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. RAIMUND ABRAHAM | DIANA AGREST|TADAO ANDO|GIULIO CARLO ARGAN | PHILIP BESS | GEOFFREY BROADBENT | ALAN COLQUHOUN | JACQUES DERRIDA I PETER EISENMAN KENNETH FRAMPTON MARCO FRASCARI UMA NOVA AGENDA PARA A ARQUITETURA | MARIO GANDELSONAS | DIANE GHIRARDO | MICHAEL GRAVES | VITTORIO GREGOTTI | KARSTEN HARRIES | FRED KOETTER | REM KOOLHAAS | LIANE LEFAIVRE | WILLIAM MCDONOUGH | ROBERT MUGERAUER | CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ|JUHANI PALLASMAA|DEMETRI PORPHYRIOS|ALDO ROSSI COLIN ROWE | THOMAS L. SCHUMACHER | DENISE SCOTT BROWN | IGNASI DE SOLA-MORALES RUBIO | ROBERT A. M. STERN | MANFREDO TAFURI | BERNARD TSCHUMI I ALEXANDER TZONIS | ROBERT VENTURI ] ANTHONY VIDLER ANTOLOGIA TEÓRICA 1965-1995 KATE NESBITT (ORG.) I No Brasil, a sensação predominante nas ultimas décadas é que os espaços de discussão de arquitetura e urbanismo tornaram-se cada vez mais escassos. Enquanto avançava a pesquisa especializada, a arquitetura parecia perder relevância cultural: sumiam pú¬ blico e críticos, periódicos de arquitetura convertiam-se em vitrines de escritórios e fabricantes, dissolviam-se os elos entre a arquitetura, as artes e o pensamento, assim como entre reflexão e prática projetual, levando o meio profissional brasileiro à deso¬ rientação e ao conformismo mais conveniente. É provável que este curto-circuito que se produziu no país depois da construção de Brasília tenha algo a ver com a forma como a modernidade arquitetônica passou a ser interpelada entre nós. Sobretudo desde o golpe militar de 1964. De um lado, a partir da exacerbação do viés produtivista da arquitetura moderna em favor da construção esta¬ tal e especulativa pesada; de outro, a partir da denúncia de sua face aparatosa e autori¬ tária em meio à crise das promessas de desenvolvimento social e autonomia nacional. A impressão que se tem é que, com o passar dos anos, o debate da profissão chegou a um ponto de saturação tal que, enrijecidas em suas próprias convicções, nenhuma das posições em voga no país - ultra, pró, pós ou anti modernas - tem muita coisa a nos dizer quando o assunto é o que fazer da arquitetura para além do mero consentimento com exercícios de estilo pessoal, de escola ou oportunidade. Neste sentido, Uma nova agenda para a arquitetura, organizada pela professora norte- americana Kate Nesbitt, traz uma contribuição inestimável ao leitor brasileiro. Ao reunir um conjunto influente de textos teóricos produzidos entre 1965 e 1995, permite romper com o longo isolamento que condenou o meio local dos arquitetos a um diálogo de surdos. A antologia, dividida em quatorze capítulos temáticos, reúne 51 dos principais tex¬ tos de teoria contemporânea de arquitetura, cada um dos quais precedidos de uma I ' ■ I '4* % . i * * •I 4 * . ♦ ' I " ■ » I i m i L : íf /K. I « i ’l > I I - * I * ■ ! i9 r t i 12 * ! I . r i - « . # » * !• » * \» 0 * f 1 í * ( * I ! * * i f 1UMA NOVA AGENDA PARA A ARQULTETURA > I I I I i * % I ' i I < I f * « 9 Agradecimentos 11 Prefácio 15 Introdução 89 CAPíTULO 1 Pós-modernismo: as respostas da arquitetura à crise do modernismo 91 Complexidade e contradição em arquitetura: trechos selecionados de um livro em preparação (1966) ROBERT VENTURI 95 O pós-funcionalismo (1976) PETER EISENMAN 101 Argumentos em favor da arquitetura figurativa (1982) MICHAEL GRAVES 108 A pertinência da arquitetura clássica (1989) DEMETRI PORPHYRIOS I 15 Novos rumos da moderna arquitetura norte-americana: Pós-escrito no limiar do modernismo (1977) ROBERT A. M. STERN CAPíTULO 2 Semiótica e estruturalismo: 0 problema da significação127 129 Semiótica e arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico (1973) DIANA AGREST E MARIO GANDELSONAS 141 Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura (1977) GEOFFREY BROADBENT 163 CAPíTULO 3 Pós-estruturalismo e desconstrução: os temas da originalidade e da autoria 1 65 Uma arquitetura onde o desejo pode morar (1986) - Entrevista de JACQUES DERRIDA a EVA MEYER 172 Arquitetura e limites1 (1980) BERNARD TSCHUMI 177 Arquitetura e limites 11 (1981) BERNARD TSCHUMI 183 Arquitetura e limites m (1981) BERNARD TSCHUMI 188 Introdução: Notas para uma teoria da disjunção arquitetônica (1988) BERNARD TSCHUMI 191 A arquitetura e o problema da figura retórica (1987) PETER EISENMAN 199 Derrida e depois (1988) ROBERT MUGERAUER 11 219 CAPíTULO 4 Historicismo: o problema da tradição 221 Três tipos de historicismo (1983) ALAN COLQUHOUN 232 O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim (1984) PETER EISENMAN 252 Do contraste à analogia: novos desdobramentos do conceito de intervenção arquitetônica (1985) IGNASI DE SOLà-MORALES RUBIó 265 CAPíTULO 5 Tipologia e transformação 267 Sobre a tipologia em arquitetura (1963) GIULIO CARLO ARGAN 273 Tipologia e metodologia de projeto (1967) ALAN COLQUHOUN 284 A terceira tipologia (1976) ANTHONY VIDLER 291 CAPíTULO 6 A teoria urbana depois do modernismo: contextualismo, Main Street e outras ideias 293 Cidade-colagem (1975) - COLIN ROWE e FRED KOETTER 322 Contextualismo: ideais urbanos e deformações (1971) THOMAS L. SCHUMACHER 337 Uma significação para os estacionamentos dos supermercados A&P, ou Apren¬ dendo com Las Vegas (1968) ROBERT VENTURI e DENISE SCOTT BROWN 355 Pós-escrito: introdução à nova pesquisa sobre “A cidade contemporânea” (1988) REM KOOLHAAS 357 Por uma cidade contemporânea (1989) REM KOOLHAAS 361 Para além do delírio (1993) REM KOOLHAAS 369 CAPíTULO 7 A Escola de Veneza 371 Território e arquitetura (1985) VITTORIO GREGOTTI 377 Uma arquitetura analógica (1976) ALDO ROSSI 384 Reflexões sobre meu trabalho recente (1976) ALDO ROSSI 388 Problemas à guisa de conclusão (1980) MANFREDO TAFURI 399 CAPíTULO 8 Agendas éticas e políticas 401 Comunitarismo e emotivismo: duas visões antagónicas sobre ética e arquitetura (1993) PHILIP BESS 415 A arquitetura da fraude (1984) DIANE GHIRARDO 423 A função ética da arquitetura (1975) KARSTEN HARRIES 427 Projeto, ecologia, ética e a produção das coisas (1993) WILLIAM MCDONOUGH 438 Os princípios de Hannover (1992) WILLIAM MCDONOUGH ARCHITECTS 441 CAPíTULO 9 Fenomenologia do significado e do lugar 443 O fenômeno do lugar (1976) CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 461 O pensamento de Heidegger sobre arquitetura (1983) CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 474 Uma leitura de Heidegger (1974) KENNETH FRAMPTON 481 A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da arquitetura (1986) JUHANI PALLASMAA 491 CAPíTULO 10 Arquitetura, natureza e espaço construído 493 Por novos horizontes na arquitetura (1991) TADAO ANDO 498 Negação e reconciliação (1982) RAIMUND ABRAHAM CAPíTULO 1 1 Regionalismo crítico: cultura local versus civilização universal501 503 Perspectivas para um regionalismo crítico (1983) KENNETH FRAMPTON 520 Por que regionalismo crítico hoje? (1990) ALEXANDER TZONIS e LIANE LEFAIVRE 533 CAPíTULO 12 Expressão tectônica 535 O exercício do detalhe (1983) VITTORIO GREGOTTI 538 O detalhe narrativo (1984) MARCO FRASCARI 556 Rappel à Vordre, argumentos em favor da tectônica (1990) KENNETH FRAMPTON 571 CAPíTULO 13 Feminismo, gênero e o problema do corpo 573 O prazer da arquitetura (1977) BERNARD TSCHUMI 584 À margem da arquitetura: corpo, lógica e sexo (1988) DIANA I. AGREST 599 Visões que se desdobram: a arquitetura na era da mídia eletrónica (1992) PETER EISENMAN 609 CAPíTULO 14 Definições contemporâneas do sublime 611 En Terror Firma: na trilha dos grotextos (1988) PETER EISENMAN 617 Uma teoria sobre o estranhamente familiar (1990) ANTHONY VIDLER 623 Bibliografia 635 Sobre os autores 645 índice remissivo 662 Fontes das ilustrações CA PÍ TU LO 3 0 0 0 0 ir c n 0 0 0 0 [ ENTREVISTA DE JACQUES DERRIDA A EVA MEYER . UMA ARQUITETURAONDE O DESEJO PODE MORARNesta entrevista para a revista italiana Domus, o filósofo e crítico literário JacquesDerrida traz à discussão algumas questões importantes, a começar pelas relaçõesentre teoria e prática. O que é o pensamento arquitetônico? - pergunta Derrida.A arquitetura é uma materialização do pensamento? Poderia ela ser outra coisa além de uma representação do pensamento? São essas questões que trazem à tona o problema de saber se a arquitetura é uma arte (mimética ou não) ou simplesmente uma técnica de instrumentalização do pensamento arquitetônico. Derrida mostra que, diferentemente das outras belas-artes, a arquitetura não diz respeito à repre¬ sentação de algo já existente. Apesar de não pertencer à disciplina (ou, talvez, por isso mesmo), Derrida e o descons- trucionismo têm tido grande influência na teoria da arquitetura e na atividade projetual desde os anos 1980, quando foram publicadas suas discussões com Peter Eisenman e Bernard Tschumi. O crescente interesse pela obra do filósofo que essas publicações des¬ pertaram é típico das discussões pós-modernas em torno do significado e da busca por paradigmas teóricos de abordagem da arquitetura para além dos limites da disciplina. Na entrevista, Derrida chama a atenção para a intersecçáo entre filosofia e arquitetura, para o fato de o pensamento filosófico recorrer a modelos urbanísticos e arquiteturais. É precisamente a linguagem das metáforas arquitetônicas (como os "fundamentos da filosofia" ou mesmo a "arquitetura da arquitetura") que Derrida se propõe desconstruir ou desmontar junto com as oposições fundamentais ("binárias") em que se assentam a linguagem e o significado. A prática desconstrucionista analisa esses pares de oposições para mostrar que eles não são naturais, mas construídos pela cultura ou "institucionaliza¬ dos" em um dado momento histórico. A proposição e aceitação dessas oposições como naturais é um processo ideológico, isto é, que ilude e limita o pensamento. Para Derrida, a arquitetura almeja o controle da comunicação, do transporte e da economia. Sua reflexão