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Capítulo 2 Mecanismos celulares e moleculares do desenvolvimento embrionário Morten Vejilsted Desenvolvimento embrionário inicial e períodos gestacionais O desenvolvimento embrionário abrange todos os processos nos quais uma única célula – o óvulo fertilizado ou zigoto – origina primeiro um embrião e, posteriormente, um feto que ao nascimento é capaz de adaptar-se à vida pós-natal. Esses processos ocorrem de maneira contínua, mas, por conveniência, podem ser arbitrariamente divididos em períodos sucessivos. Dessa forma, o desenvolvimento intrauterino é comumente dividido em período embrionário, quando a maioria dos sistemas é formada, e período fetal, que consiste majoritariamente no crescimento e maturação dos órgãos (Cap. 18). No entanto, o desenvolvimento do organismo não para ao nascimento; os órgãos continuam a crescer e maturar ao menos até a puberdade e muitos tecidos necessitam de reposição contínua ao longo da vida. Portanto, o envelhecimento e a morte podem também ser incluídos no processo natural de desenvolvimento do organismo. O período embrionário é iniciado pela fertilização quando o ovócito, recoberto pela zona pelúcida, é fecundado pelo espermatozoide resultando no desenvolvimento do pronúcleo feminino (derivado do ovócito) e do pronúcleo masculino (derivado do espermatozoide) e na formação do embrião de uma célula chamado zigoto (Fig. 2- 1; Cap. 5). Na primeira mitose após a fertilização o zigoto transforma-se em um embrião de duas células. Essas duas, e as subsequentes células embrionárias iniciais, são denominadas blastômeros. Durante as divisões mitóticas iniciais dos blastômeros, o aumento no número de células não é acompanhado de aumento de volume celular, de tal modo que o volume total do embrião permanece constante à medida que o tamanho dos blastômeros vai sendo reduzido à metade após cada divisão. Este modo de divisão celular, que ocorre exclusivamente neste período, é conhecido como clivagem (Cap. 6). Em seguida, simultaneamente à fase em que as células atingem um determinado tamanho mínimo decorrente das clivagens sucessivas, inicia-se uma fase de crescimento celular durante os ciclos celulares, com as células-filhas crescendo até atingirem o tamanho aproximado das células-mães. A 39 manutenção do tamanho celular relativamente constante, juntamente com a intensa proliferação celular e deposição de material extracelular, leva ao aumento do tamanho do embrião como um todo. Tanto a proliferação celular como o crescimento celular são fundamentos de biologia celular geral que não serão abordados em profundidade neste livro. Fig. 2-1 Desenvolvimento inicial do embrião mamífero. A: Zigoto; B: embrião de 2 células; C: embrião de 4 células; D: mórula inicial; E: mórula compacta; F: Blastocisto; G: Blastocisto expandido; H: Blastocisto eclodindo da zona pelúcida; I: Blastocisto ovoide com disco embrionário; J: Blastocisto elongado; K: Disco embrionário no processo de gastrulação. 1: 40 Massa celular interna; 2: Trofectoderma; 3: Epiblasto; 4: Hipoblasto; 5: Disco embrionário; 6: Pregas amnióticas; 7: Ectoderma; 8: Mesoderma; 9: Endoderma. Por fim os blastômeros formam um pequeno agregado celular, similar a uma amora arredondada, chamado de mórula (Fig. 2-1; Cap. 6). Inicialmente, a mórula é caracterizada por blastômeros protuberantes individualizados; posteriormente, estas células aderem-se firmemente umas às outras e formam a mórula compacta, com superfície mais uniforme. Este processo é conhecido como compactação. As células da camada externa originam o trofectoderma. Subsequentemente, durante o processo de blastulação, forma-se no interior do trofectoderma uma cavidade preenchida por líquido, denominada blastocele, bem como um conjunto de células internas, denominado massa celular interna (MCI), reunidas em um dos polos do embrião, que neste momento é denominado blastocisto. O trofectoderma participará da formação da placenta (Cap. 9) enquanto que a MCI originará o embrião propriamente dito. O blastocisto expande-se, eclode da zona pelúcida e, posteriormente, ao final da blastulação, a MCI forma duas camadas celulares, uma interna e outra externa, denominadas hipoblasto e epiblasto, respectivamente, estabelecendo o disco embrionário bilaminar. Nos animais domésticos, a formação do disco embrionário bilaminar está associada ao desaparecimento da camada de trofectoderma que recobre o epiblasto (Cap. 6). Concomitantemente, o formato do embrião muda de esférico