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1 Didática para quê? Didática para quem? Reflexões a partir de seu objeto FRANCO, Maria Amélia Santoro Resumo O presente texto discute as contradições que se interpõem à Didática, decorrentes da polissemia que caracteriza seu objeto de estudo, qual seja o ensino. Propõe que este objeto seja compreendido na perspectiva das práticas pedagógicas que, como tais, carregam em sua especificidade a imprevisibilidade e a multidimensionalidade. A partir do conceito de Didática Multidimensional propõe subsídios para a compreensão desse objeto como práxis e analisa decorrências para a formação de professores. Palavras-chave: Didática. Ensino. Didática multidimensional. Formação de professores. Introdução A disciplina Didática, em suas origens, foi identificada, em diferentes países (Camilloni, 2013) a uma perspectiva normativa e prescritiva de métodos e técnicas de ensinar, concepção essa que ainda permanece arraigada no imaginário dos professores brasileiros. Quando indagados sobre o que esperam da Didática, respondem: queremos aprender as técnicas de ensinar! Suponho que os professores assim desejam, porque ainda imaginam que boas técnicas de controle de sala de aula são suficientes para produzir os almejados “bons ensinos”. Mas como os professores significam o ato de ensinar? Uma grande maioria de docentes ainda atribui ao ensino o papel de transmissão de informações, de repasse aos alunos de sínteses de conhecimento que os próprios docentes elaboraram. Deixam de pensar numa teoria pedagógica que embase e dê sentido aos procedimentos didáticos que utilizam. Tenho afirmado que não consigo visualizar a Didática desvinculada de uma teoria pedagógica (FRANCO, 2006) e realço que essa perspectiva da mutualidade entre pedagogia e didática já era vislumbrada por Comenius nos primórdios da Didática, no século XVII. Cambi (1999, p.287) considera-o primeiro estruturador de um discurso pedagógico que estava relacionado organicamente a uma concepção de mundo e aos aspectos técnicos da formação com uma abrangente reflexão sobre o homem. Apesar disso, epistemologicamente falando, há que se realçar que a concepção de mundo proposta por Comenius é bastante linear, pouco Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00620 2 conflitiva e quase ingênua e que, nessa perspectiva, é o caráter normativo que é realçado e a Didática estrutura-se na dimensão de organização de condições para a realização de um ensino eficaz. (Davini, 2013, p.45). No entanto, há que se considerar que, na esteira de ideais da pedagogia humanista Comenius sublinha o papel formativo do ambiente escolar e assim enfatiza que o ensino ocorre numa perspectiva de formação do sujeito. Quero com isso realçar que desde os primórdios o ensino não era considerado apenas um repasse de informações, mas um processo de formação e de concepção de mundo. Quase que se pode afirmar que o ensino decorre de processos de formação. Assim a Didática, quando se afasta das teorias pedagógicas que devem sustentá-la , ela se torna quase que inócua para a produção de processos de aprendizagem. Talvez isso explique a atual tendência que temos visto da exclusão da disciplina de didática nos cursos de formação. (Franco e Guarnieri 2008 e Franco, Fusari, Pimenta, Almeida, 2011) A Didática prescritiva, fortemente vinculada às didáticas específicas, com foco na organização da aula e dos conteúdos é por mim considerada, neste texto, como didática clássica e é, contrapondo essa concepção, ainda bastante arraigada, que venho propor os princípios de uma nova perspectiva da prática didática, o que temos denominado de Didática Multidimensional (Franco e Pimenta, 2014). Antes de chegar a esta proposta quero evidenciar que o ensino, visto como prática social de formação é bem diferente do ensino como transmissão de informação. A Didática como prática pedagógica A pedagogia e suas práticas são da ordem da práxis; assim ocorrem em meio a processos que estruturam a vida e a existência. A pedagogia caminha por entre culturas, subjetividades; sujeitos e práticas. Caminha pela escola, mas a antecede, acompanha-a e caminha além. A didática clássica possui uma abrangência menor, mais focada nos processos escolares dentro das salas de aula. A pedagogia coloca