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A máscara como instrumento xamânico

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A MÁSCARA COMO INSTRUMENTO XAMÂNICO NO TREINAMENTO TEATRAL DE JACQUES COPEAU
Thomas LEABHART
Traduzido para fins exclusivamente didáticos por Marcelo Fagundes
Como um todo, o ser do ator guarda, neste mundo humano, traços de comportamentos de outros mundos. Ele parece, quando de volta entre nós, estar deixando um outro mundo.
Jacques COPEAU
O profundo desejo consciente ou inconsciente do ator de ser alguma outra coisa além do que é na vida diária – de “se tornar” um outro – permite que ele viva uma intensa realidade humana e que penetre em um mundo desconhecido.
Jean DASTÉ
I – Exercícios misteriosos em Boulogne-Billancourt
Etienne Decroux (1898 – 1991), como estudante na Ecole du Vieux-Colombier em Paris e mais tarde em Burgundy em 1924, foi muito influenciado por Jacques Copeau. Especialmente impressionado pelos exercícios com máscaras de Copeau, Decroux dedicou-se por toda vida à pesquisa e descobertas em mime corporel, uma forma que, em contraste com a pantomima do séc. XIX, articulava o tronco e tirava a ênfase da expressão facial e do gestual das mãos.durante meus quatro anos com Decroux (1968-1972), ele lecionava no porão azul brilhante de sua casa em Boulogne-Billancourt, um subúrbio próximo, a sudoeste de Paris. Além das aulas diárias sobre a técnica, toda sexta-feira à noite ele falava sobre uma ampla variedade de tópicos. A essas palestras seguia-se uma aula de improvisação. Durante a semana, parte dos meus pensamentos se fixavam nas aterrorizantes de sexta-feira à noite, que se aproximavam. Elas eram exercícios misteriosos para mim.
No meu primeiro ou dois primeiros anos chez lui, eu não tinha idéia do que era solicitado durante essas experiências estressantes e intimidantes. Nelas Decroux pedia aos alunos, individualmente ou em grupos de dois, três ou mais, que se colocassem em uma extremidade do estúdio no porão, em um foco do que ele gostava de chamar, com um floreio de seus gordos dedos e uma afetação debochada na voz, de lumiére artistique . suas únicas instruções eram: “Retrate um pensador. Depois de um tempo, você se tornará o Pensamento. Emoções levam ao movimento, o Pensamento gera imobilidade. Comecem!”. Essas instruções enigmáticas, ao invés de dissipar o desconforto que envolvia o paradoxo movimento/imobilidade, pareciam intensificá-lo, nos fazendo achar que estaríamos perdidos nessas improvisações caso nos movêssemos ou caso não nos movêssemos.
O que Decroux queria, e que a maior parte de nós acabou encontrando – mesmo que em alguns casos tenha levado anos, lágrimas e desencorajamento – era um estado no qual o ator estudante estivesse relaxado porém alerta, extremamente presente no momento, e suspenso sobre o fio da navalha que separa o movimento da imobilidade. Até obtermos sucesso no exercício, nem nossos movimentos nem imobilidades estavam carregados o suficiente de suas qualidades opostas. “Humano, humano demais.” (“Human, tôo much human.”) era a pior crítica de Decroux a uma improvisação, feita em inglês com sotaque carregado. Em outras palavras, era visível que o aluno não tinha suficientemente “despejado os inquilinos do apartamento”, como Decroux colocava. Nos era dito que se não conseguíssemos, Deus não poderia vir morar ali. Essas palavras surpreendentes vinham de Decroux, um ateu proclamado e “anti-cleric de père em fils”. O que ele parecia querer dizer é que deveríamos nos livrar das vozes que habitualmente preenchem o pensamento, do constrangimento, das preocupações. Quando esse processo de esvaziamento estivesse completo, chegaria o momento de ser “atingido por um pensamento” – um importante momento nos ensinamentos de Decroux. Este momento de ser tomado por uma força exterior a si mesmo, mantendo-se ainda lucidamente consciente e alerta, era, muitas vezes, de completa e vibrante imobilidade. E freqüentemente seguido de um movimento imbuído das qualidades daquela imobilidade. Decroux gostava de citar Chaplin: “mimo é a imobilidade transportada”. Após ser atingida por um pensamento, a pessoa se tornava um pensador. Mais além na improvisação, e com experiência suficiente, era capaz de retratar o puro pensamento.
Apesar de não serem usadas máscaras nessas improvisações, o estudante recebia instruções para manter uma face inexpressiva, como uma máscara. Decroux a descrevia como uma face nobre, como os Buddhas gravados em pedra nos templos de Angkor.
Mas como alcançar isso? A face beatífica, o estado presente-porém-ausente e o processo para alcança-los pareciam misteriosos e difíceis, ou impossíveis, de descrever. Mas todos sabíamos, ao ver as improvisações, quais de nossos colegas tinham conseguido e quais não. Aqueles que conseguiam, pareciam maiores que a vida, radiantes, quase possuídos. Aqueles que não, pareciam desconfortáveis, pequenos e triviais. Os bem sucedidos pareciam ter conseguido atravessar para um mundo diferente. Enquanto os outros, por tentarem demais, permaneciam muito e dolorosamente neste mundo.
 Mais de 20 anos depois de meu trabalho com Decroux, estudando os escritos de Copeau e de alguns de seus principais companheiros e discípulos, percebi a origem daqueles exercícios aparentemente misteriosos. Compreendi que Decroux nos ensinara o que Copeau lhe havia ensinado: um método para alcançar a presença através da ausência, um estado ideal de performance que precisa ser experimentado para ser compreendido. Os exercícios não eram realmente misteriosos. Só o pareciam porque as palavras são inadequadas para descrever esse processo fundamentalmente não-verbal.
