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Curitiba 2014 Temas Contemporâneos da Educação Ana Cristina Gipiela Pienta Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária - Cassiana de Souza CRB9/1501 T278 Temas contemporâneos da educação / organização de Ana Gipiela Pienta. – Curitiba: Fael, 2014. 314 p.: il. ISBN 978-85-8287-062-4 1. Educação I. Pienta, Ana Gipiela CDD 370 Direitos desta reservados a FAEL. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização expressa da FAEL EDITORA FAEL Gerente Editorial Denise Gassenferth Projeto Gráfico Sandro Niemicz Revisão Ieda Maria Janz Woitowicz Revisão Técnica Ieda Maria Janz Woitowicz Diagramação Katia Cristina Santos Mendes Capa Katia Cristina Santos Mendes Imagem capa Shutterstock.com/horoscope Sumário Apresentação | 5 1 Temas contemporâneos da educação | 7 1.1 Multicultuarismo | 9 2 Educação na atualidade: multiculturalismo, diversidade étnica-racial e de gênero e inclusão | 27 2.1 Gênero e Cultura | 29 2.2 Gênero, uma construção social | 41 2.3 Relações étnico-raciais e diversidade na escola | 65 2.4 Inclusão: ensinando e aprendendo na diversidade | 101 3 Educação, trabalho e cidadania | 131 3.1 Mundo do trabalho e educação | 135 3.2 O trabalho como princípio ativo | 155 3.3 Cidadania, direitos humanos e o direito à educação | 175 3.4 Educação como direito da criança | 193 3.5 Saberes e fazeres pedagógicos na contemporaneidade | 207 3.6 Desafios da prática pedagógica frente ao novo paradigma educacional | 209 4 Educação, meio ambiente e sustentabilidade | 219 4.1 Educação ambiental: definição e emergência do tema | 221 4.2 Desafios da educação ambiental na sociedade do conhecimento | 231 4.3 A educação ambiental e a formação de professores | 241 4.4 Educação, meio ambiente e interdisciplinaridade | 253 4.5 Ecopedagogia, ética e sustentabilidade | 261 4.6 O papel da ecopedagogia na sustentabilidade | 271 Referências | 279 Apresentação Ao propormos a reflexão sobre “temas contemporâneos da educação” lançamos o desafio de fazer com que o educador reflita sobre a sociedade e o rumo que essa impõe à sua vida e à de seus educandos. Isso porque os questionamentos centram-se em: quais seriam os temas contemporâneos relevantes, importantes para o fazer docente? O que não pode, simplesmente, ser ignorado pelo processo educacional? Quais os preconceitos, mitos, estereótipos, que precisam ser superados? Temas como diversidade, multiculturalismo, inclusão, susten- tabilidade, cidadania, tecnologia e informação, vêm provocando – 6 – Temas Contemporâneos da Educação mudanças e desequilíbrios estruturais no campo da educação. Tais mudan- ças exigem transformações nos sistemas educacionais que se veem confron- tados com novas funções e desafios. O papel da educação transforma-se, as estratégias modificam-se, frente a novos desafios e modelos de sociedade, de homem, de trabalho, de vida. Cabe à educação abrir-se para novas discussões, voltando-se para o objetivo de um processo de formação que emancipe o educando. 1 Temas contemporâneos da educação Luciana de Luca Dalla Valle Muitos foram os percursos da educação brasileira, ao longo dos anos. Do modelo de educação trazido pelos jesuítas, passando pelas muitas reformas educacionais, considerando métodos, objetivos e caminhos diferentes, a sociedade e os profissionais da escola elegeram prioridades dentro da educação, em cada tempo, tais como: métodos de alfabetização, idade inicial para ingresso no ensino fundamental, aspectos cognitivos e sócio - interacionistas, educação como ato político, alfabetização de adultos, entre outros desse imenso universo educativo. Mas, assim como a história, a educação é um processo em permanente construção. Por esse motivo, a cada novo período surgem temas que sugerem reflexões mais apuradas, pois retratam as buscas da escola no contexto atual. – 8 – Temas Contemporâneos da Educação Identificamos alguns desses temas, neste trabalho, tendo a consciência de que são complexos e extensos (daí a sugestão de você leitor, interessar-se pelas leituras complementares que os links sugerem) e que de forma alguma irão esgotar-se nas linhas deste artigo. O que pretendemos é suscitar reflexões que possam formar em cada professor, além de um panorama histórico da educação contemporânea, a noção da responsabilidade do ato educativo e da própria função e importância do ser professor. 1.1 Multiculturalismo Segundo o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, multiculturalismo é a “prática de acomodar qualquer número de culturas distintas, numa única sociedade, sem preconceito ou discriminação”. Segundo Del Priori, o termo “multiculturalismo” designa tanto um fato (sociedades são compostas de grupos culturalmente distintos) quanto uma política (colocada em funcionamento em níveis diferentes) visando à coexistência pacífica entre grupos étnica e culturalmente diferentes. Relacionar, no Brasil, multiculturalismo e educação, pode parecer, no primeiro instante uma tarefa fácil. Vamos a algumas considerações sobre isso para o entendimento da complexa relação entre essas duas ideias: a formação étnica no país se fez em grandes ciclos migratórios, juntamente com a cultura indígena e africana e as fusões e sincretismos foram, por assim dizer, inevitáveis, com – 10 – Temas Contemporâneos da Educação isso acabaram formando uma diversidade cultural que veio a ser uma das maiores características da população deste país. Dessa forma, temos no Brasil um exemplo de multiculturalismo, que se reflete na educação, visto que as escolas acolhem alunos de diferentes culturas, que convivem lado a lado, o que possibilita afirmar que o multiculturalismo é a base da escola e portanto, um tema presente nas escolas brasileiras. Porém, ao olharmos com apuro para o tema, podemos destacar alguns pontos e aumentar a reflexão: primeiro: a relação entre diferentes culturas não é tão harmônica no campo escolar (que em última instância reflete também os interesses, valores e necessidades da sociedade em que se insere) e segundo tema multiculturalismo é relativamente novo no universo da escola, como objeto de estudo como afirma Fleuri, p.123 O debate sobre as relações multiculturais e interculturais na educação e nos movimentos sociais é bastante recente no Brasil, [...] trata-se de um debate complexo, em que interagem diferentes vertentes teóricas e políticas e em que é preciso manter o foco sobre a especificidade das relações culturais em nosso contexto brasileiro. Voltamos ao conceito do multiculturalismo como sendo a prática de agregar culturas distintas, numa única sociedade, sem preconceito ou discriminação e vemos saltar aos nossos olhos preconceitos e discriminação no ambiente escolar. Como lidar com isso? Em primeiro lugar, refletindo sobre o papel da escola. Edgar Morin, abordou sobre esse tema no limiar do século XXI. Em entrevista concedida à equipe do programa Um Salto para o Futuro, 2004, ele diz que: O papel da escola passa pela porta do conhecimento. É ajudar o ser que está em formação a viver, a encarar a vida. Eu acho que o papel da escola é nos ensinar quem somos nós; nos situar como seres humanos; nos situar na condição humana diante do mundo, diante da vida; nos situar na sociedade; é fazer conhecermos a nós mesmos [...]. Ao afirmar que o papel da escola é o de situar a condição humana diante do mundo, como seres humanos, Morin remete à questão da cultura que nos faz seres humanos diferentes uns dos outros. Tal cultura está impressa em cada uma das pessoas e presente nos relacionamentos. Não se trata obviamente de simplificar o tema, culpando a diversidade cultural como elemento desestruturador dos relacionamentos. Trata-se de integrar as culturas,de – 11 – Multiculturalismo estudá las, de procurar semelhanças e diferenças que sustentem a democracia. Como alerta Priori: Pesquisadores de todas as áreas insistem sobre a necessidade de cons- truir uma verdadeira “educação intercultural”. Apresenta-se, aí, a oca- sião de um aprendizado democrático. [...] no qual a comunicação cultural é possível: democracia feita de respeito à alteridade cultural e de tolerância. É, também, a ideia de uma “democracia inclusiva”, na qual as comunidades não se definiriam mais pela exclusão. Aos professores, o desafio de compreender o processo de multiculturalismo e fazê-lo acontecer nas práticas pedagógicas. Essa, aliás, é uma preocupação também de documentos oficiais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, apresentam os temas transversais como temas que devem ser incorporados no trabalho educativo da escola, sem, contudo, fazerem parte de uma só área de conhecimento. Dessa forma, ao apresentarem seus temas transversais, os PCNs convidam a escola para o debate acerca de: ética, meio ambiente, saúde, orientação sexual e pluralidade cultural, essa última relacionada ao multiculturalismo. Ao abordar os temas transversais, (em específico para nosso estudo, a pluralidade cultural), os textos oficiais possibilitam que questões sociais sejam apresentadas na formação do professor e almejadas na aprendizagem e reflexão dos alunos. O desafio que se apresenta aos profissionais da escola é investir na superação da discriminação, oportunizando que as pessoas possam conhecer a riqueza étnico - cultural que forma o Brasil. Desta forma, a escola precisa incorporar em seu currículo a história e a cultura dos afrodescendentes e indígenas, bem como a valorização e a cultura do homem do campo e o legado cultural das diferentes etnias que compõem o mosaico cultural brasileiro. Assim, a escola deve ser um local de diálogo e convivência, de vivência da própria cultura e das diferentes formas de expressão cultural (BRASIL, 1997). 