para ovoide e posteriormente para tubular e filamentoso, exceto nos equinos. O período compreendido entre a fertilização e a blastulação completa dura cerca de 10 a 12 dias em suínos, caprinos, ovinos e felinos, 14 dias em bovinos e equinos e 16 dias nos cães. Durante a fase subsequente do período embrionário, o disco embrionário bilaminar é transformado em um disco embrionário trilaminar pelo processo de gastrulação (Fig. 2-1; Cap. 7). A gastrulação leva à formação das três folhetos germinativos, ectoderme, mesoderme e endoderme, e à formação das células germinativas primordiais, as progenitoras das células da linhagem germinativa. No início do processo de gastrulação, a porção do trofectoderma localizada ao redor do disco embrionário, juntamente com o mesoderma extraembrionário subjacente, dá origem às pregas amnióticas que se fundem dorsalmente e encerram o disco embrionário na cavidade amniótica. Após a gastrulação, os três folhetos germinativos diferenciam-se em diversos tipos celulares e determinam a formação do arcabouço da maioria dos sistemas orgânicos, definindo o final do período embrionário (Fig. 2-2). O elevado número de tipos celulares derivados dos folhetos germinativos formados na gastrulação requer, obviamente, um intrincado sistema de organização e diferenciação celular para criar 41 um organismo completo, com seus diferentes, mas interdependentes, tecidos e órgãos. Os diferentes mecanismos que regulam o desenvolvimento embrionário não devem ser vistos como eventos isolados, mas novamente, por conveniência, os processos de diferenciação, modelagem e morfogênese serão descritos separadamente a seguir. Fig. 2-2 Diferenciação de zigoto até a formação dos tecidos corpóreos. O período embrionário é seguido pelo período fetal, o qual se estende até o nascimento, e inclui o crescimento, maturação e remodelagem dos sistemas 42 corpóreos. O desenvolvimento de cada um dos sistemas corpóreos, coletivamente referenciado como “embriologia especial”, será discutido nos capítulos subsequentes. De modo geral, a maioria das perdas embrionárias ocorre no período embrionário inicial. Esta é também a fase em que os embriões estão mais suscetíveis aos agentes teratogênicos (Cap. 19). Diferenciação O corpo de um mamífero adulto é composto por mais de 230 tipos celulares distintos, todos originados de uma única célula, o óvulo fertilizado ou zigoto. O processo pelo qual tipos celulares especializados desenvolvem-se de células menos especializadas é conhecido como diferenciação celular. Em geral, um evento que precede a diferenciação celular é o comprometimento celular, o qual, por sua vez, pode ser dividido em uma fase lábil e reversível denominada especificação celular seguida de uma fase irreversível denominada determinação celular. Uma vez que a célula tenha passado pelo processo de “determinação” o seu destino está fixado e, irrevogavelmente, sofrerá diferenciação. A diferenciação celular é essencialmente regulada mediante diferenças na expressão gênica. A diferenciação das células embrionárias de uma origem comum para gradualmente formar tipos celulares distintos ocorre similarmente a um curso de água que desce a encosta de uma montanha e ramifica-se diversas vezes até atingir a base (Figs. 1-4 e 2-2). E da mesma forma que uma folha que cai na correnteza desce a encosta por um único trajeto, também o faz uma célula particular, que segue um único trajeto durante a diferenciação. Entretanto, tanto para a folha como para a célula, numerosas decisões são tomadas ao longo do caminho até atingiro destino final. Assim, a diferenciação celular durante o desenvolvimento embrionário envolve diversos pontos de ramificação nas quais linhagens celulares dividem-se e as decisões sequenciais tomadas ao longo deste trajeto são determinantes da diferenciação. Como descrito, estas decisões são, em um primeiro momento, reversíveis (especificação celular), mas depois tornam-se irreversíveis (determinação celular). Indução Em um embrião, as células são frequentemente induzidas a diferenciar-se por uma sinalização célula a célula. A interação entre duas ou mais células vizinhas é denominada interação proximal ou indução. Durante o desenvolvimento, a indução entre células e tecidos, ou entre diferentes tecidos, é crucial para a organização e diferenciação das células em seus respectivos órgãos e tecidos. Para que a indução 43 ocorra, entretanto, é necessário que as células induzidas (células potencialmente responsivas) sejam competentes ou receptivas ao