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1 CASO WAGNO NA DÚVIDA, “PAU” NO RÉU. Os bastidores de um dos maiores erros judiciários do Brasil. Dino Miraglia Filho 2 3 Todos os direitos reservados sob legislação em vigor. É proibido reproduzir este livro, no todo ou em parte, ou transmitir seu texto sob qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, sendo especialmente interditada a sua reprodução em fotocópias, por gravação ou qualquer outro sistema, em antologias, livros didáticos etc., a não ser após autorização por escrito do autor. Esta autorização só não se faz necessária em caso de citação nos meios de comunicação com finalidade crítica. Registro: Dino Miraglia Filho, 2007 Produção Editorial e Visual: Luciano Dias Revisão: Álisson Campos Bigráfica Av. Petrolina, 823 - Sagrada Família Belo Horizonte CEP: 31030-370 Fone: [31] 3481-0688 Fax: [31] 3482-5457 ISBN em homologação. Protocolo nº 22.539, de 03 de setembro de 2007. 4 5 “O livro é inédito, traz à tona um conteúdo interessante, mescla assuntos jurídicos com o cotidiano da violência contra o ser humano, aborda-os de maneira desco licada e identifica os personagens com o que o leitor espera. Na minha opinião, este tipo de livro se escreve com a alma, com os pulmões cheios de adrenalina, com o coração vivenciando os fatos, externando todas as emoções a pleno vapor. Isso significa escrever de dentro para fora. E assim o fez Dino Miraglia Filho.” Álisson Campos 6 7 Com saudades do meu pai... Em homenagem à Família Miraglia, que enfrenta os males e as doenças com a coragem dos guerreiros, a altivez dos honrados e a humildade dos vencedores. 8 9 NESTE MOMENTO DE COMEMORAÇÕES, POR MAIS UMA ETAPA VENCIDA EM UM CASO DE TANTAS VITÓRIAS, É NECESSÁRIO RECONHECER O APOIO DAS PESSOAS QUE AJUDARAM A ETERNIZAR UM TRABALHO MEMORÁVEL. CIMCOP CONSTRUÇÕES E ENGENHARIA LTDA., nas pessoas de seus diretores, ACHILLES MIRAGLIA NETO (in memoriam) e EDMUNDO MARIANO LANNA, pelo arrojo e confiança, ao acreditar no trabalho de nossa equipe desde o início, quando ainda lutávamos por algum espaço e reconhecimento profissional. UBALDO DE SOUZA MARTINS E MARTA MIRAGLIA MARTINS, meus padrinhos-pais, que souberam ocupar as lacunas deixadas pelos que já se foram, de forma natural e ética, fazendo com que a falta deles fosse menos notada. AGÊNCIA ORGÂNICA, representada aqui por seu diretor Rodrigo Simões e Bruna Ladeira, que geraram e geriram, com dedicação e profissionalismo, um projeto embrionário e utópico nascido de um sonho louco. LUCIANO DIAS, fiel escudeiro de Joinville, que conseguiu germinar a semente deste projeto, criando seu conceito gráfico, bem como, a capa e a contracapa, deixando a marca da sua força criativa. 10 11 Sumário 1. Título 2. Resumo do resultado do julgamento 3. Introdução 4. Agradecimentos 5. Família jurídica 6. Luciano Huck 7. Caso dos irmãos Naves 8. Colegas do escritório 9. Nilmário Miranda 10. Caroline Bastos 11. A fita 12. Wagno 13. Joilson 14. As cópias do processo 15. Leitura 16. Convicção 17. A falha – o início do erro 18. Inquérito 19. A denúncia 20. Processo criminal 21. A condenação 22. Provas insuficientes – in dubio pro reo 23. Presunção de inocência e ônus da prova 24. Tio Nicolau e tia Glorinha 25. O reinício das investigações 26. A coincidência – audiência em Contagem 27. Prova emprestada 28. Justificação 29. Primeira audiência – surpresa – nasce a esperança 30. A família da vítima 31. Segunda audiência – a esperança prossegue 32. A família de Wagno – Sr. Benedito e as meninas 33. O papel do Juiz na Condenação 34. O papel do Juiz na Justificação 35. Terceira audiência – novas testemunhas – surge a verdade 36. A verdade do caso vem à tona 37. O pedido revisional 38. Férias forenses 12 13 80. O encontro com a família e com a filha 81. Euforia na imprensa – o caso vira assunto nacional 82. Ana Maria Braga 83. O Brasil descobre Wagno 84. Ele descobre o filho 85. Outros programas e emissoras 86. OJuízo dos formadores de opinião 87. Ratinho 88. A fala do Governador 89. O pedido ao Governador Aécio Neves 90. O silêncio do Governador 91. O pedido indenizatório 92. A opção jurídica 93. Dando uma satisfação à sociedade – honorários 94. Wagno visto por Waguinho 95. O tratamento de dente 96. A inglória luta pelo renascimento 97. A advocacia criminal 98. Conclusão 99. O último ato 100. Moral da história 39. O Desembargador Relator 40. A torcida dos escreventes judiciais 41. A Procuradoria Geral do Estado 42. O parecer favorável 43. O excitamento toma conta da defesa 44. O formalismo do Relator 45. Parecer ratificado 46. A liberdade está mais próxima 47. O voto do Desembargador Relator 48. Festas de fim de ano 49. Pedido para aguardar o julgamento em liberdade 50. Não-inclusão em pauta antes do Natal 51. A liminar do filho de Pelé 52. Um habeas corpus desesperado 53. Indeferimento da liminar – desistência premeditada 54. A conclusão ao Desembargador Revisor 55. Voto célere 56. Inclusão em pauta 57. A diverticulite 58. Semanas de ansiedade – a saúde piora 59. A imprensa aperta o cerco 60. A fé de Wagno e sua certeza na absolvição 61. O julgamento 62. O voto do Relator 63. O voto do Revisor 64. O voto do presidente 65. Demais votos 66. Absolvição – unanimidade 67. Explosão de alegria no Tribunal 68. Explosão de alegria na Cadeia 69. O assédio da mídia 70. O alvará de soltura 71. O carimbo do Setarin 72. A ida para a Penitenciária 73. O encontro com meus colegas 74. A rebelião da alegria 75. A chegada do alvará 76. O último carcereiro 77. As últimas algemas 78. A saída da Penitenciária 79. O encontro com a liberdade 14 15 1. Título Quando ainda me decidia por um título e uma direção a ser tomada, hesitando entre uma narrativa de teor jurídico ou factual, para contar a experiência em que estive envolvido, optei, para titular estas linhas, por uma expressão juridicamente popular, no intuito de dar um tom informal quase técnico, sem usar do ”juridiquês”, tão comum aos profissionais do Direito, quando aventuram neste tipo de incursão. A essência deste caso histórico é que a dúvida no processo penal deve e deverá ser, a todo o tempo, operada em favor do réu. Tenho como certeza absoluta que será sempre menos gravoso para a sociedade, como um todo, absolver um culpado do que condenar um inocente, atendendo aos ditames processuais, em caso de dúvidas, do princípio in dubio pro reo. Este foi o princípio processual renegado no Caso Wagno e que culminou com toda a injustiça a seguir narrada e amplamente divulgada pela imprensa nacional. Por ser uma narrativa de um fato público e notório, nomes reais foram mantidos. Justificando o título, nos meandros forenses existe um antagonismo em relação ao princípio traduzido da expressão latina, na dúvida pro réu, quando este não é aplicado, que é o na dúvida, “pau” no réu. No momento em que cláusulas e garantias constitucionais são desprezadas, pretendendo condenar um inocente – geralmente pobre e carente juridicamente – com base em provas frágeis ou mesmo inexistentes, nos deparamos com a aplicação do malfadado princípio na dúvida, “pau” no réu, título desta triste narrativa e espelho do ocorrido no Caso Wagno. Este caso é particularmente impressionante, mesmo tendo conhecimento de vários outros semelhantes ou tão graves quanto. Ocorreu enquanto o Brasil já se dizia democrático, sob a tutela do Estado Democrático de Direito, na vigência da Constituição Cidadã, em pleno século XXI, na época da Internet e do celular de última geração, em um estado geográfico que se situa à frente dos cenários político e econômico nacional. Isso o diferencia de outros casos, ocorridos durante 16 17 governos de exceção, locais longínquos, épocas remotas, e sem amparo de uma legislação pátria humanística. Antes de definir este caso ou outros casos comoo Maior Erro Judiciário do País ou não, é importante ressaltar que isso não tem relevância em valor de grandeza, pois toda injustiça dessa natureza é grandiosa por si só, cabendo tão-somente a quem recebe a agressão determinar o grau de intensidade da violência sofrida. Esta narrativa está colocada em ordem cronológica de acontecimentos, procurando preservar sentimentos e aflições à época, hoje amenizados pelo resultado obtido, inclusive apresentando as peças processuais que foram feitas em cada um desses momentos. Coincidentemente, John Grisham, internacionalmente famoso autor americano de livros envolvendo a advocacia criminal, com inúmeros best sellers nos últimos tempos, no mesmo ano em que os fatos ocorreram lançou um livro intitulado “O INOCENTE”, sobre uma história real de crime e injustiça ocorrida nos Estados Unidos. É, mais uma vez, a história do Caso Wagno se repetindo no maior país do mundo, demonstrando que as mazelas jurídicas e sociais independem da graduação econômica em que se enquadra o local da injustiça. Ele narra, na orelha do livro, que: “(...) Pressionada para dar uma solução ao crime que chocou a cidade, resolve fazer que as principais suspeitas recaiam sobre Ron Williamson e seu amigo Dennis Fritz (...). Sem nenhuma evidência concreta de culpa de ambos, o processo de acusação é todo construído a partir de comprovações científicas duvidosas e testemunhos repletos de contradições. (...) para traçar um retrato da corrupção em que está mergulhada a polícia americana, as falhas do sistema judiciário (...)” . “É a desesperança daqueles que parecem ter sido esquecidos pela lei e pela justiça.” 