II – As leituras de Copeau como jornadas interiores: a ausência permitindo a presença
Apesar de não ser sempre bem sucedido ao interpretar personagens em peças, Copeau era mestre em atingir esse estado ideal de performance e enfeitiçar a platéia durante leituras públicas de peças. É de Joseph Samson o melhor relato do poder de Copeau como performer. Ele descreve uma leitura de Copeau para um pequeno grupo em seu estúdio em Pernand-Vergalesse, nos anos 40. esta longa citação serve nossos propósitos ao ilustrar diferentes fases da performance. Copeau gradualmente “desaparecendo” e a personagem por ele encarnada gradualmente tomando conta:
Ele (Copeau) falava pouco, em fragmentos de frases por vezes inacabados, seguidamente cortados por silêncios. Depois de algum tempo, vimos que segurava um livro. Ele o folhava como que ao acaso. Ficamos quietos. Quando voltaram a chegar palavras até nós, vinham da grande poltrona na qual ele sentava, de costas para a janela. Essas palavras eram a princípio como a continuação da nossa conversa. Mas então, havia algo de novo; as frases tomavam uma forma mais organizada, as sílabas parecendo medidas, as acentuações tornando-se mais intensas, a voz começava a ser modulada. Furtivamente, Philippe Chabro e eu nos entreolhamos, como pessoas tocadas da mesma forma: a leitura havia começado. Leitura? Sim. Ainda era Copeau. Mas já não era mais Copeau; Peguy, autor de “A Lenda dos Três Ducados”, havia tomado sua voz emprestada. Pouco a pouco, o tom se tornava mais elevado, ocorriam certas inflexões pertencentes à canção e ao mais autêntico discurso, ao pronunciamento mais espontâneo. Copeau estava ainda imóvel em sua grande poltrona. Somente seu rosto, do outro lado da sala, à nossa frente, nunca parava de se mover: os olhos, a boca...Fora isso, nem um gesto, a não ser um leve movimento da mão que levantava ou abaixava. Imóvel, ainda assim cada personagem da fábula chegava até nós com seu tom vital, seu sotaque, sua personalidade. Respondiam uns aos outros. Como num quarteto de cordas, quando o violino dialoga com seus companheiros. E nós, nós havíamos sido apanhados pela rede da aventura. Envolvidos nela. Sentíamos as angústias daqueles infortúnios. Eles nos fascinavam. Estávamos obcecados por eles. Nos esquecemos de Copeau. Não sabíamos se ainda estava lá. Restavam apenas o pobre homem que seria enforcado e uma rainha que queria defende-lo da tortura. Essa foi à virtude do encantamento que desenrolou sua magia na meia-luz de um domingo desetembro.
Quando a música parou, nos levantamos. Philippe balbuciou um agradecimento e partimos. Voltamos à minha casa, que naquele verão era ao lado da de Copeau. Voltamos em silêncio, como dois homens a quem algo acabara de ser confidenciado, a quem havia sido dado um segredo, e que estavam tão zelosos por guarda-lo que não se atreviam a falar nem mesmo entre eles. (Sampson 5-6)
III. Copeau e seus colegas utilizam um vocabulário incomum e similar para descrever este estado ideal
Lendo os inúmeros textos de Copeau e seus principais discípulos – entre eles Jean Dasté, Michel St. Denis, Charles Dullin, Etienne Decroux e Jean Dorcy – somos atingidos com freqüência por certas metáforas. Cada um destes homens usa uma linguagem semelhante para descrever sobre um certo estado ideal – físico e mental – para o ator. Vamos tentar ouvir essas palavras como pela primeira vez. São termos geralmente utilizados para descrever a experiência do ator. São terminologia recebida, palavras agora cotidianas. São, portanto, termos que perderam, pelo menos em parte, sua força original. Vamos tentar ouvi-los como pela primeira vez para podemos depois discuti-los melhor. Jean Dasté disse ficar “possuído” e experienciar “momentos de exaltação”. Dullin escreveu sobre um “estado alterado de consciência”. Jean Dorcy usou a palavra “transe”. E Copeau escreveu sobre uma personagem que “vem de fora, toma conta dele e o substitui”. Um ator dirigido por Copeau em Os Irmãos Karamazov utilizou a expressão de Dullin – estado alterado de consciência – para descrever como, depois de ter sido gravemente ferido em cena, continuou atuando apesar do ferimento e do sangue. E Decroux, anticlerical de pai para filho, freqüentemente dizia que o ator deveria ser “habitado por um deus”. As origens religiosas do teatro, evidentes em muitas formas de teatro não-ocidentais, estavam, no tempo de Copeau, bastante encobertas pelo comercialismo do século XIX. Era contra este tipo de atuação, esta abordagem mais “comercial” do que “religiosa” do teatro, que Copeau reagia. Me é impossível determinar se este vocabulário era corrente no meio teatral antes de Copeau (supostamente, o grande ator francês do século XIX, Mounet-Sully, teria dito de uma apresentação fracassada que “os deuses não haviam descido”). Com Copeau era uma questão de devolver a estas imagens sua vitalidade original, sua verdade física, redescobrindo a máscara como um antídoto para a interpretação canastrona. Este estudo da máscara, que se tornou parte integral do treinamento de jovens atores na escola de Copeau, veio a ser uma redescoberta importante para os atores acidentais do século XX. Exercícios com máscara, que para nós parecem completamente normais, eram, à época, totalmente excepcionais. O que equivale a dizer, revolucionários.
Pode parecer surpreendente e original que estes homens que viveram e trabalharam no país de Decartes, onde a clareza e a razão são deuses, tenham encontrado um instrumento xamânico, a máscara, para ajuda-los a desenvolver a presença e a sinceridade nas suas atuações. Sem um profundo conhecimento de sistemas e abordagens não-ocidentais, eles descobriam um instrumento, a máscara, também usado nos treinamentos não ocidentais. E escreveram e falaram sobre este instrumento utilizando um vocabulário especializado, um vocabulário também encontrado em sistemas não-ocidentais. Poderia-se dizer que Copeau, ao mesmo tempo, nos relembrou da duradoura tradição ocidental de máscaras.
IV. O paradigma de Davis Cole: uma ótica para ver Copeau e colaboradores
O paradigma desenvolvido pelo teórico teatral norte-americano David Cole em seu livro The Theatrical Event, de 1975, parece idealmente adequado enquanto ótica para a percepção do trabalho com máscaras de Copeau.
Cole afirma em seu livro, no qual reconhece débito para com Mircea Eliade, que a atividade teatral pode ser visualizada através de um esquema de 1) busca xamânica, uma jornada psíquica a um outro mundo, o mundo do texto, seguida de 2) uma espécie de tomada de controle psíquica (chamada de “rounding” ou possessão) pela personagem do texto, e subseqüentemente, 3) uma volta ao mundo cotidiano, onde o ator possuído realiza uma performance inspirada para uma platéia atenta. Cole não reivindica, como Copeau, uma dimensão sagrada ou função religiosa para o drama. No entanto, vistos nas práticas rituais analogias úteis às práticas teatrais. Citando Cole:
Atividade xamânica e comportamento de possessão se parecem freqüentemente com teatro, enquanto o ensaio contemporâneo e métodos de treinamento do ator muitas vezes remetem a práticas de xamãs e especialistas em possessão. No momento da passagem de um ator de viajante xamânico a veículo possuído, nasce o teatro enquanto evento.
