer que o estruturalismo americano não estava preocupado com explicações para a língua: questões tais como por que a frase “menino a agradei o chão” não pode ser dita em português não faziam parte do projeto estruturalista na América. Por isso dizemos que o estruturalismo americano era descritivista, pois se preocupava apenas em descrever línguas, demonstrar quais eram as unidades de um sistema linguístico específico e formular regras para a organização desses elementos – sejam eles fonológicos, morfológicos ou sintáticos. Uma terceira característica do trabalho bloomfieldiano tem a ver com a pergunta: como nós adquirimos linguagem? Veremos mais adiante que a resposta de Chomsky para essa pergunta é que nós possuímos uma faculdade inata para a linguagem, e a exposição aos dados de certa língua faz com que adquiramos essa língua. Mas o estruturalismo americano (leia-se Leonard Bloomfield) não compartilhava dessa visão. Para responder essa pergunta (da qual nem o descritivismo estruturalista pôde fugir), os estruturalistas se ancoravam na corrente psicológica em voga à época: o behaviorismo. Isso foi necessário porque o estruturalismo possuía uma visão social da língua: a língua é um produto cultural do meio humano, que se constrói e se modifica a partir das relações humanas. O próprio Bloomfield deixa clara essa questão em Language: “O que nos interessa, entretanto, é o fato de que as características de uma língua não são herdadas em um sentido biológico. Uma criança chora ao nascer e, sem sombra de dúvida, irá, depois de um tempo, começar a gargalhar e a balbuciar, mas a língua particular que ela aprende é inteiramente uma questão de ambiente.” (ibid.: 43, Tradução nossa)4 Essa visão deixa pouco espaço para uma abordagem da linguagem humana em termos biológicos, o que pressionou os estruturalistas a delegar a resposta a essa pergunta aos psicólogos. Vejamos, então, o que os behavioristas do período têm a dizer sobre isso. Esse ponto é de grande importância, porque é justamente a essa visão que Chomsky vai se opor com maior ímpeto no seu trabalho. 4 “What concerns us most, however, is the fact that the features of a language are not inherited in the biologic sense. A child cries out at birth and would doubtless in any case after a time take to gurgling and babbling, but the particular language he learns is entirely a matter of environment.” 3. O behaviorismo e a linguagem humana Para entendermos o pensamento behaviorista, precisamos ter em mente uma palavra: comportamento (que é a tradução da palavra inglesa behavior). Essa corrente da Psicologia surgiu no início do séc XX como uma tentativa de mostrar que o comportamento (humano ou animal) está sempre condicionado a estímulos externos. Assim, existe a possibilidade de prever (e até mesmo determinar) o comportamento de um organismo, caso consigamos identificar quais estímulos geram certas respostas nos indivíduos. Uma afirmação dessa natureza exclui da psicologia a ideia de mentalismo, pois um organismo que simplesmente reage a estímulos não possui a capacidade de autonomia para suas ações, pensamentos e, consequentemente, comportamentos linguísticos. Passemos a um exemplo. Um homem, ao andar em direção a uma caixa, produz um estímulo cuja resposta é ele aproximar-se cada vez mais da caixa. Se ele pega essa caixa, o resultado dessa ação é a caixa ser levantada. Por sua vez, essa caixa produz um estímulo no homem (pesando sobre ele), cuja resposta é exercer força para que a caixa seja levantada (o que nos lembra a terceira lei de Newton), e assim por diante. O behaviorismo assume, portanto, que toda ação é um provedor de estímulos, que geram respostas a esses estímulos e, consequentemente, resultam em novos estímulos. É assim com um homem levantar uma caixa e seria assim também com realidades psicológicas, como sentimentos, emoções e a linguagem. Um trabalho central quanto à questão do comportamentalismo na linguagem é o livro Verbal Behavior, do psicólogo americano B.F. Skinner (1904-1990). Esse livro trata de como o processo de comunicação verbal nada mais é do que uma forma de estímulo cujo veículo mediador são outras pessoas. Dando um exemplo (presente na obra de Skinner), se um homem deseja um copo de água, ele pode agir diretamente, indo até uma fonte de água e bebendo, ou ele pode agir indiretamente, pedindo a alguém por um