intencionalidades, projetos alargados; a didática compromete-se a dar conta daquilo que se instituiu chamar de saberes escolares. A lógica da didática é a lógica da produção da aprendizagem (nos alunos), a partir de processos Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00621 3 de ensino previamente planejados. A prática da didática é, portanto, uma prática pedagógica. A prática pedagógica inclui a didática e a transcende. A questão logo se coloca: posso planejar o ensinoaprendizagem ou apenas será possível, planejar atividades que talvez conduzam à aprendizagem? Trabalha a didática na perspectiva do talvez? Será esse talvez o componente que carrega a Didática de certa imponderabilidade? Posso controlar a aprendizagem que decorre do ensino? Ou as aprendizagens são caminhos construídos pelos sujeitos a partir de suas interpretações e vivências nas diferentes esferas de vida? O professor concretiza sua ação pedagógica ao dar aula ou a concretiza quando consegue ensinar alguma coisa a alguém? O aluno precisa aprender. Aprender o que o professor deseja ou aprender o que o momento lhe permite aprender? Posso/devo como professor controlar o que o aluno aprende? Planeja-se o ensino na intencionalidade da aprendizagem futura do aluno. No entanto, o grande desafio da didática tem sido a impossibilidade de controle ou previsão da qualidade e da especificidade das aprendizagens que decorrem de determinadas situações de ensino. Já dizia Sócrates: o ensino é sempre mais que o ensino! O planejamento do ensino, por mais eficiente que seja, não poderá controlar a imensidão de possibilidades das aprendizagens possíveis que cercam um aluno. Como saber o que o aluno aprendeu? Como planejar o próximo passo de sua aprendizagem? Precisamos de planejamento de ensino ou de acompanhamento crítico e dialógico dos processos formativos dos alunos? A contradição sempre está posta nos processos educativos: o ensino só se concretiza nas aprendizagens que produz! E as aprendizagens, em seu sentido alargado e bem estudadas pelos pedagogos cognitivistas, decorrem de sínteses interpretativas realizadas nas relações dialéticas do sujeito com seu meio. Não são imediatas, não são previsíveis, ocorrem por interpretação do sujeito, dos sentidos criados, das circunstâncias atuais e antigas, enfim: não há correlação direta entre ensino e aprendizagem. Quase que se pode dizer que as aprendizagens ocorrem sempre para além, ou para aquém do planejado; ocorrem nos Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00622 4 caminhos tortuosos, lentos, dinâmicos das trajetórias dos sujeitos. Radicalizando essa posição, Deleuze afirma, que jamais será possível saber e controlar como alguém aprende (2006, p. 237). Os processos de concretização das tentativas de ensinaraprender ocorrem por meio das práticas pedagógicas. Essas são vivas, existenciais, por natureza, interativas e impactantes. As práticas pedagógicas são aquelas práticas que se organizam para concretizar determinadas expectativas educacionais. São práticas carregadas de intencionalidade e isto ocorre porque o próprio sentido de práxis configura–se através do estabelecimento de uma intencionalidade, que dirige e dá sentido à ação, solicitando uma intervenção planejada e científica sobre o objeto, com vistas à transformação da realidade social. Tais práticas por mais planejadas que sejam são imprevisíveis porque nelas, “nem a teoria, nem a prática tem anterioridade, cada uma modifica e revisa continuamente a outra”. (Carr, 1996, p.101) As aprendizagens ocorrem entre os múltiplos ensinos que estão presentes, inevitavelmente, nas vidas das pessoas e que competem ou potencializam o ensino escolar. Há sempre concomitâncias de ensino. Aí está o desafio da tarefa pedagógica hoje: tornar o ensino escolar tão desejável e vigoroso quanto outros “ensinos”, que invadem a vida dos alunos. Desta forma pode-se perceber o perigo que ronda os processos de ensino quando este se torna excessivamente técnico, planejado e avaliado apenas em seus produtos finais. A educação se faz em processo, em diálogos, nas múltiplas contradições que são inexoráveis entre sujeitos e natureza que mutuamente se transformam. Medir apenas resultados e produtos de aprendizagens, como forma de avaliar o ensino, pode se configurar