crítica sobre a arquitetura pós-moderna propõe o fim deste "plano de dominação". Tanto Derrida como Tschumi se interessam pelo estudo do lugar, do "ter lugar" de um acontecimento, e da dimensão temporal da experiência do espaço (caps. 9 e 13). A entrevista discute dois arquétipos cujos papéis normalmente se sobrepõem: o arqué¬ tipo da Torre de Babel, que serve em geral de metáfora para a incompreensibilidade da linguagem, e o arquétipo do labirinto, que representa uma situação espacial ininteligível. Derrida permite que o labirinto se aproprie e se superponha a essa associação metafó¬ rica da torre, apesar das grandes diferenças entre os dois arquétipos. (Quanto a isso, Derrida poderia mencionar o artigo de Tschumi "Questions of Space",1 que estabelece uma importante oposição entre o labirinto como modelo de um espaço sensorial baseado na experiência vivida e a pirâmide, que representa o aspecto linguístico, teórico, da arqui¬ tetura.) Para Derrida, os arquétipos da torre e do labirinto induzem a um confronto com o (0 £ 0 a «J 165 o sublime devido à impossibilidade de serem apreendidos (cap. 14). Ele deixa aberta a possibilidade da "existência de um caminho inexplorado de pensamento, parte do mo¬ mento arquitetônico, do desejo, da invenção" Esse pensamento "somente poderia expressar-se pelo (...) sublime". ] 1. Bernard Tschumi, 'Questions of Space Studio International 190, n. 977, set -out. 1975, pp. 136-142 ENTREVISTA DE JACQUES DERRIDA A EVA MEYER Uma arquitetura onde o desejo pode morar Jacques Derrida (JD): Consideremos o pensamento arquitetônico. Não pretendo su¬ gerir com isso que a arquitetura seja uma técnica apartada do pensamento e, por esta razão, talvez apropriada a representá-lo no espaço, constituindo quase que sua materialização; antes procuro expor o problema da arquitetura como uma possibi¬ lidade do próprio pensamento, que não pode ser reduzida à categoria de represen¬ tação do pensamento. Como você aludiu a uma separação entre teoria e prática, podemos começar nos perguntando como aconteceu essa divisão de trabalho. Penso que, no momento em que distinguimos a theoría da praxis, percebemos a arquitetura como uma mera téc¬ nica, descolada do pensamento. Quem sabe, não haverá, talvez, um caminho de pen¬ samento, ainda por descobrir, que faça parte do momento da concepção da arquite¬ tura,do momento do desejo, da invenção. Eva Meyer ( EM): Mas, se a arquitetura é concebida como uma metáfora e, em consequência, remete sempre à necessidade da materialização do pensamento, como reinseri-la no pen¬ samento de um modo nâo metafórico? Possivelmente não nos centrando na materialização, mas permanecendo sempre no caminho, em um labirinto, por exemplo? JD: DO labirinto falaremos depois. Primeiramente, eu gostaria de descrever de forma concisa como a tradição filosófica se utilizou do modelo arquitetônico como metáfora de um tipo de pensamento que em si mesmo não pode ser arquitetônico. Em [René] Descartes encontramos, por exemplo, a metáfora da fundação de uma cidade, e são 166 esses fundamentos que supostamente hão de sustentar o edifício,a construção arquite¬ tônica, a própria cidade. Existe, portanto, um tipo de metáfora urbanística na filosofia. As Meditações e o Discurso do método estão repletos dessas representações arquitetu¬ rais que, além do mais, sempre possuem alguma relevância política. Quando Aristóte- les quer dar um exemplo de teoria e prática, ele cita o architekton: aquele que conhece a origem das coisas, um teórico que também é capaz de ensinar e manter sob suas ordens os trabalhadores incapazes de pensar de forma autónoma. É desta maneira que se estabelece uma hierarquia política: a arquitetônica se define como uma arte de sis¬ temas, uma arte, portanto, apta para organizar racionalmente ramos inteiros do saber. É evidente que a referência arquitetônica é útil para a retórica numa linguagem que não conservou nenhum caráter arquitetônico. É por isso que eu me pergunto como, antes da separação entre teoria e prática, entre pensamento e arquitetura, pôde existir uma forma de pensamento ligada ao fato arquitetônico.Se toda linguagem sugere uma espacialização, uma certa disposição no espaço que, sem dominá-la, permite que dela nos aproximemos, então devemos compará-la a uma espécie de desbravamento, de abertura de um caminho. Um caminho que não tem de ser descoberto, mas inventado. E essa invenção de um caminho não é de modo algum alheia à arquitetura. Todo lugar na arquitetura, todo espaço habitado, tem uma precondição: que o edifício se localize em um caminho, em um cruzamento de ruas ou estradas pelos quais tanto se possa entrar como sair. Não há edifício sem ruas que conduzam a ele ou que partam dele; tampouco existem edifícios sem percursos interiores, corredores, escadas, passagens, portas. Mas, se a linguagem não pode controlar o acesso a esses trajetos que levam ao edifício e que dele partem, isso apenas significa que a linguagem está implicada nessas estruturas,que ela está “a caminho”,“movendo-se em direção à linguagem” dizia [Mar¬ tin] Heidegger, a caminho de alcançar a si mesma. O caminho não é um método; isso deve ficar bem claro.O método é uma técnica, um procedimento para obter o controle do caminho e torná-lo viável. EM: 0 que é. então, o caminho? |D: Volto a referir-me a Heidegger, que afirma que odos, o caminho, não é métho- dos, isto é, que existe um caminho irredutível à definição de método. A definição do caminho como um método foi interpretada por Heidegger como uma época na história da filosofia, iniciada com Descartes, [Gottfried] Leibniz e [G.W.F] Hegel, que escondeu a natureza do método como caminho, lançando-a no esquecimento; en¬ quanto ele, na verdade, indica a infinitude do pensamento: o pensamento é sempre um caminho. Se o pensamento não se eleva acima do caminho, se a linguagem do pensamento ou o sistema de pensamento da linguagem não são entendidos como uma metalinguagem sobre o caminho, isso significa que a linguagem é um caminho c que, portanto, sempre teve uma certa relação com a habitabilidade e com a arqui- 167 tetura. Esse constante "estar em movimento”, a habitabilidade do caminho quenáo nos oferece qualquer saída, enreda-nos em um labirinto sem nenhuma escapatória; mais precisamente, em uma armadilha, um dispositivo planejado como o labirinto de Dédalo de que fala James Joyce. A grande questão da arquitetura, de fato, é a do lugar, a do “ter lugar” no espaço. O estabelecimento de um lugar que até então não existia e que é compatível com o que nele terá lugar um dia, isto é um lugar. Como disse (Stéphane] Mallarmé,ce qui a lieu, c’est le lieu. Isto não é absolutamente natural. O estabelecimento de um lugar habitável é um acontecimento e, evidentemente, esse estabelecimento sempre supõe algo de técnico. Inventa-se algo que não existia até então, mas, ao mesmo tempo, há o habitante, homem ou Deus, que requer esse lugar antes mesmo que ele tenha sido inventado ou produzido. Por isso, não se sabe muito bem onde situar a origem do lugar. Talvez habitemos um labirinto,que não é natural nem artificial,e que está no cerne da história da filosofia greco-ocidental, de onde se originou o antagonismo entre natureza e tecnologia. Dessa oposição nasce a distinção entre os dois labirin¬ tos. Mas voltemos ao problema do lugar, da espacialidade e da escritura. Já faz algum tempo que vem se estabelecendo uma espécie de procedimento desconstrutivo, uma tentativa de emancipação em relação às oposições impostas pela história da filosofia, como physis/téchne, Deus/homem, filosofia/arquitetura. A desconstrução, portanto, analisa e questiona os pares conceituais que normalmente são aceitos como autoevi- dentes e naturais, como se não tivessem sido institucionalizados em um momento preciso, como se não tivessem história. Pois, tomadas como dadas, tais oposições li¬ mitam o pensamento. Pois bem, o próprio conceito de desconstrução parece ser uma metáfora arquite¬ tônica. Costuma-se dizer que a atitude desconstrutiva é negativa. Algo foi construído, um sistema filosófico, uma tradição, uma cultura e lá vem um desconstrutor e destrói a construção, pedra por pedra, analisa a sua estrutura e a desfaz. Muitas vezes é isso o que acontece. Observa-se um sistema - platónico/ hegeliano -, examina-se como foi construído, as suas pedras fundamentais, o ângulo de visão que lhe dá sustentação e, então, o modificamos e nos libertamos da autoridade do sistema. Creio, porém, que não é esta a essência da desconstrução. Não se trata simplesmente da técnica de um arquiteto que sabe como desconstruir aquilo que foi construído, mas de uma inves¬ tigação que se refere diretamente à própria técnica, à autoridade da metáfora arqui¬ tetônica e que, portanto, institui sua própria retórica arquitetônica. A desconstrução não é apenas - como seu nome parece indicar - a técnica de uma construção pelo avesso, pois é capaz de conceber, por si mesma,a ideia de construção. Poder-se-ia dizer que não há nada mais arquitetônico e,ao mesmo tempo, nada menos arquitetônico do que a desconstrução. O pensamento arquitetônico só pode ser desconstrutivo neste sentido: como tentativa de visualizar o que estabelece a autoridade da concatenação 168 arquitetônica na filosofia. Dito isso, podemos voltar ao que relaciona a desconstru- ção com a escritura: a sua espacialidade,o pensamento concebido como um caminho, como abertura de uma trilha que inscreve os seus rastros sem saber exatamente aonde eles vão levar. Assim pensando, é possível dizer que abrir um caminho é uma escritura que não pode ser atribuída nem a Deus nem ao homem nem ao animal,uma vez que ela designa, em um sentido muito amplo, o lugar a partir do qual esta classificação - homem/Deus/animal - se constitui. Essa escritura é, na verdade, como um labirinto, pois não tem começo nem fim. Nela, estamos sempre “em movimento”. A oposição entre tempo e espaço,entre tempo do discurso e espaço do templo ou da casa não tem mais nenhum sentido.Vive-se na escritura e escrever é um modo de vida. EM: Gostaria de trazer à tona as formas de escrever do arquiteto. Desde a introdução da proieção ortogonal, a planta baixa e os cortes se converteram nos meios básicos de notação em arquitetura, os quais, por sua vez, oferecem os princípios básicos que a definem. Nas plantas baixas de Palladio, Bramante ou Scamozzi, pode-se ler a transição de uma visão de mundo teocêntrica para uma concepção antropocêntrica, pela qual a forma da cruz cada vez mais se abre em quadrados e retângulos platónicos para, finalmente, resolver-se completa¬ mente por meio deles. O modernismo, por outro lado, se distingue por criticar essa atitude humanista. A casa Domino de Le Corbusier é um exemplo disso: um novo tipo de constru¬ ção feita de elementos cúbicos, telhado plano e longas janelas, racionalmente articulados e destituídos de quaisquer ornamentos construtivos. Em suma, uma arquitetura que não representa mais o homem, mas que se torna, em si, um signo autorreferencial, como diz Peter Eisenman. Uma arquitetura autoexplicativa que só informa aquilo que lhe é inerente; que reflete uma relação essencialmente nova entre homem e objeto, entre casa e mora¬ dores. Uma possibilidade de representar esse tipo de arquitetura é a axonometria: um guia para a leitura de um edifício que não pressupõe a sua habitabilidade. Nessa autorreflexão da arquitetura sobre a arquitetura me parece desenhar-se um processo que de algum modo se filia ao seu trabalho com a desconstrução, tal o ponto de partida profundamente crítico em relação à metodologia, e deste modo também de natureza filosófica. Se a casa em que nos sentimos "em casa" se torna acessível à imitação e se intromete inesperadamente na rea¬ lidade, isso significa que surgiu uma nova concepção do construir, não como uma aplicação, mas como uma condição do pensamento. É possível imaginar que as visões de mundo teo¬ cêntrica e antropocêntrica, ao lado de sua "condição de lugar", poderiam ser transformadas em uma rede nova e mais diversificada de referências? JD:0 que está surgindo pode ser compreendido como a abertura da arquitetura,como o início de uma arquitetura não representativa. Nesse contexto, talvez seja interes¬ sante recordar o fato de que, no princípio, a arquitetura não era uma arte de repre¬ sentação, enquanto a pintura, o desenho e a escultura sempre podem imitar alguma coisa que supostamente já existe. Gostaria de lembrar-lhe, mais uma vez,Heidegger, 169 principalmente de “A origem da obra de arte”,1onde ele se refere ao Rifl (sulcar, talhar, os desenhos de entalhe). Trata-se de um Rifl que deve ser pensado em sua acepção original, independente de certas modificações, como Grundrifi (planta baixa), Aufrifl (corte vertical) ou Skizze (esboço). Na arquitetura há uma imitação do Rifl, da gravura, da ação de talhar, que deve ser associada à escritura. Daí se origina a tentativa por parte da arquitetura moderna e pós-moderna de criar um modo de vida distinto, que não mais se ajuste às antigas circunstâncias, a partir do qual o projeto não vise à dominação e ao controle das comunicações, da economia, do transporte etc. Uma relação completamente nova vem aflorando entre a superfície - o desenho - e o espaço - arquitetura. O problema dessa relação sempre foi muito importante. Para discutir a questão da impossibilidade de uma objetivação absoluta, passemos agora do tema do labirinto para o da Torre de Babel. Também aí o céu deve ser conquistado por meio de um ato de denominação que permanece indissociavelmente ligado à linguagem natural. Uma tribo, os semitas, cujo nome sig¬ nifica “nome”, uma tribo, portanto que se chama “nome”, pretende construir uma torre que supostamente atingirá o céu, como dizem as Escrituras, com o propósito de fazer o seu próprio nome. Essa conquista do céu, esta ocupação de um lugar no céu,2 significa dar a si mesmo um nome e, com esse poder, com o poder do nome, da altura da metalinguagem, conseguir dominar as outras tribos, as outras línguas, isto é, colonizá-las. Mas Deus desce do céu e estraga todo o empreendimento ao pronunciar uma palavra: Babel. E essa palavra é um nome que se assemelha a um substantivo que significa confusão.3 Com essa palavra, Deus condena os homens à diversidade das línguas. E, desse modo, eles devem renunciar ao seu projeto de dominação a partir de uma língua pretensamente universal. O fato de que essa intervenção na arquitetura, com uma construção que também é uma des-construção, represente o fracasso ou a limitação imposta sobre uma lingua¬ gem universal para impedir um plano de dominação política e linguística do mundo nos informa sobre a impossibilidade de controlar a multiplicidade das línguas, sobre a impossibilidade da existência de uma tradução universal. Significa também que a construção da arquitetura sempre permanecerá labiríntica. Não se trata de renunciar a um ponto de vista em favor de outro, que seria único e absoluto, mas de encarar a diversidade de possíveis pontos de vista. Se a torre de Babel tivesse sido concluída, não haveria arquitetura. Somente a im¬ possibilidade de completá-la tornou possível à arquitetura, assim como à multidão de línguas, ter uma história. Essa história deve ser sempre compreendida com relação a um ser divino que é finito. Talvez uma das características do pós-modernismo seja a de levar em conta esse fracasso. Se o modernismo se distingue pelo esforço para con¬ seguir um domínio absoluto, o pós-modernismo poderia ser a realização ou a experiên¬ cia de seu final, o final do projeto de dominação. O pós-modernismo poderia então 170 desenvolver uma nova relação com o divino,que não se manifestaria mais nas formas tradicionais das divindades gregas, cristãs ou outras,mas que,mesmo assim, mostra¬ ria as condições para o pensamento arquitetônico. Talvez não exista um pensamento arquitetónico, mas, se ele existisse, só poderia se expressar na dimensão do Elevado, do Supremo, do Sublime. Vista dessa forma, a arquitetura não é uma questão de es¬ paço, mas uma experiência do Supremo, que não seria superior, mas, de certo modo, seria mais antiga que o espaço e,como tal,é uma espacialização do tempo. EM: Essa "espacialização" poderia ser pensada como uma concepção pós-moderna de um processo que envolve o sujeito em sua maquinação a ponto de ele não mais se reconhecer nela? Como poderíamos entendê-la como uma técnica se ela não implica mais uma recon¬ quista, uma dominação? )D: Todas as questões que abordamos até agora chamam a atenção para o problema da doutrina e esta só pode ser compreendida dentro de um contexto político.Por exemplo, como é possível desenvolver uma nova faculdade inventiva que permita ao arquiteto utilizar as possibilidades da nova tecnologia sem que ele aspire à uniformidade, sem que ele venha a desenvolver modelos para o mundo inteiro? Como se poderia desen¬ volver uma faculdade inventiva da diferença arquitetônica,que gerasse um novo tipo de diversidade, com outros limites,outras heterogeneidades,para além das existentes, e que não pudesse ser reduzida a uma técnica de planificação? Há no Collège International de Philosophic um seminário em que filósofos e ar¬ quitetos trabalham em conjunto, porque se tornou evidente que o plano do instituto deve ser também um empreendimento arquitetônico. O Collège não pode ter lugar se não for possível encontrar um lugar, uma forma arquitetônica para ele, que tenha alguma semelhança com aquilo que pode ser pensado dentro dele. O Collège deve ser habitável de um modo completamente diferente de uma universidade. Até agora, não temos nenhum edifício para o Collège. Pega-se um espaço aqui,uma sala ali,mas como arquitetura, o Collège não existe ainda e, quem sabe, talvez nunca venha a exis¬ tir. Há um desejo informe por uma outra forma. O desejo de um local novo, de novas arcadas,novos corredores,novos modos de morar e de pensar. Isso é uma promessa. E, quando disse que o Collège ainda não existe como ar¬ quitetura, quero dizer que talvez não exista ainda a comunidade para tal e, por esse motivo, o lugar não se constitui. É preciso que uma comunidade assuma o compro¬ misso e se empenhe em dar lugar a um pensamento arquitetônico.Começa a esboçar- se nova relação entre o individual e o comunitário, entre o original e a reprodução. Pensemos, por exemplo, na China e no Japão, onde os templos são construídos de madeira e periodicamente renovados por completo sem que o seu caráter original se perca, já que este obviamente não está em seu corpo sensível, mas em alguma coisa diferente. Isso também é Babel: a diversidade de relações com o fato arquitetônico de 171 uma cultura para outra. Saber que uma promessa continua a ser empenhada, ainda que ela não se mantenha em sua forma visível. Lugares em que o desejo se pode reco¬ nhecer e habitar. (“Architecture Where Design Can Live: Jacques Derrida Interviewed by Eva Meyer” foi extraído de Domus n. 671, abr. 1986, pp. 17-24. Republicado com autorização do autor e do editor.] 1. Publicado em 1950, Der Ursprung ties Kunstwerk é fruto de três conferências realizadas por Heidegger em 1936. Em português, M. Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa, Edições 70, 1990. (N.R.T.) 2. No hebraico, rosh , isto é,chefe, cabeça, início, [N.T.] 3. Balai quer dizer misturar, confundir, [N.T.] BERNARD TSCHUMI . ARQUITETURA E LIMITES I Em 1980 e 1981, a revista nova-iorquina de arte ArtForum publicou uma série de três números especiais sobre arquitetura, organizados e apresentados por Bernard Tschumi.' A maior parte dos artigos da série "Arquitetura e limites" foi escrita por autores que participam desta coletânea, como Peter Eisenman, Rem Koolhaas, An¬ thony Vidler, Raimund Abraham e Kenneth Frampton. Em uma breve introdução, Tschumi resume as principais questões teóricas em debate naquele momento: qual a característica peculiar ou a essência da ar¬ quitetura como disciplina? Será o uso (função) ou o processo de construção? Como se determinam as fronteiras da arquitetura? É verdade que temos de escolher entre 0 genius loci e o Zeitgeist, como preconizam os fenomenólogos e os historicistas (caps. 4 e 9), ou a escolha deve se dar antes entre as preocupações sociais e a autonomia? (cap. 8) Um tema reiterado nos três ensaios introdutórios, e que os torna relevantes para a teoria e o projeto contemporâneos, é a crítica do formalismo. Em "Arquitetura e limites I", Tschumi defende uma atitude de resistência ao "estreitamento da arquitetura como forma de co¬ nhecimento a uma arquitetura que é mero conhecimento da forma". Para ele, a teoria e a crítica contemporâneas são, de modo geral, reducionistas e condicionadas por "ideologias" como o formalismo, o funcionalismo e o racionalismo. O uso do conceito de limite no título da série é significativo. Tschumi explica no pri¬ meiro ensaio que "os limites são áreas estratégicas da arquitetura", são a base a partir da qual se pode empreender uma crítica das condições existentes. Essa ideia é fundamental para a reflexão pós-estruturalista e desconstrucionista, uma vez que ambas propõem que os conteúdos marginais (de textos ou de disciplinas) são mais importantes do que a sua localização sugere. Isso implica dizer que com esforços cuidadosos é possível trazer à o 'S- ra 0) tf) 0 a 03 172 luz os conteúdos reprimidos de uma obra e atingir uma nova interpretação. Tschumi re¬ comenda que se use esse enfoque crítico para contestar as atitudes "reducionistas" que operam no sentido de eliminar as diferenças e atacar as obras de fronteira. As histórias da arquitetura que se baseiam em uma concepção linear da relação entre causa e efeito são exemplos do pensamento reducionista. Ele sustenta que, sem limites, a arquitetura não poderia existir: "Cancelar os limites [...] é cancelar toda a arquitetura". Mas esses limites, apesar de necessários, parecem um convite à transgressão, o que Tschumi descreve como uma prática crítica válida. Uma das afirmações mais controvertidas de Tschumi, desenvolvida mais longamente em "O prazer da arquitetura" (cap. 13), é que, estritamente falando, a utilidade pode não ser necessária para a arquitetura, ainda que, segundo ele, a utilitas seja um componente da construção. Só que ele estabelece uma distinção entre construção e arquitetura com base no papel do desenho em cada uma: enquanto a arquitetura depende da existência de desenhos e textos, a construção não precisa disso. Mais ainda, a arquitetura vai além da construção para tornar-se conhecimento. Muitos de seus contemporâneos pós-modernos também mobilizam essa diferença entre construção e arquitetura. O artigo "Arquitetura e limites II" retoma alguns aspectos da tradição da disciplina para determinar se eles restringem o desenvolvimento da arquitetura, e "Arquitetura e limites III" focaliza as novas definições do programa em arquitetura. ]1. Na época, a revista tinha uma perspectiva interdisciplinar e teórica, tendo publicado, por exemplo,os importantes artigos do teórico pós-moderno Jean-François Lyotard sobre o sublime e a arte moderna, relacionado em minha bibliografia. BERNARD TSCHUMI Arquitetura e limites I Nas obras de escritores, artistas ou compositores notáveis por vezes encontramos ele¬ mentos desconcertantes localizados à margem de sua produção, no seu limite. Esses elementos perturbadores e sem caráter destoam da atividade regular do artista. Con¬ tudo, essas obras muitas vezes revelam excessos e códigos ocultos que sugerem outras definições, outras interpretações. O mesmo pode ser dito de gêneros inteiros da produção artística: certos trabalhos estão no limite da literatura, no limite da música, no limite do teatro. Tais situações 173 extremas nos informam sobre o estado da arte, sobre seus paradoxos e contradições. Mas as obras continuam a ser exceções, já que parecem dispensáveis - um luxo no campo do conhecimento. Na arquitetura,essas obras “de limite” são não apenas historicamente frequentes, mas também indispensáveis: a arquitetura simplesmente não existe sem elas. Por exemplo, não há arquitetura sem desenho,da mesma forma que não há arquitetura sem textos. Edifícios já foram construídos sem desenhos, mas a arquitetura em si mesma vai além do processo de construção. As complexas demandas culturais, sociais e filosóficas que se desenvolve¬ ram ao longo dos séculos fizeram da arquitetura uma forma de conhecimento em si e por si. Da mesma maneira que cada forma de conhecimento usa modos diferentes de discurso, há também importantes expressões arquitetônicas que, apesar de não necessariamente construídas, nos informam com muito mais exatidão sobre a situação da arquitetura,suas preocupações e suas polêmicas, que os próprios edifícios de seu tempo. As gravuras de [Giovanni Battista] Piranesi sobre os cárceres, as aguadas de monumentos de [Étienne- Louis] Boulée influenciaram drasticamente o pensamento e a prática da arquitetura. O mesmo pode ser dito de certos textos e proposições teóricas sobre arquitetura. O que por certo não exclui o domínio do construído, posto que pequenas obras de natureza experi¬ mental muitas vezes viriam a cumprir um papel semelhante. Ora celebrados, ora ignorados, essas obras de limite frequentemente constituem casos isolados em meio à produção comercial dominante, até porque o comércio não pode ser ignorado numa profissão cuja escala envolve clientes cautelosos e capitais cuidadosamente investidos. Assim como a pista secreta em um romance policial, essas obras são essenciais. De fato, o conceito de limites está diretamente relacionado com a própria definição da arquitetura. Que significa “definir” senão “determinar a fronteira ou os limites de”, assim como “estabelecer a natureza essencial de”?1 No entanto, a popularidade atual do debate arquitetônico e a disseminação de seus desenhos em outros domínios do saber muitas vezes mascararam esses limites, direcionando a atenção unicamente para os aspectos mais óbvios da disciplina e redu¬ zindo-a a uma visão Fountainhead 2 do heroísmo decorativo - uma postura que re¬ duz os interesses da arquitetura a um dictionnaire des idées reçues e descarta as obras menos acessíveis, porém fundamentais, e pior ainda, deturpando-as ao associá-las a meras exigências do mercado publicitário. Esse fenômeno atual não é absolutamente novo. O século xx contém tantas polí¬ ticas reducionistas voltadas para a disseminação nos meios de comunicação de massa que atualmente dispomos de duas versões diferentes da arquitetura produzida neste século. Uma, a versão maximalista, voltada para as questões sociais, culturais, políti¬ cas e programáticas mais gerais; a outra, a versão minimalista, concentra-se em fato¬ res como estilo, técnica e outros. Mas será que temos mesmo de optar entre essas duas versões? Será que devemos excluir projetos mais rebeldes e audaciosos como os de 174 [Konstantin] Melnikov ou de [Hans] Poelzig, por exemplo, em nome da preservação da coerência estilística do movimento moderno? Afinal de contas, essas exclusões são táticas arquitetônicas usuais.O movimento moderno iniciou seu ataque à Beaux-Arts na década de 1920, por meio de interpretações taticamente depreciativas da arquite¬ tura do século xix. Da mesma forma, os defensores do Estilo Internacional reduziram os interesses radicais do movimento moderno a maneirismos iconográficos homo¬ geneizados. Hoje, as vozes mais representativas da arquitetura pós-moderna fazem a mesma coisa, só que às avessas. Centrando seus ataques no Estilo Internacional, elas criam polêmicas divertidas e um jornalismo cáustico, mas trazem muito pouca coisa de novo a um contexto cultural que há muito já incorporou as mesmas alusões histó¬ ricas, os mesmos signos ambíguos e a mesma sensualidade que hoje expõem. 0 pensamento arquitetônico não é uma simples questão de opor o Zeitgeist ao ge¬ nius loci, de opor questões conceituais a questões alegóricas ou alusões históricas a uma pesquisa purista. Infelizmente, a crítica arquitetônica ainda é um campo muito pouco desenvolvido. Apesar de sua popularidade atual na mídia, a crítica em geral se¬ gue uma linha tradicional, em torno dos perfis “pessoais” e da “praticidade” das obras. Falta uma crítica temática séria, a não ser nas publicações mais especializadas. O pior de tudo é a parcialidade dos críticos quanto às interpretações reducionistas correntes e a tendência a supor que a pluralidade de estilos contribui para a complexidade do pensa¬ mento. Por isso não surpreende a ausência quase total de uma crítica mais consistente a respeito da frivolidade atual da arquitetura e do noticiário arquitetônico.“Os limites além dos quais algo deixa de ser possível ou permissível”3 foram a tal ponto estreitados que hoje deparamos com um conjunto de reduções altamente prejudiciais ao campo de ação da disciplina. O estreitamento da arquitetura como forma de conhecimento a uma arquitetura de mero conhecimento da forma só é comparável à derrocada das genero¬ sas estratégias de pesquisa em relação às táticas operacionais dos corretores políticos. A confusão atual torna-se clara tão logo se distingue, em meio às bienais de Veneza e Paris, nas publicações de massa ou em outras celebrações públicas do debate arquite¬ tônico, uma disputa internacional entre essa visão estreita da história da arquitetura e as pesquisas acerca da natureza e definição da disciplina. O conflito não é mera dialética, mas um conflito real que corresponde, no plano teórico, a batalhas práticas e cotidianas que se travam no interior dos novos mercados de trivialidades arquitetônicas, dos ve¬ lhos establishments corporativos e da ambiciosa intelectualidade universitária. Essas batalhas táticas já existiam no modernismo, que geralmente as ocultava por trás de ideologias reducionistas (formalismo, funcionalismo, racionalismo). A coe¬ rência que essas ideologias pressupunham revelou-se plena de contradições. Mas isso não é motivo para novamente despojar a arquitetura de suas preocupações sociais, espaciais e conceituais, e reduzir os seus limites a um território de “argúcia e ironia”, “esquizofrenia consciente”,“códigos duais” e “frontões interrompidos”. 