Uma versão resumida do paradigma de Cole pode ser a seguinte: 1) viagem xamânica ao illud tempus ou o mundo da peça; 2) sua descoberta, e o subseqüente deixarem-se tomar conta, chamado possessão ou “rounding”; 3) o retorno do ator ao nosso mundo, possuído pela Imagem, mas ainda em controle de si mesmo. Esta é a parte da atividade que Cole chama de “retorno hunganístico”, nome relacionado a aspectos de rituais haitianos.
Para alguns leitores, isso pode soar como as tentativas Californianas de “canalização”, tão em yoga (uma pessoa viva, iniciada, servindo de “instrumento” para uma pessoa morta). No entanto, por mais infeliz que seja a semelhança com algumas práticas “new age”, o paradigma de Cole pareceria, ao menos para os atores e diretores aos quais nos referimos neste texto (e também para outros mais contemporâneos), um modo apurado de descrever o ofício do ator.
V. A Máscara: instrumento xamanístico e um instrumento para o treinamento do ator
Em suas anotações para A la rencontre de la mime, Jean Dorcy fornece instruções notavelmente detalhadas sobre como colocar a máscara. Parecem ser instruções de entrada na busca xamânica. Perceba a qualidade da linguagem de Dorcy, a ressonância das palavras escolhidas para descrever a sua jornada:
Indico aqui os ritos que sigo para poder atuar com a máscara:
a) Bem sentado no meio da cadeira, sem se recostar. Pernas suficientemente separadas para garantir bom equilíbrio. O pé apoiando todo no chão.
Para este princípio de investigação, o ator (xamã) é aconselhado a estar relaxado, porém alerta (costas longe do encosto da cadeira).
b) Estenda o braço direito horizontalmente, na altura do ombro, à sua frente; ele segura a máscara, que pende pela banda elástica. A mão esquerda, igualmente estendida, ajuda na colocação da máscara, o polegar segura o queixo, o indicador e o dedo do meio seguram o espaço entre os lábios.
c) Simultaneamente exale, feche os olhos, e coloque a máscara.
Aqui, em B, há um modo prático mas codificado de pôr a máscara. Em C, é pedido que o xamã/ator bloqueie a realidade deste mundo através da expiração e do cerrar os olhos. Ao mesmo tempo em que bloqueia este mundo, coloca o instrumento que o levará a um segundo e diferente mundo.
d) Simultaneamente inspire e coloque os antebraços e as mãos sobre as coxas. Os braços, assim como os cotovelos, encostam-se ao tronco, os dedos quase tocando nos joelhos.
e) Abra os olhos, expire, e então, simultaneamente, feche os olhos, inspire e incline a cabeça à frente. Ao inclinar a cabeça, as costas arredondam-se um pouco. Nesta fase, braços, mãos, peito e cabeça estão completamente relaxados.
A instrução mais importante aqui é a de relaxamento total, o que Dasté chamou de “criar o vazio”, antes daquilo que Decroux chamava de “despejar os inquilinos”. Este despejo forçado é visto no próximo passo.
f) É aqui, nesta posição, que se limpa a mente. Repita mentalmente ou audivelmente se ajudar, e por quanto tempo for necessário (2, 5, 10, 25 segundos), “Estou pensando em nada, estou pensando em nada, estou pensando em nada...”
Se por nervosismo ou pelo coração estiver batendo muito depressa, o “estou pensando em nada” for inútil, focalize as sombras enegrecidas, cinzas, chumbo, alaranjadas, azuis ou de outras cores,na parte interior das pálpebras, e continue a fazer isso em pensamento, infinitamente. Este foco quase sempre consegue parar as maquinações da mente.
Estas podem parecer instruções para entrar em um estado de meditação ou transe. As palavras-chave em vigor parecem ser “pare o funcionamento da mente”.
g) Simultaneamente inspire, aprume-se na cadeira, e então expire e abra os olhos.
Aqui, o ator com a máscara, suficientemente senhor de si, pode ser possuído por personagens, objetos, pensamentos; está apto a atuar dramaticamente. (1958, 145-6)
VI. Por que a máscara?
Após a temporada inaugural de 1913-14, quando dirigiu peças no Vieux-Colombier e atuou em algumas delas, o trabalho de Copeau foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial. Ele aproveitou a interrupção para visitar Appia, Dalcroze e Edward Gordon Craig. A primeira menção de Copeau a máscaras está em um artigo de seu diário de 1915, no qual escreve sobre as “caixas de vidro contendo máscaras” (1991,718) de Craig, na Arena Goldoni, que Copeau visitara naquele ano. Em suas conversas, Craig afirmava que “não se pode fazer nada de artístico com o rosto humano” (1991,719). Craig praticava pouco com as máscaras. Nos anos seguintes, Copeau viria a tira-las de suas caixas de vidro e usa-las como instrumento para revitalizar um teatro moribundo. A máxima de Craig, “a máscara é o único meio correto de retratar as expressões da alma como são mostradas através das expressões faciais” (13), tornou-se, poucos anos adiante na carreira de Copeau, um chamado à ação. Copeau deve também ter conhecido e lembrado a definição de Craig do rosto de Henry Irving como “o vínculo que conecta as expressões ridículas e espasmódicas da face humana utilizadas pelos teatros dos últimos séculos, e a máscara que será usada em lugar do rosto humano num futuro próximo” (12-13). Copeau e seus discípulos reagiram fortemente àquela “expressão espasmódica e ridícula da face humana”, de diversas maneiras. Alguns defenderiam a performance com máscara, outros a performance com o rosto inexpressivo ou à semelhança de uma máscara. Em todo caso, cobrir o rosto ou limita-lo em sua expressão, tornou imediatamente o corpo um elemento mais importante na comunicação.