sinal indutor. A competência, representada pela expressão de receptores de superfície, por exemplo, está frequentemente presente durante apenas um intervalo de tempo determinado. Se não for induzida durante este período crítico, a célula competente pode iniciar o processo de morte celular programada ou apoptose, em vez de sofrer diferenciação. A apoptose deve ser entendida como um mecanismo normal durante o desenvolvimento embrionário. O primeiro embriologista a investigar os processos de indução foi Hans Spemann (Cap. 1). Em embriões anfíbios, ele notou que a formação do cristalino no ectoderma superficial era somente atingida quando existia interação próxima da vesícula óptica do cérebro em desenvolvimento com o ectoderma superficial (Fig. 2-3, Cap. 11). Spemann removeu a vesícula óptica antes que a interação com o ectoderma ocorresse e como consequência observou que não havia formação do cristalino no ectoderma. Interessantemente, se a vesícula óptica fosse posicionada abaixo do ectoderma superficial do tronco, não era possível induzir a formação do cristalino no ectoderma sobrejacente. Em outras palavras, o ectoderma superficial do tronco não é competente para formar o cristalino. Fig. 2-3 Indução da formação do cristalino estudada por Hans Spemann. Em circunstâncias normais, a ectoderme neural da vesícula óptica induz a formação do cristalino no ectoderma superficial competente da cabeça (1). Uma vesícula óptica ectopicamente posicionada não é capaz de induzir a formação do cristalino no ectoderma superficial não competente do tronco (2). Se a vesícula óptica é removida, não há indução da formação do cristalino (3). Outros 44 tecidos transplantados abaixo do ectoderma superficial competente da cabeça não induzem a formação do cristalino (4). Outro exemplo de indução é a geração do sistema nervoso pela indução do neuroectoderma (Fig. 2-4, Cap. 8). Células iniciais do ectoderma podem tanto diferenciar-se em ectoderma superficial (e deste em epiderme) como em neuroectoderma (e deste formar o sistema nervoso). A princípio, as células iniciais do ectoderma são não comprometidas (ou neutras) e capazes de diferenciar-se em qualquer direção. Entretanto, sinais oriundos da notocorda (uma estrutura mediana das espécies vertebradas que aparece durante a gastrulação, Cap. 7) induzem células ectodérmicas sobrejacentes a diferenciar-se no neuroectoderma. Particularmente, a molécula sinalizadora conhecida como Sonic hedgehog (Shh) desempenha papel crucial neste processo. Células ectodérmicas que não estão na posição mediana do embrião normalmente não recebem sinais indutores e formam o ectoderma superficial. Experimentalmente demonstrou-se que: a remoção da notocorda leva à formação exclusiva do ectoderma superficial.; já o posicionamento da notocorda em uma posição que não a mediana induz à formação de neuroectoderma ao invés de ectoderma superficial; e finalmente o ectoderma mediano removido da influência da notocorda subjacente forma ectoderma superficial. Esses exemplos ilustram que durante a especificação celular o destino da diferenciação celular pode ser alterado pela modificação da posição da célula dentro do embrião. Todavia, uma vez ocorrido a determinação celular, a plasticidade é perdida. 45 Fig. 2-4 O desenvolvimento inicial do sistema nervoso como um modelo de diferenciação, modelagem e morfogênese. Diferenciação: Sonic hedgehog (Shh) secretado da notocorda induz a formação do neuroectoderma sobrejacente. Ainda durante a indução, um gradiente desta molécula está envolvido na determinação da estrutura do tubo neural por uma modelagem em zonas dorsoventrais pela expressão dos fatores de transcrição Pax 6 (ventralmente) e Pax 3 e 7 (dorsalmente). Modelagem: Shh derivado da notocorda (conforme já mencionado) e TGF-β do ectoderma superficial estão envolvidos na modelagem dorsoventral do tubo neural resultando na geração subsequente de fatores de transcrição que controlam a modelagem fina das diferentes camadas aferentes (dorsais) e eferentes (ventrais) de neurônios. Morfogênese: a alteração no formato de uma placa neural achatada para um tubo neural é causada pela formação de pontos de dobramento nos quais as células tornam-se constritas na porção apical e a proliferação celular do ectoderma superficial nas margens da placa neural empurram as laterais uma contra a outra. Células da crista neural deixam o tubo neural nos pontos de dobramento para formar outras estruturas. Modificado de Strachan e Read (2004). 