como uma grande falácia! A ação educativa verdadeira só pode ser vista como práxis, que integra conforme Kosik, dois aspectos: o laborativo e o existencial e se manifesta tanto na ação transformadora do homem, como na formação da subjetividade humana. Quando se deixa de considerar o lado existencial, a práxis se perde como significado e permite ser utilizada como manipulação. (Franco, 2001) Considero que as relações entre professor, aluno, currículo e escola são relações que impõem uma convivência, tensional e contraditória, entre o sujeito que aprende e o professor que se organiza e prepara as condições para ensinar. O professor pode encontrar meios para Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00623 5 viver a dissonância das resistências e resignações postas pelo aluno, quer atuando como desencadeador de processos de aprendizagem; quer como “acompanhador” das possibilidades múltiplas de retorno de sua ação. Enfim, como a vida, o que decorre da ação de um bom ensino serão sempre situações imponderáveis! O importante é acompanhar, vigiar, recompor e readequar o planejado inicial. Essa dinâmica, que vai do desencadear nos alunos de situações desafiadoras, intrigantes, exigentes, aos retornos que os alunos produzem, misturando vida, experiência atual e interpretações dos desafios postos, é a marca da identidade do processo ensino-aprendizagem, visto em sua complexidade e amplitude. Considero que as práticas pedagógicas devam se estruturar como instâncias críticas das práticas educativas, na perspectiva de transformação coletiva dos sentidos e significados das aprendizagens. O professor, no exercício de sua prática docente, pode ou não exercitar-se pedagogicamente. Ou seja, sua prática docente, para se transformar em prática pedagógica requer, pelo menos, dois movimentos: o da reflexão crítica de sua prática e o da consciência das intencionalidades que presidem suas práticas. A consciência ingênua de seu trabalho (Freire, 1979) impede-o de caminhar nos meandros das contradições postas e, além disso, impossibilita sua formação na direção de um profissional crítico. Assim reafirmo dúvidas e pergunto: qual é o objeto da Didática? Se a resposta for a proposta clássica de que é o ensino seu objeto, há que se aprofundar na questão: o que é mesmo o ensino? Coloco à reflexão o lindo pensamento de Freire na carta aos professores, onde ele destaca o conceito ensinando-se, talvez para realçar o sentido de práxis, de prática pedagógica que reveste o ato de ensinar: Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende,de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00624 6 O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz percorrer. (Freire, 2001, p.259)1 Talvez se possa afirmar, para evitar equívocos, que o objeto da didática só será o ensino, se este for visto em sua multidimensionalidade, em sua multirreferencialidade, num processo de formação, num processo experiencial, na perspectiva de vivências: transformação e formação: na perspectiva do ensinando-se. Práticas pedagógicas didáticas: por entre resistências e insistências Tenho notado alguma dificuldade entre professores em perceber o sentido que costumo atribuir à prática pedagógica ou mesmo aos saberes pedagógicos. Percebo que há uma certa tendência, a considerar como pedagógico, apenas o roteiro didático de apresentação de aula. Apenas o visível dos comportamentos utilizados pelo professor durante uma aula. Carr, (1996) nos ajuda a compreender essa questão quando diferencia o conceito de poiesis do conceito de práxis. Considera esse autor a poiesis como sendo uma forma de saber fazer não reflexivo, ao contrário do conceito de práxis que é, eminentemente uma ação reflexiva e assim, realça que a prática educativa não se fará inteligível, como forma de poiesis, cuja ação será regida por fins pré-fixados e governada por regras pré-determinadas. Para o autor, (Carr, 1996, p. 102) a prática educativa só adquirirá inteligibilidade “à medida que for regida por critérios éticos imanentes à mesma prática educativa”, critérios esses que segundo o autor, servem para distinguir uma boa prática, de uma prática indiferente ou má. Eu utilizaria o termo para especificar que esses critérios servirão para distinguir uma prática pedagogicamente tecida, de outra, apenas tecnologicamente tecida. 