Por volta desta mesma época, 1915, ao analisar o trabalho dos alunos, Copeau observa que: “No momento em que evoca um sentimento humano (alegria, tristeza, fadiga, etc.) para motivar um movimento específico, um pedaço de mímica, imediatamente e talvez inconscientemente, o aluno permite que o elemento intelectual predomine em sua ação, o jogo de expressão facial. É a porta aberta à atuação literária e ham (canastrona)” (Kusler, 52) Foi exatamente para bloquear esta porta aberta, este jogo facial, que Copeau fez seus primeiros experimentos com a máscara, utilizando meias sobre as cabeças dos alunos. Com a “rota de escape” do rosto fechada, o aluno era obrigado a embarcar em uma jornada diferente, mais complexa, mais difícil e, por fim, mais satisfatória, a qual Cole descreveu: “Jornadas interiores em busca de componentes psíquicos que correspondam a realidades exteriores são a especialidade de uma classe de praticantes religiosos chamados ´xamãs´.” (11) Dizendo de outra maneira, exercícios de atuação, memória sensorial e meditação, podem levar o ator a encontrar elementos de sua própria personalidade que correspondam a elementos da personagem que ele irá retratar. Um dos estudantes com que Copeau primeiro trabalhou nesses exercícios, Jean Dasté, descreveu-os deste modo:
Com a máscara é impossível enganar. Quando tentamos expressar um sentimento ou emoção, se não nos sentirmos impelidos por uma força interior, sabemos que não “o temos”. Cada gesto planejado era uma nota falsa. Usar máscaras também nos ensinou a sermos sinceros. (1987,88)
Jacques Prénat escreveu acerca de uma visita à Escola em Burgundy: (377-400)
Já que utilizam máscaras em seus exercícios, por que não confecciona-las eles mesmos? Isso só poderia vir a refinar o seu conhecimento das leis que governam as expressões faciais. Seus experimentos, a tentativa e o erro de seus dedos na argila, deverão também amadurecer e aprofundar seus conhecimentos sobre o homem como é revelado pela face. Estes benefícios adicionais não podem ser menosprezados. No entanto, continua por ser explicado porque, remetendo-se a Commedia Dell´Arte e ao teatro grego antigo, Copeau retomou o uso da máscara.
Estamos começando a responder à questão de Prenát: Por que Copeau usava máscaras? Talvez uma pergunta da mesma importância seja: Por que Copeau fazia que seus alunos confeccionassem suas próprias máscaras? Copeau estava convencido de que, como muitos dos primeiros atores de Noh, seus alunos poderiam aprender tanto ao fazer as máscaras quanto ao atuar através delas. Fabricantes de máscaras à revelia, a princípio, os antigos atores de Noh e os aprendizes de Copeau talvez tenham descoberto que o processo de fazer as máscaras enriquecia seu processo de ator. Hoje em dia, quando a maior parte dos atores de Noh tem suas máscaras feitas por especialistas, assim como a maior parte dos atores ocidentais, nas raras vezes em que utilizam máscaras, pode-se dizer que algo de essencial foi perdido. Este algo de essencial pode ser, como notou Prénat, a “tentativa e erro de seus dedos na argila.... para amadurecer e aprofundar o seu conhecimento do homem como é revelado pela face.” Copeau, Bing e seus alunos sabiam instintivamente que esses não eram, para citar novamente Prénat, “benefícios adicionais menosprezáveis”.
VII. Saül e a atuação com máscara
Nos anos de 1921-22, os experimentos com máscaras realizados com os aprendizes na Ecole du Vieux-Colombier já haviam progredido bem além da colocação de meias sobre os rostos. Nesta temporada, os alunos fizeram suas próprias máscaras e atuaram como o coro em Saül de André Gide, uma releitura da estória bíblica.
Como preparação para esta performance, os alunos estudaram o movimento de animais e máscaras, para então fazerem máscaras de demônios e movimentos demoníacos para o coro. Na mise em scène especificamente citada por Copeau, os demônios mascarados pareciam por detrás das cortinas, as cabeças antes, seguidas pelo resto dos corpos: “Os demônios entravam cautelosamente, como camundongos em um apartamento vazio, com passos rápidos, voltando a cabeça da direta e da esquerda para o centro no momento em que outros dois demônios entravam, etc.” (F.C.) A descrição dos movimentos dos demônios, bem como as críticas que se seguiram, dão uma noção do que possa ter parecido esse espetáculo. As críticas, de diferentes opiniões, nos mostram que nem todos os espectadores consideravam apropriadas as performances com máscaras, e que nem toda a performance era igualmente vigorosa.
Um crítico descreveu os demônios da seguinte maneira: “Demônios apareciam no palco em carne e osso, com suas formas bestiais, seus murmúrios insidiosos, suas palavras cáusticas e dilacerantes.” (Paris Journal)
Mesmo não tendo sido totalmente bem recebidas pelo público e pela crítica, um crítico comentou que, “as cenas em que Saul é visitado por demônios são ferozmente alucinatórias, selvagemente grandiosas, como a cena da caverna com a bruxa de Endor”. (Excelsior) Outro crítico, no entanto, achou que “esta aparição de máscaras carrancudas que balbuciavam infantilmente parecia a princípio engenhosa. Mas com a repetição a cada ato, essa fantasia tornou-se, por fim, cansativa.” (Le Galois) Ainda que os resultados tenham sido irregulares, o uso de um instrumento xamânico como a máscara não é inusitado em uma peça repleta de feiticeiros, predições, destino e prenúncios. De acordo com o vocabulário de Cole, quando os demônios abrem as cortinas para aparecer, primeiro com suas cabeças, estariam vindo do illud tempus (o mundo da peça, o Paraíso, ou , nesse caso, o Submundo), pouco a pouco se manifestando neste mundo graças à empreitada xamânica (ensaios, observação de animais, confecção de mascadas) dos atores. (104)
VIII. Esvaziando o apartamento
Em uma carta enviada amim em 29 de janeiro de 1994, Jean Dasté escreveu sobre o uso da máscara:
Antes de cada exercício tínhamos que nos preparar, criar em nós mesmos uma espécie de vazio para poder permitir que uma outra individualidade tomasse vida. Descobri, ao mudar de rosto, que não era mais meu “eu” usual, cotidiano. Era como se possuído por um outro, e este outro existia em uma dimensão que não era a minha. E que o exercício que eu tentava expressar comandava meu corpo para que fizesse outros gestos, atitudes diferentes.