46 Moléculas sinalizadoras, como a molécula Sonic hedgehog, que atuam entre células com pequena distância são conhecidas como fatores parácrinos ou morfógenos. Muitos desses, envolvidos na indução, estão também envolvidos na criação de padrões morfológicos nas células embrionárias (veja a seguir). Quatro famílias principais destas moléculas sinalizadoras são particularmente importantes: • A família dos fatores de crescimento derivados dos fibroblastos (fibroblast growth factor – FGF), que inclui mais de 20 proteínas. • A família Hedgehog, incluindo as proteínas codificadas pelos genes Sonic hedgehog (Shh), Desert hedgehog (Dhh) e Indian hedgehog (Ihh).1 • A família Wingless (Wnt), que contém ao menos 15 proteínas, as quais interagem com receptores transmembrana conhecidos como proteínas Frizzled. • A superfamília do fator de crescimento transformador-β (transforming growth factor – TGF-β), que inclui ao menos 30 moléculas, tais como as famílias do TGF- β, da ativina e das proteínas ósseas morfogenéticas (bone morphogenetic protein – BMP), bem como as proteínas nodal, fator neurotrófico derivado da glia (GDNF), inibina e substância inibitória mülleriana (MIS). Potencial celular e genômico O zigoto e as primeiras gerações de blastômeros possuem potencial de desenvolvimento, ou potência, equivalentes. Na realidade, cada uma destas células é capaz, independentemente das demais, de dar origem a todos os tipos celulares que compõem o embrião propriamente dito, bem como às células que formam as membranas extraembrionárias e a porção embrionária da placenta. Esta característica celular é conhecida como totipotência celular. Nos animais domésticos, totipotência celular foi demonstrada pela primeira vez em ovelhas pelo cientista dinamaquês Steen Willadsen. Ele isolou blastômeros de embriões ovinos após as primeiras clivagens e deles produziu gêmeos e quadrigêmeos após transferências para ovelhas receptoras. De modo figurativo, totipotência celular corresponde ao início da correnteza na Figura 1-4. Em pouco tempo, entretanto, iniciam-se as ramificações e as células embrionárias tornam-se mais e mais restritas no seu potencial de desenvolvimento (ou seja, elas perdem potência). Como descrito anteriormente neste capítulo, subpopulações de células embrionárias, como a MCI e o epiblasto, mantém a capacidade de formar todos os tecidos do embrião propriamente dito, mas perdem a capacidade de formar tecidos extraembrionários. Essa característica é conhecida como pluripotência. No entanto, experimentos com células-tronco embrionárias (CTEs)tem desafiado este conceito demonstrando que 47 CTEs, que são derivadas in vitro da MCI, podem originar trofectoderma. A geração da ovelha clonada Dolly, em 1996, por Wilmut e colegas, pela introdução de uma célula diferenciada da glândula mamária dentro de um ovócito cujo genoma havia sido removido, demonstrou que até mesmo uma célula diferenciada possui algum tipo de totipotência (Cap. 21). Neste contexto é importante diferenciar totipotência celular de totipotência genômica. Assim, o zigoto e os primeiros blastômeros possuem totipotência celular, uma vez que são por si só capazes de originar tanto o embrião por completo como todos os tecidos extraembrionários. A célula da glândula mamária, por sua vez, possui totipotência genômica; a célula pode formar todos os tecidos, mas apenas com o auxílio do aparato citoplasmático e reprogramação genômica provida pelo citoplasma do ovócito. Após a gastrulação (Cap. 7), a pluripotência permanece apenas nas células da linhagem germinativa, uma vez que as demais células embrionárias diferenciam-se em um dos três folhetos germinativos: o ectoderma, o mesoderma e o endoderma. Células em cada um desses folhetos germinativos somáticos são consideradas multipotentes e, em geral, possuem distintos potenciais de desenvolvimento. Ao final, células em cada um dos folhetos germinativos dão origem a células progenitoras unipotentes tecido-específicas ou células precursoras (classicamente designadas em histologia pelo sufixo: -blastos) capazes de produzir apenas tipos específicos de célula diferenciada. A linhagem germinativa masculina, ao menos em camundongos, pode, entretanto, albergar células-tronco pluripotentes uma vez que a espermatogênese é contínua. No entanto, na maioria das vezes as células de uma determinada linhagem atingem um estágio final de diferenciação no qual elas se tornam completamente maduras e não mais se dividem; neste momento elas estão terminantemente diferenciadas. Para manter a capacidade