1 FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. Revista Estudos Avançados.15(42). 259-268. 2001. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00625 7 Portanto uma aula só se torna uma prática pedagógica quando ela se organiza em torno de intencionalidades, de práticas que dão sentido às intencionalidades; de reflexão contínua para avaliar se a intencionalidade está atingindo todos; de acertos contínuos de rota e de meios para se atingir os fins propostos pelas intencionalidades. Configura-se sempre como uma ação consciente e participativa. Considero interessante especificar os princípios que organizam uma prática pedagógica de forma a se pensar nos princípios de uma didática que tenha por objeto o ensino como práxis pedagógica: a) As práticas pedagógicas organizam-se em torno de intencionalidades previamente estabelecidas e, tais intencionalidades serão perseguidas ao longo do processo didático, de formas e meios variados. Na práxis a intencionalidade rege os processos. Para a filosofia marxista a práxis é entendida como a relação dialética entre homem e natureza, na qual o homem ao transformar a natureza com seu trabalho, transforma a si mesmo. Marx (1994) afirma, na oitava tese sobre Feuerbach, “que toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que dirigem a teoria para o misticismo encontram sua solução na práxis humana e na compreensão dessa práxis”. A compreensão dessa práxis é tarefa pedagógica. Kosik (1995, p. 222) realça que a práxis é a esfera do ser humano, portanto não é uma atividade prática contraposta à teoria, mas práxis “é determinação da existência como elaboração da realidade”. Uma intervenção pedagógica, como instrumento de emancipação, considera a práxis como uma forma de ação reflexiva que pode transformar a teoria que a determina, bem como transformar a prática que a concretiza. Uma característica importante da práxis, analisada por Vásquez (1968: 240) é o caráter finalista da práxis, antecipador dos resultados quese quer atingir, e esse mesmo aspecto é enfatizado por Kosik (1995, p. 221) ao afirmar que na práxis “a realidade humano-social se desvenda como o oposto ao ser dado, isto é, como formadora e ao mesmo tempo forma específica do ser humano”. Talvez por isto seja que o autor diz que a práxis tanto é objetivação do homem e domínio da natureza, como realização da liberdade humana. Realce-se, portanto, que a práxis permite ao homem conformar suas condições de existência, transcendê-las e Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00626 8 reorganizá-las. “Só a dialética do próprio movimento transforma o futuro...” e essa dialética carrega a essencialidade do ato educativo: intencionalidade coletivamente organizada e em contínuo ajuste de caminhos e práticas. Talvez o termo mais adequado seja o da insistência. O professor não pode desistir do aluno; há que insistir, ouvir; refazer; fazer de outro jeito; acompanhar a lógica do aluno; descobrir e compreender as relações que este aluno estabelece com o saber; mudar o enfoque didático; as abordagens de interação; os caminhos do diálogo. b) As práticas pedagógicas caminham por entre resistências e desistências; caminham numa perspectiva dialética, pulsional, totalizante. Quando o professor chega a um momento de produzir um ensino em sala de aula, muitas circunstâncias estão presentes: desejos; formação; conhecimento do conteúdo; conhecimento das técnicas didáticas; ambiente institucional; práticas de gestão; clima e perspectiva da equipe pedagógica; organização espaço-temporal das atividades; infraestrutura; equipamentos; quantidade de alunos; organização dos alunos; interesse dos mesmos, conhecimentos prévios, vivências, experiências anteriores, enfim, muitas variáveis estão ali presentes. Muitas delas induzindo a uma boa interação e bom interesse e diálogo entre as variáveis do processo: aluno, professor e conhecimento, vistas na perspectiva de Houssaye (1995) como o triângulo pedagógico. Como atua o professor? Como aproveita os condicionantes favoráveis e anula os que não ajudarão na hora? Tudo exige do professor reflexão e ação. Tudo exige dele um comportamento compromissado e atuante. Tudo nele precisa de empoderamento. As práticas impõem posicionamento, atitude, força