175 As reduções também se dão de forma menos óbvia. O fascínio que os assuntos ar¬ quitetônicos despertaram no mundo das artes, evidenciado pela quantidade obsessiva de “referências arquitetônicas” e exposições de “escultura arquitetônica”, é equiva¬ lente à voga recente entre arquitetos de divulgar o seu trabalho em galerias renoma- das. A única utilidade de tais obras é nos informar sobre a natureza mutável da arte. Invejar a “utilidade” da arquitetura ou, reciprocamente, invejar a liberdade do artista, em ambos os casos, demonstra ingenuidade e entendimento equivocado do trabalho do arquiteto e do artista. Se o ato de construir tem uma relação com a utilidade, a arquitetura não o tem necessariamente. Chamar de arquitetônicas as esculturas que se apropriam superficialmente do vocabulário dos frontões e escadas é tão simplório quanto chamar de pinturas as insípidas aquarelas de certos arquitetos ou os desenhos em perspectiva de firmas imobiliárias. Essa inveja recíproca toma por base os limites estreitos de interpretações antiqua¬ das sobre arte e arquitetura, como se cada disciplina tivesse uma atração inexorável pelos textos mais conservadores da outra. No entanto, as vanguardas dos dois campos às vezes desfrutam de uma sensibilidade comum, mesmo que os seus termos de refe¬ rência sejam inevitavelmente distintos. Cabe notar que os desenhos arquitetônicos são, na melhor das hipóteses, um modo de trabalhar e de pensar a arquitetura, e que, por natureza, em geral se referem a algo que está/ora deles (ao contrário dos desenhos ar¬ tísticos que remetem unicamente a si mesmos, a sua materialidade e procedimentos). Voltemos à história. A tese da pseudocontinuidade da história da arquitetura,com seus momentos cuidadosamente determinados de ação e reação, apoia-se num enten¬ dimento precário da história em geral e da história da arquitetura em particular.Afinal de contas, a história da arquitetura não é linear e certas obras fundamentais não estão de modo algum aprisionadas a continuidades artificiais.Se a corrente dominante entre os historiadores descartou inúmeras obras por considerá-las “arquitetura conceituai”, “arquitetura de papelão”, espaços “poéticos” ou “narrativos”, chegou a hora de questio¬ nar sistematicamente as suas estratégias reducionistas. Colocá-las em questão não é simplesmente exaltar o que essas estratégias rejeitam. Ao contrário, significa entender o que as atividades de fronteira escondem e encobrem. Esse tipo de história e de refle¬ xão crítica e analítica ainda está por se realizar. Não como um fato marginal (de poetas, visionários ou, pior, de intelectuais), mas como um fenômeno crucial para a natureza da arquitetura. REPRESENTAÇÃO Chamei de “reducionistas” as atitudes que negam as diferenças e os limites. Anular os limites (por meio do pluralismo, por exemplo) é anular toda a arquitetura, porque esses limites são as áreas estratégicas da arquitetura. Vimos que os desenhos arqui- 176 tetônicos geralmente fazem referência a algo fora deles, diferentemente dos desenhos que remetem apenas a si mesmos. Uma distinção semelhante ocorre em outro nível no interior da arquitetura, quando a questão é se a arquitetura construída se refere a um significado expressivo ou a um conteúdo simbólico exterior, ou se ela fala somente de si mesma, de sua natureza e de sua condição intrínseca. A pergunta diz respeito, ob- viamente, à representação. Este primeiro artigo de uma série da ArtForum apresenta duas obras essenciais: um grupo de desenhos de John Hedjuk e uma exposição das ideias de Anthony Vidler. John Hedjuk trabalha tanto com os elementos da linguagem da arquitetura como com os seus meios de representação. Levando-os aos seus respec- tivos limites, Hedjuk sugere várias correlações arquetípicas entre materiais, função e representação. As análises de Anthony Vidler inauguram um campo metodológico em que a história das ideias,a história da linguagem e a história das ciências se cruzam e se misturam com a história da arquitetura. Ao lado de algumas outras,cada qual à sua maneira, as ideias de Vidler contribuíram significativa e continuamente para que “as coisas possuam, no grau máximo possível, uma qualidade ou atributo”,4 para que redefinam constantemente os limites que influenciam o desenvolvimento do pensa¬ mento arquitetônico, de modo a não “levá-lo a um fim”.5 (“Architecture and Limits i” foi extraído de Artforum 19, n. 4, dez. 1980, p. 36. Republicado com autorização do autor e da editora.] 1. “Definir”, Oxford English Dictionary. 2. The Fountainhead é um famoso romance de Ayn Rand, cujo protagonista é um brilhante arqui¬ teto, Howard Roark, que ousa enfrentar sozinho a hostilidade de espíritos medíocres e sem originalidade. Publicado em 1943, o romance, que foi um sucesso de vendas, faz uma defesa apaixonada do individualismo e do potencial criativo das pessoas, [N.T.] 3. “Limite”, Oxford English Dicionary. 4. Ibid.,“limite”. 5. Ibid.,“definir”. ! BERNARD TSCHUMI . ARQUITETURA E LIMITES II Este é 0 segundo de uma série de três ensaios publicados em Artforum entre dezembro de 1980 e setembro de 1981. Em "Arquitetura e limites II", Bernard Tschumi procura definir os limites da disciplina ao indagar se escala, proporção, si¬ metria, composição, forma/função, tipos ideais/organização programática ou a tríade vitruviana são os temas que delimitam a arquitetura. No artigo, Tschumi afirma que esses elementos tanto podem ser essenciais à arquitetura como suscetibili¬ dades que devem ser ultrapassadas. Ele examina detalhadamente cada um dos três 177 princípios vitruvianos da comodidade (commoditas), "estabilidade estrutural" ( firmitas) e beleza (venustas), concluindo que a beleza desapareceu, a estrutura já não limita a arquite¬ tura e as atitudes relativas à comodidade do corpo no espaço mudaram. Todo o restante do ensaio dedica-se precisamente ao tema do corpo no espaço. Em comentários incisivos, Tschumi critica as ideias modernas sobre a "honesti¬ dade dos materiais" e a nostalgia pós-moderna pelas sacadas (poché) e paredes ma¬ ciças. No ensaio anterior, "Arquitetura e limites I", o autor afirmara que essas preocu¬ pações tectônicas ou mesmo "construtivas" não são cruciais para a arquitetura. Neste, ele propõe que uma forma alternativa de considerar a "materialidade da arquitetura [...] está em seus sólidos e vazios, em suas sequências espaciais, articulações e colisões". Tal possibilidade poética ressalta o aspecto coreográfico da experiência corporal da ar¬ quitetura, que Tschumi descreve algumas vezes como "cinemática", a fim de salientar o movimento e a dimensão temporal. Central em sua proposição da arquitetura "como evento" é a ideia de que os corpos constroem o espaço por meio do movimento. Por exemplo, os espetáculos e as festividades, que reúnem um grande número de pessoas, criam visivelmente uma mudança na condição espacial das ruas da cidade. Tschumi fala com entusiasmo sobre o espaço, que define de várias maneiras, como espaço físico, social e mental. As suas concepções de espaço e lugar (ver Derrida, neste capítulo) têm poucas relações com a dos fenomenólogos, como Christian Norberg-Schulz, que promovem o conceito de lugar para neutralizar as deficiências do espaço modernista. Para Tschumi, o problema não é propriamente o espaço, mas a sua programação em ter¬ mos de função e não como evento. Os conhecimentos de Tschumi sobre teoria linguística, pós-estruturalismo e psica¬ nálise evidenciam-se aqui em sua tentativa de definir uma arquitetura interdisciplinar. Mas a conexão que ele propõe entre beleza e linguística estrutural não fica muito clara, como também não é clara a pretendida relação entre os pares pensamento-espaço e teórico-prático. Este último é discutido mais detidamente em "Questions of Space"' no que diz respeito ao modo como a arquitetura reúne os opostos concepção e experiência, material e imaterial. O conjunto de sua obra construída, cada vez mais extensa, visa fun¬ dir noções teóricas e experiência espacial. Objetivo para o qual, segundo Tschumi, con¬ correm os "eventos, desenhos e textos [que) expandem as fronteiras das construções socialmente justificáveis". ]1. Bernard Tschumi, "Questions of Space". Studio International 190, n. 977, set.-out. 1975, pp. 136-142. 178 BERNARD TSCHUMI Arquitetura e limites II Os limites da arquitetura são variáveis: cada década possui os seus temas ideais e os seus próprios modismos confusos. Mas cada uma dessas mudanças e digressões pe¬ riódicas suscita uma mesma questão: será que existem temas recorrentes, constantes especificamente arquitetônicas ou, ainda que permanentemente em pesquisa, uma arquitetura de limites? Ao contrário de outras disciplinas, a arquitetura raramente apresenta um conjunto coerente de conceitos - uma definição - que evidencie tanto a continuidade de suas questões como as fronteiras muito sensíveis em suas atividades. Existem, contudo, uns poucos aforismos e preceitos que a literatura sobre arquitetura vem transmitindo ao longo dos séculos. Noções como as de “escala”, “proporção”, “simetria” e “com¬ posição” possuem conotações arquitetônicas específicas. A relação entre a abstração do pensamento e a substância do espaço - a distinção platónica entre o “teórico” e o “prático” - é constantemente relembrada; perceber o espaço arquitetônico de um edi¬ fício é perceber algo-que-foi-concebido. A oposição entre forma e função, entre tipos ideais e organização programática é igualmente recorrente, ainda que os dois termos tendam cada vez mais a ser considerados independentes. Uma das equações mais persistentes da arquitetura é a trilogia vitruviana de ve- nustas,firmitas, utilitas -“aparência atraente”,“estabilidade estrutural”,“acomodação espacial adequada”. Essa trilogia foi repetida obsessivamente ao longo de séculos de preceitos arquitetônicos,embora nem sempre nessa ordem.Serão essas possíveis cons¬ tantes arquitetônicas os limites intrínsecos sem os quais a arquitetura não existe? Ou sua permanência é a consequência de um mau hábito mental, de uma preguiça inte¬ lectual que persiste através da história? Será que a mera persistência confere a elas vali¬ dade? E,se não for esse o caso, terá a arquitetura capacidade de deslocar os limites que a definem há tanto tempo? 