regenerativa de órgãos e tecidos, entretanto, algumas células mantêm-se plásticas, formando um conjunto de células-tronco somáticas unipotentes (ou mesmo multipotentes) que podem ser recrutadas. As células-tronco hematopoiéticas e as células-tronco mesenquimais da medula óssea adulta são exemplos de células-tronco somáticas. Controle molecular da diferenciação No nível molecular, diversas vias complexas estão envolvidas nas decisões tomadas ao longo dos processos de diferenciação celular. Dois dos fatores-chaves que participam desse processo são: • Alterações epigenéticas (cromatina). Alterações epigenéticas resultam em padrões estáveis (ou seja, herdáveis) de expressão gênica nas células 48 descendentes de qualquer linhagem celular. Conforme mencionado anteriormente, a constituição genética (ou seja, a combinação das sequências de DNA) não é alterada durante a diferenciação; todas as células descendentes do zigoto originam-se de divisões mitóticas e, portanto, devem possuir a mesma informação genética. Uma exceção ocorre no desenvolvimento dos linfócitos nos quais ocorrem rearranjos genéticos. Porém, diversos mecanismos epigenéticos, de um modo rígido e bem orquestrado, controlam como os genes são sequencialmente expressos durante o desenvolvimento embrionário de modo a governar os mecanismos de diferenciação. Os três mecanismos epigenéticos mais importantes são: metilação do DNA, pelo qual a cromatina de algumas regiões do genoma torna-se altamente condensada e transcricionalmente inativa (veja a seguir); modificações nas proteínas histonas incluindo a acetilação das histonas, que comumente leva a uma conformação mais relaxada da cromatina permitindo a transcrição; e regulação gênica por polycomb-trithorax (operando, p. ex., nos genes Hox descritos adiante), que modificam a estrutura da cromatina em conformações transcricionalmente reprimidas (Polycomb) ou ativas (trithorax). Sabe-se que pelo menos os processos de metilação do DNA e modificação das proteínas histonas estão associados, gerando um poderoso mecanismo de silenciamento gênico de longo prazo. • Fatores de transcrição. A presença de fatores de transcrição estáveis ativa a expressão de genes importantes para o desenvolvimento. Ao longo de quase a totalidade deste livro, alguns dos principais fatores de transcrição atuantes nos mais diferentes aspectos moleculares do desenvolvimento embrionário são apresentados em quadros. Incluindo os principais genes Hox, descritos adiante. Modelagem Modelagem é o processo pelo qual células embrionárias organizam-se em tecidos ou órgãos. Embora a diferenciação dê origem a células com estrutura e função especializada, esse processo isoladamente não forma um organismo; as células diferenciadas necessitam ser organizadas espacialmente em três dimensões com uma relação muito bem definida entre elas. Todos os embriões mamíferos tendem a seguir eixos básicos de planos corpóreos gerando os eixos craniocaudal, dorsoventral e proximodistal. O eixo dorsoventral já está presente no blastocisto, com a MCI posicionada em um polo (Cap. 6). A formação do eixo craniocaudal ocorre na gastrulação (Cap. 7), enquanto que a formação do eixo proximodistal é adiada até a formação dos membros (Cap. 16). Modelagem é a consequência da expressão regional de genes que podem ser 49 determinados pela ação de gradientes de moléculas sinalizadoras. Células-alvo próximas da fonte geradora de moléculas sinalizadoras estão expostas a maior concentração de sinalizadores que aquelas mais distantemente localizadas. Moléculas sinalizadoras que atuam desta maneira são conhecidas como morfógenos. Os eixos embrionários craniocaudal e proximodistal são modelados pelos gradientes morfogenéticos conhecidos em maior ou menor extensão. Um exemplo de modelagem pela expressão gênica regional controlada por gradientes de moléculas sinalizadoras é a formação do tubo neural (Fig. 2-4). Nesse contexto, a expressão dos genes Sonic hedgehog originada da notocorda (que é também ativo durante a indução do neuroectoderma) e TGF-β originada do ectoderma superficial está envolvida na determinação inicial da modelagem dorsoventral do tubo neural que resulta na geração sequencial de fatores de transcrição os quais controlam de modo fino a modelagem das diferentes camadas aferentes (dorsais) ou eferentes (ventrais) de neurônios. Genes homeóticos Outro bom exemplo de expressão gênica regional resultando em modelagem é representado pelos genes homeóticos da mosca das frutas, conhecidos como genes