2. Resumo do resultado do julgamento REVISÃO CRIMINAL – 1.0000.05.423126-1/000 – COMARCA DE CONGONHAS – PETICIONÁRIO: WAGNO LÚCIO DA SILVA – Relator: EXMO. SR. DES. ELI LUCAS DE MENDONÇA. EMENTA: REVISÃO CRIMINAL – PROVA NOVA DA INOCÊNCIA DO PETICIONÁRIO, OBTIDA SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO – PEDIDO JULGADO PROCEDENTE – Se as novas provas obtidas sob o crivo do contraditório são suficientemente robustas para evidenciar a injusta condenação do peticionário, este deve ser absolvido das imputações que lhe foram feitas, com fulcro no art. 386, IV, do CPP. ACÓRDÃO Vistos etc., acorda o 2o GRUPO DE CÂMARAS CRIMINAIS do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, incorporando neste relatório de fls. na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM DEFERIR O PEDIDO REVISIONAL E ABSOLVER O PETICIONÁRIO, DETERMINANDO A EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ DE SOLTURA. Belo Horizonte, 14 de fevereiro de 2006. 18 19 3. Introdução O destino nos prega peças que não podem ser explicadas. Certo dia, ao final do ano de 2002, estava trabalhando no escritório e recebo um relato de minha sócia e professora de graduação e pós-graduação de algumas das melhores faculdades de Minas Gerais, Flaviane Barros, sobre o pedido de uma colega da PUC-MINAS, professora Cíntia Carneiro, para atuar em um caso criminal, atendendo a solicitação do então secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. Pela credibilidade das pessoas envolvidas, aceitei de imediato a incumbência, mesmo sem saber dos meandros do caso, e jamais pensando em um dia freqüentar os maiores meios de comunicação de todo o Brasil. O êxito e a repercussão do caso ultrapassaram as fronteiras do País e os benefícios dessa atuação serão colhidos pelo resto de nossas vidas, não só pela Flaviane e por mim, mas por todas as pessoas nele envolvidas, de qualquer maneira e em qualquer tempo. Estas linhas relatam uma visão personalíssima de quem atuou nas infindáveis diligências e etapas processuais de um dos mais escandalosos erros judiciários do Brasil, principalmente nesta fase pós-Constituição de 1988 – ironicamente, para Wagno Lúcio da Silva, também conhecido como Waguinho, denominada a Constituição Cidadã –, sob uma análise crítica, de cunho estritamente particular. Muito mais que a vontade de escrever este texto e deixar registrado um fato marcante na vida do mundo jurídico brasileiro, queria narrar e contar uma história real de Justiça e injustiças, possibilitando, a cada um, adentrar nos bastidores de um processo criminal, sem que, com isso, pretendesse me tornar um escritor doutrinário, ditando regras ou ensinamentos. Em alguns momentos, as peças processuais foram transcritas, mais com o objetivo de ilustrar a fase nos seus detalhes do que como referência jurisprudencial, mesmo em se tratando de obras técnicas de inegável valor jurídico. 4. Agradecimentos Escrevo este relato na primeira pessoa, como bom descendente de italiano que sou, lamentando não poder usar os braços e as expressões faciais para completar toda a encenação costumeira de meus patrícios, durante as tradicionais narrativas. Deverá ser entendido como EU toda uma estrutura advocatícia envolvendo meus sócios, estagiários, funcionários e, por que não, os amigos e familiares que também participaram indiretamente de todo o processo. Definitivamente, os méritos não foram somente meus, e sim, de nosso grupo profissional. Mesmo aqueles não afeitos à área criminal estiveram presentes todo o tempo, auxiliando, apoiando, lutando por jurisprudências e doutrinas, cobrindo a lacuna dos ausentes e, principalmente, solidários na causa e no sofrimento de um ser humano injustiçado. É assim que funciona um grande time, cada um fazendo a sua parte e ocupando seu espaço. Nada seria possível sem eles, e todos nós sabemos muito bem disso. Esse resultado extraordinário aconteceu porque formamos uma equipe unida e homogênea, sem sermos iguais. Complementamo-nos em nossas virtudes e nos superamos em nossas falhas, e isso caracteriza um grupo vencedor. Juntos, ao final de mais de quarenta meses de trabalho, logramos êxito em nossa pretensão, reparando um dos maiores erros judiciários do País, somente comparado ao Caso dos Irmãos Naves, por suas coincidências e semelhanças. Desde a fundação de nosso escritório, nos sentimos unidos por nossas convicções profissionais, por nossos propósitos pessoais e por nossa opção societária, mas, hoje, estamos definitivamente atrelados por uma atuação impecável a favor do ser humano e da justiça, independentemente de nossos destinos e do futuro que se avizinha. 20 21 5. Família jurídica Não agradecer a minha esposa Denise Alamy Botelho também seria uma heresia. Sua participação data do início do nosso namoro, vinte e oito anos atrás, quando ela me apresentou seu avô materno, Dr. João Alamy Filho, coincidentemente advogado do Caso dos Irmãos Naves. Ela atravessou comigo meu período de estudos até os dias de hoje, onde me apóia incondicionalmente em minha carreira e em minha vida pessoal. Neste casamento de mais de vinte anos, fomos premiados com a chegada e a presença de nossa filha Joana, que participou ativamente do Caso Wagno, não só escutando os relatos de maneira atenta e solidária, bem como, indo assistir ao julgamento no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E que, para orgulho meu e de toda a família, já manifesta interesse pela área jurídica. Revolvendo um pouco mais o passado, e dele tirando lições da minha trajetória profissional, segue-se que, mesmo não sendo originário de família jurídica, o destino me colocou ao lado de uma família de juristas. No começo de meu namoro, descobri que meu sogro, Mauro Belém Botelho, além de excepcional advogado, era Juiz do Tribunal de Justiça Desportiva, e atleticano. Para um fanático e irracional cruzeirense, como eu, o fato de o Juiz do TJD ser atleticano e sogro era por demais danoso. Porém, com o passar dos anos pude comprovar que sua opção clubística não interferia em seus ideais de justiça. Além do sogro reconhecidamente competente e talentoso, a família de minha esposa abrigava em si um verdadeiro mito da advocacia criminal, o já citado Dr. João Alamy Filho, advogado que participou do também anteriormente mencionado Caso dos IrmãosNaves, onde ocorreu o mais famoso erro judiciário do País. Contava ainda com minha cunhada, Clarice Alamy Botelho, bacharela em Direito e competente servidora do TJMG; com Ricardo Alamy, atual escrivão de uma das varas cíveis de Belo Horizonte; e com o estudante de Direito à época – hoje Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a caminho, com certeza, das Instâncias Superiores –, Dr. Fernando Neto Botelho. Na minha adolescência, em razão de minha paixão eterna e desenfreada, literalmente, pelas motocicletas, estive envolvido em ocorrências policiais, por falta de habilitação e outras coisas do gênero, que foram acompanhadas pelo “bambambã” da advocacia criminal do Estado, Dr. Ariosvaldo de Campos Pires, amigo de minha família e de meu sogro. Tempos depois, ele se transformaria em meu padrinho de casamento, meu ídolo e meu objetivo de vida, como profissional da área criminal. Portanto, o meu lado familiar jurídico “não me pertence”, utilizando-me, aqui, do jargão popular televisivo. Fui adotado por este lar, de onde se exalava saber jurídico – parafraseando um antigo professor de adoráveis lembranças, e outras nem tantas –, e através desses laços, fui recebido como integrante do Escritório de Advocacia Dr. Pedro Aleixo, onde iniciei minha carreira advocatícia com a Dra. Maria Lúcia de Freitas, e defini meu caminho pela área criminal, atuando ao lado dos professores Maurício Aleixo e Haroldo Andrade. 22 23 6. Luciano Huck Eu começo quase pelo fim. O programa Caldeirão do Huck, por meio de seu comandante Luciano Huck, em um ato também humanitário, permitiu que esta vítima de erro judiciário grosseiro recebesse uma ajuda financeira concreta. O apoio do apresentador e de seu programa veio substanciar o caminho de Wagno para o seu retorno à sociedade, já que ele fora abandonado por um Estado prisional simplesmente cumpridor de ordem judicial, e que o lançou às ruas sem nenhum amparo após ter ficado oito anos e três meses segregado de forma equivocada e injusta. Ele foi sacado de sua vida, de sua casa, de sua cidadania, de seus rendimentos, de sua família, de seus filhos, de seus pais, de seus sonhos e de tudo o mais que o rodeava. Tamanha perda, ocasionada pelo mesmo Estado que, além do desencargo em compensar o injustiçado pelos danos a ele causados, ao reconduzi-lo de volta à sociedade deixou-o largado à mercê de sua histórica má-sorte, sem ajuda e sem suporte, “lavando as próprias mãos”. Assim, a oportunidade que lhe foi dada por Luciano Huck e sua produção, e que culminou com a conquista do prêmio no quadro “Agora ou Nunca”, ganha espaço de destaque em nosso relato, pois em nenhuma outra ambiência, estatal ou não, Wagno encontrou essa guarida. Ao término da gravação, depois da sofrida e aflitiva prova, fomos encaminhados ao Departamento Administrativo do Projac, nome do local dos estúdios da Rede Globo. O encantamento pelo caso e por Waguinho era visível no rosto das pessoas. Naquele momento, era necessário que se fornecesse um documento para que fosse expedido o cheque do prêmio, e a Cátia, funcionária responsável por essa operação, requisitou os meus dados pessoais. Incomodado, informei a ela que não queria aquele dinheiro na minha conta, pois era tudo o que as más-línguas precisavam para dizer que eu estava me aproveitando de um coitado. Haveria de ser feito um cheque em nome do Wagno, para que ele levantasse o valor do prêmio e gastasse da maneira que lhe conviesse. Sem querer jogar confete em mim mesmo, mas tão- somente para demonstrar como o ser humano está se sentindo fragilizado e descrente de seus semelhantes, ela me ponderou como uma pessoa realmente diferenciada. Em contrapartida, acredito que eu não estivesse fazendo nada além de me valer do bom-senso e precaução. Para completar, um Promotor de Justiça, então no Fórum Lafayette, fez-me a alusão de que eu estava sorrindo durante a exibição do programa porque eu pretendia lançar mão do dinheiro em proveito próprio. Em razão desses