e decisão. Fundamentalmente é exigido do professor, trabalhar com as contradições. Como está o professor preparado para tal? A ausência da reflexão, o tecnicismo exagerado, as desconsiderações aos processos de contradição e de diálogo podem resultar em espaços de engessamento das capacidades de discutir/propor/mediar concepções didáticas. A ausência do espaço pedagógico pode significar o crescimento de espaço de dificuldade ao diálogo. Sabe-se que o diálogo só ocorre na práxis (Freire,1979), práxis essa que requer e promove a ultrapassagem e superação da consciência ingênua em consciência crítica. Assim, concordando Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00627 9 com Freire (1979, p.25), posso acreditar que a superação da contradição “é o parto que traz ao mundo este homem novo, não mais opressor, não mais oprimido, mas o homem libertando-se.” Talvez a prática pedagógica, absorvendo, compreendendo e transformando as resistências e resignações, possa mediar a superação destas, em processos de emancipação e aprendizagens. Tenho sempre me utilizado das reflexões de Imbert (2003) quando ele realça a distinção entre prática e práxis, reafirmando o que venho enaltecendo neste texto, e atentando para a questão da autonomia e da perspectiva emancipatória, inerente ao sentido de práxis: Distinguir práxis e prática permite uma demarcação das características do empreendimento pedagógico. Há, ou não, lugar na escola para uma práxis? Ou será que, na maioria das vezes, são, sobretudo, simples práticas que nela se desenvolvem, ou seja, um fazer que ocupa o tempo e o espaço, visa a um efeito, produz um objeto (aprendizagem, saberes) e um sujeito-objeto (um escolar que recebe esse saber e sofre essas aprendizagens), mas que em nenhum momento é portador de autonomia. (2003, p.15). Portanto só a ação docente, realizada como prática social pode produzir saberes, saberes disciplinares, saberes referentes a conteúdos e sua abrangência social, ou mesmo saberes didáticos, referentes às diferentes formas de gestão de conteúdos, de dinâmicas da aprendizagem, de valores e projetos de ensino. Tenho realçado o sentido de saberes pedagógicos como sendo aqueles saberes que permitem ao professor a leitura e a compreensão das práticas e que permitem ao sujeito colocar- se em condição de dialogar com as circunstâncias dessa prática, dando-lhe possibilidade de perceber e auscultar as contradições e assim, poder melhor articular teoria e prática. É possível, portanto, se falar em saberes pedagógicos, como sendo saberes que possibilitam aos sujeitos construir conhecimentos sobre a condução, a criação e a transformação dessas mesmas práticas. O saber pedagógico só pode se constituir a partir do próprio sujeito, que deverá ser formado como alguém capaz de construção e de mobilização de saberes. A grande dificuldade em relação à formação de professores é que, se quisermos ter bons professores, teremos que formá-los como sujeitos capazes de produzir conhecimentos, ações e saberes sobre a prática. Não basta fazer uma aula; é preciso saber por que tal aula se desenvolveu daquele jeito e naquelas condições: ou seja, é preciso a compreensão e leitura da práxis. Quando um professor é Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00628 10 formado de modo não reflexivo, não dialógico, desconhecendo os mecanismos e movimentos da práxis, ele não saberá potencializar as circunstâncias que estão postas à prática. Ele desistirá e replicará fazeres. O sujeito professor precisa ser dialogante, crítico e reflexivo. Ter consciência das intencionalidades que presidem sua prática. Sintetizando com a afirmativa de Imbert: “o movimento em direção ao saber e à consciência do formador não é outro senão o movimento de apropriação de si mesmo.”