Homeobox (ou Hox) nos mamíferos. Na mosca das frutas, Drosophila melanogaster, esses genes são originalmente associados à geração da identidade posicional das células ao longo do eixo craniocaudal. A manipulação artificial desses resulta em alteração no desenvolvimento de todos os segmentos corpóreos. No mutante Antennapedia, por exemplo, observou-se o crescimento de pernas em vez de antenas na cabeça. Portanto, os genes homeóticos atuam governando a diferenciação celular em segmentos ou regiões inteiras do corpo. Os estudos com drosófilas mutantes revelaram dois agrupamentos de genes homeóticos localizados em um único cromossomo e que codificam fatores de transcrição com homeodomínios (que se refere ao sítio de ligação ao DNA). Esses genes são expressos ao longo do eixo craniocaudal, dividindo o corpo em zonas discretas (Fig. 2-5). Genes similares são encontrados nos mamíferos. Nos camundongos e nos humanos, os genes Hox estão reunidos em quatro agrupamentos denominados Hox-A, Hox-B, Hox-C e Hox-D, cada um deles localizado em um cromossomo particular. Verificou-se, em camundongos ao menos, que os genes Hox localizados na extremidade 3’ de cada um dos agrupamentos são expressos nas fases mais iniciais do desenvolvimento e controlam a modelagem das porções anteriores dos corpos, enquanto que os genes localizados nas porções mais próximas da extremidade 5’ são expressos mais tardiamente e controlam a formação das porções mais posteriores do corpo. Nos mamíferos, a expressão dos genes Hox ocorre inicialmente durantea gastrulação, começando pelos 50 genes da posição 3’. Portanto, temporal e espacialmente, os genes Hox controlam o desenvolvimento dos segmentos corpóreos da porção anterior para a posterior. Em contraste ao que ocorre nas drosófilas, há sobreposição na expressão dos genes Hox nos mamíferos. Assim, de uma combinação particular da expressão de genes Hox oriundos dos quatro agrupamentos em cada região ao longo do eixo do corpo as células obtêm a sua identidade posicional específica. Esse padrão de identidade é conhecido como o “código Hox”. Fig. 2-5 Disposição dos genes homeóticos na Drosophila e dos genes Hox no camundongo. A homologia entre os genes da Drosophila e aqueles do camundongo em cada agrupamento é indicada pelo código de cores. Um gradiente de ácido retinoico (AR) está envolvido na definição do “código Hox”. Modificado de Sadler (2006). O “código Hox” parece ser induzido pela exposição de células pluripotentes ou multipotentes a um gradiente de moléculas sinalizadoras. Um gradiente de ácido 51 retinoico, e alguns dos seus derivados imediatos, está provavelmente envolvido neste processo. Durante a gastrulação, a involução2 das células que formam o mesoderma e o endoderma ocorre pelas regiões organizadoras no sulco primitivo estendendo-se em direção à extremidade posterior do epiblasto (Cap. 7). Cada região organizadora impõe um “código Hox” às células sofrendo involução. No camundongo, três regiões organizadoras foram identificadas: a região organizadora inicial da gástrula, a região organizadora intermédia da gástrula e a região organizadora tardia da gástrula. A região organizadora tardia é também conhecida como nodo primitivo. Em associação do centro sinalizador anterior e o endoderma visceral anterior (EVA), os centros organizadores da gástrula formam gradientes anteroposteriores de moléculas sinalizadoras. Esses gradientes induzem a expressão de determinados genes Hox, determinando o previamente mencionado “código Hox”. Morfogênese Morfogênese é o mecanismo pelo qual tecidos e órgãos ganham forma. Assim, enquanto modelagem consiste na reunião de células em regiões que formarão os órgãos, a morfogênese consiste na aquisição da forma interna e completa pelos órgãos. Portanto, durante a morfogênese estruturas como tubos, folhetos e agregados densos de células são formados em resposta a diferentes taxas de proliferação celular, alterações no tamanho e/ou formato das células, fusão celular e/ou alterações nas propriedades de adesão celular, por exemplo. A formação do tubo neural durante a neurulação é um exemplo no qual alterações locais no formato celular e na proliferação celular aproximam grupos celulares distantes para formar uma nova estrutura (Fig. 2-4, Cap. 8). A transformação de uma placa neural achatada em um tubo neural fechado é causada tanto pela formação de pontos de dobramento, nos quais as células sofrem constrição apical devido a alterações no formato celular, bem como pela proliferação celular nas