Dasté confirma aqui o modelo de Cole: a preparação para a atuação, na maioria das vezes, e para a maior parte dos rituais xamânicos, é o relaxamento, uma desistência do eu consciente. É deste vazio que fala Dasté; possessão ou “rounding” é a experiência de ser tomado: seu corpo era então comandado para que fizesse outros gestos e assumisse outras atitudes. Gestos e atitudes que pertenciam à máscara e não a ele pessoalmente.
A linguagem aplicada por Dasté é similar a de Jean Dorcy, que escreveu:
Quando alguém coloca a máscara, o que acontece? Ele se retira do mundo exterior. À noite que ele impõe a si mesmo permite que, primeiro, rejeite tudo que é incômodo. Então, por um esforço de concentração, que alcance o vazio. Deste momento em diante ele pode reviver e atuar, mas, desta vez, dramaticamente. (1958,30)
Em outro lugar Dorcy escreve: “O mímico, a partir do momento em que coloca a máscara, não importa de que natureza, esvazia-se e se preenche com uma outra substância.” (1962,91)
Jean Dorcy notou que uma colega sua em Burbundy, Yvonne Galli, era mais bem sucedida e mais rápida que os demais alunos ao “limpar a mente e entrar em um estado receptivo.” Ele vai em frente e pergunta “Saberia ela a senha de entrada? Nunca perguntei como ela detonava isso.” Foi Galli quem expressou o maior fervor religioso quando foi pedido aos alunos que escrevessem os Dez Mandamentos para a Ecola du Vieux-Colombier. (Kusler 164,5) Talvez seja uma coincidência que ela fosse capaz de entrar facilmente em estado de transe e que também fosse devotamente, e talvez até em uma medida não saudável, dedicada a Copeau. Um psicólogo poderia chamá-la de sugestionável ou desequilibrada, enquanto um antropólogo poderia chamá-la de xamã. (Cole, 21)
Todos esses atores parecem concordar que o primeiro passo, o relaxamento ou esvaziamento, é crucial. Copeau escreveu: “Acho que há, como ponto de partida, uma espécie de pureza, uma integridade do indivíduo, um estado de calma, de naturalidade, de relaxamento.” (Kusler, 73) De modo semelhante, M.H. Dasté registrou em seus cadernos de 1921-22 que meditação ou contemplação eram o ato de tomar o tempo de vestir a máscara e acalmar o pensamento, de libertar o “eu” para a influência da máscara. (Kusler, 117) Este processo de esvaziar o “eu” cotidiano em favor da personagem era encorajado por Copeau, com ou sem máscara, tanto entre os atores maduros com que trabalhava, quanto entre os aprendizes acima mencionados.
IX. ....Então, Deus toma conta
Copeau, em sua introdução para “O Paradoxo do Comediante” de Diderot, descreve precisamente a atividade: “Diz-se que um ator entra num papel, que se põe na pele da personagem. O que não é exato, já que é a personagem que vem de encontro ao ator, que exige dele tudo o que necessita para que exista, às suas custas, e que pouco a pouco o substitui dentro de sua própria pele”. (13-14) Ele continua: “Não é realmente o suficiente enxergar a personagem, ou entende-la bem, para ser capaz de ser tornar ela. Não é o suficiente possuí-la para lhe dar vida. Deve-se ser possuído pela personagem” (14) Observação semelhante à de Charles Dullin, de que “a personagem toma conta e o domina” (36)
O estado que Copeau descreve aqui é o retorno hungânico, quando o ator é habituado ou possuído por sua personagem. Cole escreve que:
Para o ator, assim como para os verdadeiros xamãs e “hungans”, as “jornadas” e a “possessão” são experiências interiores. Mas como também acontece com os verdadeiros xamãs e “hungan”, essas experiências interiores servem a uma função pública. O ator-enquanto-xamã é o enviado da platéia ao illud tempus do texto: ele se aproxima daquilo do que a audiência pode se aproximar. O ator-enquanto- “hungan” é o enviado do texto à audiência: ele consente à possessão para que a platéia possa ter a presença de figuras do texto em carne e osso. (14-15)
Charles Dullin descreve seus ensaios de Os Irmãos Karamazov com Copeau: “Certa vez o diretor deu-me instruções de cena que me forçaram a entrar em um estado alterado de consciência, necessário ao ator. ...as críticas inteligentes de Copeau me auxiliaram admiravelmente em meus esforços. Senti-me dia a dia mais possuído pela personagem.” (39-40) O uso deste vocabulário por Dullin, “estado alterado de consciência”, “possessão”, indica que lê estava consciente do processo do ator. As “instruções de cena” foram, nesse caso, uma via de acesso ao illud tempus. Dullin diz que “essa manifestação ao mesmo tempo animal e espiritual, onde corpo e alma sentem a necessidade de se unir para exteriorizar uma personagem, me deu a posse da personagem e ao mesmo tempo impôs, de um modo geral, uma das leis fundamentais da arte da atuação.” (40-41)
Esta viagem ao “segundo estado” de Dullin pode ser percebida como uma jornada xamânica: a subseqüente possessão, um passo essencial na manifestação do illud tempus do texto.
Outro ator em Os Irmãos Karamazov, Paul OEtlly, disse a respeito da completa concentração: “Este tipo de inconsciência só é possível, creio eu, naquelas noites em que se está em um estado alterado de consciência, o que é uma dádiva infinitamente mais rara do que supõe a maior parte dos atores.” (Cézan) No seu caso, e de sua parceira Valentine Tessier, a concentração em cena era tão grande que nenhum dos dois notou quando OEtlly cortou a mão em cena, e só pararam quando quem assistia insistiu que parassem para fazer um curativo.
Jean Dasté descreve novamente este processo, sem máscara, de outra maneira:
Sempre me lembro de minha primeira descoberta de ir além de mim mesmo. Eu era jovem de 22 anos de cabeça quente. Queria tanto me sair bem que nunca conseguia. Sempre tenso, nunca sob controle, com a voz na garganta, articulava mal e falava rápido demais, pensando que estava vivendo sinceramente aquela situação... Uma bela noite, em viagem com o espetáculo.... durante minha grande cena de amor, sem ter me preocupado mais que o normal, de repente me senti em posse da minha voz, da minha elocução, de meus gestos, involuntariamente sob controle. Eu podia prolongar um movimento, um silêncio, uma entonação. Encontrava-me em um tempo diferente, um espaço diferente, em uma outra dimensão. Quando acabou a cena, entrei para as coxias radiante de alegria. Jacques Copeau me esperava. Tomou-me em seus braços e me abraçou dizendo: “Esta noite você atuou.” (1987,82)
É evidente que Copeau encorajava este processo de viagem, descoberta e retorno, com ou sem máscara, em todos que trabalhavam com ele. Neste caso Dasté conseguiu fazer presente no palco o que Cole chama de “verdade imaginativa”.