(2003, p.27) c) As práticas pedagógicas trabalham com e na historicidade; implicam em tomadas de decisões; de posições; e se transformam pelas contradições. Por que assim se fazem? Por que tais práticas não podem ser congeladas, reificadas e realizarem-se linearmente? Não podem porque são práticas que se exercem na interação de sujeitos, de práticas e de intencionalidades. À medida que o professor desconsiderar as especificidades dos processos pedagógicos e tratar a educação como produto e resultados, numa concepção ingênua da realidade, o pedagógico teima em não se instalar, porque nesses processos em que se pasteurizam a vida e a existência, não há espaço para o imprevisível, para o emergente, para as interferências culturais; para o novo. As práticas pedagógicas estruturam-se em mecanismos paralelos e divergentes de rupturas e conservação. À medida, em que diretrizes de políticas públicas consideram a prática pedagógica como mero exercício reprodutor de fazeres e ações externos aos sujeitos, essas se perdem e muitos se perguntam: por que não conseguimos mudar a prática? A prática não muda por decretos ou por imposições, a prática pode mudar quando houver o envolvimento crítico e reflexivo dos sujeitos da prática (Franco, 2006). Sabe-se que a educação é uma prática social humana; é um processo histórico, inconcluso, que emerge da dialeticidade entre homem, mundo, história e circunstâncias. Sendo um processo histórico, a educação não poderá ser vivenciada através de práticas que desconsideram sua especificidade. Os sujeitos sempre possuem resistências para lidar com imposições que não abrem espaço ao diálogo e à participação. Como alerta-nos Freire: Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola,a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00629 11 O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito face ao mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato (FREIRE, 1983, p. 27). Sabe-se que a educação, como prática social histórica, transforma-se pela ação dos homens e produz transformações nos que dela participam. Dessa forma é fundamental que o professor esteja sensibilizado em reconhecer que, ao lado das características observáveis do fenômeno, existe um processo de transformação subjetiva, que não apenas modifica as representações dos envolvidos, mas produz uma ressignificação na interpretação do fenômeno vivido, o que produzirá uma reorientação nas ações futuras. É por isso importante que o professor possa compreender as transformações dos alunos, das práticas, das circunstâncias e transformar-se em processo. Realço a necessidade da consideração do caráter dialético das práticas pedagógicas, no sentido de considerar que a subjetividade constrói a realidade e esta modifica-se através da interpretação coletiva. A educação permite sempre uma polissemia em sua função semiótica, ou seja, nunca existe uma relação direta entre o significante observável e o significado. Assim, as práticas pedagógicas serão, a cada momento, expressão do momento e das circunstâncias atuais. Serão sínteses provisórias que se organizam no processo de ensino. As situações de educação estão sempre sujeitas às circunstâncias imprevistas, não planejadas e desta forma os imprevistos acabam redirecionando o processo e muitas vezes permitindo uma reconfiguração da situação educativa. Portanto, o trabalho pedagógico requer espaço de ação e de análise ao não planejado, ao imprevisto, à desordem aparente, e isto deve pressupor a ação coletiva, dialógica e emancipatória entre alunos e professores. Toda ação educativa carrega em seu fazer uma carga de intencionalidade que integra e organiza sua práxis, confluindo, de maneira dinâmica e histórica tanto as características do contexto sociocultural, como as necessidades e possibilidades do momento; as concepções teóricas e a consciência das ações cotidianas; num amalgamar provisório que não permite que uma parte Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00630 12 seja analisada sem referência ao todo, nem este sem ser visto como síntese provisória das circunstâncias parciais do momento. É por isso que reafirmo que práticas pedagógicas requerem do professor adentrar na dinâmica e significado da práxis, de forma a poder compreender as teorias implícitas que permeiam as ações do coletivo de alunos. A prática precisa ser tecida e construída a cada momento e a cada circunstância; pois, como Certeau (1994) acredito que a vida sempre nos escapa e se inventa de mil maneiras não autorizadas, com movimentos táticos e estratégicos.... As práticas pedagógicas incluem desde planejar e sistematizar a dinâmica dos processos de aprendizagem até caminhar no meio de processos que ocorrem para além dela, de forma a garantir o ensino de conteúdos e de atividades que são considerados