0 século xx rompeu com a trilogia vitruviana porque a arquitetura não podia conti¬ nuar insensível à industrialização e ao questionamento radical das instituições (fossem elas a família,o Estado ou a Igreja) na virada do século.O primeiro termo da tríade-aparência atraente (beleza) - desapareceu paulatinamente do vocabulário à medida que a linguística estrutural se apoderou do discurso formal do arquiteto. Mas, de início, a semiótica arquite¬ tônica apenas se apropriou dos códigos peculiares aos textos literários para aplicá-los aos espaços urbanos ou arquitetônicos, deste modo inevitavelmente permanecendo descritiva. Inversamente, as tentativas de construir novos códigos representaram a redução do edifício 179 a uma“mensagem” e o seu uso a uma “leitura”. Boa parte da atual voga das citações de sím¬ bolos arquitetônicos do passado procede dessas interpretações simplistas. Recentemente, pesquisas mais sérias vêm aplicando a teoria linguística à arquite¬ tura,acrescentando um arsenal de conceitos, como seleção e combinação, substituição e contextualização, metáfora e metonímia, similaridade e contiguidade, segundo a ter¬ minologia de (Roman] Jakobson, [Noam] Chomsky e (Émile) Benveniste. Embora a sua manipulação exclusivamente formalista tenda a se esgotar se novos critérios não forem introduzidos de modo a possibilitar a inovação,os seus excessos podem muitas vezes vir a lançar uma nova luz sobre as fronteiras fugidias da “prisão” da linguagem arquitetónica.1 No limite, essa pesquisa introduz uma preocupação relativa à noção de “sujeito” e com o papel da “subjetividade” na linguagem,diferenciando a linguagem como um sistema de signos da linguagem como um ato individualmente realizado. O interesse pelo segundo conceito - a estabilidade estrutural - parece ter desa¬ parecido durante a década de i960, sem que ninguém se desse conta ou o tivesse dis¬ cutido. Vigorava então o consenso de que tudo podia ser construído, contanto que se pudesse pagar os seus custos. E o interesse com relação à estrutura sumiu do rol das conferências e minguou no âmbito das revistas e cursos de arquitetura. Afinal de contas, quem está interessado em salientar que as pilastras dóricas do historicismo corrente são feitas de compensado de madeira pintada ou que os ornatos aplicados sobre paredes cegas visam conferir-lhes alguma substância metafórica? A progressiva redução da massa volumétrica das construções ao longo de séculos representou para os arquitetos a possibilidade de compor, decompor e recompor volu¬ mes arbitrariamente, segundo leis formais e não estruturais.O interesse do modernismo pelo efeito das superfícies privou ainda mais os volumes de sua substância material.Hoje, a matéria dificilmente entra na substância das paredes, que foram reduzidas a placas de gesso ou de vidro, que mal permitem distinguir o lado de fora do lado de dentro. Esse fe¬ nômeno provavelmente não se inverterá e as razões dos que pregam o retorno à “hones¬ tidade dos materiais”,ou às paredes maciças em poché, geralmente são mais ideológicas do que práticas. Mas é preciso notar que toda preocupação com a substância material tem implicações que vão além da mera estabilidade estrutural. A materialidade da arqui¬ tetura, afinal de contas, está em seus sólidos e vazios, em suas sequências espaciais, suas articulações e colisões. (Uma observação de passagem: alguns dirão que a preocupação com a conservação de energia substituiu a preocupação com a construção. Pode ser. As pesquisas sobre a conservação, passiva e ativa, de energia, energia solar e reciclagem de água, certamente desfrutam uma notável popularidade, mas não afetam em muito 0 vo¬ cabulário geral das casas ou das cidades.) O único juiz competente sobre o último termo da trilogia,“acomodação espacial ade¬ quada”,é, naturalmente,o corpo,o seu corpo,o meu corpo-o ponto de partida e 0 ponto de chegada da arquitetura.A concepção cartesiana do corpo-como-objeto foi contraposta 180 pda visão fenomenotógica do corpo-como-sujeito c a materialidade e a lógica do corpo seopuseram à materialidade e à lógica dos espaços. Do espaço do corpo para o corpo-no- espaço - a passagem é intricada. E esse deslizamento, a brecha na obscuridade do incons¬ ciente, algum lugar entre o corpo c o Ego, entre o Ego c o Outro (...) A arquitetura ainda não começou a analisar as descobertas vienenses da virada do século,se é que algum dia a arquitetura virá a informar a psicanálise mais do que esta informou a arquitetura. O cheiro penetrante de borracha, de concreto, de carne; o gosto da poeira; o ro¬ çar desconfortável do cotovelo sobre uma superfície abrasiva; a sensação prazerosa de paredes felpudas e a dor de esbarrar em uma quina no meio da escuridão; o eco de um salão - o espaço não é simplesmente a projeção tridimensional de uma repre¬ sentação mental, mas ó algo que se ouve e no qual se age. E éo olho que enquadra - a janela, a porta, o ritual efémero da passagem (...). Espaços de movimento - corre¬ dores, escadas, rampas, passagens, soleiras; é aí que começa a articulação entre o espaço dos sentidos e o espaço da sociedade, as danças e os gestos que combinam a representação do espaço e o espaço da representação. Os corpos não somente se movem para o seu interior, mas produzem espaços por meio e através de seus mo¬ vimentos. Movimentos - de dança, esporte, guerra - são a intromissão dos eventos nos espaços arquitetónicos. No limite, esses eventos se transformam em cenários ou programas, esvaziados de implicações morais ou funcionais, independentes porém inseparáveis dos espaços que os encerram. Assim, emerge uma nova formulação da velha trilogia, que, de certo modo, se sobrepõe aos termos originais, mas os amplia em outras direções. Distinções podem ser estabelecidas entre espaços mentais, fí¬ sicos e sociais, ou, dito de outra forma, entre a linguagem, a matéria e o corpo. É certo que essas distinções são esquemáticas e, embora correspondam a categorias dc análise reais e convenientes (“o concebido”, “o percebido”, “o vivenciado”), levam a diferentes abordagens e diferentes modos dc notação arquitetônica. Há uma evidente mudança no status da arquitetura, em sua relação com a sua lin¬ guagem,os materiais que a compõem,e com os indivíduos ou sociedades. A pergunta écomo os três termos se articulam, e como se relacionam uns com os outros no âm¬ bito contemporâneo da prática arquitetônica. Como o modo de produção da arqui¬ tetura alcançou um estágio avançado de desenvolvimento, também é evidente que já não é mais preciso aderir estritamente às normas linguísticas, funcionais ou materiais; podendo-se distorce-las à vontade. Finalmcnte,o papel de incidentes isolados - tantas vezes descartados no passado - evidencia que a natureza da arquitetura nem sempre se encontra na construção. Eventos,desenhos, textos, expandem as fronteiras de constru¬ ções socialmentc justificáveis. As mudanças recentes são profundas e ainda mal compreendidas. Dc modo ge¬ ral,os arquitetos acham difícil aceitá-las, posto que intuitivamente percebem,como de praxe, que o seu ofício atravessa drásticas transformações. O historicismo arquitetô- 181 nico vigente é ao mesmo tempo parte e consequência desse fenômeno- tanto um sinal de medo como um sinal de fuga. Até que ponto essas explosões, essas mudanças nas condições da produção de arquitetura deslocam os limites das atividades arquitetônicas a fim de se adequarem a tais mutações? TRÊS LIMITES Na Europa e nos Estados Unidos, algumas obras são sintomáticas dessas mudanças recentes. Censuradas ora por sua falta de praticidade, ora por sua iconoclastia, ora por fugirem aos padrões da prática arquitetônica, essas obras são a um só tempo conse¬ quências objetivas e fatores de favorecimento dessas transformações. Não se trata de uma questão de“estilo” ou de“geração”. Elas não estimulam imitadores e adesões cegas propondo “como projetar uma casa”, ou “como reconstruir a cidade”, por meio de re¬ gras simples e instruções claras. Ao contrário, cada uma pretende à sua maneira fazer recuar os limites que a arquitetura se impôs a si mesma. A série fundamental de dese¬ nhos arquitetônicos de Raimund Abraham explora os choques entre fronteiras, oposi¬ ções entre o dentro e o fora, entre o vazio e o sólido,o artificial e o natural. As “colisões” irónicas que mostramos adiante jogam ao mesmo tempo com a força das massas e a sensualidade dos contrastes. A pesquisa de Peter Eisenman sobre a natureza da arqui¬ tetura e a sua linguagem é fundamental: preenche uma lacuna e explora os extremos. Os excertos dos diagramas transformacionais das casas apresentados neste artigo2 são apenas uma parte de um conjunto bem maior de estudos e escritos teóricos. O papel de Kenneth Frampton como historiador crítico enfatiza as circunstâncias culturais e sociais da arquitetura.Sua polêmica fragmentária sobre o corpo incide sobre uma área quase “proibida” no campo do pensamento arquitetônico. [“Architecture and Limits II” foi publicado originalmente em Artforum 19, n. 7, março de 1981, p. 45. Republicado com autorização do autor e da editora.) 