X. “Dédoublemente” – presente ainda que ausente
Jean Dasté escreve que enquanto, de certa forma, o ator se deixa levar, ele está também sob controle. Cole chama de “uma consciência duplicada que descobrimos ser característica da experiência de possessão”. (Cole,50) Uma aluna na escola disse a M.H. Dasté que sentia “uma força e uma segurança desconhecidas – uma espécie de equilíbrio e consciência de cada gesto e de mim mesma.” (Kusler, 117) Decroux chamou este estado de estar “presente ainda que ausente”.
Dorcy nos dá uma boa noção desta “consciência duplicada” na seguinte descrição de uma improvisação com máscara, que se tornou um importante instrumento para Copeau e seus seguidores para ensinar como entrar no estado de performance:
Com a máxima calma e autodomínio, imerso em sua linha de ação, aquele que improvisa, com a alma à espera, está atento somente ao que poderá nascer. De repente, algo surge. Um renascimentopara ele, que deve recomeçar a partir desta nova situação, juntar todas as suas forças, projetar os possíveis desenvolvimentos deste evento imprevisto. Ele deve se ver da platéia e, acima de tudo, mesmo das profundezas do transe que está experimentando, não perder de vista a estrutura geral da improvisação. (1962,92)
Copeau, novamente em sua introdução ao Paradoxo do comediante, diz:
O ator que trabalha com a máscara recebe deste objeto de papel a realidade de sua personagem. Ele é comandado por ela, e obedece irresistivelmente. Ele mal a colocou quando sente este ser sendo despejado para dentro de si. Um ser do qual ele estava vazio, do qual ele jamais havia ao menos suspeitado. Não só a sua face se modifica, mas toda a sua pessoa. Até a natureza de seus reflexos, onde já se formam sentimentos que ele seria incapaz de experimentar ou fingir que experimenta sem a máscara no rosto. Se for um bailarino, todo o estilo de sua dança; se for um ator, até as acentuações de sua voz serão ditadas pela máscara – em latim, persona – o que equivale a dizer a personalidade da máscara, seu caráter, sem vida ao menos que o ator se una intimamente a ela; a vida essa que vem de fora e toma conta, substituindo o ator. (14-15)
XI. A flor do Noh
Jacques Copeau foi instintivamente levado, por uma questão de gosto ou tendência, a um teatro restrito baseado na espiritualidade. A intuição de Copeau o levou a estudar, auxiliando por sua colega Suzanne Bing e antes de muitos outros profissionais de teatro do ocidente, um antigo e xamânico teatro com máscaras, rico em canto, dança e gestual – o teatro Noh japonês. Acredito que ele tenha sido de grande importância na vida da Ecole du Vieux-Colombier e também na de Copeau.
O Livre de Bord da escola registra a primeira lição de Noh com Madame Bing em 5 de novembro de 1923. No verão daquele ano, enquanto Copeau trabalhava em projetos puramente literários, como a conclusão de sua peça La Maison Natale, Suzanne Bing preparava Kantan com os aprendizes. Eles se preparavam, sem saber, para a última temporada do agora mundialmente famoso Théâtre du Vieux-Colombier. A peça de Copeau, na qual havia trabalhado por 20 anos, viria a ser um fracasso e a marcar o fim de uma era para ele e seu teatro. O fracasso dessa peça aparentemente autobiográfica parece ter sido o final das aspirações de Copeau enquanto dramaturgo. Se La Maison Natale havia fechado um capítulo, o projeto de Mme.Bing, Kantan, abriria um outro. Foi trabalhando nesta peça Noh que Copeau vislumbrou um futuro para si e para o teatro. As notas de Mme.Bing sobre o trabalho no verão de 1923 são reveladoras: elas indicam que ao avançar em seu estudo do Noh, eles se depararam com o fato de que as leis dramáticas a que ele obedecia estavam intimamente ligadas às leis que Copeau começara a desenvolver para a Ecole du Vieux-Colombier. O Noh era uma aplicação dos estudos musicais, dramáticos e de movimento que os alunos vinham realizando por três anos, de tal modo que suas improvisações estavam mais relacionadas ao Noh do que a qualquer outro estilo contemporâneo. (F.C.)
É importante ressaltar que Bing e Copeau estavam trabalhando somente a partir de fontes literárias, e que nenhum dos dois havia visto uma apresentação de Noh, ou tido aulas de Noh, ou mesmo falado com qualquer pessoa que tivesse. Portanto, sua noção do que era teatro Noh na realidade era, na melhor das hipóteses, incompleta. Mas esses estudos literários os encorajavam a prosseguir em uma direção que eles sentiam ser importante. E quando Copeau finalmente assistiu ao teatro japonês alguns anos depois, escreveu aprobativa e detalhadamente. (Copeau, 1930)
O que Copeau e Bing buscavam em sua pesquisa não existia na França (e talvez nem em toda a Europa). Eles procuraram no Japão a autoridade para estabelecer no ocidente o que sentiam estar faltando no teatro de seu tempo. Mme. Bing explica em suas notas sobre o projeto de Noh que não havia uma palavra na França naquele momento para designar esta nova forma. “Drama lírico” ou “poema dramático” não davam conta de poesia, drama e música, além de dança, canto, declamação, cores e formas, figurinos, belos movimentos – acima de tudo, a concordância entre esses elementos – de harmonia, discrição e comunicação com o público. (Bing)
Por causa de uma entorse no joelho de um dos atores, houve somente uma pré-estréia de Kandan, em 13 de maio de 1924, vista por estudantes da escola, por André Gide, e pelo diretor britânico Harley Granville-Barker. O último elogiou efusivamente o trabalho. Já Gide achou-o desapontador. Para Copeau o trabalho “continua sendo uma das jóias da coroa, uma das riquezas secretas da produção do Vieux-Colombier.” (Kusler, 150) Decroux disse a Bárbara Kusler que “foi à única vez em minha vida que senti a arte da Dicção”.