copo de água. No primeiro caso, o homem se envolve em um comportamento que gera uma resposta mecânica diretamente; no segundo, o homem se envolve em um comportamento que gera um estímulo em terceiros (pedir o copo de água), cuja resposta ideal é a satisfação do motivador desse estímulo (a pessoa solicitada trazer um copo de água). Assim, a definição dada por Skinner para o comportamento verbal é o “comportamento reforçado pela mediação de outras pessoas” (Skinner, 1957, cap. 2 s/p - Tradução nossa). Perceba que, a partir desses pressupostos, a linguagem nada mais é que um veículo para o processo de estímulo-resposta, sendo, da mesma forma, participante desse processo, pois uma resposta verbal é apenas resultado de um estímulo verbal. O pensamento behaviorista da linguagem fez com que uma questão central acabasse ficando de fora: o significado das expressões linguísticas. Tanto foi assim que, na obra de Bloomfield, não há qualquer tentativa explícita de enquadrar a questão do significado dentro da estrutura linguística. Em parte devido à abordagem behaviorista e em parte devido ao caráter distribucionalista da teoria bloomfieldiana, o significado passou a ser visto como algo extrínseco à língua enquanto sistema: os estruturalistas viam a semântica como “filha” da Psicologia, e não da Linguística. Ele afirma: Se [...] esses problemas gerais do significado [das expressões linguísticas] devem ser estudados, eles serão concernentes à Fisiologia, à Psicologia e à Sociologia, ao invés de apenas à Linguística. (Bloomfield, 1943: 102, Tradução nossa). 5 Com base no que foi exposto, podemos traçar um panorama da Linguística quando Chomsky aparece no cenário: o estruturalismo americano era dominante na academia, estando baseado em três pilares: o distribucionalismo, o descritivismo e o comportamentalismo (behaviorismo). Na década de 1950, Chomsky irá demolir esses três pilares, erigindo em seus lugares sua teoria, que posteriormente ficou conhecida como Gerativismo. E a porta de entrada para essa demolição foi a sintaxe. 4. A revolução chomskyana Avram Noam Chomsky desenvolveu sua vida acadêmica orientado pelo linguista Zellig Harris, um estruturalista que buscava a integração de métodos matemáticos com a linguística, além de perseguir um meio de integrar a descrição da sintaxe no modelo estruturalista. De fato, os estudos sintáticos ficaram alheios ao programa bloomfieldiano, cujo foco (e grande sucesso) era a descrição da fonologia e da morfologia das línguas. Com a impressão de que o trabalho estruturalista estava se completando nessas áreas, as atenções se voltavam para o 5 É necessário relativizar essas afirmações. Podemosafirmar que Bloomfield deixou de lado a semântica por julgar que a ciência ainda não tinha desenvolvido instrumental teórico acurado o suficiente para lidar com a noção do significado. Em um artigo, publicado em 1945 e que trata especificamente do significado, ele afirma: [...] É fácil descrever, classificar e organizar as formas de uma língua, mas mesmo se nós dominássemos todo o conhecimento atual, ainda assim nós seríamos incapazes de descrever, classificar e organizar os significados expressos por essas formas. (Bloomfield, 1943: 103, Tradução nossa). Hall Jr., em um artigo comentando a postura bloomfieldiana sobre a semântica, afirma que Bloomfield, em momento algum, nem nos seus livros de 1914 e 1933, nem no seu artigo especificamente intitulado “Meaning” (1943), negou a existência do significado ou sua relevância para a Linguística. (Hall Jr., 1986: 155, Tradução nossa). Portanto, Bloomfield não negava a existência da semântica, mas acreditava que essa era uma área de interface da Linguística com outras áreas do conhecimento, e que, naquele ponto de desenvolvimento da ciência, não havia instrumental suficiente para uma aproximação acurada da semântica. No entanto, o resultado dessa postura é o mesmo: o significado ficou de fora da discussão linguística no estruturalismo americano. desenvolvimento de uma teoria capaz de analisar a sintaxe das línguas. E Harris, auxiliado por Chomsky, estava chegando a esse patamar com a ideia de Gramática Gerativo- Transformacional (GGT), sendo o livro Synctatic Structures, escrito por Chomsky sob a supervisão de Harris, a obra que apresenta essa teoria. Em poucas palavras, essa abordagem prevê que é possível criar sentenças a