fundamentais para aquele estágio de formação do aluno, e, através desse processo, criar nos alunos mecanismos de mobilização de seus saberes anteriores construídos em outros espaços educativos. O professor em sua prática pedagogicamente estruturada deverá saber recolher, como ingredientes do ensino, essas aprendizagens de outras fontes, de outros mundos, de outras lógicas, para incorporar na qualidade de seu processo de ensino e na ampliação daquilo que se considera necessário para o momento pedagógico do aluno. Didática e seu objeto: ensinar/formar2 O que a Didática pode oferecer, em seus fundamentos teóricos e metodológicos, aos professores em formação? Como articular uma Didática que tenha no sujeito aprendente o seu olhar e seu foco? Como a Didática, em seu estatuto epistemológico, pode dar conta de configurar-se a partir de seu objeto: o ensino como práxis pedagógica? 2 Esse subitem: Didática e seu objeto: ensinar/formar foi, em parte, escrito conjuntamente com Selma Garrido Pimenta no texto Franco e Pimenta (2014). Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00631 13 Como pode a Didática oferecer subsídios para a formação de professores aptos para o ensinando-se, para ensinar na práxis de formar e transformar, a si e aos alunos? Pudemos (Franco e Pimenta, 2014) perceber em nossas investigações que as didáticas específicas muitas vezes, ao se preocuparem apenas com a transposição didática, minimizam a configuração complexa da prática do ensino. Assim, propomos discutir as articulações possíveis entre os princípios pedagógicos da epistemologia de uma Didática Fundamental com as Didáticas Específicas, propondo o estatuto de uma Didática Multidimensional, que fundamente a prática do ensino como um fenômeno complexo e multirreferencial, uma vez que temos observado que o foco excessivo na dimensão disciplinar retira da tarefa do ensino sua necessária multidimensionalidade. Pode-se afirmar que a lógica da Didática é a lógica do ensino, no entanto e contraditoriamente, essa vocação da Didática realiza-se apenas e tão somente através da aprendizagem dos sujeitos envolvidos no processo. Portanto a questão da Didática amplia-se e se complexifica ao tomar como objeto de estudo e pesquisa não apenas os atos de ensinar, mas o processo e as circunstâncias que produzem as aprendizagens e que, em sua totalidade, podem ser denominados de processos de ensino. Portanto o foco da Didática, nos processos de ensino, passa a ser a mobilização dos sujeitos para elaborarem a construção/reconstrução de conhecimentos e saberes. Assim, mais complexo que elaborar o ensino, numa perspectiva antiga de organização de transmissão de conteúdos, será agora a perspectiva de desencadear nos alunos atividade intelectual que lhes permita criar sentido às aprendizagens e só assim, reelabora-las e transformá-las em saberes. Paulo Freire (2011) insiste nessa perspectiva desde os primórdios da Pedagogia do Oprimido nos finais da década de setenta do século passado. E retoma suas idéias, quando retorna ao Brasil no início do século XXI, reafirmando que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção (p.24), realçando que essa perspectiva transforma o papel do professor e da Didática, uma vez que quem forma se forma e reforma ao formar, e quem é formado forma-se e forma ao ser formado (p.25). Reiterava assim que o educador deve ajudar os alunos a questionar sua realidade, problematizá-la e tornar visível o que antes estava oculto, desenvolvendo novos Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00632 14 conhecimentos sobre ela. Paulo Freire (2011) considera que quanto mais se exerce criticamente a capacidade de aprender, mais se constrói e se desenvolve o que denomina curiosidade epistemológica, conceito aproximado do que estamos aqui denominamos atividade intelectual do aluno, articulado aos conceitos de sentido e prazer em Charlot (2000). Aí está o papel contemporâneo da Didática que estamos denominando de Didática Multidimensional: uma Didática que tenha como foco, a produção de atividade intelectual, no aluno e pelo aluno, articulada a contextos nos quais os processos de ensinar e aprender ocorrem. Uma Didática que se paute numa pedagogia do sujeito, do diálogo, onde a aprendizagem seja mediação entre educadores e