margens empurrando os dois lados um contra o outro. Outro exemplo de morfogênese é encontrado no epiblasto durante o processo de gastrulação: uma única camada de células é convertida em três folhetos germinativos somáticos e na linhagem celular germinativa pela involução celular (Cap. 7). Um último exemplo de morfogênese é a morte celular programada (apoptose) nas membranas das mãos e dos pés criando espaços entre os dígitos (Cap. 16). Modificações epigenéticas e ciclos de vida A metilação do DNA é provavelmente o mais compreendido dos mecanismos 52 epigenéticos que atuam no desenvolvimento animal (Fig. 2-6). Em geral, a metilação do DNA está relacionada à inibição da expressão gênica. Nas células germinativas primordiais recém-formadas, o DNA está altamente metilado assim como nas suas progenitoras epiblásticas. Entretanto, no momento em que as células germinativas adentram a crista genital, o DNA torna-se amplamente desprovido de metilação. Durante a gametogênese subsequente, quando ovócitos e espermatozoides são formados da linhagem derivada das células germinativas primordiais, novas metilações do DNA são estabelecidas, em um processo conhecido com metilação de novo. Essa desmetilação e remetilação ampla do genoma representa o primeiro ciclo da reprogramação epigenética necessária para o desenvolvimento da próxima geração. É importante ressaltar que ocorre metilação dependente do sexo em alguns loci específicos (que posteriormente levarão à expressão monoalélica de alguns genes particularmente importantes para o desenvolvimento embrionário), formando a base para o imprinting genômico. Aparentemente, o gameta masculino torna-se mais metilado que o feminino. Fig. 2-6 Padrões globais de metilação do DNA. Um primeiro ciclo de desmetilação e remetilação do DNA que inclui os genes imprinted é observado durante o desenvolvimento dos gametas das células germinativas primordiais do embrião. Um segundo ciclo de desmetilação e remetilação é observado após a fertilização quando o genoma paterno é ativamente desmetilado. Neste segundo ciclo de reprogramação epigenética, os genes imprinted não sofrem desmetilação. A partir do momento em que ocorre desenvolvimento do blastocisto, o genoma é remetilado. Modificado de Dean et al. (2003). O segundo ciclo de reprogramação epigenética ocorre após a fertilização. Em espécies tais como camundongo, rato, porco e bovinos, o genoma paterno é claramente mais lábil que o materno e inicia um processo de desmetilação ativa tão 53 logo o zigoto é formado. Aparentemente esse fenômeno não se aplica a coelhos e ovelhas. No entanto, próximo do estágio de mórula e blastocisto inicial, ambos os genomas parentais estão igualmente desmetilados. De modo interessante, e de grande importância para o desenvolvimento, os genes imprinted metilados não são afetados por esse ciclo de desmetilação e permanecem metilados. Os imprintings são somente apagados e redefinidos durante a gametogênese. O fato de os genes imprinted metilados manterem sua metilação sexo-específica permite a expressão monoalélica sexo-específica desses genes, o que é de fundamental importância para o desenvolvimento embrionário e, em especial, para o desenvolvimento placentário. O segundo ciclo de desmetilação é rapidamente sucedido por um ciclo de metilação de novo que coincide aproximadamente com a diferenciação dos blastômeros em trofectoderma e MCI. Curiosamente, a extensão da metilação é, em algumas espécies, mais pronunciada nas células pluripotentes que formarão a MCI (e posteriormente o epiblasto) do que naquelas que formarão o trofectoderma. A inativação do cromossomo X corresponde à inativação seletiva de alelos de um dos dois cromossomos X das fêmeas gerando um mecanismo de compensação de dose ou hemizigose funcional para os genes ligados ao X. O cromossomo X inativo pode ser visto como o corpúsculo de Barr, uma fração de cromatina condensada situada ao longo do interior do envelope nuclear das fêmeas dos mamíferos. O processo de inativação é iniciado por um único gene, o XIST, que é expresso apenas no cromossomo X inativo. O XIST é um dos poucos genes imprinted ligados ao X. O processo de inativação inicia-se durante o período de metilação de novo do segundo ciclo de reprogramação epigenética que ocorre no estágio de blastocisto. Na MCI, a inativação do cromossomo X herdado do pai ou da mãe ocorre de modo aleatório. No entanto, no trofectoderma o alelo do XIST herdado da mãe é preferencialmente reprimido levando à inativação do cromossomo X de