1.2 Inclusão Não há como tratar o tema educação contemporânea, sem uma abordagem que contemple a inclusão. O termo inclusão remete à ideia de um processo social em que – 12 – Temas Contemporâneos da Educação a sociedade começa a perceber a existência de pessoas portadoras de deficiência e a se organizar, para acolhê-las e, de outro, as próprias pessoas com deficiência começam a se mostrar, a reivindicar seus espa- ços, a exercer seu papel de cidadãs (GIL, 2002). Inicialmente a inclusão foi considerada uma inovação da educação especial, mas atualmente, o conceito de inclusão permeia todo o contexto educativo de forma a proporcionar uma educação de qualidade para todos. Nesse aspecto reside a reflexão que propomos nesse tema: de que forma a escola pode ofertar uma educação de qualidade, transformando-se realmente em uma escola inclusiva? Em primeiro lugar, vamos considerar que a inclusão, partindo do pressuposto da qualidade, exige da escola brasileira modernização, quebra de paradigmas e posicionamentos profissionais que precisam ser alterados, em muitos casos necessitam de modernização. Desta forma, é quase uma reestruturação da escola em direção à atualização. E isso demanda esforços e vontade. Segundo Ballard (1997) as características fundamentais da inclusão são: a não discriminação das deficiências, da cultura e do gênero. Para esse autor, todos os alunos têm o mesmo direito de acesso a um currículo culturalmente valioso, serem e se sentirem membros de uma turma. Novamente voltamos ao tema que exige da escola constante atualização. Apenas recentemente, a escola trata das questões da inclusão. A história da educação especial mostra que o caminho percorrido é extenso. Para citar somente uma manifestação da sociedade sobre esse tema, destacamos que em 1994, desenvolveu-se na cidade de Salamanca, na Espanha, a Conferência Mundial sobre “Necessidades Educativas Especiais”. Essa conferência é a chamada Declaração de Salamanca e o documento que resultou dela, foi um grande impulso ao desenvolvimento da educação inclusiva nas práticas educativas contemporâneas. A seguir, elencaremos os princípios abordados na Declaração de Salamanca, que devem fundamentar as ações educativas atuais, resultado da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, realizada entre 7 e 10 de junho de 1994, na cidade espanhola de Salamanca: – 13 – Multiculturalismo Ù Cada criança tem o direito fundamental à educação e deve ter a oportunidade de conseguir e manter um nível aceitável de aprendizagem. Ù Cada criança tem características, interesses, capacidades e necessidades de aprendizagem que lhe são próprias. Ù Os sistemas de educação devem ser planejados e os programas educativos implementados tendo em vista a vasta diversidade cultural e as características e necessidades de cada aluno. Ù As crianças e jovens com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas regulares, que se devem se adequar a esses alunos através de uma pedagogia centrada na criança e indo ao encontro de suas necessidades. Ù As escolas regulares, seguindo esta orientação inclusiva, constituem os meios mais capazes para combater as atitudes discriminatórias, criando comunidades abertas e solidárias, construindo uma sociedade inclusiva e atingindo a educação para todos. Além disso, proporcionam uma educação adequada à maioria das crianças e promovem a eficiência, numa ótima relação custo-qualidade, de todo o sistema educativo. Portanto, ao tratar de educação inclusiva, atualmente, estamos falando de direitos, do fato de que todas as crianças devem ser bem- vindas à escola e dela receber uma educação de qualidade, que leve em conta seu pleno desenvolvimento. Para que isso se efetive na prática educacional, a escola precisa estar preparada para receber as crianças sob sua responsabilidade e poder oferecer vivências e oportunidades para que elas se desenvolvam. Certamente, caberá aos professores boa parte desse desenvolvimento. Não se pode querer que a inclusão seja uma determinação de uma instância superior. Sendo o professor a pessoa que vai lidar diariamente com a criança, ele tem o direito de ser informado sobre como fazê-lo e receber meios do sistema de ensino para que isso se efetive. Dessa forma, a inclusão passa a ser realmente uma meta de toda a escola, dos pais e, consequentemente, da sociedade. – 14 – Temas Contemporâneos da Educação 1.3 Gênero e sexualidade As questões de gênero e de sexualidade estão presentes em todos os níveis das escolas brasileiras, desde a educação infantil. Sabemos que é a identidade de gênero que possibilita à criança reconhecer se como pertencente ao gênero masculino ou feminino, com base nos relacionamentos que se estabelecem a partir do seu nascimento. Não se trata do aprendizado de papéis pura e simplesmente, de forma a adequar-se à expectativa de seu grupo, mas sim, de uma construção de identidade, do seu próprio reconhecimento como pessoa. A maneira como a família e a escola agem em relação às meninas e aos meninos é fundamental no processo de constituição da identidade de gênero. Porém, mesmo com as transformações ao longo dos anos, a escola reproduz em seu meio a diferenciação que a própria sociedade ainda faz entre homens e mulheres, trazendo, via de regra, muitas concepções preconceituosas construídas com base nas diferenças de sexo. Como a questão de gênero é um tema recorrente na sociedade, muitas vezes pode parecer que a escola não tem como lidar com isso de forma diferente. Para essa reflexão, retomemos o que se espera da escola: um local que oportunize vivências, que construa conhecimentos e que forme cidadãos críticos e conscientes. Ora, se a escola é o local dessa formação, é por natureza um espaço onde o preconceito deve estarminimamente (se não anulado) representado. Os profissionais da escola precisam tomar para si a responsabilidade de refletir sobre as questões de gênero e alterar as bases desse preconceito para com homens e mulheres. Reconhecer que o preconceito existe e trabalhar com ele. O que não é tarefa fácil. Esse preconceito está de tal forma intrínseco nas bases culturais, que nos parece aceitável que, mesmo na escola de educação infantil, a professora escolha as cores azul e rosa para separar seus alunos e seja difícil aceitar que um professor do sexo masculino possa ser tão competente no trabalho com crianças pequenas quanto sua colega do sexo feminino. Há de se considerar alguns perigos: não basta que professores e professoras tratem de forma similar meninos e meninas. O preconceito ainda está muito – 15 – Multiculturalismo impregnado na cultura brasileira, sendo preciso falar sobre o assunto, desvelar as expectativas e os saberes dos alunos de forma a auxiliá-los a compor novos referenciais, diferentes até mesmo dos antigos contos de fadas, onde a princesa espera pelo príncipe que vem salvá-la. Para o professor e, principalmente, para a professora, essa não é uma missão de fácil execução. Como professores e pertencentes a um gênero, fomos criados achando naturais muitos dos preconceitos que validamos em nossas ações. Para que possamos trabalhar com as questões de gênero na escola, temos que desconstruir muitas verdades presentes em nossa formação acadêmica e pessoal. O fato é que, mesmo com toda a dificuldade, o tema precisa ser tratado, uma vez que a opinião e as atitudes dos professores são fundamentais para a construção do que é ser menino e menina. 1.4 Sociedade, tecnologia e educação: múltiplas relações Como é do conhecimento de todos, ocorreram, no terceiro milênio, alterações significativas na vida das pessoas. Diariamente, surgem artefatos tecnológicos que passam rapidamente das prateleiras das lojas para a vida cotidiana da população. A chamada expansão tecnológica também está alterando significativamente as formas de comunicação e relacionamento, pois a sociedade contemporânea está descobrindo, a cada dia, como o uso de recursos tecnológicos – juntamente com as novas formas de trânsito de informação – tem possibilitado a transformação pessoal na percepção do mundo, nos valores e nas formas de ação que dela decorrem. Com relação a isso, Perrenoud (2000, p. 126) afirma que “as novas tecnologias da informação e da comunicação transformaram espetacularmente não só nossas maneiras de comunicar, mas também de trabalhar, de decidir, de pensar”. Passamos neste momento por uma brutal mudança de paradigmas da sociedade, em que a geração das novas tecnologias, com a avassaladora – 16 – Temas Contemporâneos da Educação quantidade de informações disponíveis, amplia vertiginosamente a velocidade das mudanças. Muito mais que somente uma questão tecnológica, esse fato precisa ser entendido sob a ótica social, na medida em que representa não só uma mudança no cenário da tecnologia em si, mas sim no conjunto de transformações técnicas, ideológicas, estéticas, políticas e educacionais dos séculos XX e XXI, notadamente as mídias, as Tecnologias da Informação, o computador e o acesso às redes sociais. As implicações decorrentes dos avanços do mundo da tecnologia e da comunicação, não passam despercebidas à escola. Mesmo porque, diante deste panorama, a educação não tem como ficar indiferente, mas o fato é que, ainda sem conseguir resolver muitos problemas próprios da educação em si, como analfabetismo e evasão escolar, a escola já se vê absorvida por desafios novos, provenientes das mudanças advindas da tecnologia e da comunicação, impostas quase que forçosamente ao ambiente escolar (PRETTO, 1996). A tecnologia