comentários tendenciosos, o programa trouxe uma mescla de resultados: um final empolgante, mas, por outro lado, trágico e desumano. Por isso, faço questão de esclarecer o motivo de toda a minha satisfação, quando da gravação do Caldeirão do Huck. Foi o último programa em que gravamos, quase vinte dias depois da libertação do Wagno. Estávamos, ele e eu, muito mais relaxados. Minha vida voltava à normalidade, pouco a pouco, assim como a dele. Além do mais, o Rio de Janeiro, por sua beleza e alegria, provoca risadas até no mais ranzinza dos mal-humorados. Quando lá cheguei, o Wagno já treinava para a prova havia cinco dias, e já era reconhecido por várias estrelas globais. Eu me encontrei com ele no camarim do estúdio e, enquanto aguardávamos o momento certo de gravarmos, nos deparamos com as meninas que dançam no Caldeirão. Eram seis assistentes de palco, todas elas espetaculares, ainda mais quando envoltas por uma aura de música, dança e tudo o mais, complementando um quadro quase irreal até para mim, que estive em liberdade a vida toda. Imagine para o Wagno, após mais de oito anos preso só na companhia de homens ou de “sacudos”, conforme sua própria expressão... Portanto, Dr. Promotor, o meu sorriso de felicidade se dava pelo momento pessoal e profissional que na ocasião estava sendo vivido por mim, por estar rodeado de mulheres de beleza fantástica, e pela vitória do Wagno, meu cliente e agora amigo, retomando seu caminho de volta à vida com dignidade e respeito, interrompido arbitrariamente com a ajuda decisiva de um de seus pares do órgão ministerial. Depois de um sufoco incrível durante a prova – para conseguir vencer o desafio –, ficamos aguardando a exibição do programa, o que ocorreu dois finais de semana após a gravação. 24 25 Nesse dia, já antecipadamente anunciado, a audiência do Caldeirão na Penitenciária Nelson Hungria atingiu a totalidade dos televisores ligados. A solidariedade do preso é sincera, assim como a raiva e o ódio, pois sentem os mesmos medos e têm as mesmas esperanças, e se encontram trancafiados no mesmo lugar e da mesma forma. Quando Waguinho atingiu os pontos que lhe garantiram o prêmio, houve uma explosão de alegria na cadeia, mais uma vez causando aflições nos agentes penitenciários, como será descrito a seguir. Aquele momento talvez fique marcado como a conclusão de um caso significativo de injustiça e de confiança mútua, que não pode ser esquecido. Assim como me disse um importante magistrado mineiro, se “o brasileiro não consegue guardar a história de seu próprio país”, quanto mais uma história de injustiças praticadas contra um pobre coitado. Trinta dias na mídia nacional foram muito mais do que qualquer um poderia jamais imaginar, mas muito menos do que o tamanho da injustiça praticada contra ele mereceria receber. Esta narrativa tenta perpetuar um caso histórico, antes que nossa vã e ocupada memória o apague para sempre. 7. Caso dos Irmãos Naves As coincidências do Caso dos Irmãos Naves com o Caso Wagno chegam a causar espanto até mesmo naqueles que não crêem no sobrenatural. Inúmeras situações semelhantes em ambos os casos me fazem questionar se alguma coisa em nossas vidas ocorre por acaso ou estamos todos dentro de um contexto previamente programado. Considerado o mais famoso erro judiciário do Brasil, o fato aconteceu em Minas Gerais, na cidade de Araguari, há setenta anos. O Caso do Wagno ocorreu em Congonhas do Campo, também interior de Minas Gerais. Joaquim Naves e Sebastião Naves eram sócios de Benedito Caetano, comerciante de arroz da região, e que recentemente havia negociado expressiva quantidade de mercadoria. Logo após, Benedito abandona Araguari, levando o dinheiro obtido no negócio. Acusados pelo Delegado de Polícia como responsáveis pelo pretenso latrocínio de Benedito, que não ocorreu, Sebastião e Joaquim foram submetidos a torturas, que foram extensivas a suas esposas e mãe.Wagno, também acusado de ser pretensamente o autor de um latrocínio que efetivamente ocorreu, teve seu maxilar superior quebrado por uma agressão, dentro da delegacia da cidade, que o fez perder os dentes frontais, antes de ser submetido a mais de doze horas de espancamentos ininterruptos. Na defesa dos irmãos Naves atuou o Dr. João Alamy Filho, um advogado brilhante, que, com coragem e perseverança, jamais desistiu de provar a inocência de seus clientes. Ele, já falecido, é avô de minha esposa Denise e bisavô da Joana, minha filha. Processados e julgados, os irmãos foram absolvidos pelo Tribunal do Júri. A Promotoria recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que anulou o julgamento. Este mesmo Tribunal de Justiça, primeiramente, condenou Wagno, confirmando a sentença condenatória, e, posteriormente, o absolveu. Em novo julgamento, foram mais uma vez absolvidos. O Tribunal de Justiça, de ofício, resolve alterar o resultado, 26 27 condenando os irmãos Naves a vinte e cinco anos de reclusão, quantum posteriormente reformado. Wagno também foi condenado a vinte e cinco anos de reclusão e, da mesma forma, teve o “quantum” da sua pena reformado pelo mesmo Tribunal. Joaquim Naves e Sebastião Naves cumpriram oito anos e três meses reclusos e saíram em livramento condicional. Wagno também cumpriu oito anos e três meses, mas, diferentemente dos irmãos Naves, saiu absolvido. Com o surgimento da vítima do latrocínio, “completamente viva”, foi proposta a Revisão Criminal para os irmãos Naves, mesmo procedimento judicial utilizado por nós, da defesa de Wagno. Tanto os irmãos Naves quanto Wagno necessitaram de duas Revisões Criminais para restabelecer a verdade e para que a justiça fosse, finalmente, feita. A imprensa, à época, tratou o caso com grande destaque, assim como o caso Wagno, que freqüentou todos os maiores programas de entrevistas e jornalismos do País. A revolta e a manifestação populares ocorridas em Araguari, setenta anos atrás, em razão de tamanha injustiça, se repetiram em Congonhas. O Caso dos Irmãos Naves ficou nacionalmente conhecido, passando a freqüentar o imaginário de estudantes e estudiosos do Direito, como exemplo clássico de erro judiciário, e todas essas semelhanças alçam o Caso Wagno ao mesmo patamar, transformando-o em um dos maiores erros judiciários do País, comparado ao que sofreram Sebastião Naves e Joaquim Naves. 8. Colegas do escritório Em uma estrutura advocatícia diversificada, a parte mais ativa, que necessita de procedimentos mais urgentes e imediatos, é, sem dúvida, a área penal. Os penalistas convivem diariamente com o sofrimento do cliente e com o desespero da família, todos querendo o resultado para “ontem”. Para os familiares dos envolvidos, eles são sempre inocentes, e quem está errado são os outros. Portanto, é muito difícil para as pessoas acreditarem em mais um inocente preso injustamente. Para mim, confesso que foi mais fácil acreditar, desde o princípio. Inicialmente, sou um amante da liberdade, um inimigo voraz das penas de reclusão impostas como são, para serem cumpridas nas condições e na forma em que são determinadas. Segundo, o caso vinha recomendado por pessoas sérias, de reputação inatacável, o que, por si só, já seria motivos suficientes para eu assumir tão árdua missão. Desconstituir uma sentença condenatória, transitada em julgado, não é tarefa das mais fáceis em nosso país, e creio que em nenhum lugar do mundo. E demanda investimentos, não só intelectual e profissional, mas financeiros. Porém, como disse anteriormente, sou parte de uma estrutura advocatícia, e decidimos nossas questões de maneira democrática e consensual. Portanto, deveria, em primeiro lugar, obter o apoio de meus colegas, para determinar se iríamos assumir a causa, e, em caso afirmativo, definirmos a forma de atuação. Nossa reunião se desenvolveu amistosa, com todos rindo de minhas convicções absolutórias. Para sorte de Wagno, que não sabia que isso estava ocorrendo, nosso escritório é composto por advogados na essência, que lutam por ideais de justiça, e, mesmo em dúvida, abraçaram imediatamente a causa, já delineando tarefas e objetivos. Assim, o Caso Wagno passou a ser cuidado pelos integrantes do Escritório Barros, Magalhães, Miraglia, Vieira, Advogados Associados, responsáveis diretos pelo sucesso técnico desta empreitada jurídica. A mim coube lutar muito, fazer o “trabalho braçal”, 28 29 participar ativamente das funções intelectual e estratégica, e aparecer na mídia. A principal integrante do Escritório, a já referida mestre e doutora em Processo Penal, a caminho de Roma (Itália) para cursar seu pós-doutorado, é a professora Flaviane Magalhães Barros, que trouxe ao processo a consistência jurídica e a força do conhecimento doutrinário, afastando de vez os vícios existentes, não deixando lacunas para questionamentos protelatórios. Foi ela quem sustentou oralmente a defesa de Wagno, no Tribunal de Justiça. Outra cabeça pensante deste time é a engenheira e advogada Cláudia Magalhães do Amaral, que agregou profundos saberes jurídico e lógico, atuando diretamente na estratégia escolhida, além de emprestar seus conhecimentos da língua materna e experiências pessoais e profissionais. O último, mas não menos importante componente titular desta esquadra, é Gustavo Vieira, um daqueles não muito afeitos ao Processo Penal, mas que, não só administrou os bastidores com perfeição, como cobriu as constantes ausências em razão dos trabalhos demandados. E não poderia deixar de citar a importância de uma estagiária competente. Paula Mendes, hoje ex-integrante deste time, à época uma estudante de futuro mais que promissor, que, com sua juventude, espírito de “guerra”, capacidade e obstinação, completou a equipe com sua alegria e entusiasmo contagiante. Infelizmente para nós, foi requisitada para trabalhar em Brasília, atuando ao lado do Ministério Público. Completamos nosso time com os estagiários Felipe Machado e Natália Guimarães, que entraram no Escritório depois de resolvida a questão criminal, mas em tempo de intervirem no procedimento cível indenizatório. 