origem paterna. Isso ilustra o fenômeno conhecido como conflito dos genomas parentais ou “a batalha dos sexos”: no trofectoderma e outros tecidos extraembrionários há uma preferência pela expressão de genes3 de origem paterna enquanto que nas células que formarão o embrião propriamente dito há preferência pela expressão de genes maternos. Nas células germinativas primordiais, que transmitem os genes às próximas gerações, os imprints genômicos têm que ser apagados e o cromossomo X inativo deve ser reativado de modo apossibilitar que cromossomos X ativos sejam repassados a todos os gametas. Resumo A gestação compreende os períodos embrionário e fetal. Durante o período 54 embrionário, o zigoto é gerado pela fertilização e as clivagens resultam na formação da mórula. Subsequentemente, no blastocisto forma-se o trofectoderma e a massa celular interna (MCI). A MCI dá origem ao hipoblasto e ao epiblasto estabelecendo o disco embrionário bilaminar após a eclosão da zona pelúcida. A seguir, o epiblasto inicia o processo de gastrulação resultando na formação do disco embrionário trilaminar com três folhetos da linhagem germinativa somática (ectoderme, mesoderme e endoderme) além das células germinativas primordiais. Os três folhetos germinativos participam na formação dos órgãos. Durante o período fetal, que se estende até o termo, os sistemas orgânicos crescem, amadurecem e tornam-se remodelados. O desenvolvimento é um processo gradual regulado por diferentes processos incluindo os princípios gerais de proliferação e crescimento celular bem como processos mais específicos do desenvolvimento embrionário tais como diferenciação celular, modelagem e morfogênese. Diferenciação celular pode ser entendida como uma série de decisões sequenciais que guiam as células pelas etapas de especificação reversível até a determinação irreversível. As células podem ser induzidas a diferenciarem-se pelo contato célula a célula ou por moléculas sinalizadoras, os morfógenos. As células diferenciadas são agrupadas e relacionam-se tridimensionalmente para formar tecidos e órgãos por meio dos processos de modelagem. Durante a modelagem, morfógenos podem atuar de modo complexo, produzindo gradientes que resultam em zonas de diferenciação celular distintas. A modelagem ocorre por ativações regionais na expressão de genes, dentre os quais um bom exemplo é a expressão dos genes mamíferos Hox na definição do eixo craniocaudal do embrião. Alterações finais no formato geral de tecidos e órgão são obtidas pela morfogênese. Leituras adicionais Allegrucci C., Thurston A., Lucas E., Young L. Epigenetics and the germline. Reproduction. 2005;129:137– 149. Dean W., Santos F., Reik W. Epigenetic reprogramming in early mammalian development and following somatic cell nuclear transfer. Cell Dev. Biol. 2003;14:93–100. Garcia-Fernàndez J. The genesis and evolution of the homeobox gene clusters. Nat. Rev. Gen. 2005;6:881– 892. Gilbert S.F. Developmental Biology, 7th edn. Sinauer Associates, Inc., 2003. Gjørret J.O., Knijn H.M., Dieleman S.J., Avery B., Larsson L.-I., Maddox-Hyttel P. Chronology of apoptosis in bovine embryos produced in vivo and in vitro. Biol. Reprod. 2003;69:1193–1200. Gjørret J.O., Fabian D., Avery B.M., Maddox-Hyttel P. Active caspase-3 and ultrastructural evidence of apoptosis in spontaneous and induced cell death in bovine in vitro produced preimplantation embryos. Mol. Reprod. Dev. 2007;74:961–971. 55 Noden D.M., de Lahunta A. The Embryology of Domestic Animals. Williams & Wilkins; 1985. Pearson J.C., Lemons D., McGinnis W. Modulating Hox gene functions during animal body patterning. Nat. Rev. Gen. 2005;6:893–904. Robb L., Tam P.P.L. Gastrula organiser and embryonic patterning in the mouse. Seminars in Cell & Developmental Biology. 2004;15:543–554. Sadler T.W. Langman’s Medical Embryology, 10th edn. Lippincott Williams & Wilkins, 2006. Strachan T., Read A.P. Human Molecular Genetics, 3rd edn. Garland Science, 2004. 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Já o sonic hedgehog foi um gene da mesma família nomeado em analogia ao personagem do jogo de videogame. 2 Nota da Tradução: o processo de involução celular consiste na interiorização de uma camada externa em expansão de modo a recobrir a superfície interna das células externas remanescentes. 3 Nota da Revisão Científica: leia-se dos genes imprinted já que a expressão dos demais genes do cromossomo X será de origem materna no trofectoderma. 56
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