cruzou os muros escolares e invadiu a educação. Assim, à luz dos processos de mudança que a sociedade vem concretizando, emerge nos meios educacionais a necessidade de um caminhar num ritmo alucinante para poder adequar-se às inovações tecnológicas e ao mundo globalizado e competitivo. Neste momento, a educação começou um processo de ampliação de seus limites, pois estamos vivendo a era da inserção cada vez maior, de recursos tecnológicos no ambiente escolar. Educar com tecnologia não é uma tarefa fácil. A cultura escolar é excessivamente baseada no texto impresso e na cultura oral, de modo que a incorporação de novas linguagens (plásticas, musicais, gestuais ou tecnológicas) torna-se um desafio. Por outro lado, o ato de inserir a tecnologia na escola, por si só não garante uma melhor qualidade na educação ofertada, uma vez que práticas tradicionais podem ser reproduzidas com o uso dos recursos tecnológicos. Com relação a isso, Moran (1995, p. 25), alerta que “as tecnologias de comunicação não mudam necessariamente a relação pedagógica. As tecnologias tanto servem para reforçar uma visão conservadora, individualista, como uma visão progressista”. Assim, o desafio agora é repensar a escola sob a ótica das tecnologias. Segundo Jorge (2002), a pergunta latente é: como formar pessoas num mundo de tecnologias? A autora chama a atenção para que a escola não caia – 17 – Multiculturalismo no extremo de ao formar indivíduos para o mundo da tecnologia, dirigir suas ações para o lado mercadológico, formando-os num contexto onde serão vistos como trabalhadores eficientes e consumidores em potencial. Ao contrário, destaca que o desenvolvimento do instrumental tecnológico, pode dar à escola subsídios para formar um novo homem, necessário ao novo mundo. Nesta perspectiva, o saber passa a ser um instrumento de melhoria da vida de todos, sob um prisma de valores éticos. Para esses fins, serão bem-vindas as novas tecnologias que permitem ao homem: acelerar a produção de bens necessários para erradicar a miséria material e intelectual; diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário; propagar rapidamente informações e novos conhecimentos; disseminar novas culturas, transformando cada indivíduo num “cidadão do mundo” (JORGE, 1998). Pois bem, viver nessa sociedade que avança consideravelmente no campo das comunicações, exige habilidades e competências diferenciadas, cada vez mais complexas, para que o indivíduo possa ter uma posição de criticidade e não somente de consumo indiscriminado. Se a vida cotidiana está cada vez mais baseada na leitura de imagens e nas mídias eletrônicas, provocando no leitor novas formas de compreensão do mundo, torna-se urgente que a escola incorpore ao fazer pedagógico a reflexão sobre as diferentes linguagens que existem no mundo, principalmente a tecnológica, pela amplitude que permite no campo da comunicação e do desenvolvimento (MORAN, 2000). Dessa forma, um caminho é direcionar as discussões pedagógicas não só sobre como, mas também sobre o que e para que educar. Reforçamos a ideia de Pretto (1996,) quando este diz que inserir a tecnologia na escola significa não só a utilização de novos recursos no campo educacional, mas também – e muito fortemente – um repensar sobre as concepções pedagógicas a respeito da educação como um todo. Para o necessário repensar sugerido pelo autor, tomemos o conceito de educação. Etimologicamente, educar significa “levar de um lugar para outro”, o que pressupõe não mudança física, mas mudança de paradigmas, de pensamento. Freire (1996, p. 27) alerta que a educação não pode ser uma relação bancária, em que o educador somente deposita conteúdos que os educandos – 18 – Temas Contemporâneos da Educação devem memorizar, gravar e repetir. O autor destaca que nesse formato, a educação é um tipo de dominação, pois “o educando em sua passividade, torna-se um objeto para receber paternalisticamente a doação do saber do educador, sujeito único de todo o processo”. Esseautor ressalta que ensinar é algo profundo e dinâmico, não é a mera transferência de conhecimentos, mas sim conscientização e testemunho de vida. Segundo Freire, a educação é uma prática política tanto quanto qualquer prática política é pedagógica. O autor ressalta que como toda educação é um ato político, sem neutralidade, deve ter como objetivo maior desvelar as relações de opressão vivenciadas pelas pessoas, transformando-as para que elas possam transformar o mundo. Moran (1998, p. 155) colabora na reflexão quando enfoca que: Educar numa perspectiva ampla, consiste em ajudar a si mesmo e a outros a aprender a viver, em ajudá-los a desenvolver todas as suas habilidades de compreensão, emoção e comunicação pessoal [...] Educar é colaborar para que professores e alunos transformem suas vidas em processos permanentes de aprendizagem. É ajudar os alunos na construção da sua identidade, do seu caminho pessoal e profissio- nal – do seu projeto de vida, no desenvolvimento das habilidades de compreensão, emoção e comunicação que lhes permitam encontrar espaços pessoais, sociais e profissionais e tornar-lhes cidadãos realiza- dos e produtivos. Educar com tecnologia, sob este ponto de vista, indica que as mudanças que podem acontecer com a inserção da tecnologia na escola, não dependem somente do recurso em si, mas sim do que o recurso pode proporcionar ao processo de ensino-aprendizagem. Com relação a isso, Gadotti (1994, p. 273), enfatiza que “é preciso mudar profundamente nossos métodos (de ensinar) para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar: a capacidade de pensar, a dominar a linguagem (inclusive a eletrônica), ensinar a pensar criticamente”. Concordamos com Demo (1998, p. 33) quando ele afirma que “reconstruir a forma de ensinar e aprender é o caminho para alcançarmos o verdadeiro sentido de educação”. Assim, o desafio que se faz presente à educação não está somente em aprender a utilizar a tecnologia, como lembrou Moran, como ferramenta de – 19 – Multiculturalismo ensino, pois não é apenas a sua inserção que deve ser encarada como priori- tária, e sim a compreensão de que ela pode representar uma nova forma de ensinar e aprender. Uma discussão corrente nas escolas da atualidade é a de que é preciso uma adequação da escola para educar a geração que está interagindo nesse mundo. Dessa forma, compreendemos porque muitas das práticas educati- vas desenvolvidas ao longo dos anos tornaram-se obsoletas na medida em que não respondem mais às necessidades de uma sociedade cujos paradigmas alteraram-se radicalmente nos últimos anos. Os desafios de hoje residem em criar e avançar a infraestrutura e os ser- viços educacionais necessários para colocar a educação em um patamar mais próximo e condizente com os avanços. O desenvolvimento social exige que a escola ofereça uma formação sólida, ampla e profunda de seus membros. Alves (2001), ao citar a escola da Ponte, que visitou em Portugal, corrobora a visão de repensar a função da escola, o que ela ensina e de que forma o faz, apontando para o caminho da reconstrução na forma de educar, sob sua ótica: centrar o ensino no aluno, em suas expectativas, projetos, ambições: [...] naquela escola o currículo não é o professor, mas o aluno. A edu- cação mais do que um caminho é um percurso – e um percurso feito à medida de cada educando e, solidariamente partilhado por todos [...], Parece simples e até romântico? Parece, mas funciona. [...]para imensa surpresa dos observadores mais desprevenidos, o que aconteceu na Escola da Ponte, significou uma verdadeira “revolução coperniana” no modo como os professores se posicionam diante dos alunos e os alunos diante dos professores” (ALVES, 2002, p. 17-18). Esse autor descreve, a começar pelo título de seu livro A escola que sem- pre sonhei sem imaginar que pudesse existir, que a reconstrução da escola, até imaginariamente utópica, pode ser sonhada sob alguns pontos de vista, e que o sonho é possível e traz resultados, como verificado na “Escola da Ponte”. Se recorrermos a um dicionário para definir o verbete escola, teremos: “estabelecimento de educação, público ou privado, no qual o ensino, geral ou especializado, é ministrado de forma coletiva e segundo uma planificação sis- tematizada; conjunto dos alunos, professores e pessoal auxiliar de um desses estabelecimentos; edifício onde funciona um desses estabelecimentos”. – 20 – Temas Contemporâneos da Educação Os vários significados deste verbete demonstram que a escola é um espaço constituído por diversas dimensões, entrelaçadas. Cançado (1996, p. 13) destaca algumas: Ù Dimensão pedagógica – compreende o processo de ensino e aprendizagem, com todas as variáveis que o constitui, por exemplo, a organização dos conhecimentos, do espaço e do tempo escolar, a relação professor-aluno, a metodologia de ensino. Ù Dimensão administrativa – engloba as questões de infraestrutura e de pessoal, como os problemas hidráulicos e elétricos, merenda, quadro de pessoal, dentre outros. Ù Dimensão política – situa as relações de poder e o processo decisório. Ù Dimensão social – refere-se à relação com a comunidade escolar em um sentido bem amplo – a relação interna entre professores, alunos e funcionários e a relação estabelecida com pais, moradores próximos à escola, secretaria de educação e sociedade em geral. Também estão incluídas as experiências sociais de todos os segmentos, ou seja, suas origens de classe, suas condições de moradia, trabalho e lazer. Ù Dimensão cultural – envolve as raízes e vivências que promovem a elevação do Homem, conferindo-lhe uma identidade social e cul- tural. Por