9. Nilmário Miranda Infelizmente, para nós, brasileiros, Direitos Humanos virou uma pecha de direitos de bandidos, em todo o País. Nada mais justo que seja aberto um espaço para dignificar um verdadeiro defensor dos Direitos Humanos, daqueles humanos que têm direitos e merecem que estes sejam defendidos. Conhecido por suas posturas ponderadas, seu jeito calmo e franco, seu passado de prisioneiro político, de vítima da Ditadura, e pela sua luta por justiça, Nilmário Miranda, à época Secretário Nacional dos Direitos Humanos, teve uma participação fundamental no Caso Wagno, reconhecida no próprio acórdão do Tribunal de Justiça. Foi dele a primeira convicção da inocência de Wagno e, a partir dela, seu vasto relacionamento político e social foi mobilizado. Dra. Cíntia Carneiro, professora de Processo Civil na PUC-MINAS e sua amiga fraterna, foi convocada inicialmente. Sentindo-se limitada, em razão de sua área de atuação, embora completamente capaz de atuar na causa, ela encaminhou o caso para sua colega de Magistério e minha sócia, Dra. Flaviane Barros, professora na matéria específica que o caso requeria, ou seja, Processo Penal. Dessa forma, por intervenção direta e decisiva de Nilmário Miranda, o Caso Wagno chega ao meu Escritório, interferindo em definitivo no futuro de todas as pessoas envolvidas, deixando marcas indeléveis e uma história de vida e de desafio profissional que jamais será esquecida. Meses depois, preparando sua candidatura ao governo do Estado de Minas Gerais, Nilmário lançou um livro intitulado “Por Que Direitos Humanos”, onde tratou de maneira especial o Caso Wagno, a conduta e o desempenho dos advogados, inclusive com fotos nossas estampadas junto a outros baluartes da luta por justiça, e eu tomo a liberdade de transcrever uma parte que muitome honrou: “No Caso Wagno, a atuação da mídia foi fundamental, uma vez que deu visibilidade ao fato e estimulou a discussão do tema. Acredito que o exemplo de Flaviane Pellegrini e Dino Miraglia sirva para outros 30 31 advogados e escritórios, sobretudo os mais famosos e aqueles que têm as melhores causas (...)” Mesmo não sendo vitorioso em sua campanha para o governo, vencido ainda no Primeiro Turno pelo Governador Aécio Neves, deixou demonstradas sua lealdade e capacidade, se habilitando a ser um dos conselheiros do novo governo Lula. 10. Caroline Bastos Desde o início dos trabalhos, contamos com a participação da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, na pessoa de Caroline Bastos, advogada e humanista que iniciou as reinquirições extrajudiciais, permitindo que mais provas novas, atreladas ao depoimento de Joilson, dessem ensejo ao pedido de Justificação na comarca de Congonhas. Após a propositura do pedido de Justificação, seu trabalho passou a ser de torcedora, que acreditava naquilo que havia feito e do qual tinha participado, relegando a nós o trabalho jurídico. Mas sua participação, enquanto o processo ainda se arrastava em meras suposições e especulações, foram fundamentais para alicerçar a convicção que todos passaram a ter, depois de sua atuação, na inocência de Wagno. Através dela, tomei conhecimento das questões que envolviam o caso, a atuação da polícia, do Ministério Público e, principalmente, dos parentes de Wagno, representados mais assiduamente pelo Tio Nicolau. E foi através dele que eu recebi mais uma importante peça deste quebra-cabeça: a fita de Joilson. 32 33 11. A fita Estava com meu pai, que se encontrava muito doente e precisou ser internado em um grande hospital de Belo Horizonte, quando recebi a fita cassete gravada por Joilson, pelas mãos do incansável Tio Nicolau. Em razão do avanço tecnológico e de meu momento de aflição, não conseguia vislumbrar um local que possuísse um toca- fitas, ainda que estivesse sedento de curiosidade para conhecer o seu conteúdo. Conversando com minha mãe, no hospital, ela me lembrou que o carro do meu pai, que estava parado na garagem de nossa casa, possuía aquela peça quase de museu, funcionando muito bem. Dirigi-me à casa de meu pai, e como estava atrasado para outro compromisso, fui no carro dele, ouvindo a fita. Esta, de qualidade técnica precária, mas perfeitamente audível, havia sido gravada pelo advogado de Joilson – até então, para mim, um presidiário recolhido na Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na Grande Belo Horizonte. O detento afirmava que Waguinho não tinha participado do latrocínio do taxista Rodolfo; que ele, Joilson, havia sido convidado a cometer o latrocínio pelos reais autores do fato, mas recusou-se a fazê-lo; que havia visto os verdadeiros assassinos com a vítima, no dia fatídico; e, finalmente, que ele e Waguinho sofreram tentativas de homicídios praticadas pelos verdadeiros autores do latrocínio, ainda na cadeia de Congonhas, para onde os de fato criminosos foram levados, presos por outros crimes. Realmente, os relatos da fita vinham ao encontro do que afirmara o tio de Waguinho. Diante do compromisso assumido com pessoas importantes, da credulidade na versão da família e da fita existente, não me restava alternativa a não ser ir ao encontro desses personagens, que estavam recolhidos na Penitenciária Nelson Hungria, e, por meio de um estudo aprofundado do caso, que incluiria, ao final, questionamentos e investigações quase policiais, fazer o meu próprioJuízo de convencimento. O advogado é primeiro Juiz da causa, mesmo não julgando o autor do fato. Não se pode confundir umJuízo de valor sobre a natureza e característica do ocorrido com uma condenação prévia do autor, feita sem a efetivação de ampla defesa. Não julgamos conduta e não condenamos ninguém, mas somente se construindo umJuízo de valor consciente poderemos encontrar a essência do caso e o melhor caminho para a apresentação da defesa. 12. Wagno Assim que cheguei à Penitenciária, fui encaminhado a um supervisor jurídico, que coletou minhas informações pessoais. Disse-lhe que gostaria de falar em particular com Wagno Lúcio da Silva e Joilson Dias Henrique, este muito conhecido dos carcereiros e agentes penitenciários, pois havia se envolvido em ocorrências de motins e rebeliões, com um outro famoso encarcerado conhecido por Rogerão, líder das grandes manifestações existentes à época na Penitenciária de Segurança Máxima. Wagno era um simples desconhecido, mais um número dentro de um inferno carcerário que abriga contingente superior a oitocentos presos, alguns poucos notórios, e outros, em sua maioria, anônimos. Seu comportamento carcerário exemplar, suas características pessoais – discreto, envergonhado e muito disciplinado – o faziam passar despercebido, não sendo notado nem pelos monitores e muito menos pelas turmas formadas nos interiores das muralhas prisionais. Fiquei aguardando no parlatório, sala própria para o encontro dos presos com seus advogados, já agoniado de permanecer por alguns minutos em local tão exíguo. Sou completamente agitado, e esperar é uma das minhas maiores dificuldades. Mesmo freqüentando constantemente estabelecimentos prisionais, em razão de minha especialidade, o Caso Wagno mexeu comigo desde o início, provocando-me sucessivos e diversificados sentimentos. Inicialmente, estava movido pela curiosidade, que, depois, se transformou em grande e quase intransponível desafio a ser vencido. Descoberta toda a verdade, agi em favor do ser humano inocente, atuando por ânsia de justiça. Voltando ao cenário do parlatório, imaginava-me preso e encarcerado, por uns poucos dias, sem espaço e sem poder fazer o que quisesse e na hora em que me aprouvesse, e chegava a suar frio. Vislumbrava uma pessoa presa por vários anos, sentindo calor, frio, comendo mal, sozinho com seus sonhos e decepções, e 34 35 me faltava ar nos pulmões. Pensava naquela pessoa ali, presa inocentemente por todos aqueles anos, sem conseguir provar o que falava, assemelhado a um mudo, e me vinha ânsia de vômito. Nesse espírito imergido em aflições pessoais, recebo, pela primeira vez, Wagno Lúcio da Silva. Seu físico avantajado, sua aura de seriedade, serenidade e, principalmente, de sinceridade, completaram todo o espaço que sobrava, me colocando cruamente à frente de uma realidade dolorida, mas repleta de esperança. Não poderia jamais iludir aquele homem com promessas falsas. Não conhecia o processo e não devia deixá-lo esperançoso, com uma perspectiva irreal. Todo advogado criminal deveria priorizar e valorizar a importância da honestidade e da confiança, no trato com seus clientes presos. Depois de uma entrevista, esclarecedora, a par de um pouco confusa e sem muita objetividade, disse a ele que não podia prometer nada. Reformar uma sentença condenatória definitiva seria dificílimo, mas eu me esforçaria ao máximo por sua causa. Ao final, eu o informei que iria pouquíssimas vezes visitá- lo na Penitenciária, pois as questões discutidas eram meramente processuais, e seriam tratadas no Fórum de Congonhas e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Despedimo-nos pela vez primeira, à chegada de Joilson. Agora sei por que ele me contou, tempos depois, quando se viu livre, que ficou repleto de esperanças sob o jugo do meu trabalho. Fiquei abalado pelo caso envolvendo um ser humano, que, agora também o sei, é diferenciado e tocado pelas mãos de Deus. Eu estava ansioso para falar com Joilson. 