Vinte anos depois, Jean Marie Dasté e Marie-Helene Dasté, inspirados naquela performance notável, criaram e apresentaram duas peças adaptadas de Noh, nos primeiros anos da Comédie de Saint-Etienne. Jean Dasté descreve assim sua experiência como ator nessas peças:
Auxiliado pelo coro, acompanhado pela percussão, pontuado pela flauta, o ator fala e realiza a mímica....ao atuar...experimentei momentos de exaltação. Durante as apresentações de Noh no Japão, essa exaltação ocorre no ator em alguns momentos durante a peça: inesperada, única, o público a aguarda tanto quanto o ator; jamais acontece da mesma maneira; é chamada de “a flor do Noh.” (82)
Teria sido uma espécie de “flor do Noh” o que alguns dos atores e observadores experimentam durante a apresentação de Kantan em 1924. Alguns espectadores sentiram-se tão emocionados que ainda lembraram vivamente da apresentação, anos depois. De qualquer modo, dois dias após a apresentação de Kantan, Copeau fechou seu teatro e se retirou para o campo com um pequeno grupo de estudantes, esperando dedicar toda a sua atenção ao trabalho na escola, sem distrair-se com as exigências de Paris e de um grupo de teatro.
XII. O macrocosmo do microcosmo
Já que seguimos até aqui p paradigma de Cole e o usamos enquanto modo de ver o trabalho de Copeau, poderíamos ir um passo além? Poderíamos usa-lo como um modo de olhar para a vida de Copeau, que era, em um sentido real, seu trabalho. (Se não foi capaz de escrever a novela ou peça que queria, pode-se dizer que seus diários, recentemente publicados em dois volumes, são uma obra-prima do gênero).
Podemos comparar seu trabalho, até a produção de Kantan, com a busca xamânica; a performance de Kantan, na qual ele parece ter experimentado “a flor do Noh”, - algo como o que Dasté chamou de “exaltação” – com a possessão ou “rounding”. Sua vida subseqüente, que para muitos pareceu um fracasso, à margem da atividade teatral (o período no qual ele realizou brilhantes leituras de peças para platéias enfeitiçadas por seus poderes, uma das quais foi descrita anteriormente; o período no qual ele realizou aquela que considerava sua mais importante mise-em-scène), foi à fase “hungânica”, que tornou presente o illud tempus.
Terá sua retirada para o campo sido realmente um avanço? Foi durante este período final de sua vida que Copeau mais se interessou pelo drama sagrado. Poderemos então ver seus anos silenciosos como os mais produtivos, seus anos afastados de Paris como os mais vigorosos? Uma vez que havia descoberto o que a máscara tinha para ensina-lo, uma vez que tinha “rounded”, ele não mais precisava das lições de sua companhia teatral ou de seus alunos, apesar de lhe ser difícil o desligamento. O processo de separação dos atores-alunos levou anos para acontecer inteiramente.
Um autor não identificado opinou que:
Em poucos anos de luta, Jacques Copeau renovou o teatro francês. No entanto, quando seu período criativo acabou, o “patrono” passou a levar uma vida secreta, silenciosa e mais fértil do que se imaginaria, unido a Deus. (Sampson, 15)
Jean Villard-Gilles parece ter recapitulado para Copeau todo o processo de busca xamânica, “rounding” e possessão, seguida do retorno hungânico, quando escreveu:“Teatro, lugar de comunhão, presença viva do poeta através do meio do ator...” (28) Ou, com as palavras atribuídas por Copeau a São Francisco em Lê Petit Pauvre: “Se você tiver o dom do silêncio e da imobilidade, se não se mover, se se unir à clareira silenciosa, à doçura do ar e dos ramos, verá toda a criação chegar até você.” (1946,28-29)
O famoso palco revolucionário de Copeau, o palco vazio que ele prescreveu como remédio para um teatro doente, exigia um novo ator para habita-lo. Este palco vazio encontra um corolário no xamânico vazio interior do ator, local de silêncio e imobilidade dos quais falou São Francisco. E o principal instrumento que capacita o ator a viver este silêncio interior e exterior, a andar no fio da navalha da imobilidade dinâmica, é a máscara. A máscara permite ao ator reunir-se som seus ancestrais nas eras douradas do teatro – teatro grego antigo, o Noh japonês, a Commedia Dell´Arte. Todos eles, usando máscaras, transformaram o palco vazio em um recanto sagrado, a clareira silenciosa.
XIII. De volta a Boulogne-Billancourt
Copeau sempre quis que o teatro permanecesse um todo, e se opunha ao estudo isolado da mímica. Ainda assim, em tempos difíceis, os ensinamentos “secretos” vão ao underground, e continuam a acontecer nos porões de escolas de artes “menores”, preservados por praticantes “heréticos”. Como sementes em hibernação, eles aguardam um clima mais receptivo, e enquanto isso acumulam força e poder. Há, então, uma deliciosa ironia no fato de as duas importantes escolas de mímica de Paris – a de Etienne Decroux (desde sua morte funcionando na escola de Steve Wasson e Corinne Soum na Place St. George) e a Jacques LeCoq – terem mantido vivos os ensinamentos de Copeau sobre a presença do ator.
O nome de Copeau era invocado quase que diariamente no suburbano porão azul de Decroux. Dentro do mesmo espírito, recebeu um proeminente lugar no livro Paroles sur le mime, de Decroux. Entretanto, durante muitos dos seus anos de retiro e após a sua morte, ele foi esquecido pela “cena teatral”, ou, se lembrando, não como uma figura central. Os ensinamentos de Decroux, em ambas as partes, técnica e improvisacional, eram fortemente baseados na idéia da construção da presença cênica do ator através de um processo de esvaziar para depois preencher. Veja o nome de alguns de seus exercícios: O nascimento da consciência; Deus pesca o homem; A prece; A vida começa por baixo; A vida começa pelo alto. As máximas de Decroux, que eram centenas, estão repletas de alusões à presença e à ausência, à imobilidade e ao movimento. E, a fim de que não esqueçamos de ler seções importantes de Paroles sur le mime, Decroux nunca pensou que o teatro devesse ser silencioso por muito tempo – só o suficiente para que o ator recuperasse o controle sobre o terreno.
Agora olhe em volta. Vemos como prática corriqueira tudo aquilo contra o que Copeau se rebelava: o star system, cenários elaborados, efeitos especiais avassaladores, cabotinismo, o culto `a personalidade – e são os mímicos, quase os únicos, a preservar o palco vazio, o corpo bem treinado, o uso inteligente da máscara, o respeito pela habilidade e o texto em um lugar de honra (e não esmagador). Quando apontamos o teatro de Mnouchkine como um exemplo das idéias de Copeau em ação, não devemos esquecer que chegaram a ela através da escola de Jacques LeCoq.