exemplo, suas tradições religiosas, políticas, expressões artísticas, hábitos alimentares. Ù Dimensão humana – compreende os sentimentos, desejos, dificul- dades pessoais, os conceitos e preconceitos que povoam o íntimo de cada um de nós. Cada uma dessas dimensões é constituída por elementos ou traços das demais, encontrando-se em um permanente movimento de associação e influências mútuas. Como já dissemos, as transformações tecnológicas, econômicas e culturais aumentam a necessidade do conhecimento ético e da educação do homem em toda a sua multiplicidade. Portanto, dentro de sua função, que é a formadora, a escola deve considerar todas as suas dimensões para além dos conteúdos científicos e buscar – 21 – Multiculturalismo uma educação equilibrada, que atenda a essa multiplicidade, é fundamental para a formação do indivíduo. Educar, em sentido mais amplo, significa considerar as diversas experiências sociais, culturais e intelectuais do aluno. Ou seja, respeitar suas histórias de vida, linguagem e costumes, condições sociais, moradia e lazer (CANÇADO, 1996, p. 77). Relacionar a ideia de centrar a escola nos alunos, tendo-os como foco permanente e ao mesmo tempo estabelecer regras de convivência e aprendizado nessa sociedade que avança consideravelmente no campo das comunicações, não é uma tarefa fácil. Por muito tempo o foco da educação foi centrado no desempenho do professor e educar era sinônimo de dar aulas. Isso criou paradigmas de que o agente principal deste ato chamado educar, era o professor, aquele que garantiria, com uma aula bem elaborada, que todos os seus alunos aprenderiam prestando atenção às informações oferecidas. Concebemos que uma escola se faz pelas pessoas que nela trabalham, pelo que elas pensam, pelo que esperam, por seus paradigmas, por suas crenças, por seus conhecimentos teóricos e por suas expectativas. Pensar a criação de uma escola condizente com seu tempo, não obstante, requer pensar profissionais capazes de ajudar a construí-la. A escola desejada não surgirá sem uma equipe que institua o novo no que já existe. É preciso uma equipe que trabalhe de forma integrada, que deseje eesteja disposta a transformar a realidade. Desempenhando um papel fundamental nesta equipe e, consequentemente, nos caminhos que a escola traçará, está o professor, interagindo com os ambientes virtuais de aprendizagem, ajudando o aluno a superar barreiras em relação ao espaço e o tempo com maior habilidade, em espaços de possibilidades de construção de conhecimento na internet. 1.5 O profissional professor e a necessidade de uma formação continuada Concordando com Demo (1998, p. 22), ressaltamos que o foco da educação moderna não é puramente o desempenho do professor em relação a dar aulas, mas sim, a comunicação entre este desempenho e o aprendizado do aluno. Educar é levar de um lugar para outro; quem precisa ter a opção de caminhos é o aluno, e isto não tem acontecido muito. – 22 – Temas Contemporâneos da Educação Os resultados obtidos e reforçados nas provas do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio, proposto pelo governo para avaliar o Ensino Médio no país), e verificados no desempenho dos nossos estudantes no vestibular e nos estudos acadêmicos, provam que o aluno não foi capaz de aprender, o objetivo da educação não foi cumprido, utilizando-se recursos tecnológicos ou não. Desta forma, preparar o professor é melhorar o aprendizado do aluno, como afirma Pretto (1996, p. 18): Iniciar hoje a formação do novo educador é premente [...] natural- mente se estamos pensando numa escola na qual a cultura audiovisiva seja uma presença, o professor, principal personagem desse processo, precisa estar preparado para trabalhar com essa cultura. Ou seja, é necessário conceber o professor como elemento primordial da equipe de mudanças. Isto nos remete a algumas implicações: valorização de sua atuação por parte das instâncias públicas e de ensino, no que se refere a investimentos que traduzam condições dignas de vida e trabalho; implantação e adequação de programas institucionalizados que o capacite a dominar as suas habilidades e adquirir tantas quantas sejam necessárias a contribuir para a formação do indivíduo polivalente que o mercado de trabalho exige; capacitação não somente para comunicar, como também para desenvolver práticas voltadas à realidade do contexto social de sua atividade profissional, bem como a necessidade iminente da revisão de sua prática e de sua formação profissional, baseado na reflexão. A partir da década de 90, a formação dos professores trouxe muitas discussões acirradas. Pesquisadores como Perrenoud (1993), Nóvoa (1992) e Freire (1997), são exemplos de estudiosos que centralizaram algumas de suas investigações em respostas à pergunta: O que se espera do profissional professor na atualidade? De forma geral, as indicações destes autores apontam o caminho no sentido de que os professores tenham consonância com a educação de seu tempo, sendo mediadores e pesquisadores, competentes e reflexivos. E estes conceitos de professor como mediador e professor- pesquisador, para Ramal (2002, p. 229) estão diretamente implicados na discussão sobre as práticas educacionais na era informático-mediática. A reflexão sobre a prática pedagógica tem sido, ultimamente, o conceito mais adotado por pesquisadores e formadores de professores, para se referirem às tendências de formação do educador. Atualmente torna-se difícil encontrar – 23 – Multiculturalismo referências escritas sobre propostas de formação de professores que, de algum modo, não incluam o conceito de reflexão como elemento estruturador. Sendo assim, estamos de acordo com o que afirma Freire (1997, p. 43), “na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática”. Para uma nova delineação da ação docente, que retirou o professor do plano central da aprendizagem do aluno, colocando-o como um facilitador da construção de conhecimentos, requerendo deste profissional professor uma nova forma de agir, Perrenoud (2000, p. 12) toma como guia, um referencial de competências. Para este autor, a noção de competência designa uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um determinado tipo de situação. No intuito de formar pessoas que possam atuar em sociedade, Perrenoud considera dez competências que são prioritárias “por serem coerentes com o novo papel dos professores, com a evolução da formação inicial, com as ambições das políticas educativas” (PERRENOUD, 2000, p. 12). Vistas sob a ótica escolar, as competências propostas são compatíveis com os eixos de renovação da escola, listados a seguir: Ù Individualizar e diversificar os percursos de formação. Ù Introduzir ciclos de aprendizagem. Ù Diferenciar a pedagogia. Ù Direcionar-se a uma avaliação mais formativa que normativa. Ù Conduzir projetos relevantes à aprendizagem dos educandos. Ù Desenvolver o trabalho em equipe docente. Ù Responsabilizar-se coletivamente pelos alunos. Ù Colocar os alunos no centro de ação pedagógica. Ù Recorrer aos métodos ativos. Ù Recorrer aos procedimentos de projeto. Ù Recorrer ao trabalho por problemas abertos e por situa- ções-problema. – 24 – Temas Contemporâneos da Educação Ù Desenvolver as competências e transferência de conhecimentos. Ù Educar para a cidadania. Com bases nestes eixos, Perrenoud propõe as dez novas competências para os profissionais que desejam ensinar: 1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem. 2. Administrar a progressão das aprendizagens. 3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação. 4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho. 5. Trabalhar em equipe. 6. Participar da administração da escola. 7. Informar e envolver os pais. 8. Utilizar novas tecnologias. 9. Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão. 10. Administrar sua própria formação contínua. Na décima competência, Perrenoud, (2000) chama a atenção para a ideia de formação continuada. Ele argumenta que a necessidade desta reside no fato da escola não ser um mundo estável. Se os contextos mudam, o público muda, as abordagens mudam, é necessário acompanhar essas transformações. Se para desenvolver competências é preciso trabalhar com projetos e problematizações que incitem os educandos a mobilizarem seus conhecimentos, além do preparo profissional, o professor precisa identificar suas próprias competências, num exercício que promova a reflexão dialógica. A necessidade de formar professores que reflitam sobre sua própria prática é um instrumento essencial ao desenvolvimento do pensamento e da ação docente (SCHÖN, 1995). Os conhecimentos e competências adquiridos pelo professor antes, e durante a sua formação inicial, têm se mostrado insuficientes para o exercício das suas funções ao longo de toda a carreira. Diferente do que se pensava anteriormente, o professor está longe de ser um profissional acabado e amadurecido no momento em que recebe a sua habilitação profissional. – 25 – Multiculturalismo Essa nova visão do professor que está em permanente desenvolvimento teve a contribuição de vários fatores: as já citadas mudanças na sociedade que causaram mudanças na escola (não só na estrutura da escola como no próprio conceito de escola), bem como as novas teorias pedagógicas que desencadearam pensamentos acerca da função do professor, com reconhecimentos à complexidade e dificuldades desta função e também à complexidade de sua formação. Síntese Ao longo das páginas anteriores, tratamos de temas que estão fortemente presentes na educação brasileira: multiculturalismo, inclusão, as questões de gênero e sexualidade e a necessidade