13. Joilson Já superados os momentos de dificuldade e aflição advindos do encontro com Wagno, recebo, no mesmo parlatório, o interno Joilson Dias, pivô principal de meu envolvimento naquele processo que ora se iniciava. Mais um homem avantajado adentra o espaço que pouco tempo atrás acomodara Wagno. Negro, muito semelhante ao zagueiro Cléber que jogou na seleção de futebol, Joilson carregava o temordaqueles que falam contra os criminosos. Não queria confirmar nada que havia dito na fita, se não houvesse garantia para sua família que permanecia em Congonhas. Continuando minha política de verdades e confiança mútua, disse-lhe que não lhe poderia conceder essa garantia, mas sim, prometer-lhe que iria pessoalmente falar com o Juiz de Congonhas, Dr. Paulo Roberto Caixeta, prolator da sentença condenatória do próprio Waguinho – compromisso este cumprido na primeira oportunidade em que me encontrei com o referido magistrado. Certo de que estava tratando com uma pessoa confiável, Joilson resolveu acreditar em minhas promessas e relatar uma história incrível, envolvendo tráfico de drogas, vinganças, acertos, desacertos e formação de quadrilha, o que causa espanto aos mais incautos, visto ser Congonhas uma cidade pacata e ordeira. Se fossem verdades apenas algumas coisas a que Joilson havia se referido, já seria “material inflamável” para o pedido de Revisão. Como Joilson disse somente verdades – e hoje sabemos muito bem disso –, saí em busca do processo, onde poderiam estar contidas todas as respostas aos infindáveis questionamentos que eu tinha em relação ao Caso Wagno, que agora me aguçavam e me empurravam em direção a um processo que acrescentaria, em um futuro próximo, mais um exemplo clássico de erro judiciário no País. Joilson hoje se encontra recolhido na comarca de Congonhas, em regime semi-aberto, já usufruindo esses benefícios, como saída temporária, estando lentamente se reintegrando à comunidade congonhense. 36 37 Recentemente foi vítima de espancamento na cadeia, após o retorno de uma das suas saídas autorizadas, por um grupo ligado aos verdadeiros criminosos do Caso Wagno, demonstrando que o drama ocorrido em 1998 ainda não se encerrara para os personagens envolvidos. Estamos acompanhando a execução de sua pena, como prometido no início de nosso relacionamento. 14. As cópias do processo Saindo da Penitenciária, e no afã de ter as cópias do processo em meu poder, parei no Fórum de Contagem, onde tentei localizar a Execução Criminal de Wagno. Como é sabido pelos juristas, depois que se encerram todos os recursos cabíveis, momento processual juridicamente conhecido como trânsito em julgado da sentença, a condenação criminal no processo se torna definitiva, gerando um processo de execução penal, que orientará o cumprimento da pena fixada. A vida de Waguinho nunca foi repleta de lances de sorte. Ao contrário, e para não se afastar desse estigma, os autos do processo de sua Execução permaneciam na comarca de Congonhas, irregularmente, já que seu cumprimento físico havia sido transferido para Contagem. Isso fez com que o início dos trabalhos fosse atrasado por alguns dias. Seria necessário meu deslocamento para Congonhas, onde iria extrair as cópias reprográficas de todo o processo, de “capa a capa”, como é tratado o procedimento que inclui cópias de todo o conteúdo, inclusive carimbos e despachos. Somente dessa forma é possível se fazer uma análise profunda e técnica dos autos de um processo, visto que apenas o que existe nos autos pode ser apreciado, ou seja, “aquilo que não está nos autos não está no mundo”, como prescreve uma das máximas jurídicas. Enquanto me dirigia para a cidade de Congonhas, localizada a aproximadamente 75 km da capital mineira, pensava com meus botões se valeria a pena tanto esforço. Assim que cheguei ao Fórum de Congonhas e requisitei o processo para que eu pudesse fazer as cópias, os funcionários da secretaria me olharam como se contemplassem um extraterrestre. A morte do taxista Rodolfo ainda permanecia viva, sem trocadilhos, no imaginário e na memória da pacata e histórica cidade mineira. O fato de ser um município que abriga parte da vida cultural e histórica do País favorece a que os fatos passados se perpetuem, e não foi diferente com este caso, que comoveu toda a região, gerando enorme clamor popular. Superado o susto inicial, e alguma má vontade, fui atendido e obtive, finalmente, as cópias de todo o processo que 38 39 culminou com a condenação de Waguinho. Agora só me restava retornar a Belo Horizonte, não sem antes parar no posto de gasolina na estrada, perto do famigerado e perigoso Viaduto das Almas – que hoje já possui nome menos macabro, mas continua sendo tratado por sua antiga nomenclatura –, para comer um delicioso pão com lingüiça, que foi meu lanche corriqueiro durante minhas inúmeras idas e vindas a Congonhas. 15. Leitura Chegando a minha casa, e não quero florear um momento íntimo, fui para o banheiro e levei comigo o processo, para dar uma “olhadinha”. Aqueles minutos de solidão, calma e atenção se transformaram em horas de expectativa e perplexidade. Folhas e folhas do processo foram sendo consumidas de maneira compulsiva e seqüencial. A incômoda posição me trouxe cãibras e formigamentos, me impelindo a sair daquele cubículo de concentração, sem antes, entretanto, de terminar toda a leitura, e, pasmem, já chegando à conclusão de que realmente Wagno era inocente. Não existia, nos autos, nenhuma prova concreta, clara e cristalina, para embasar uma sentença condenatória. No máximo continha uma afirmação duvidosa, que deveria ter sido valorada a favor dele, e não contra ele. Pela segunda vez – a primeira foi em meu encontro inicial com ele na Penitenciária –, senti sinceridade e verdade em suas palavras, e agora eu estava completamente convicto de que Wagno era inocente. O excitamento tomou conta de mim. Não consegui aguardar o dia seguinte e liguei para a Flaviane. Ela, um pouquinho mais ponderada do que eu, mas um “pouquinho bem pequeno”, imediatamente começou a me perguntar detalhes do processo, já articulando uma estratégia inicial. Minha primeira sócia estava irremediavelmente “fisgada” pela busca de justiça para Wagno. Era o momento de convencer os demais sócios, e agora a missão estava muito mais fácil, com a participação da Flaviane. 40 41 16. Convicção Agendada a reunião com os meus sócios, fui disponibilizando a cópia para que eles tomassem conhecimento daquilo que estávamos abraçando. Eu e a Flaviane, sem o menor trabalho, convencemos os nossos demais sócios e colaboradores, de imediato, para nossa alegria, e nos decidimos pela seqüência de tarefas. Era um projeto de justiça, que dependia da crença de todos os envolvidos, pois poderíamos fracassar em nossa estratégia e ter que arcar com essa mancha profissional em nossas vidas. Os demais sócios não só se convenceram, como se desdobraram na assistência e assessoria ao caso, transformando-o, ao final, em uma causa coletiva, onde cada um fez o que podia, o que sabia e o que tinha condição de fazer, em prol da aplicação plena do espírito da palavra JUSTIÇA. Desde seus pais e tios, passando por Nilmário Miranda e equipe, até chegar a seus advogados, agora formávamos um extenso grupo de pessoas convicto da inocência de Wagno. 17. A falha – início do erro Procurando desvendar os meandros do processo, para identificar a origem dessa falha, era necessário despir-me da beca jurídica e vestir o capuz e a boina do detetive. O primeiro absurdo, que logo saltava aos olhos, era que a condenação havia se baseado exclusivamente no depoimento de um menor, que, por três vezes, prestou depoimentos contraditórios e claramente amedrontados. Não havia outros indícios testemunhais ou periciais, ou qualquer outra espécie de prova admitida em direito, que corroborassem aquele depoimento, o que, de imediato geraria, no mínimo, dúvida passível de ter sido valorada a favor do réu. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais confirmou a condenação e ratificou o erro. Seria necessário se aprofundar ainda mais nas investigações, para que se pudesse entender de onde saíra o tal convencimento equivocado do Juiz de Congonhas. A denúncia trazia fatos e afirmações que não existiam nos autos. Extremamente preconceituosa, definiu condutas e posturasapoiadas em nada, o que responsabiliza também o Ministério Público, neste caso. O próprio Juiz da causa afirmou que quem errou primeiro foi o Ministério Público, por denunciar negligentemente. Talvez o problema também estivesse no inquérito policial. Wagno afirmara que havia sido torturado, e esse fato não constava dos autos. 42 43 18. Inquérito O primeiro mistério surgia no inquérito. O comportamento da polícia de Congonhas não poderia ter sido mais desastroso. Já no início das investigações, ela chegou ao tal menor, porque ele havia subtraído o toca-fitas do carro do taxista, depois de este já estar morto. As diligências eram comandadas diretamente pelo genro da vítima, ex-policial militar expulso da Corporação de Tiradentes, como é conhecida a PM, em Minas Gerais. Assim que localizaram o menor, a barbárie de Wagno começou. Este menor foi espancado até começar a “dar com a língua nos dentes”. Previamente preparado pelos verdadeiros assassinos, o menor confessou sua participação no latrocínio e apontou Wagno como co-autor. Wagno foi preso, espancado, teve sua boca quebrada, e foi torturado por doze horas consecutivas, para confessar o que não tinha feito. Não confessou, e de tanto apanhar quase morreu. No dia seguinte, o menor presta novo depoimento, desta feita acompanhado de seu pai e de um advogado conhecido da sua família, e altera a versão, inocentando Wagno, e dizendo que corria risco de vida, pois os verdadeiros assassinos iriam “pegá- lo” por isso. A polícia informa isto ao Juiz de Congonhas e este se dirige à cadeia pública da comarca e encontra Wagno muito machucado. Em função desse fato, expediu uma guia de exame de corpo de delito, que jamais foi realizado, mesmo tendo Wagno sido retirado da cela para fazê-lo. Wagno é solto, a história se espalha em Congonhas, e um recado das ruas chega até ao menor, que estava recolhido em local separado, porém, na cadeia pública, junto dos demais bandidos. Surge a terceira versão do menor. Wagno é o comparsa. Novamente recolhido, ele somente iria ver a liberdade de novo ao sair da Penitenciária Nelson Hungria, oito anos, três meses e dezessete dias depois. Durante o inquérito foram ouvidas várias testemunhas. As testemunhas que o acusavam falavam daquilo que tinham ouvido, através das declarações do menor. Não existiam testemunhas presenciais e nem testemunhas que depuseram contra Wagno. Ninguém o viu com a vítima ou na cena do crime. Não houve nenhuma outra prova técnica, ou mesmo qualquer espécie de indício que corroborassem aquele depoimento único e completamente desapegado do restante do conjunto probatório. Não houve confissão, mesmo depois de horas ininterruptas de espancamento. As testemunhas de defesa, idôneas e moradoras da comunidade, todas humildes, sem nada para esconder, optaram por falar a verdade, e comprovaram isso ao serem novamente inquiridas no Processo de Justificação, quase oito anos depois, confirmando o que haviam declarado em todas as fases do processo. Mesmo tendo sido desacreditadas, humilhadas e intimidadas pelos policiais para alterar a versão narrada, se mantiveram firmes e coerentes. Com este “pacote” de provas, foi relatado o inquérito, indiciando Wagno, por latrocínio, crime com a maior pena prevista no Código Penal Brasileiro, de vinte a trinta anos de reclusão. 