1. Fredric Jameson, Prison House of Language. Princeton: Princeton University Press, 1972. 2. Refere-se à edição original, da Artforum. [N.E.] 182 BERNARD TSCHUMI . ARQUITETURA E LIMITES III Neste terceiro e último ensaio da série publicada pela Artforum, Bernard Tschumi volta ao tema da forma e do conteúdo, que, em arquitetura, geralmente se traduz na oposição entre forma e função. Tschumi afirma que nem o modernismo nem o historicismo pós-moderno (que ele claramente hostiliza, haja vista o epíteto de "falsa polêmica" com que o qualifica) trataram do problema da função ou das "preo¬ cupações programáticas". Tanto o modernismo como o pós-modernismo aborda¬ ram exclusivamente a manipulação estilística ou formal, com base na concepção da obra arquitetônica como objeto. "A forma ainda segue a forma, só o significado e o quadro de referência diferem." Após uma análise da resposta da arquitetura à necessidade de novos tipos construti¬ vos no século XIX, Tschumi descreve um recurso a "fatores de mediação, como os tipos- ideais". Entre outras coisas, isso o leva a concluir: "Não havia nenhuma relação causal necessária entre a função e uma forma subsequente, ou entre um determinado tipo cons¬ trutivo e um determinado uso". Uma comparação muito interessante pode ser feita entre este ensaio e o editorial de Peter Eisenman "Pós-funcionalismo" (cap. 1), ao qual Tschumi parece referir-se no parágrafo inicial. Enquanto Eisenman concorda com a conclusão de Tschumi a respeito da ausência de conexão entre forma e função (desviando inclusive de seu caminho para testar essa ideia em seu próprio trabalho), em "Pós-funcionalismo" ele afirma que a maior complexidade progra¬ mática existente no século XIX impedia o emprego dos tipos. Assim, para Eisenman, a função dominava a forma, situação que uma verdadeira arquitetura moderna deveria considerar. Por volta de 1980, diz Tschumi, a função seria rejeitada pelos "neomodernistas" (inclu¬ sive por Eisenman), como um resíduo da tradição humanista, e pelos historicistas pós-moder- nos (que deveriam ser chamados de "neo-humanistas"), como parte da tradição modernista. Para ele, "as preocupações programáticas foram dispensadas tanto como resquícios do humanismo quanto como tentativas mórbidas de ressuscitar doutrinas funcionalistas já obsoletas". O motivo dessa dupla rejeição é que ambas as tendências pretendiam enaltecer o formalismo e excluir as preocupações sociais da agenda da arquitetura pós-moderna. Eisenman, entretanto, argumentaria que a sua motivação era trazer a arquitetura de volta às suas preocupações primeiras, internas (cap. 4). Opondo-se a essas duas concepções formalistas, a crítica de Tschumi visa substituir noções características do programa funcional do século XIX pela ideia de um programa ligado a um espetáculo ou a um evento. Tschumi sugere que não se deve conceber a ar¬ quitetura como um objeto (ou obra, em termos estruturalistas), mas como uma "interação do espaço com os eventos". Para ele, a aplicação da semiótica à arquitetura exacerbou o hábito de objetivar a obra singular como objeto, ignorando sua complexa "intertextuali- dade".1 Tschumi propõe que se veja a arquitetura como uma atividade humana ou como o «3 o- c © . 0) a . 183 um texto aberto, em termos pós-estruturalistas. Usando o exemplo dos espetáculos e festividades, o autor Imagina poder ver o corpo humano no centro das questões do espaço. A experiência do corpo que se move no espaço distingue a arquitetura da arte. Tschumi retoma o problema do corpo mats explícitamente em "O prazer da arquitetura" (cap. 13). O pós-estruturalismo de Tschumi é influenciado por Michel Foucault (ao adotar a ideia de "corte epistemológico", uma ruptura entre períodos descontínuos na história do saber) e pela desconstrução propugnada por Jacques Derrida O que o atrai no pós-estruturalismo e na desconstruçáo é que "I 1 põem em xeque a ideia de um conjunto unificado de ima¬ gens, a ideia de certeza e, é claro, a ideia de uma linguagem identificável".2 Não é necessário haver uma linguagem identificável, já que para ele a arquitetura nâo ilustra pensamentos Tschumi afirma que a ideia da arquitetura como ilustração é apenas maís uma das muitas interpretações reducionistas que a arquitetura deverá abandonar se pretender superar o modernismo. ]1. Essa ideia é tomada de empréstimo a Roland Barthes e Julia Kristeva: "intertextualidade" é umateia ou rede de relações entre os componentes de um signo, ou entre uma obra individual e asobras que a precedem ou a cercam, e das quais depende seu significado. 2. Bernard Tschumi, "Six Concepts", in Architecture and Disjunction. Cambridge: MIT Press, 1994, p. 87. BERNARD TSCHUMI Arquitetura e limites III Programa: informação descritiva, previamente preparada, sobre qualquer série formal de procedimentos, como uma cerimónia festiva, um curso acadêmico etc. [...], uma lista dos itens ou “númerosmusicais” deum concerto etc.,na ordem de execução;por extensão, o conjunto dos números musicais, o espetáculo como um todo [...].' Um programa arquitetônico é uma lista de requisitos utilitários; indica as suas rela¬ ções, mas não sugere nem a combinação nem a proporção entre eles.2 Discutir a noção de programa nos dias de hoje é entrar em um terreno proibido,um terreno que foi deliberadamente interditado há décadas pelas ideologias arquitetônicas. As preocupações programáticas foram dispensadas como resquícios do humanismo e como mórbidas tentativas de ressuscitar doutrinas funcionalistas já obsoletas. Essas 184 críticas são reveladoras porque sugerem uma crença enraizada num aspecto específico do modernismo: a primazia da manipulação formal em detrimento de considerações sociais ou utilitárias, uma primazia que mesmo a arquitetura pós-moderna atual se recusou a desafiar. Recordemos rapidamente alguns fatos históricos de base à noção de programa. Em¬ bora o desenvolvimento setecentista de técnicas científicas baseadas na análise estrutural e espacial já tivesse induzido os teóricos da arquitetura a considerar o uso e a construção como disciplinas separadas e, por isso, a enfatizar a pura manipulação da forma, a noção de programa continuou a ser por muito tempo um aspecto importante do processo ar¬ quitetônico. Implícita ou explicitamente relacionados com as necessidades do período ou do Estado, os requisitos aparentemente objetivos do programa em grande parte refletiam valores e culturas particulares. Foi o que se passou com os programas da Beaux-Arts para as“Cavalariças para um Príncipe Soberano”, de 1739, e para o “Festival Público para as Núpcias de um Príncipe”, de 1769. O crescimento da industrialização e da urbanização logo criaria os seus próprios programas. Lojas de departamentos, estações ferroviárias e galerias foram programas do século xix nascidos com o comércio e a indústria. Ge¬ ralmente complexos, esses programas não resultaram de imediato em formas precisas, e muitas vezes foi necessário buscar a mediação de fatores como tipos construtivos ideais, arriscando-se a uma completa disjunção entre“forma” e“conteúdo”. As primeiras críticas virulentas do movimento moderno às fórmulas vazias do academicismo condenaram essas disjunções juntamente com o conteúdo decadente da maioria dos programas da Beaux-Arts, vistos como pretextos para receituários re¬ petitivos de composição. Não se faziam críticas ao conceito de programa em si mesmo, e sim ao modo como ele refletia uma sociedade obsoleta. Ao contrário, nexos bastante estreitos entre novos conteúdos sociais, tecnologias e geometrias puras anunciavam uma nova ética funcionalista, que acentuava, num primeiro nível, a solução de pro¬ blemas em vez da sua formulação; isto é, que a boa arquitetura deveria originar-se do problema objetivamente peculiar do edifício, do local e do cliente, de um modo org⬠nico ou mecânico. Em um segundo nível, mais heroico, as pressões revolucionárias das vanguardas futurista e construtivista combinaram-se com as dos pensadores so¬ ciais utópicos do começo do século xix para criar novos programas.“Condensadores sociais”, cozinhas comunitárias, clubes de trabalhadores, teatros, fábricas, ou mesmo unités d'habitation correspondiam a uma nova visão da estrutura da sociedade e da família. De modo frequentemente ingénuo, acreditava-se que a arquitetura refletiria e ao mesmo modelaria a sociedade do futuro. Contudo, no início da década de 1930, um novo contexto social nos Estados Uni¬ dos e na Europa favoreceu a criação de novas formas e tecnologias em detrimento de preocupações programáticas. Por volta dos anos 1950, a base ideológica original da arquitetura moderna se esvaziara, em virtude,de certo modo,do virtual fracasso de 185 seus fins utópicos. Por outro lado, a arquitetura encontrou novas bases nas teorias do modernismo que se desenvolveram na literatura, na arte e na música. O princípio “a forma segue a forma” tomou o lugar de “a forma segue a função”, e logo se fizeram ouvir as críticas ao funcionalismo por parte dos neomodernistas, por razões ideológi¬ cas, e dos pós-modernistas, por razões estéticas. De todo modo, uma quantidade suficiente de programas conseguiu funcionar em edifícios concebidos para fins completamente diferentes, comprovando o argumento simples de que não havia nenhuma relação causal necessária entre uma função e uma forma subsequente, ou entre um dado tipo construtivo e um uso específico. Para os modernistas inveterados, quanto mais convencional fosse o programa, melhor; esses programas convencionais, com suas soluções fáceis, abriam espaço para a experimen¬ tação de estilo e linguagem, como fez Karl Heinz Stockhausen, que usou hinos nacio¬ nais como matéria-prima de transformações sintáticas. A academização do construtivismo, a influência do formalismo literário e o exem¬ plo da pintura e da escultura modernistas contribuíram para a redução da arquitetura a simples componentes linguísticos. A máxima de Clement Greenberg, de que o con¬ teúdo se dissolveu tão completamente na forma que as obras de arte ou de literatura não podem ser reduzidas no todo ou em parte a outra coisa senão a si mesmas [...] o assunto ou o conteúdo tornaram-se algo a ser evitado como uma praga quando apli¬ cada à arquitetura, excluiu ainda mais a reflexão sobre os usos. Finalmente, na década de 1970, a grande crítica modernista, que enfatizava as qualidades intrínsecas de obje¬ tos autónomos, aliou-se à teoria semiótica para fazer da arquitetura um simples objeto da poética. Mas a arquitetura não era diferente da pintura ou da literatura? Não poderiam 0 programa ou o uso fazer parte da forma, ao contrário de um assunto ou conteúdo? 