partir da junção de itens e, depois da aplicação de diversas regras, gerar as sentenças possíveis em uma língua. Por exemplo, tomemos a frase “O João comeu o bolo”. Percebemos que existem, a uma primeira vista, dois elementos nessa frase: sujeito e predicado. Esses dois constituintes podem ser mais subdivididos: o sujeito pode ser dividido em artigo e nome, enquanto o predicado pode ser dividido em verbo e um sintagma nominal. Esse sintagma nominal, por sua vez, pode novamente ser dividido em artigo e nome. Esquematicamente, temos algo como em (1) abaixo (adaptado de Chomsky, 1957:27) (1) a. Sentença. b. SN + SV c. Det + N + SV d. Det + N + Verbo + SN e. O + N + Verbo + SN f. O + João + Verbo + SN g. O + João + comeu + SN h. O + João + comeu + Det + N i. O + João + comeu + o + N j. O + João + comeu + o + bolo. Cada item de (1) é um passo desse processo, chamado por Chomsky de derivação: A cada passo, uma regra se aplica; ao fim do processo temos uma frase, pertencente à língua analisada. No nosso caso, a regra que se aplicou repetidamente é uma regra de “reescreva X como Y”. Esse nível da derivação dentro da abordagem da GGT é chamada de estrutura frasal. Outros tipos de regras seriam capazes de transformar um tipo de sentença em outro. Uma dessas regras seria a de passivização, responsável por transformar uma sentença na voz ativa na mesma sentença, só que na voz passiva: (2) a. João comeu o bolo. b. Passivização: NP1 V NP2 => NP2 ser V-do por NP1 c. O bolo foi comido pelo João Após a derivação apresentada em (1), entram em ação as regras transformacionais, como a de passivização, apresentada em (2). Partindo da sentença em (2a), ocorre a transformação em (2b): o NP1, sujeito da sentença, vai para o final da frase, enquanto o NP2, objeto, assume a posição de sujeito. Insere-se o verbo ser após o NP2, assim como o sufixo -do ao tema do verbo. Depois insere-se a preposição por, finalizando a derivação e gerando a frase em (2c). Esse novo arcabouço teórico por si só em nada afrontava o modelo bloomfieldiano: na verdade, era apenas uma nova ferramenta teórica na descrição das línguas, nesse caso, desenvolvido especialmente para análise sintática. No entanto, da mesma forma que a GGT funciona em uma perspectiva distribucionalista, descritivista e comportamentalista, ela também funcionava muito bem a partir de uma visão mediacional, investigativa e mentalista. E, ao mesmo tempo em que Synctatic Structures era produzido, a visão epistemológica de Chomsky (e de seus associados) partia da primeira tríade para a segunda. Inicialmente, podemos contrapor o distribucionalismo com o mediacionismo. Goldsmith e Huck (1991) explicam a diferença entre essas duas abordagens linguísticas: “Quanto ao [mediacionismo], a análise linguística teria como objetivo descobrir e explicar a relação entre som e sentido, entre a forma externa e interna. [...] Quanto ao [distribucionalismo], a tarefa central do linguista é explicar a organização e a distribuição dos elementos formais da linguagem. Neste caso, uma hipótese essencial é a de que uma tal estrutura formal da linguagem existe e que ela pode ser descrita e explicada em seus próprios termos”.6 (Goldsmith & Huck, 1991:51, Tradução nossa) Essa divisão não necessariamente é uma oposição: uma abordagem linguística pode, ao mesmo tempo, se preocupar com a relação entre som e sentido e buscar a organização formal dos elementos da língua. A proposta da GGT é um exemplo disso. Ainda que, no Synctatic Structures, Chomsky não diga explicitamente que sua preocupação é com a relação significante/significado, em algumas partes do livro essa ideia fica implícita: “O fato de que existem correspondências entre aspectos formais e semânticos [...] não pode ser ignorado. Essas correspondências devem ser estudadas em uma teoria mais 6 Selon le premier, l'analyse linguistique aurait pour but de découvrir et d'expliquer la relation entre son et sens, entre forme externe et interne. Pour souligner que le langage, dans cette optique, est un intermédiaire entre la forme externe et le sens, nous qualifierons cet objectif de médiateur. [...] Selon le second objectif, la tâche centrale du linguiste est d'expliquer l'organisation et la distribution des éléments formels du langage. Dans ce cas, une hypothèse essentielle est qu'une telle structure formelle du langage existe et qu'elle