44 45 19. A denúncia EXMO. SR. Juiz DE DIREITO DA COMARCA DE CONGONHAS O Promotor de Justiça perante essa vara, no exercício de seu Ministério, com base no incluso inquérito policial, vem perante esseJuízo, oferecer denúncia contra: WAGNO LÚCIO DA SILVA, vulgo Waguinho, solteiro, trabalhador braçal, filho de Benedito Eugênio da Silva e Maria Eduarda da Silva, natural de Congonhas – MG, por ter praticado a seguinte conduta delituosa: No dia 24 de outubro de 1997, às 21 horas aproximadamente, o ora denunciado, em companhia do menor Wellington Azevedo de Paulo, no lugar denominado bairro Primavera, na Av. Um com rua Onze, fazendo uso de uma faca, desferiu vários golpes na vítima Rodolfo Cardoso Lobo, causando-lhe a morte. Após, subtraiu para si um rádio toca-fitas marca Volksline ETR II que se encontrava instalado no veículo da vítima, evadiu-se do local, entregando o produto do crime ao menor Wellington Azevedo de Paulo, tendo este o escondido nas proximidades de sua residência. A dinâmica dos fatos ocorreu da seguinte maneira: O ora denunciado, que se encontrava em companhia do menor Wellington, encarregou a este de comparecer no ponto de táxi localizado no centro desta cidade, manter contato com a pessoa da vítima no sentido de convidá-lo a efetuar um transporte que se resumiria em levá-los (denunciado e Wellington) a determinado local. Tendo a vítima acordado, o menor e posteriormente o denunciado se dirigiram para o local citado, onde, após ter este determinado ao menor para que se afastasse um pouco do veículo, passou a dialogar com a vítima e, ato contínuo, a esfaqueou. Todos os atos foram presenciados pelo menor Wellington. Assim, tendo o denunciado incorrido nas sanções dos artigos 157 & 3º, última parte do Código Penal, c/c art 1º da Lei 2.254/54. REQUER esta Promotoria de Justiça seja o mesmo denunciado, devidamente citado para interrogatório e defesa que tiver, ouvidas as testemunhas abaixo arroladas, cumpridas as demais formalidades da lei e, afinal condenada nas penas que lhes couber. Congonhas, 10 de fevereiro de 1998. JOÃO VICENTE GRISSI PROMOTOR DE JUSTIÇA 46 47 20. Processo criminal Ignoradas as confusões do inquérito, foram estes autos enviados ao Fórum, e conclusos ao Juiz que abriu vista ao Ministério Público, para as providências cabíveis, ou seja, novas diligências, que seria o procedimento lógico, conseqüência de uma investigação capenga e inconclusiva, ou oferecimento de denúncia, caminho mais cômodo e menos trabalhoso, opção escolhida pelo órgão ministerial. Fazendo isso, foi corroborada toda a lambança da investigação policial, por um órgão que tem como obrigação constitucional ficar atento ao que ocorre no meio social. É o fiscal da lei. Naquele momento, o Juiz de Congonhas, que já havia ratificado o flagrante, depois relaxado e posteriormente restabelecido a prisão; que tinha ciência das agressões e torturas sofridas por Wagno, pois presencialmente comprovou que ele estava todo machucado, e até ordenou a expedição de uma guia para exame de corpo de delito, que jamais foi feito; em vez de agir de ofício, remeter os autos para a autoridade policial, a fim de que as diligências e investigações, insuficientes, fossem completadas, optou pelo caminho mais fácil, recebendo a denúncia e, já mandando citar o agora réu, designou a data do interrogatório. No interrogatório, Wagno narrou a mesma história que havia contado em seu depoimento à autoridade policial, depois de torturado por doze horas, desta feita aoJuízo. Sua versão se mantém inalterada até hoje, e o fato de não se contradizer em todos estes anos foi fundamental para sua tardia absolvição. Somente a verdade permanece por anos inalterada. A mentira, com o tempo se transforma. Wagno foi acompanhado de um defensor da região, foi arrolado um vasto rol de testemunhas e não foram requeridas diligências. A maioria havia sido ouvida pela autoridade policial, mas lá, elas foram intimidadas e desacreditadas pelos agentes policiais, os mesmos que espancaram Wagno, afirmando que elas estavam todas combinadas e arranjadas. Apesar disso, disseram a verdade e mantiveram-na perante o juízo. Quase oito anos depois, foram reinquiridas no Processo de Justificação, e confirmaram o que falaram todo o tempo, constituindo mais um fator preponderante para a absolvição de Wagno, pelo Tribunal de Justiça. Perante o Juiz, as testemunhas de acusação ratificaram o que haviam dito para a autoridade policial, confirmando, ainda, que tudo o que narraram foi contado pelo menor. Já durante o depoimento das testemunhasarroladas por Wagno, ocorre o primeiro erro gritante de sua defesa. A principal testemunha de Waguinho não compareceu, pois se encontrava trabalhando no mesmo horário, e se esqueceu do compromisso para o qual estava intimado. O advogado desistiu da oitiva dessa testemunha, e Wagno não teve sua versão confirmada, pois ela era o álibi de que ele não estava na cena do crime à hora em que os fatos se deram. Estabeleceu-se prazo sucessivo para as apresentações de alegações finais e, depois disso, foi concluso para sentença, que foi prolatada em poucos dias. 48 49 21. A condenação Autos: 659/98 Autora: Justiça Pública Réu: Wagno Lúcio da Silva Vistos, etc... O ilustre representante do Ministério Público, em exercício nesta Comarca, ofereceu denúncia contra Wagno Lúcio da Silva, vulgo “Waguinho”, suficientemente qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do 157 Parágrafo 3° (última parte) do Código Penal c/c o artigo 1° da Lei 2.252/54, imputando-lhe o seguinte fato delituoso: “... No dia 24 de outubro de 1997, às 21:00 horas aproximadamente, o réu denunciado, em companhia do menor Wellington Azevedo de Paulo, no lugar denominado bairro Primavera, na Av. Um com Rua Onze, fazendo uso de uma faca, desferiu vários golpes na vítima Rodolfo Cardoso Lobo, causando-lhe a morte. Após, subtraiu para si um rádio toca-fitas, marca Volksline ETR II que se encontrava instalado no veículo da vítima, evadiu-se do local entregando o produto do crime ao menor Wellington Azevedo de Paulo, tendo este o escondido nas proximidades de sua residência. A dinâmica dos fatos ocorreu da seguinte maneira: O ora denunciado, que se encontrava em companhia do menor Wellington, encarregou a este a comparecer no ponto de táxi localizado no centro desta cidade, manter contato com a pessoa da vítima no sentido de convidá-lo a efetuar o transporte da vítima que resumiria em levá- los (denunciado e Wellington) a determinado local citado, onde, após ter este determinado ao menor para que este afastasse um pouco do veículo, passou a dialogar com a vítima e, ato contínuo, a esfaqueou. Todos os fatos foram presenciados pelo menor Wellington” ... (fls.02/03) O inquérito policial instaurado a partir do auto de prisão em flagrante lavrado em desfavor do acusado foi o sustentáculo da peça acusatória e está acostado aos autos às fls. 04/56. Às fls. 57-67 expediente referente a habeas corpus impetrado em favor do menor Wellington. Tendo o acusado sido colocado em liberdade antes do envio do Inquérito Policial à Justiça, requereu o Ministério Público e assim decidiu o Magistrado pela custódia preventiva do acusado (fls.68/71). Às fls. 75/82 novas informações sobre o habeas corpus em favor no menor Wellington. Mandado de prisão em desfavor do acusado devidamente cumprido como é visto às fls. 83-84. Laudo de necropsia da vítima às fls. 85/92. Diligências requeridas pelo Ministério Público determinando o retorno dos autos à Delegacia de Polícia de origem às fls. 93/103. Laudo do Instituto de Criminalística, com ilustrações fotográficas, às fls. 104/111. Diligências cumpridas às fls.112/118. Ingresso emJuízo do Dr. Defensor do acusado requerendo cópias dos autos, retorno dos mesmos à Delegacia de Polícia de origem e apresentando instrumento de mandado às fls. 119/121. Novamente os autos retornam à Delegacia de Polícia conforme anuiu o Ministério Público e devolvidos à Justiça com o cumprimento das diligências às fls. 121/129. Finalmente é ofertada a denúncia contra o acusado e recebida por despacho às fls. 130 e sendo determinada a requisição do acusado para ver processar. Às fls. 131, certidão de antecedentes criminais do acusado. 