de formação continuada do professor. Como explicitamos no início, apenas a leitura deste documento não abrange a totalidade dos temas e sim, fortalece a necessidade de estudo e reflexão por parte dos profissionais daescola acerca de temas educacionais contemporâneos, vivenciados nas escolas onde desenvolvemos nossos trabalhos educativos. Tivemos o cuidado de, ao longo do desenvolvimento dos assuntos, alinhavarmos de alguma maneira a questão da responsabilidade do profissional professor por cada um desses temas. Não que estejamos, com isso, querendo culpar o professor por essa ou aquela situação, por que verdadeiramente não há culpados, mas sim, esperamos lembrar a cada profissional a responsabilidade do ato educativo e a necessidade de a escola ser, mesmo num mundo tão moderno e tecnológico, um espaço de aprendizagem que possa ressignificar o mundo de muitos alunos. Como destaca Becker (2001, p. 32) para enfrentar esse desafio o professor deveria responder a seguinte questão: que cidadão ele quer que seu aluno seja? Um indivíduo dócil, subserviente, cumpridor de ordens sem questionar o significado das mesmas, ou um indivíduo pensante, crítico, operativo, que perante uma nova encruzilhada para e reflete, perguntando-se pelo significado das suas ações futuras? E avançamos um pouco mais na reflexão: como o professor pode formar alguém assim, senão for alguém assim? – 26 – Temas Contemporâneos da Educação Essa era a reflexão maior de todo esse texto: a necessidade da busca da formação, a retomar o significado de ser professor e a certeza de que, se não temos neutralidade na educação, como afirma Paulo Freire, é preciso que nos posicionemos em busca da nossa melhor formação, em busca de nossos desafios e do preenchimento de nossas lacunas. Os autores são unânimes em afirmar: é pelo conhecimento que vamos mudar. Busquemos então, o melhor de nós. 2 Educação na atualidade: multiculturalismo, diversidade étnica-racial e de gênero e inclusão Nesta unidade refletiremos sobre a questão do respeito à diversidade nas práticas educacionais da atualidade, seja ela de natureza cultural, étnica, de gênero ou de condição da pessoa. O respeito à diversidade nos remete à discussão dos direitos humanos, que também necessita de espaço e reflexão em todas as oportunida- des de convivência contemporânea. Há uma grande preocupação em grande parte da sociedade acerca da luta por justiça, respeito e igualdade nas questões de gênero, nas questões étnico-raciais, na diversidade cultural e tam- bém na aceitação e inclusão de pessoas com deficiência. Nesse con- texto a escola é um espaço privilegiado para fomentar a discussão, disseminar conceitos e concepções. Entretanto, para que possa contribuir de forma comprometida com o respeito e a dignidade de todos, a escola, como espaço de convívio social, assim como seus atores, precisam – 28 – Temas Contemporâneos da Educação estar em constante formação sobre essas temáticas, para que não sejam também responsáveis pela manutenção de preconceitos que a dinâmica social vai produzindo em seu cotidiano. Dada a importância de tornarmos frequente e contínua a discussão sobre a garantia do respeito a todos os indivíduos, vale relembrar os dois primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importante documento que norteia as políticas públicas em relação aos cidadãos e cidadãs: Artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas as outras com espírito de fraternidade. Artigo II: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, política, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (ONU, 1948) Os espaços educativos, assim como os educadores que o constituem, quando se comprometem com um princípio de respeito ao outro, precisam estar atentos às transformações sociais das quais resultam diferentes maneiras de ser e viver a vida, entendendo que não se caracterizam como modelos “certos ou errados”, e sim como opções, ou condições inerentes de vida. 2.1 Gênero e Cultura Homens e mulheres, em todas as épocas, em função de suas necessidades, foram levados a agir sobre a natureza, para transformá- -la. Esse trabalho com a natureza lhes possibilitou conhecer como ela funciona e quais leis a regem (tempo de colher, tempo de plan- tar); satisfaz necessidades e cria outras mais profundas e complexas, dependendo sempre do grau de desenvolvimento das relações que esses homens e mulheres estabelecem entre si e a natureza, na pro- dução de sua existência (MARX; ENGELS, 1998). Podemos concordar com a concepção que coloca, em última instância, como elemento central da história, a produção e repro- dução da existência (vida imediata). Porém, é importante conside- rarmos em nossa análise, que a produção e a reprodução, em todas as épocas, foram permeadas por relações entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres. Por que a importância de (Maria de Lourdes Mazza de Farias) – 30 – Temas Contemporâneos da Educação acentuarmos essa questão como fundamental? Porque a história, seja qual for o ponto de vista do historiador, é, na maioria das vezes, contada de uma forma masculina genérica, desconhecendo-se, assim, o gênero do trabalho1 . 2.1.1 Um outro olhar sobre a história As informações que temos acerca das sociedades primitivas são contraditórias, sendo então, difícil sabermos como era a situação da mulher. Nesse período, a população era composta por povos coletores, que sobreviviam do que a natureza lhes oferecia. Eles não podiam aumentar os recursos naturais disponíveis, pois não tinham qualquer controle sobre a natureza e viviam em condições de extrema pobreza. Essa situação de pobreza fundamental só foi modificada de forma durável pela formação de técnicas de cultura do solo e de criação de animais. A técnica da cultura do solo, a maior revolução econômica da existência humana, é devida às mulheres, tal como uma série de outras descobertas importantes da pré-história, nomeadamente a técnica da olaria e da tecelagem (MANDEL, 1992, p. 16). Na Antiguidade, a mulher tinha como tarefa central a reprodução da espécie (gerar, amamentar, criar) e outras atividades ligadas ao plano doméstico (fiar, tecer), que eram consideradas de pouco valor para a sociedade. A arte e a política tinham um espaço de discussão próprio e eram atividades exclusivamente masculinas. Conhecer e pensar eram coisas proibidas às mulheres e, quando permitidas, o eram apenas às cortesãs, que desfrutavam de um conhecimento e aperfeiçoamento para melhor agradar aos homens em seus momentos de distração e relaxamento. “Temos as prostitutas para o prazer; as concubinas para os cuidados diários, e as esposas para ganharmos uma descendência legítima e serem fiéis guardiãs do lar.” (SALLES, 1982, p. 20). Essas sociedades eram constituídas de forma que as mulheres livres fossem destinadas à procriação da raça e as escravas para proporcionar prazer aos homens. Os historiadores têm efetuado um minucioso estudo 1 Engels e Marx (1998, p. 22) apontam, em um manuscrito redigido em 1846, que “a primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos fi- lhos”. Mais tarde, Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do estado, acrescenta que “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimen- to do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (ENGELS, 1984, p. 181). – 31 – Gênero e Cultura das sociedades – de suas instituições, técnicas, crenças, costumes e relações dos indivíduos – descrevendo-as e comparando-as. Porém, é Engels (1984), seguindo o esquema de Morgan, quem acentuaa relação entre vínculos de parentesco e desenvolvimento das forças produtivas, deduzindo que, nas chamadas sociedades “primitivas” ou “em desenvolvimento”, em que a produção é limitada, os vínculos de parentesco extenso formam, frequentemente, a essência das obrigações de um indivíduo e envolvem as próprias instituições políticas e econômicas. O oposto ocorre nas sociedades desenvolvidas. A família patriarcal e individual moderna promove o desenvolvimento da propriedade privada, por um lado e, por outro, faz com que se perca o caráter público da família antiga. É o início da cisão histórica, própria da era burguesa, entre esfera pública e esfera privada, e essa última se desenvolve simultaneamente com a proprie- dade e a família (ENGELS, 1984). Historicamente, o que podemos perceber é que a maior participação da mulher nas discussões da comunidade e no trabalho “produtivo”, quer dizer, fora de casa, está ligada ao afastamento do homem por motivo de guerra. No século XX, pudemos constatar tal fato, pois as duas grandes guerras fizeram com que as mulheres fossem chamadas a participar com sua mão de obra para que o exército masculino fosse liberado para as frentes de batalha. Porém, as mulheres das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foram alheias ao trabalho. Em todas as épocas e lugares, elas têm contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio imediata- mente anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher das camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas, nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermen- tava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto a família existiu como uma unidade de produção, as mulheres e as crianças desempenharam um papel econômico fundamental (SAFFIOTI, 1979, p. 32). Desde Eva, “aquela” que provocou a expulsão do homem do paraíso, a mulher tem representado uma ameaça constante. Em um tempo marcado por desgraças, como pestes, guerras, fome, conflitos religiosos, ela é novamente colocada como a principal responsável por tais acontecimentos. A