0 formalismo russo não se diferenciava do modernismo de Greenberg justamente por¬ que, em vez de banir as considerações de conteúdo, jamais viria a contrapor forma e conteúdo, mas começara a percebê-los como a totalidade dos vários componentes da obra? O conteúdo também podia ser formal. Boa parte da teoria do modernismo arquitetônico (que surgiu principalmente nos anos1950 e não nos anos 1920) tinha em comum com o modernismo a busca da espe¬ cificidade da arquitetura, daquilo que era exclusivamente característico da arquitetura. Mas como essa especificidade foi definida? Ela incluía ou excluía o uso? É bem signifi¬ cativo que o desafio imposto pelo pós-modernismo arquitetônico às escolhas linguís¬ ticas do modernismo nunca tenha atacado seu sistema de valores. Discutir “a crise da arquitetura” em termos puramente estilísticos era uma falsa polêmica, uma manobra inteligente para dissimular a falta de preocupação com relação ao uso. Se não é irrelevante distinguir entre uma arquitetura autónoma e autorreferencial, que transcende a história e a cultura, e uma arquitetura que reflete precedentes histó- 186 ricos ou culturais e contextos regionais, é preciso notar que ambas remetem à mesma definição da arquitetura como manipulação formal ou estilística. A forma ainda segue a forma, apenas o significado e o quadro de referências são diferentes. A não ser pelos meios estéticos diversos, ambas concebem a arquitetura como um objeto de contempla¬ ção,facilmente acessível à percepção crítica,ao contrário da interação do espaço com os eventos,que normalmente não é objeto de comentários.Assim, paredes e gestos,colunas e figuras raramente são vistos como parte de um único sistema de significação. Aplica¬ das à arquitetura, as teorias da leitura geralmente são estéreis, porque reduzem a disci¬ plina a uma arte da comunicação ou a uma arte visual (o assim chamado código único do modernismo ou o código duplo do pós-modernismo), deixando de lado a “intertex- tualidade”, que faz da arquitetura uma atividade humana altamente complexa. A multi¬ plicidade de discursos heterogéneos, a constante interação de movimento, experiência sensual e acrobacias conceituais refutam o paralelo com as artes visuais. Se hoje em dia quisermos nos ater a uma ruptura epistemológica com o que é geral- mente chamado de modernismo,então sua contingência formal também deveser posta em questão. Isso não implica de forma alguma um retorno a concepções que opõem forma e função,a relações de causa e efeito entre programa e tipo, a visões utópicas ou às diversas ideologias positivistas e mecanicistas do passado. Pelo contrário, significa ir além das inter¬ pretações reducionistas da arquitetura. A habitual exclusão do corpo e de sua experiência de todo discurso sobre a lógica da forma é um exemplo que vem bem a propósito. As mise-en-scènes de Peter Behrens, que organizou cerimónias na comunidade de Mathildenhoehe, projetada por Josef Maria Olbrich; os cenários de Hans Poelzig para 0 Golem; os projetos teatrais de László Moholy-Nagy, combinando cinema, mú¬ sica, cenários e ações, congelando simultaneidades; as exibições de acrobacia eletro- mecânica de El Lissitski; as danças gestuais de Oskar Schlemmer; e a “Montagem de atrações” de Konstantin Melnikov, que se transformaram em verdadeiras construções arquitetónicas - tudo isso fez explodir a ortodoxia restritiva do modernismo arquite¬ tónico. Havia, é claro, precedentes - as festividades renascentistas, as festas revolucio¬ nárias de Jacques-Louis David e, mais tarde, e de maneira mais sinistra, o Comício de Nuremberg e a Catedral de Gelo de [Albert) Speer. Mais recentemente, desvios do discurso formalista e a renovação do interesse por eventos arquitetônicos têm tomado uma forma programática imaginária.3 Por outro lado, os estudos tipológicos começaram a discutir o “efeito crítico” dos tipos constru¬ tivos ideais nascidos historicamente da função e posteriormente transformados em novos programas estranhos à finalidade original. Neste último número de uma série de très ensaios, “Arquitetura e limites” apresenta três arquitetos'* cujo interesse em eventos, cerimónias e programas sugere um possível afastamento tanto em relação à ortodoxia modernista como ao revival historicista. 187 [“Architecture and Limits HI” foi originalmente publicado em Artforum 20, n. 1, set. 1981, p. 40. Cortesia do autor e do editor.] 1. Oxford English Dictionary. 2. Julien Guadet,Elements et tliéorie de 1'architecture.Paris: 1909. 3. Esses projetos começaram a aflorar durante a ultima década e incluem as Cidades Ideais do Superstudio às Treze Torres de Canareggio,de John Hejduk. 4. Tschumi,Rem Koolhaas e Alan Plattus. |N.O.) BERNARD TSCHUMI . INTRODUÇÃO: NOTAS PARA UMA TEORIA DA DISJUNÇÃO ARQUITETÔNICA Este pequeno ensaio articula os temas desconstrucionistas do deslocamento (displacement) e da deslocalização (dislocation) com a obra construída de Bernard Tschumi. Ao sintetizar teoria e projeto, foi usado como introdução ao método de Tschumi e a seus quatro projetos publicados em Architecture and Urbanism. O constante interesse do arquiteto em descobrir e trabalhar nos limites da arqui¬ tetura 0 conduz a uma estratégia de disjunção: o desdobramento de operações transformativas como as de compressão, inserção, transferência, superposição, distorção e descentramento. A disjunção leva a uma rejeição da síntese ou totalidade e se relaciona com a ênfase dada ao processo nos escritos de Peter Eisenman. Resistindo à condição de estagnação [stas/sl, Tschumi põe deliberadamente em execução as dimensões críticas e desestabilizantes do conflito. Disjunções estão contidas, por exemplo, nas relações ho¬ mem/objeto, objeto/eventos, eventos/espaço. Outra maneira pela qual Tschumi tenta expandir a disciplina da arquitetura é transgre¬ dindo as suas fronteiras. (Ver "Arquitetura e limites I, II e III", neste capítulo.) Ele importa do cinema técnicas de edição como a "dissolução" e a "montagem", de modo a desafiar as representações gráficas convencionais. Devido à sua duração temporal, o cinema oferece possibilidades para a narrativa e revela inusitadas relações entre os eventos e o espaço. O seu projeto para o Pare de la Villette, com sua "promenade cinemática", teve grande repercussão, seja por ter sido premiado em um concurso internacional, seja como uma parte construída dos "Grands Projets" do governo Mitterrand. o ICOo 2 £ (J) <Da <13 ] 188 BERNARD TSCHUMI Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica ORDEM Toda obra teórica, quando “deslocada” para o domínio do construído, ainda con¬ serva seu papel dentro de um sistema geral ou aberto de pensamento. Assim como nos projetos teóricos de The Manhattan Transcripts, de 1981, e no do Pare de la Vil- lette, atualmente em construção,1 o que se discute é a noção de unidade. Da forma como foram concebidos, esses projetos não têm começo nem fim. São antes opera¬ ções, compostas por repetições, distorções, sobreimposições etc. Apesar de possuí¬ rem uma lógica interna própria - seu pluralismo não é destituído de objetivos -, é impossível descrever tais operações unicamente com relação a transformações in¬ ternas ou sequenciais. A ideia de ordem é permanentemente questionada, desafiada e levada ao extremo. ESTRATÉGIAS DE DISJUNÇÃO Embora não se deva entender a noção de disjunção como um conceito arquitetônico, seus efeitos se imprimem no local, no edifício,e mesmo no programa,de acordo com a lógica deslocalizadora que rege a obra. Para definir disjunção, para além do seu sentido nos dicionários, temos de insistir na ideia de limite, de interrupção. Os Transcripts e La Villette empregam diversos elementos de uma estratégia de disjunção, que toma a forma de uma exploração sistemática de um ou mais temas: por exemplo, molduras e sequências, no caso dos Transcripts,sobreimposição e repetição, no caso de La Villette. Essas explorações nunca podem ser conduzidas abstratamente, ex nihilo; 0 trabalho se desenvolve no âmbito da disciplina da arquitetura, ainda que consciente dos outros campos: literatura, filosofia e até a teoria do cinema. 189 LIMITES A noção de limite é evidente na obra de (James] Joyce, de (Georges] Bataille e de An¬ tonin Artaud, que traballiaram na fronteira entre a filosofia e a não filosofia, a litera¬ tura e a não literatura. A atenção atualmente dada à abordagem desconstrucionista de Derrida também indica um interesse pelo trabalho que se realiza no limite: conceitos usados da maneira mais rigorosa e interna à disciplina, mas também a sua análise de um ponto de vista externo, de modo a investigar o que tais conceitos e sua historici¬ dade ocultam como repressão e dissimulação. Esses exemplos sugerem a necessidade de examinar o problema dos limites na arquitetura. Eles me fazem lembrar que meu próprio prazer nunca nasceu da contemplação de edifícios, de grandes obras
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