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Aniversário - Álvaro de Campos

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Aniversário - Álvaro de Campos
Poema :
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus !, o que só hoje sei que fui...
A que distância ! ...
(Nem o acho ...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos !
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lagrimas),
O que sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio....
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, este tempo !
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui ...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado - ,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração !
Não penses ! Deixa o pensar na cabeça !
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus !
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira !...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos ! ...
(Poesias de Álvaro de Campos, ed. cit., pp.282-284.)
Sobre o heterônimo Álvaro de Campos (1890 - 1935?)
Álvaro de Campos representa a parte mais audaciosa de responsabilidade literária e
extra-literária que Fernando Pessoa se permitiu. Seus poemas são marcados pela
oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa,
desprezando a rima ou métrica regular, e despejando seus versos em torrentes de
incontrolável desabafo. Tendo-lhe sido dada a faceta predominante da emoção
impulsiva, encontramos em seus versos a expressão diretamente enunciada de seus
sentimentos pessoais.
Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de
Campos apresenta fases distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo
decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas
pessimistas e desiludidos. Aniversário pode-se enquadrar nesta última fase do poeta,
pois demonstra amargura e melancolia em relação ao passado e pessimismo em relação
a existência.
O heterônimo Álvaro de Campos ainda vivia quando Fernando Pessoa faleceu, em 1935,
mas a observação diacrônica de sua obra leva-nos a supor que este já usava em seus
últimos versos um tom de conformismo amargo em relação a sua própria existência,
como também acontece no poema Aniversário.
Análise do poema
A não distribuição uniforme dos versos e a despreocupação com a distribuição rítmica
dão ao poema um tom confessional, aproximando-o de um texto em prosa. As
lembranças relatadas no texto referem-se a uma data específica lembrada pelo eu-
poético - o dia do aniversário. Esta data é a propulsora para outras recordações da
infância e outras angútias do eu-poético, servindo também como ponto de referencia
temporal quando o eu-poético intercala-se e contrapõe-se entre o passado e o presente.
A época da infância no poema é marcada pela inocência, pois a criança ainda não tem
noção do que se passa à sua volta: "Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa
nenhuma". A passagem da criança para o adulto é marcada por uma perda, pois ele
percebe que a vida não tem mais sentido. O poeta hoje "é terem vendido a casa", ou
seja, é um vazio, que perdeu, inclusive, o bem mais precioso, a sensação de totalidade,
de alegria, de aconchego dado pela vida em família na infância longínqua. Assim, a festa
de aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar e religioso, dentro do qual a
criança se torna o centro de um mundo que a acolhe e protege carinhosamente.
"As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa", denota, com esta
adjetivação uma característica comum a toda infância: o egocentrismo. No presente, não
há mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta durar, porque o pensamento
amargurado, critico e pessimista da vida o impede de ter a inocência de outrora. O tom
nostálgico e angustiado do poema dá a sensação de que o eu-poético vive uma
introspecção conflitiva relembrando um passado supostamente mais feliz que o presente.
O trecho "serei velho quando o for. Nada mais." parece querer dar fim a este conflito
interno. "Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira !..." conclui o tom
confessional do poema e enfatiza uma espécie de conformismo ríspido e amargurado
com o presente melancólico e sem perspectiva em relação a vida. "O tempo em que
festejavam o dia dos meus anos !" é repetida muitas vezes no texto dando ênfase a
importância da data na lembrança do eu-poético, servindo também para marcar a justa
contraposição entre passado e presente, respectivamente infância e fase adulta. O ultimo
verso do poema sugere uma acomodação amargurada em relação ao passado.
Em "Eu era feliz e ninguém estava morto" pode-se notar novamente o conformismo com
o presente que pode não ser o idealizado, mas que está alicerçado em um passado
inocente, de aspecto virginal, contrapondo-se com a atual falta de perspectivas e a
desmotivação para a vida, onde ele diz: "Hoje já não faço anos. Duro." O eu-poético
oraliza um tom de amargura versificado de forma clara, coesa e coerente, marcando com
precisão verbal os estados temporais e emocionais a que se refere no poema. Por se
parecer com uma "auto-confissão poética", pode-se afirmar que o eu-poético insere no
texto características comuns às pessoas que estão prestes a deixar o mundo material, ou
que neste não sentem mais vontade de estar por muito mais tempo.
A reflexão conflitiva e melancólica sobre o passado, a amargura em relação ao presente
e sensação de que o tempo passou e algo que deveria ser resgatado perdeu-se em um
passado longínquo, são características comuns em pessoas que encontram-se neste
estágio da existência humana.

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