chamada – 32 – Temas Contemporâneos da Educação “caça às bruxas”, verdadeiro genocídio perpetrado contra o sexo feminino na Europa e nas Américas – tão pouco estudado e denunciado, que se iniciou na Idade Média, exacerbando-se no século XVI, início do Renascimento –, é parte da herança de silêncio que recobre a história das mulheres (ALVES; PITANGUY, 1991). Muitas práticas que hoje seriam incluídas numa espécie de “medicina alternativa” foram condenadas junto com as acusações de copular com o demônio ou de tornar os homens impotentes [...] se finalmente a “medicina” triunfou sobre a “superstição”, não apenas as bruxas foram queimadas nas fogueiras da Inquisição, mas com elas, a possibilidade de uma ciência médica independente do mercado capitalista (GUTIERREZ, 1985, p. 46). Pelo silêncio que sempre imperou quando se trata de mulheres, fica difícil recuperar historicamente a sua resistência. Poderíamos “[...] supor que a busca pela mulher de outras formas de conhecimento e de atuação, castigada como ‘bruxaria’, caracterizaria sua revolta” (ALVES; PITANGUY, 1991, p. 23). O século XVIII, na Europa, é marcado por grandes revoluções e, conse- quentemente, pela intensa participação da população no campo da política. A ideia de igualdade e liberdade se baseia nos direitos do indivíduo, que se fundam e tomam forma sobre a propriedade privada. As mulheres participa- ram ativamente da Revolução Francesa, no entanto, seus direitos não foram garantidos por tal revolução. Elas representavam o privado e sua participa- ção ativa era rejeitada. “Os próprios revolucionários sentiram a necessidade de marcar um limite intransponível, de mostrar claramente que as mulheres estavam do lado privado e os homens do lado público.” (HUNT, 1995, p. 51). Esse é um momento histórico em que o movimento de mulheres toma forma de ação política organizada. Elas apresentam, então, um documento à Assembleia Nacional (1789), em que afirmam o domínio do sexo masculino sobre o feminino: Destruíste os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades, das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes do reino [...]. Destruístes o cetro do despotismo [...] e todos os dias permitis que treze milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas (ALVES; PITANGUY, 1991, p. 33). – 33 – Gênero e Cultura No século XIX, havia um movimento ativo de mulheres na Europa e nos Estados Unidos, enquanto no Brasil, ainda não. Esses movimentos queriam pôr em prática princípios iluministas e lutar para que as mulheres tivessem as mesmas chances de formação educacional para, com isso, terem acesso às mais variadas profissões e lutarem pela paridade política, o que possibilitaria que ocupassem cargos políticos no parlamento e, por que não, no Governo. Nessa época, surgem as primeiras advogadas, médicas, juristas, cientistas, economistas, engenheiras. O sufrágio universal foi uma das principais conquistas dos homens trabalhadores no século XIX. Essa luta por cidadania não incluía, no entanto, o voto feminino. Essa foi uma luta específica das mulheres e muito longa; no Brasil, data de 1910 (ALVES; PITANGUY, 1991). Foi um movimento liderado por uma elite feminina letrada, culta e de maior poder econômico. O direito de voto das mulheres nas mesmas condições que os homens foi decretado em 1932, no governo Vargas, e ratificado pela Constituição de 1934. Essa luta por direitos civis fortalecia e aprofundava a reivindicação das mulheres pelo direito à educação, pois, além de ser só privilégio de alguns, era diferenciada por sexo; existia a educação das meninas e a educação dos meninos. Nesse momento, a afirmação da igualdade entre os sexos vai confluir, como afirmamos anteriormente, com as necessidades de liberar mão de obra feminina para as frentes de trabalho de maior participação social, embora esse processo venha a ocorrer devido à necessidade de liberar homens para o exército brasileiro, para as frentes de batalha. Essa absorção da força de trabalho feminina na indústria emergente torna-se um importante fermento na luta das mulheres. Ainda assim, a mulher é colocada como força de reserva, desvalorizada, sendo super explorada em longas jornadas de trabalho, recebendo salário menor para trabalhar na mesma função que o homem. Essa situação leva as mulheres a se integrarem às lutas e greves dos trabalhadores para despertar sua situação discriminatória, passando, assim, a ter um papel mais destacado nas lutas de interesse nacional. Com o término da guerra, novamente o papel da mulher é questionado, ela volta ao lar para ser esposa, mãe e dona de casa. O trabalho externo da mulher sofre, mais uma vez, desvalorização. No final da década de 60 do século – 34 – Temas Contemporâneos da Educação XX, em um contexto de lutas por liberdade e igualdade, o movimento de mulheres começa a ganhar evidência e força no cenário político internacional, denunciando a condição de opressão, construída nas diferenças percebidas entre os sexos. Essas diferenças, na elaboração social, acontecem como se fossem desigualdades, que se expressam ao nível da razão e do afeto, do público e do privado, do trabalho, do prazer e do desejo. Os movimentos surgem para dar conta da existência dessa condição de opressão. Essa denúncia da manipulação da mulher nas sociedades capitalistas ecoou com força no mundo. No panorama nacional, as mulheres mobilizadas constituíam-se em um número considerável e pertenciam a grupos diferenciados: donas de casa, intelectuais, professoras,operárias, advogadas, empresárias. No contexto de autoritarismo que marcou o início do movimento no Brasil, os problemas “gerais” da sociedade eram prioritários em relação aos problemas “específicos” das mulheres. As mulheres trabalhadoras tinham prioridade sobre as outras – marcas da vinculação com a esquerda marxista (SARTI, 1988). Em um país em que a miséria, o desemprego, o analfabe- tismo, a extrema concentração de renda e a ausência de liberdades civis atin- gem a maioria da população, o desenvolvimento do movimento feminista esteve profundamente ligado às lutas democráticas em oposição ao regime militar. No processo de abertura, lento e gradual, a que fomos submetidos, o movimento de mulheres começa a se tornar visível. O Ano Internacional da Mulher (1975), celebrado pela ONU, abre caminho para inúmeras discussões e organização de coletivos femininos; a organização do Movimento Feminino pela Anistia, no mesmo ano, foi fun- damental para sua ampliação. Contudo, o feminismo enquanto ideologia e prática, apesar de as feministas estarem participando ativamente do movi- mento de mulheres, ficou restrito a um setor do movimento. Somente a partir de 1978, o movimento de mulheres se consolida como força emergente no quadro político nacional. As feministas apresentam aos candidatos a eleições parlamentares, em um grande número de cidades brasileiras, documentos contendo suas reivindicações, condicionando seu apoio às candidaturas ao compromisso dos candidatos com essas exigências. A volta de mulheres do exílio, onde haviam recebido a influência de um movimento feminista atu- ante, ajuda a fortalecer a tendência feminista no movimento de mulheres (SARTI, 1988). As eleições de 1982 foram particularmente importantes, pela – 35 – Gênero e Cultura primeira vez pós-64, poderíamos eleger governadores(as). As mulheres con- centraram seu apoio na oposição, entre partidos de esquerda. Começam a aparecer candidatas na política, identificadas com o femi- nismo. A vigência da Constituição Federal de 1988 representa um imenso avanço na situação jurídica da mulher brasileira. As conquistas ampliam-se nas Constituições Estaduais de 1989 e nas Leis Orgânicas Municipais de 1990. No entanto, essas conquistas não se traduzem nas modificações corres- pondentes da legislação ordinária. Sugestão de Leitura No artigo “As duas Fridas: história e identidades transculturais” foi feita uma análise do filme Frida (2003), dirigido por Julie Taymor e protagonizado por Salma Hayek, que tem como tema a relação amorosa entre o muralista Diego Rivera e a pintora Frida Kahlo. Não se trata absolutamente de uma biografia fílmica, a película enfoca apenas uma etapa da vida da pintora. De um lado, são feitas algumas comparações com o filme mexicano Frida, natureza viva (1983), de Paul Leduc, para contrastar as diferentes visões dos acontecimentos de uma mesma vida, por exemplo, com relação à política sexual. Por outro lado, explora-se até que ponto o polêmico filme de Taymor é histórico, baseado na realidade, ou uma história contada pela imagem e pelo som a partir de uma biografia escrita. BARTRA, E.; MRAZ, J. As duas Fridas: história e identidades transculturais Rev. Estud. Fem., v. 13, n. 1, 2005, p. 69-79. No livro O segundo sexo, Simone de Beauvoir (1970) afirma que não era a natureza feminina que limitava as mulheres, tornando-as seres inferiores, mas, sim, um conjunto de preconceitos, costumes e leis arcaicas das quais elas eram mais ou menos cúmplices, e podemos dizer que ainda o são em grande medida. As ideias feministas, em que pesem suas várias interpretações, desencadeiam um processo de crise no interior de partidos e organizações de esquerda, de ques- – 36 – Temas Contemporâneos da Educação tionamento e ruptura com as concepções vigentes acerca da separação entre o político e o pessoal, o público e o privado, com as inevitáveis consequências disso em nível da elaboração teórica, que se choca com uma maneira tradicional de fazer política (autoritária, burocrática e manipulatória). O marxismo tem sido um campo privilegiado de interlocução do pen- samento