peut se décrire et s'expliquer en ses propres termes. geral da linguagem, que inclua uma teoria da forma linguística e uma teoria do uso da linguagem enquanto subpartes.” (Chomsky, 1957:102, Tradução nossa)7 Em contraparte, o estruturalismo linguístico, com seu apego ao distribucionismo, deixou de lado quaisquer preocupações com uma mediação entre forma e significado. Desse ponto de vista, a teoria chomskyana era mais atraente, capaz de abarcar melhor a inteireza da linguagem. A introdução do significado de volta ao estudo da linguagem colocou em cheque outro pilar do estruturalismo bloomfieldiano: o comportamentalismo. Como vimos, Bloomfield delegou a explicação da linguagem para os behavioristas, cuja resposta era bastante simples: nós falamos para produzir comportamentos baseados em estímulo-resposta. No entanto, essa justificativa não era atraente para Chomsky, e ele possuía bons argumentos para isso. O mais forte desses argumentos é o que ele chamou de “argumento da pobreza de estímulo”, enunciado pela primeira vez na resenha do livro Verbal Behavior, de B.F. Skinner (que vimos anteriormente): “Não é fácil aceitar a ideia de que uma criança é capaz de construir um mecanismo extremamente complexo para gerar om conjunto de sentenças, algumas das quais ela ouviu, ou que um adulto pode instantaneamente determinar se (e, caso afirmativo, como) um item particular é gerado por esse mecanismo, o qual possui muitas propriedades de uma teoria dedutiva abstrata. [...] O fato de que todas as crianças normais adquirem essencialmente gramáticas comparáveis de grande complexidade com uma rapidez admirável sugere que os seres humanos são, de alguma forma, especialmente designados para isso [o desenvolvimento de uma gramática], com habilidade de manipulação de dados ou ‘formulação dehipóteses’ de caráter e complexidade desconhecidas.” (Chomsky, 1959: 57)8 Em outras palavras, o argumento de Chomsky é de que seria impossível para uma criança aprender toda a complexidade do sistema linguístico da língua que ela fala, adquirindo uma competência e domínio desse sistema em apenas alguns anos. O fato de a criança ser capaz de produzir sentenças nunca antes ouvidas por ela (criatividade linguística) revela uma capacidade de “manipulação de dados” e “formulação de hipóteses” que vão muito além do simplista modelo de estímulo-resposta desenvolvido pelas ciências do comportamento. Por fim, esses dois aspectos da teoria de Chomsky (bastante diversos – revolucionários, poderíamos dizer) têm como conclusão lógica o questionamento do terceiro “pilar” 7 The fact that correspondences between formal and semantic features exist, however, cannot be ignored. These correspondences should be studied in some more general theory of language that will include a theory of linguistic form and a theory of the use of language as subparts. 8 “It is not easy to accept the view that a child is capable of constructing an extremely complex mechanism for generating a set of sentences, some of which he has heard, or that an adult can instantaneously determine whether (and if so, how) a particular item is generated by this mechanism, which has many of the properties of an abstract deductive theory. […] The fact that all normal children acquire essentially comparable grammars of great complexity with remarkable rapidity suggests that human beings are somehow specially designed to do this, with data-handling or 'hypothesis-formulating' ability of unknown character and complexity.” estruturalista: tendo em vista que há a necessidade de mediar forma e significado, e que, de fato, existe um mecanismo mental no processamento da linguagem, o trabalho da Linguística deve ser investigar as bases desse conhecimento linguístico, procurando justificativas para o porquê de esse conhecimento linguístico ser aprendido tão rápido, bem como qual é a natureza desse conhecimento. Novamente, a empresa chomskyana não abriu mão do descritivismo: é necessário descrever, mas não descrever apenas o inventário de formas linguísticas. Era necessário descrever o conhecimento linguístico, a competência de um falante de uma língua natural. Em resumo, entre o fim da década de 1950 e meados da década de 1960, Chomsky e seus associados (dos quais podemos citar Morris Halle, Paul Postal, Jerrold Katz e Jerry Fodor) mudaram toda a epistemologia da Linguística