Em outubro de 1994, Eugenio Barba deu uma palestra no Théâtre Renauld-Barrault em Paris, na qual se descreveu como um homme de la pérphérie (o significado á claro: alguém que não faz parte do modo estabelecido de fazer as coisas). Ele falou com autoridade sobre a importância de manter-se nos arredores, mesmo que geograficamente no centro, e citou os nomes de trabalhadores do teatro com os quais sente afinidades. Um deles era Copeau, o outro Decroux. Ambos, em suas posições de outsiders influentes, criaram e mantiveram viva uma forte tradição de construir a presença do ator através da máscara como instrumento xamânico.
XIV. Mas será realmente xamânico?
Será correto nos referirmos à máscara, conforme usada por esses profissionais franceses, enquanto instrumento xamânico? Decroux e Copeau negariam ter intenções de iniciar seus alunos em ritos ou cultos, apesar da forte evidência em contrário. Uma rápida leitura do livre de bord da escola de Copeau já nos daria uma idéia das estruturas religiosas que Copeau tinha em mente. Bem antes disso, Copeau escreveu sobre a importância de treinar os atores desde a infância, antes de poderem ser estragados pelo mundo, e de “renormalizar” atores adultos já arruinados. E Decroux, em suas lições, (que começavam com um toque de sino: em algumas culturas, um convite ao transe) modificava a coluna de seus alunos, seus padrões e possibilidades de movimento e articulações, sua respiração, e, através de improvisações, os iniciava em estados alterados de consciência. Em alguns casos, Decroux mudava o nome dos alunos e lhes dava cordas de diferentes cores (usadas no treinamento) quando se tornavam “iniciados” – quando se tornavam anciens elèves (estudantes avançados). As performances em sua escola eram apresentadas a um público selecionado formado somente por “believers” (aqueles que acreditam). E, para a maior parte de seus alunos, estudar com Decroux envolvia mudanças importantes e radicais de cultura e de idioma, já que 95 por cento deles não eram franceses. (Ao ler esta descrição, meus alunos americanos acharam que a escola de Decroux tinha alguma semelhança com um culto. Talvez tivesse, e nesse aspecto se parecia com outros treinamentos sérios em teatro, dança e artes marciais em muitas partes do mundo. No entanto, jamais pareceu uma tentativa invasiva e impregnante de controlar minha vida pessoal. O porão azul não poderia ser considerado, por mais imaginação que se use, uma versão artística dos cultos como eles são geralmente conhecidos nos Estados Unidos).
Talvez não seja xamânico, mas certamente tem semelhanças com o xamanismo. Do mesmo modo que, quando os bailarinos de Alvin Ailey falam de “crossing over” durante a performance (conforme o relato de Anna Deavere Smith em 1993), podem não estar falando de um ponto de vista antropológico, mas simplesmente descrevendo o que fazem. Será possível que o que descrevemos com “xamânico” em algumas culturas tenha sempre existido nas tradições européias de atividades de performance? Talvez estes profissionais não tenham escrito ou discutido muito sobre isso. Eram, em outras épocas, seguidamente considerados heréticos, pelo que Copeau descrevia como seu “commerce étrange”. Em algum momento entre a dança do Rei David em frente ao Arco do Concílio e o sepultamento de Molière em solo profano, há uma falha em nossa compreensão do papel do ator/dançarino. Somente agora esta falha está sendo reparada.
No entanto, por causa dos programas de treinamento universitários, há agora muitos acadêmicos escrevendo sobre teatro e dança que jamais os praticaram em profundidade. Apesar de admitirem facilmente a atividade xamânica em formas não ocidentais, não podem admiti-las em formas ocidentais porque jamais as experimentaram em primeira mão.
Alguns performers contemporâneos falam prontamente em componentes xamânicos em seu trabalho. A bailarina e professora parisiense Elsa Wolliaston e o recentemente falecido mímico corporal brasileiro Luís Otávio Burnier, estão entre aqueles que reconhecem elementos de transe e possessão similares aos descritos anteriormente neste século por Copeau e seus colaboradores.
Finalmente, talvez não seja tão importante se Copeau e colaboradores eram xamânicos ou somente se assemelhavam a xamãs; esta ótica certamente nos fornece uma nova maneira de examinar o trabalho de treinamento de atores de Copeau, especialmente com a máscara. E, quanto a mim, 27 anos após meu primeiro encontro com ele, descobri que o projeto de Decroux no porão azul em Boulogne-Billancourt era construir corpos idealizados, que fossem em si próprios máscaras neutras. Os movimentos articulados destes corpos eram o equivalenteàs facetas e superfícies arredondadas das máscaras, que capturam a luz e a remetem de volta à platéia em alternância de irrupções repentinas e lentos desdobramentos. Os exercícios de máscara no Vieux-Colombier ensinaram a Decroux como o corpo desnudado deveria mover-se para alcançar a máxima visibilidade e impacto no palco vazio de Copeau. As linhas arquitetônicas que Decroux construiu no corpo telegrafaram uma visibilidade ampliada e formaram uma superfície na qual o ator podia espalhar as cores de diferentes qualidades dinâmicas. E o corpo desnudado sobre o palco nu resplandecia com luz interior quando o ator era capaz de “esvaziar o apartamento” e “Deus vinha morar ali”. O corpo de Decroux (transformado pelo mimo corporal) tornou-se a máscara, criado a partir de dentro, assim como as máscaras de Copeau eram esculpidas a partir do exterior. A história é circular: as primeiras aulas de máscara de Copeau, chamadas de mimo corporal, inspiraram Decroux a criar uma forma chamada mimo corporal, que por sua vez se tornou uma visão ampliada da máscara de Copeau.
Thomas Leabhart é professor de teatro em Pomona College
Nota: este artigo foi pesquisado e escrito durante o verão e o outono de 1994, enquanto o autor foi professor residente em Châteu de la Bretesche na Bretanha. O autor agradece o apoio da Fundação Borchard nesse período. Os comentários de meu colega Leonard Pronko e de meus alunos em Pomona College durante o primeiro semestre de 1995 tiveram valor inestimável. E finalmente, Sally Leabhart prestou grande auxílio lendo e comentando a cada fase do desenvolvimento deste artigo.

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