feminista, embora esse debate se amplie cada vez mais nos campos da psicanálise, do pós-estruturalismo e do pós-modernismo. Para Sorj (1992a), considerando as diferenças que separam o marxismo e o feminismo em termos substantivos (esfera da produção X reprodução, esfera do mercado X doméstico, público X privado), as homologias entre ambos são poderosas. A autora argumenta que, Da mesma forma que o marxismo produziu uma teoria inclusiva, compreensiva, sobre o desenvolvimento histórico da sociedade calçada na ideia da luta de classes, a teoria feminista colocará a opressão da mulher no centro de suas formulações, dando-lhe, finalmente, um estatuto teórico equivalente ao da exploração de classe (SORJ, 1992b, p. 16). De qualquer forma, a classe não é, como alguns cientistas querem, uma categoria estática, uma certa quantidade de pessoas colocadas nesta ou naquela relação com os meios de produção. A classe, na tradição marxista, é (ou deveria ser) uma categoria histórica, descrevendo pessoas em relação, ao longo do tempo, e as formas pelas quais elas se tornam conscientes de suas relações, se separam, se unem, entram em luta. Portanto a classe é uma formação “econômica” e é também uma for- mação “cultural”, é impossível dar qualquer prioridade teórica a um aspecto em detrimento de outro o que muda, na medida em que o modo de produção e as relações produtivas mudam, é a experiência de homens e mulheres que mudam2 (THOMPSON apud OZGA; LAWN, 1991, p. 148). A tentativa de igualar classe e gênero, enquanto conceitos explicativos centrais, é evidenciada em alguns trabalhos. Sorj (1992b, p. 16) afirma que: 2 No trabalho Tradición, revolta y consciência de classe (1979), Thompson apresenta sua proposta de estudo da classe operária, em que afirma que a classe é definida pelos homens ao viverem sua própria história. – 37 – Gênero e Cultura [...] o feminismo pensa a sexualidade da mesma forma que o marxismo pensa o trabalho: como uma atividade construída e, ao mesmo tempo, construtora, universal mas historicamente específica, composta da união entre matéria e mente. Da mesma maneira que a expropriação organizada do trabalho de alguns em benefício de outros define uma classe – os trabalhadores – a expropriação organizada da sexualidade de alguns para o uso de outros define o sexo, mulheres. A heterossexualidade é sua estrutura, gênero e família suas formas fixas, os papéis sexuais suas qualidades generalizadas à “persona” social, a reprodução uma consequência e o controle seu resultado. As relações de classe e as de gênero são relações estruturantes da socie- dade e se superpõem. Entretanto, o conceito de gênero (ou de construção social do sexo) é muito mais recente que o de classe social e destaca que a exploração, base das relações antagônicas entre as classes, não dá conta de explicar a opressão sofrida pela mulher. Destaca, também, que as relações de classe são sexuadas e, portanto, há uma reciprocidade entre ambas. Poderí- amos dizer que as relações de gênero são perpassadas por pontos de vista de classe e vice-versa (HIRATA; KERGOAT, 1994). Assim, coloca-se em xeque a premissa da esquerda de que resolveríamos primeiro as desigualdades de classe, para, em um segundo momento, resolvermos as opressões ligadas às construções sociais de gênero. As relações de classe e de gênero são transver- sais na sociedade como um todo, invadem todos os campos sociais. A dinamização de uma esfera (classes sociais, produção) não pode deixar de ter efeito sobre a dinâmica de outra. Tal afirmação redunda em denunciar o postulado (quase sempre implícito) segundo o qual essa relação social só se exerce em determinado lugar. Na realidade, relaçõesde classe e de sexo organizam a totalidade das práticas sociais, em qualquer lugar que se exerçam. Em outras palavras: não é só em casa que se é oprimida nem só na fabrica que se é explorado(a)! (HIRATA; KERGOAT, 1994, p. 96). O pensamento feminista parte da constatação segundo a qual a estrutura das relações entre homens e mulheres é uma estrutura de poder, que assegura a dominação daqueles sobre essas. Partindo desse ponto comum, o pensamento feminista se diversifica infinitamente. A forma como se concebe o poder é determinante para se entender a multiplicidade no pensamento feminista (o poder unilateral, masculino/poder relacional entre os gêneros). Inicialmente, a teoria feminista esforçou-se por entender e reinterpretar diversas categorias – 38 – Temas Contemporâneos da Educação teóricas de forma a tornar as atividades das mulheres visíveis também no plano dos diferentes discursos e teorias. Se a natureza e a atividade das mulheres são tão sociais quanto a dos homens, nossos discursos teóricos deveriam ser capazes de revelar nossas vidas com tanta clareza e detalhe quanto supomos que as abordagens tradicionais revelem as vidas dos homens (HARDING, 1993, p. 7). Essa necessidade de provar efetivamente a presença de mulheres em acontecimentos passados, na convicção de que a presença da mulher fora apagada da história, denuncia o androcentrismo das ciências humanas, questionando o conceito de “homem universal”, sujeito e paradigma das teorias da modernidade. Essa operação resgate, ao mesmo tempo em que dá visibilidade histórica à mulher e desvela a opressão, a subordinação, as injustiças e as violências sofridas pelas mulheres, reproduz na teoria e na prática política a tendência de “universalizar a mulher”, produzindo uma única definição do feminino e gerando um discurso essencialista. Os anos 80 do século XX vêm inaugurar uma revisão crítica do feminismo, do conceito de igualdade, de identidade, de diferença e de uma única natureza feminina. No peso dado, nos anos 70 do mesmo século, à opressão comum que todas as mulheres sofriam, é colocada a diversidade existente entre mulheres, segundo a classe, a raça e a cultura. O gênero como categoria de análise relacional passa a ser utilizado por algumas estudiosas feministas; outras não o usam e não concordam com ele. Portanto, dentro desse campo, há vertentes das mais diversas para tra- balhar as questões de gênero, e cada uma elege questões diferentes, proble- matiza de um modo diferente e prioriza determinados aspectos. Por ser um campo relativamente novo, está longe de ser um campo teórico consensual. Da teoria para a prática Sugerimos o filme O sorriso de Mona Lisa que, por meio da temática “história da arte”, consegue passar sutilmente por substratos ideológicos marcantes, como Bergson, Nietzsche, Freud e Marx, e fatos históricos, como a – 39 – Gênero e Cultura Primeira e a Segunda Guerra Mundial, que marcaram profundamente o século XX. Consequência viva e expressa disso foram as vanguardas, que tentaram chamar a atenção por meio da arte, mostrando a perplexidade do mundo contemporâneo. Assim, o aspecto do uso didático do filme, em uma perspectiva metodológica, engloba o ensino e o conhecimento, por parte dos alunos, de algumas obras, por meio de ilustrações em livros didáticos e reproduções dessas obras levadas pelo (a) professor(a) para a sala de aula. Desse modo, o (a) docente pode incentivar os (as) alunos(as) a analisarem as obras e refletirem de maneira dinâmica a respeito das correntes estéticas de vanguarda na Europa e os sentimentos humanos, expressando as angústias que caracterizavam psicologicamente o ser humano no início do século XX. O sorriso de Mona Lisa, dirigido por Mike Newell, é uma boa oportunidade para que os professores da educação básica e do ensino superior dos cursos de Pedagogia, Letras, História e Cinema estabeleçam análises, críticas e reflexões sobre alguns temas como: arte moderna, fatos históricos, como a Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial e o papel da mulher na sociedade, entre outros. O filme é uma produção norte-americana, com um enredo que se passa entre 1953 e 1954, tratando da história de Katherine Watson, uma professora de vanguarda recém-graduada que consegue emprego no conceituado colégio tradicionalista Wellesley para lecionar aulas de história da arte. O SORRISO de Mona Lisa. Direção de Mike Newell. EUA: Columbia Pictures; Sony Pict. Entertainment, 2003. 1 filme (125 min). Consultar também: SANTANA, M. A. O sorriso de Mona Lisa: direcionamentos para o trabalho em sala de aula. Revista Espaço Acadêmico, n. 78, ano 7, nov. 2007. Disponível em: <http:// www.espacoacademico.com.br/078/78santana.htm>. Acesso em: 27 maio 2011. – 40 – Temas Contemporâneos da Educação Síntese A intenção do texto não é fazer uma exaustiva revisão bibliográfica, tampouco um estudo de gênero no Brasil, mas refletir sobre essas relações entre nós, se há indicadores de novas formas de relações, novas formas de pensar a política e definir espaços de participação. Apesar da ênfase no universo feminino, tratamos o gênero em sua dimensão relacional, dinâmica, em transformação, por entendermos que homens e mulheres são forjados socialmente. Portanto, gênero não é nascer macho ou fêmea, mas se refere às construções culturais e históricas, às representações que a sociedade faz do masculino e do feminino. Optamos pelo caminho das mudanças cotidianas: o momento da ruptura, o da solidariedade e o da competição, que divide mulheres e homens. As mulheres fazem um diagnóstico amargo sobre a hierarquia nas qualificações masculinas e femininas: entre o trabalho das carregadoras de piano e o efeito do discurso, na maioria das vezes, feito por outro em seu nome. Enfim, é uma contribuição para que possamos discutir as relações de gênero, que são tão essenciais à medida em que sensibilizam não só a nossa vida, as nossas relações, mas alguns temas, ideias e palavras que as significam, que muitas vezes têm um significado ambíguo e até contraditório na história da cultura humana, como identidade, igualdade e diferença. 