nos EUA (que depois se difundiria para o mundo): de um enfoque distribucionalista (na busca de organizar e categorizar as formas linguísticas) para um enfoque mediacionista (preocupado com a relação som/significado); de uma visão de linguagem comportamentalista (vendo a língua apenas como objeto social, relacionado a uma relação de estímulo-resposta) para uma abordagem mentalista (que vê um inatismo para a linguagem humana); de um trabalho descritivista (preocupado em apenas descrever as línguas) para um trabalho investigativo (que busca as bases da linguagem, uma explicação para o conhecimento linguístico). Podemos dizer, com base nisso, que o trabalho de Chomsky revolucionou a Linguística, fazendo com que essa ciência mudasse completamente seus olhares e sua metodologia. Mas qual foi o impacto disso nas gerações posteriores? 5. Conclusão: o legado chomskyano Após a explosão da revolução chomskyana, o estruturalismo foi esmorecendo aos poucos: os antigos pesquisadores, que se mantiveram fiéis aos ideais bloomfieldianos, foram saindo de cena, enquanto as novas gerações de estudantes abraçaram as ideias mentalistas de Chomsky. As décadas seguintes viram uma efervescência de trabalhos que buscavam entender como os falantes das diversas línguas construíam seu conhecimento linguístico. Graças à influência de Chomsky, o ramo da psicolinguística teve seu início, se desenvolvendo até os dias de hoje. Uma nova área de estudos ligados à semântica se desenvolveu, cujos principais nomes foram Ray S. Jackendoff e Robin Lakoff. A própria GGT se modificou, com os trabalhos de Chomsky Aspects of the theory of syntax (Chomsky, 1965) e, posteriormente, Lectures on government and binding (Chomsky, 1981). No entanto, também houve críticas e cismas dentro da proposta chomskyana. Primeiro, um dos associados de Chomsky, Talmy Givón, se rebelou contra o formalismo inatista e, em 1979, publica o livro On understanding Grammar (Givón, 1979), buscando justificativas cognitivo-comunicacionais para emergência da linguagem (dando origem a uma das vertentes do funcionalismo). Da mesma forma, George Lakoff, Charles Fillmore e Ronald Langacker (para citar alguns) entraram em crise com a proposta gerativista da semântica e, entre fins da década de 1970 e início da década de 1980, propuseram seu próprio modelo teórico, que mais tarde ficou conhecido como Linguística Cognitiva, cuja obra mais conhecida é o livro Metaphors we live by (Lakoff & Johnson, 1980). Podemos dizer, portanto, que a revolução chomskyana foi o estopim para a grande diversidade de abordagens linguísticas que nos dias atuais floresce no cenário acadêmico. Por isso, concordamos com os autores que, de fato, chamam o trabalho de Chomsky de revolucionário. O paradigma da linguística mudou na década de 1950, e, por mais que o trabalho estruturalista tivesse sido de vital importância para a Linguística enquanto ciência, a Gramática Gerativa chomskyana agregou a essa ciência uma robustez teórica que deixou sua marca na história. 6. Referências Bloomfield, L. (1933). Language. London: George Allen e Unwin Ltd. Bloomfield, L. (1943). Meaning. Monatshefte Für Deutschen Unterricht, 35(3/4), 101–106. Chomsky, N. (1957). Syntactic Structures. Hague: Mouton. https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004 Chomsky, N. (1959). Review of Skinner’s Verbal Behavior. Language, 35(1), 26–58. Chomsky, N. (1965). Aspects of the theory of syntax. Massachusetts: MIT Press. Chomsky, N. (1981). Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris. https://doi.org/10.1515/9783110884166 Givón, T. (1979). On Understanding grammar. New York: Academic Press. Goldsmith, J., & Huck, G. (1991). Distribution et médiation dans la théorie linguistique. Communications, 53(1), 51–67. https://doi.org/10.3406/comm.1991.1802 Hall Jr., R. A. (1986). Bloomfield and Semantics. In Historiographia Linguistica (Vol. 13, pp. 363–380). Philadelphia: John Benjamins. https://doi.org/10.1075/hl. Harris, R. A. (1993). The Linguistics Wars. New York: Oxford University Press. Lakoff, George; Johnson, M. (1980). Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press. https://doi.org/10.2307/414069 Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. Retrieved from https://books.google.com/books?hl=en&lr=&id=v4CeAwAAQBAJ&pgis=1
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