50 51 Interrogatório realizado às fls. 132 e intimado o advogado constituído para defesa preliminar no tríduo legal. (fls. 132/133) Defesa prévia às fls. 134, acompanhada de rol de testemunha. Designada a oitiva das testemunhas arroladas pela denúncia através de despacho de fls. 135. Sem qualquer justificativa aceitável, juntadas aos autos, de forma aleatória, pedido de reconsideração da prisão preventiva feita em favor do acusado, parecer desfavorável do Ministério Público e indeferimento do pedido de relaxamento pelo Magistrado que nos antecedeu. ( fls. 136/141) Pedido de informações de habeas corpus impetrado em favor do acusado às fls. 142/150. Realizada a audiência de instrução tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas pela denúncia, as da defesa, com a dispensa de uma ausente e uma referida, tudo conforme está às fls. 155/175. Na fase diligencial as partes nada requereram. Alegações finais do Ministério Público às fls. 176/180 pugnando pela condenação do acusado incurso nas iras do art. 157 § 3° (última parte) c/c com o artigo 63, ambos do Código Penal. Prestadas informações complementares ao E. Tribunal de Alçada às fls. 181. Razões derradeiras apresentadas pelo defensor do acusado pleiteando sua absolvição pela fragilidade e incerteza das provas (fls. 182/186). É o necessário a relatar. Decido. É certa a materialidade do delito vez que está consubstanciada pelo auto de apreensão de fls. 29, termo de restituição de fls. 30 e laudos periciais de fls. 87/92 e 104/111, estabelecendo-se o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, responsável pela relação de causa e efeito. A autoria da conduta delituosa não é admitida pelo acusado, contudo, pela evidência probatória dos autos, não sobrevive qualquer dúvida a este respeito, em que pese o esforço da defesa no sentido de asseverar a insuficiência ou a fragilidade de provas contra o seu constituinte, absolvendo-o da acusação. Observa-se que o início das investigações se deu a partir da comunicação do encontro de um cadáver, feita à Polícia pelo cidadão de nome Altair Francisco da Cunha (depoimento às fls. 175) e logo em seguida, uma notícia dada ao policial civil Sinval de Oliveira (depoimento às fls. 05) onde o senhor não identificado de posse de informação de uma menina, também não qualificada, relatava a presença de abordagem de um adolescente, na noite anterior, ao taxista vítima. Se no momento eram poucas as chances de desvendar o crime, o toca-fitas roubado da vítima foi a chave dessa elucidação. A polícia chegou até à pessoa de Wellington, pois este, já sábado pela manhã, tinha oferecido o toca-fitas à pessoa alcunhada por “Fusquinha”. Tudo está a indicar que Waguinho, ajustado com Wellington, planejou subtrair da vítima seus valores, e sem uma razão maior, de forma covarde e violenta, ceifaram-lhe a vida. Possivelmente apavorados com a morte da vitima trataram de desfazer do produto do roubo, oportunidade em que Waguinho determinou a Wellington que jogasse o toca-fitas dentro do rio por “Fusquinha”, obtendo, com isto, vantagem, sendo que este fato chegou ao conhecimento da polícia. Tanto é verdade que Wellington foi apreendido no Parque Cachoeira e a pessoa de “Fusquinha” estava em companhia da polícia. Logo em seguida foi feita a apreensão do toca-fitas em uma horta nas proximidades de um terreno baldio, conforme atestaram as pessoas de Dorian Clifford Dutra (fls. 161) e Aldrovando de Carvalho (fls. 166). Interessante salientar que Wellington, apreendido pela polícia e devidamente questionado sobre a posse do toca-fitas, indicou a pessoa do acusado como sendo o autor do bárbaro crime oferecendo detalhes da empreitada 52 53 criminosa (declarações de fls. 07/09). De uma forma surpreendente, dois dias após sua apreensão, retorna à presença da Autoridade Policial e muda por completo a sua primeira versão, passando a inocentar o acusado e assumindo sozinho a conduta delituosa (fls. 32/36). Porém, mais estranho do que a mudança da versão por parte do Wellington foi a rapidez utilizada pelo Dr. Antônio Lanna Rabello, Delegado de Polícia que presidia as investigações, cuidando em advogar em favor de Waguinho, requerendo ao Juizem exercício na Comarca a sua liberdade, constatando em destaque: no entender desta Autoridade o mesmo deverá ser solto imediatamente, uma vez que não existe mais (sic) motivos para a prisão do mesmo ante os fatos novos apresentados (documento fls. 43). Tal atitude do então delegado revelou, no mínimo, falta de preparo para o cargo e a imensa afronta à seriedade profissional que se deve ter em casos deste jaez para não availar ainda mais a sociedade. O restabelecimento de parte da verdade só veio a ocorrer quando Wellington, através de habeas corpus, foi posto em liberdade e, diante do Magistrado que nos antecedeu, reafirmou ser o acusado Waguinho o autor do deprimente delito, ratificando, de certa forma, a sua primeira declaração na polícia. Diga-se, de antemão, que Wellington, com certeza, foi partícipe neste latrocínio e sua tentativa de livrar-se de qualquer imputação neste sentido é mero subterfúgio, vez que os indícios que o incriminam são fortíssimos e serão ressaltados em sede própria onde será ele julgado. Por ora está-se valendo de seus depoimentos de fls. 07/09 (auto de prisão em flagrante), fls. 94/96 (audiência de apresentação de adolescente infrator) e 163/165 (depoimento judicial na fase de instrução) como a prova cabal e fiel em relação à autoria do delito imputada ao acusado Waguinho e contra a qual não houve contrariedade. Registre-se, para efeito de conversão da prova no tocante à autoria do crime recaindo na responsabilidade de Waguinho, os depoimentos de: Vicente de Paula Ferreira Filho (fls.122/123) – verbis: “... que por volta das 8:30 horas, recebeu ordem de seu comandante para se deslocar até a residência do subcomandante para comunicar tal fato, por se tratar de ocorrência de destaque, sendo que no trajeto próximo ao “Bar Hollywood” situado na Rua Monteiro de Castro (ao lado da ponte que dá acesso ao poliesportivo Monteirão) avisou aos indivíduos Wagno Lúcio da Silva sobre um veículo motoneta/Mobylete de cor preta, em companhia de Wellington Azevedo de Paulo; ... que mais tarde, por volta das 15:30 horas, o declarante teve conhecimento de que o autor do crime havia sido preso e veio a saber que se tratava de Wellington Azevedo de Paulo, elemento este que se encontrava mais cedo em companhia de Waguinho; que o declarante então deslocou-se até esta Delegacia para confirmar que se tratava do menor Wellington que estava em companhia de Waguinho; que tal fato foi confirmado, inclusive o menor Wellington confessou na presença do declarante, do genro da vítima, Ruy Cirilo, e do taxista João Matosinhos, que foi ele (Wellington) e Waguinho, os autores do crime, inclusive confessando que havia ganhado o toca-fitas do veículo da vítima... Ruy Cirilo Rabello Júnior (fls. 158/159) – verbis: “... que também acompanhou os policiais quando da apreensão de Wellington, estando ainda presente a pessoa de “Fusquinha”; que Wellington negava qualquer participação no crime, todavia, por ter oferecido ao “Fusquinha” toca-fitas da vítima começaram a indagar de Wellington sobre o latrocínio; que a princípio Wellington dizia que tinha tido a participação de alguém do bairro Dom Oscar, mas quando para lá se dirigia resolveu dizer que quem havia participado efetivamente era Waguinho da Pedreira; que logo após a revelação por parte de Wellington retornaram à Delegacia, quando então os policiais decidiram ir ao encalço de Waguinho;... que Wellington confirmou que Waguinho deu as facadas no Sr. Adolfo e depois de abandoná-lo no chão entraram no carro e foram até o local onde abandonaram o veículo; que o depoente acredita que esta é a versão real do crime;... que por diversas vezes Wellington pediu aos policiais para fazer exame de impressões digitais na faca para provar que Waguinho seria o autor do crime; que ouviu comentário de que Wellington teria sido espancado e ameaçado para mudar a versão, feita na segunda feira;...” 54 55 Ivanil Luiz Ferreira (fls.160) – verbis: “... que tanto antes quanto atualmente o depoente pode afirmar com segurança que Wellington afirmou ser Waguinho o autor do latrocínio; ... que não tem elementos para afirmar que Wellington é uma pessoa dada a mentiras; ... que através dos pais e da noiva que é irmã de Wellington que teve notícia de que Wellington portava diversas marcas de agressão...” Se o acusado negou a autoria do delito e ele incumbiria a prova, não se confundindo, por isto mesmo, com a livre apreciação da prova pelo julgador para formação de sua convicção. Alegar qualquer violação de direito como fez o acusado é assumir o ônus de provar, porque, nesse diapasão a presunção há de ser em favor da autoridade pública. Incumbe a quem engendra provar a veracidade do álibi, porque ao Órgão da acusação é cometida a tarefa de provar a realização do fato, como fez o Dr. Promotor de Justiça. Trouxe a defesa o depoimento de Walter Florindo Lopes (fls. 173), quando afirma que esteve com o acusado Waguinho, em sua casa, até por volta das 19:00 horas, quando foi jogar bola deixando lá a pessoa de Fábio e não sabendo a que horas este de lá saiu. Esclareceu ainda a testemunha arrolada pela defesa que houve uma dúvida se tinha estado com Waguinho por volta de 21:15 horas, mas o certo é que nesta hora havia apenas se encontrado com a mulher de Waguinho. A testemunha Fábio Márcio de Resende, regular e pessoalmente intimada (fls. 170v), de forma injustificada não compareceu emJuízo para confirmar a estória de estar com o acusado, no dia certo e na hora provável do crime. Porém, inexplicável, ainda, que este testemunho seria a mola-mestra do álibi arquitetado pelo acusado, a defesa preferiu não requerer sua condução sob vara. Só se aceita tal comportamento pela seriedade do profissional que defende os interesses do acusado em contrapartida à falta de seriedade de testemunhas como Fábio Márcio de Resende e Genivaldo Teodoro de Castro. Destaque negativo merece a informação prestada pelo adolescente Genivaldo Teodoro de Castro (fls. 156) cujo teor merece repúdio por parte da justiça pelas inverdades mencionadas e pela parcialidade de sua versão. Ainda a defesa buscou a fala de Altair Francisco da Cunha (fls. 175) que nada soube dizer a respeito dos fatos narrados na peça acusatória, afirmando conhecer superficialmente o acusado. Assim é que verifica-se pela evidência probatória dos autos que o acusado, durante o cair da noite de uma sexta-feira, após prévio ajuste com o adolescente infrator Wellington Azevedo de Paulo, decidiu praticar um assalto ao taxista Rodolfo Cardoso Lobo. Como primeira parte do plano, foi determinado a Wellington que fosse até a praça onde há um ponto de táxi e ali combinasse com Rodolfo uma corrida e em seguida, de forma violenta e covarde, tiraram a vida de um ser humano para roubar- lhe pertences de pouca valia. A versão do acusado desmerece crédito, pois, eivada de contradições e incoerências nas diversas declarações prestadas. É óbvio que prevalece, sem dúvida, a versão que, ao reverso, ressurge dos autos, notadamente pela prova testemunhal colhida e já mencionada, onde retrata- se o fato delituoso, com segurança lógica em harmonia com o conjunto probacional. Aqui também não há que se indagar se Wellington, tendo interesse em eximir-se de responsabilidade, acusou Waguinho, responsabilizando-o pelo todo. Suas declarações, em momento algum, deixaram transparecer a este julgador que estivessem carregadas de ira ou inspiradas em ódio e objetivaram ocultar a responsabilidade própria. Entre Wellington e Waguinho, embora aquele não tenha, a princípio, dado qualquer golpe na vítima, contribuiu substancialmente para a realização do delito, assumindo, assim, o risco do resultado de morte. É sem dúvida a configuração deste vínculo subjetivo exteriorizado pela adesão, pronta e eficaz, consumando a subtração e divisão de pertences da vítima à sua subseqüente morte decorrente da violência dos golpes de facaproduzidos em seu corpo. Pouco importou, para a configuração do latrocínio, a exigibilidade do evento morte nos planos dos mediantes, pois, ao simples emprego da violência para a prática do 56 57 roubo e em decorrência disto houve a morte da vítima, seguindo-se o roubo de seus pertences, não há dúvida de que há hipótese de latrocínio. Tomba por terra a alegação da defesa ao afiançar a carência de elementos para justificar uma sentença condenatória em desfavor do acusado. Descabe tal alegação, pois, conforme demonstrado ao longo desta decisão, a afirmativa esbarra na contundência das provas coligidas, acentuadas no inquérito policial e reafirmadas emJuízo. Andou bem e com a costumeira conduta de promover sempre a justiça o douto representante do Ministério Público quando pede a absolvição da imputação feira ao acusado em relação à corrupção de menores ditada pelo artigo 1° da lei 2.252/54, considerando estar provado que Wellington já era portador de antecedentes pouco recomendáveis. Não há a favor do acusado a militância de nenhuma das excludentes de criminalidade e nem causas de isenção de pena, e a alegada ausência ou insuficiência de provas que causaria dúvida em relação à responsabilidade penal imputada não lhe socorre conforme quer a defesa. A reincidência do acusado está devidamente provada às fls. 133. Ante o exposto e por tudo que contêm os presentes autos, julgo procedente, em parte, a denúncia, e, em conseqüência, condeno o réu WAGNO LÚCIO DA SILVA, alcunhado por “Waguinho”, como incurso nas iras do artigo 157, Parágrafo 3º (última parte), com a agravante no artigo 63, ambos do Código Penal. Em atendimento ao que determinam os artigos 59 e 68, ambos do Código Penal, passo a individualizar-lhe a pena: Considerando suas culpabilidades demonstradas pela ação eivada de dolo, de forma livre e consciente, com auto grau de reprovação social; aos seus antecedentes que são péssimos já que processado, julgado e condenado por crimes praticados, sendo, por isto mesmo, reincidente; à sua conduta social sem maiores informes; aos motivos traduzidos tão somente no egocentrismo e na expectativa do ganho fácil; às circunstâncias em que nada lhe favorecem, haja vista que valeu-se de lugar ermo para assegurar o sucesso da empreitada criminosa; às conseqüência do crime, quando ceifou a vida de um ser humano, sem lhe prestar qualquerJuízo de valor, privando familiares, amigos e a própria sociedade do seu convívio e ao comportamento da vítima que em nada contribuiu para a consecução do crime, mesmo porque, aquela, muito bem vista na sociedade, buscava complementar sua aposentadoria com o árduo trabalho de taxista, fixo a pena-base em 24 (vinte e quatro) anos de reclusão, a qual tenho por sanção ambulatorial definitiva e concreta, diante da inexistência de outras circunstâncias a serem sopesadas. A pena privativa de liberdade ora irrogada será cumprida, integralmente, em regime fechado, ante a determinação da lei 8.072/90, em seu artigo 2° (Crimes Hediondos), além das circunstâncias judiciais que lhe são totalmente desfavoráveis. Aplico-lhe, ainda, a pena pecuniária de 30 (trinta) dias/multa, arbitrados este em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente à época do fato, corrigidos de acordo com o permissivo legal, considerando a situação econômica do réu não muito favorável. Condeno-o, também, ao pagamento de 50% (cinqüenta por cento) das custas processuais. Tanto para o pagamento da multa quanto das custas será facultado o parcelamento se o acusado assim requerer. Recomendo-o na cadeia pública onde se encontra, não se lhe socorrendo o direito de recorrer em liberdade pela determinação da Lei dos Crimes Hediondos. Com o trânsito em julgado deste decreto decisório, lance-se-lhe o nome no livro “Rol dos Culpados” e oficie- se à Superintendência de Organização Penitenciária requisitando vaga em uma das Penitenciárias de Segurança Máxima do Estado, para onde será remetida a 58 59 22. Provas insuficientes – in dubio pro reo Desde a minha primeira leitura dos autos, não consegui vislumbrar elementos suficientes que fundamentassem a condenação de Wagno. Quando as provas são duvidosas, questionáveis ou insuficientes, se aplica o princípio in dubio pro reo, no intuito de se evitar injustiças, absolvendo o réu. Neste caso, a prova era solitária, oriunda de um menor inidôneo, co-réu de um crime de latrocínio. Esta afirmação não estava ancorada em prova pericial, ou em qualquer outra prova testemunhal ou documental. Wagno era, e é, réu primário de excelente comportamento social, bons antecedentes, jamais havia sido preso ou processado, trabalhador com residência fixa e própria, um exemplo de verdadeiro cidadão de bem. Sua versão dos fatos foi preterida, dando-se credibilidade a uma versão ímpar de um criminoso confesso. Por quê? Como se fossem mágicas, as provas que eram insuficientes para uma condenação se transformaram em absolutas e serviram de alicerce para se prolatar uma sentença condenatória teratológica e histórica, por seus absurdos e enganos. Nesses casos, o princípio que trata da dúvida no processo penal deve imperar, para que o título deste texto não se torne habitual nos corredores da Justiça. Com as provas existentes nos autos, ele jamais poderia ter sido condenado. Como no Brasil existe o tradicional ditado de que somente vai para a cadeia um dos três “socialmente abomináveis P” – preto, pobre e prostituta –, e sendo Wagno portador de dois dos três requisitos acima descritos, seu destino jurídico foi traçado já na origem do seu nascimento, e ratificado pelo saldo de sua conta bancária. Carta de Sentença, nos moldes da Lei. 7.210/84. Publique-se, registre-se e intime-se. Congonhas, 28 de março de 1998. BEL. PAULO ROBERTO CAIXETA JUIZ DE DIREITO 60 61 23. Presunção de inocência e ônus da prova Não bastasse, por si só, o total desrespeito ao princípio in dubio pro reo, mais agressões constitucionais foram perpetradas ao se condenar Wagno, da forma como aconteceu. O ônus de provar que ele é culpado é de quem o acusa, e, no caso em questão, do Ministério Público, autor da denúncia e titular da ação penal. Quando o Promotor não consegue se desincumbir do ônus da prova, o acusado deve ser absolvido, pois o órgão acusador não provou o que acusou. Ademais, ninguém é culpado até que a sentença condenatória seja definitiva. Wagno alegava que era inocente, e o tempo tratou de provar que realmente o era, e as provas existentes eram fracas e inconsistentes. Nada do que o Promotor escreveu na denúncia, ele conseguiu provar. Foi tudo descrito de maneira genérica e superficial, sem nenhum sustentáculo fático técnico. Wagno, em total inversão desse ônus, provou que era inocente, mas sua palavra e sua versão não foram consideradas, porque, segundo as investigações, teria ele praticado um crime hediondo de latrocínio. Como poderiam afirmar que ele havia praticado um crime, se ele mesmo, sem o precisar, provou que era inocente? Dessa forma, desrespeitando-se princípios constitucionais, para satisfazer a imprensa, o clamor público, dar cartaz para Promotor e o Juiz asfaltar o seu caminho para o Tribunal, nossas garantias individuais foram solapadas e o texto da Carta Magna rasgado, atingindo de morte, não só o Waguinho, mas toda a sociedade civil, pois isso pode se repetir com qualquer um. Os Princípios e Garantias Constitucionais, quando desrespeitados, refletem uma comunidade em perigo, como fartamente demonstrado durante os negros anos da Ditadura Militar. Devemos lutar para que a justiça dos homens seja feita com correção e igualdade, para todos, independentemente de credo, cor, condição financeira e social e, especialmente, desprovida de preconceitos ou pré-julgamento que afastem a ampla defesa e o direito ao contraditório. 24. Tio Nicolau e tia Glorinha Dentre alguns abnegados não afeitos ao processo penal, duas pessoas
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