2.2 Gênero, uma construção social O estudo de gênero no Brasil, assim como no resto do mundo, é muito recente, e poderíamos dizer que, por muito tempo, foi sinônimo de estudos sobre a mulher. Sem dúvida, os estudos sobre mulheres foram fundamentais para se entender o “sexismo” (discriminação de um dos sexos), como as relações de gênero em nossa sociedade são assimétricas e como a mulher é oprimida, por conta da construção social e subordinada do feminino. Esses estudos são importantes no sentido de dar visibilidade às mulheres. Porém, essas constatações abalam muito pouco os paradigmas teóricos mais amplos. (Maria de Lourdes Mazza de Farias) – 42 – Temas Contemporâneos da Educação 2.2.1 Gênero, educação e cultura As preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise emergiram somente no fim do século XX, na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, esse conceito começa a ser utilizado na década de 80 desse mesmo século. A maior parte das teorias construiu suas análises a partir da oposição masculino/feminino, mas o gênero como meio de falar de sistemas de relações sociais ou entre os sexos não aparecia3 . Tentaremos, a partir das reflexões de algumas estudiosas, estabelecer um caminho para a apreensão de tal categoria. Scott (1990) define gênero em duas partes e diversas subpartes, que são ligadas entre si. Para ela, o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos. O gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder e implica quatro elementos: Ù Os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (econtraditórias). Ù Os conceitos normativos que põem em evidência as interpretações dos sentidos dos símbolos e tomam a forma típica de uma oposição binária que afirma o sentido do masculino e do feminino. (Esses conceitos tornam-se posições dominantes e a história é escrita como se essa norma fosse produto de consenso mais do que de conflito). Ù O terceiro aspecto é o rompimento com a noção de fixidez na representação binária do gênero e inclui na sua análise a política, as instituições e a organização social. Ù Scott (1990) ressalta, nesse ponto, a importância de levarmos em consideração as identidades subjetivas – as maneiras como as iden- tidades de gênero são realmente construídas, além de relacionar com uma série de atividades de organizações e representações sociais historicamente situadas, pois o gênero é construído no parentesco, na economia, no mercado de trabalho (sexualmente segregado), na organização política. 3 A esse respeito, ler o texto: LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D. E.; WALDOW, V. R. Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. – 43 – Gênero, uma construção social Segundo Gomariz (1992), a ideia geral na qual se distingue sexo de gênero consiste em que o primeiro refere-se ao plano biológico de que a espécie humana é uma das que se reproduzem por meio da diferenciação sexual; o segundo guarda relação com os significados que cada sociedade atribui a tal plano. Portanto, gênero pode ser explicado como conjuntos de práticas, símbolos, representações, normas e valores sociais que as sociedades elaboram a partir da diferença sexual e que dão sentido, em geral, às relações entre pessoas sexuadas (DE BARBIERI apud GOMARIZ, 1992, p. 84). Esses comportamentos são apreendidos socialmente, pois tanto o masculino como o feminino são criações culturais, e é no processo de socialização que as pessoas vão se conformando, de forma diferenciada, a cumprir funções específicas, a modelos que significam um conjunto de atitudes, normas e expectativas que definem a masculinidade e a feminilidade. Romper com essa lógica de raciocínio bipolar, além de não ser nada fácil, é um desafio que está ligado a todas as áreas do conhecimento, bem como às práticas cotidianas dos sujeitos históricos. Desde 1980, vários (as) estudiosos(as) têm utilizado o conceito de gênero para sugerir que “[...] a informação sobre mulheres é necessariamente informação sobre homens, que um implica o estudo do outro” (SCOTT, 1990, p. 7). Essa forma de pensar o gênero desconstrói a lógica de oposição binária para trabalhar as relações entre ambos. Isso quer dizer que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens e vice-versa, e que: [...] não se trata de constituir um novo território que será a história das mulheres, tranquila concessão onde elas poderão se lamentar à vontade ao abrigo de toda contradição, mas de mudar o olhar a dire- ção do olhar histórico, colocando a questão da relação entre os sexos como central (LOPES, 1990, p. 26). Segundo Lobo (1991), foram as reflexões feministas que motivaram a utilização do gênero como categoria de análise das relações sociais entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, entre homens e homens. Embora em muitos casos torne-se corriqueiro usar gênero como sinônimo para mulher, muitas correntes do feminismo avançam sobre essa constatação, indicando que gênero é um conceito relacional e muito mais amplo do que a simples referência às mulheres. O que tem sido criticado por algumas feministas é a permanência da fixidez da oposição binária entre masculino e feminino, levando, muitas vezes, – 44 – Temas Contemporâneos da Educação a uma discussão essencialista, “Estudiosos pressupõem uma visão única da condição feminina, o que não é aceitável, quando se rejeita o determinismo biológico enquanto explicação da persistente desigualdade entre os sexos” (SORJ, 1992b, p. 16-17). A construção do gênero como categoria de análise avança na medida em que nos permite pensar as qualidades humanas, desconstruindo a polaridade masculino/feminino e pensando não mais nas polaridades, mas nas pluralidades. Gênero seria, assim, um conceito relacional em que cada um desses polos se complementa, sendo um constitutivo do outro. Constituindo-se como uma categoria relacional, sua construção vincula-se à construção histórica da humanidade, que se faz nas relações sociais entre mulheres e homens, homens e homens, mulheres e mulheres que são iguais e diferentes entre si, o que nos leva a pensar na pluralidade social e na existência não de uma única feminilidade ou masculinidade, mas, sim, de várias e múltiplas4. Homens e mulheres são, evidentemente, diferentes. Mas não são tão diferentes como dia e noite, terra e céu, yin e yang, vida e morte. De fato, do ponto de vista da natureza, homens e mulheres estão mais pertos um do outro do que qualquer outra coisa – por exemplo, montanhas, cangurus, ou palmas de coqueiro. A ideia de que homens e mulheres são mais diferentes um do outro do que qualquer outra coisa deve provir de algum lugar que não seja a natureza (RUBIM apud CORNELL; THURSCHWELL, 1987, p. 171). A ordem social, diferente das florestas, mares e rios, é um produto humano. As divisões humanas não parecem mais tão naturais como eram consideradas antigamente, quando as atividades humanas pareciam ser regidas por leis naturais, fatalidade da qual não podíamos nos esquivar. A sociedade nos aparecia tão natural quanto a natureza. Embora a divisão entre sociedade e natureza varie muito e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia nos ofereça inúmeros exemplos da ampliação do âmbito da cultura sobre o que antes era considerado como próprio da natureza, o que se distingue de novo não é a “natureza” ou a “sociedade”, mas a distinção entre elas. Atualmente, a condição humana aparece mais como produto da lei, da administração e manipulação deliberada de homens e mulheres5 . 4 Sobre isso ler o texto de Guacira Lopes Louro, “Gênero, história e educação: cons- trução e desconstrução” da revista Educação e Realidade, v. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995. 5 Sobre esse assunto, ver Sorj (1992a). – 45 – Gênero, uma construção social A luta das mulheres por igualdade de direitos, de oportunidades, de escolher seus companheiros afetivos, sexuais, casar ou não, ter ou não filhos, ir a qualquer parte, quebra a noção de domínio historicamente reservado ao masculino. Na maioria das sociedades ocidentais, começa a se esvanecer, apaga-se pouco a pouco a linha que separa os campos da masculinidade e da feminilidade, da maternidade e da paternidade. A saída maciça da mulher do ambiente doméstico para o mercado de trabalho lhe permitiu romper com determinadas relações na família e na sociedade. Essas transformações no modo de viver das mulheres, entretanto, em muitos casos, sobrecarregou-as em duplas e até triplas jornadas de trabalho, pois muitos homens ainda não dividem com suas companheiras as tarefas domésticas. Muitas vezes, para romperem com o casamento, separam-se levando os filhos, tendo que arcar sozinhas com a sua educação e sustento. Esse reconhecimento da sua não submissão, essa disposição de fazer a história à sua maneira, ser sujeito do seu destino, abala os homens, abala a família e abala, profundamente, os paradigmas que se estruturavam na base das diferenças biológicas e que foram historicamente transformando-se em desigualdades sociais, que atingiam, e ainda atingem, diretamente as mulheres. Muitos homens se sentiram e se sentem abalados, mas reconhecem isso como um avanço, têm discutido e procurado avançar junto com suas companheiras. Alguns homens, mesmo entrando em crise, conseguem perceber que acabar com o sexismo nas relações de gênero é um papel também masculino. Não tem sido fácil para as mulheres,
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