educandos. Os princípios epistemológicos da Didática Multidimensionalemergem de nossas pesquisas realizadas nos últimos 20 anos, que evidenciam a insuficiência das Didáticas Específicas excessivamente voltadas à estruturação de conteúdos e métodos, o que acaba apequenando e impedindo a consideração do ensino em sua perspectiva multirreferencial e multidimensional. Os conceitos de curiosidade epistemológica (Freire, 2011), de multirreferencialidade (Ardoino) e da relação com o saber (Charlot, 2000) estão implicados na construção do conceito que propomos de Didática Multidimensional.3 Considerando que o ensino na sociedade se desenvolve intencionalmente nas instituições escolares, faz-se necessário explicitar os princípios de uma Didática geral que articule e fundamente os processos de mediação entre a teoria pedagógica e a ação de ensinar. A concretização do ensino em sala de aula extrapola e transcende a perspectiva das didáticas específicas cujo foco é a estrutura metodológica e conceitual dos conteúdos. A tessitura dos conteúdos e sua necessária transposição didática requer a contínua articulação entre os princípios educativos, a intencionalidade pedagógica e a especificidade das condições dadas. Essa triangulação solicita base sólida de princípios e valores, de forma a não se tornar uma mera aplicação de modos de fazer. A didática específica, por sua vez, requer uma base de fundamentos para bem se articular com o todo, base essa já assinalada na perspectiva de Chevallard (1991) em: La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Mas o 3 Vide Franco e Pimenta (2014) Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00633 15 que é o saber sábio senão um saber antecedente que fundamenta e dirige o saber ensinado? Cremos que há, ou pode haver, um processo contínuo de simplificação dos conteúdos para se adaptarem às limitações do saber ensinado. Aliás, à própria percepção de que algo pode ser ensinado de fora para dentro. Essa perspectiva de ensinar pode apequenar a dimensão do saber sábio. Além de minimizar e mesmo subtrair os sujeitos aprendentes e ensinantes, ao afirmar que toda disciplina (da matemática, no caso de Chevallard e todo o IREM, na França) possui uma lógica imanente da qual decorre a lógica de ensiná-la, pois são somente os especialistas das disciplinas aqueles que têm competência para saber e dizer como ensiná-la. Nessa ótica, os professores, em que pese sua colaboração nesse processo, seriam quase os técnicos que executariam o que foi definido pelos especialistas. Vários autores têm estudado os perigos dessa simplificação. Por exemplo, Luccas (2004:123) afirma que: A ausência da segunda transposição didática e a presença da simplificação sofrida pelo saber, ao nosso ver, apresenta-se como um dos fatores responsáveis pelo fracasso no atual ensino, como muitas pesquisas vêm apontando. Acreditamos que a existência da simplificação deve-se, principalmente, à falta de formação apropriada dos responsáveis para trabalharem com a transposição didática. E Davini, quando se refere ao problema das didáticas das disciplinas (em especial à Transposição Didática) de estarem [...] elaborando uma “teoria diafragmática” [que] ao colocar seu foco em uma ou duas dimensões, reduzem o processo de ensino a uma tarefa formativa nas disciplinas separadas entre si constituindo teorias autonomizadas e fragmentárias. (Davini, 2013:54). Há que se pensar na imponderabilidade dessa transposição: quem a faz? Como a faz? O professor é o responsável por essa transposição? Como não desprezar o saber sábio que antecede o saber científico? Para Chevallard (1991) a Transposição Didática é feita por uma Instituição ‘invisível’, uma ‘esfera pensante’ que ele nomeou de Noosfera: professores, instituições, livros didáticos, universidades, redes de ensino, etc.. Cabe indagar: como articular interesses/valores/perspectivas de tantas ordens? Como permitir que essas didáticas de cada disciplina caminhem de maneira tão avulsa e não coordenadas? Será que Lucca, (citado) tem razão quando afirma que a transposição é um dos fatores que explicariam o fracasso das salas de aula? E que um dos fatores que contribuem para isso é o tratamento Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00634 16 fragmentado do saber escolar, fragmentado (e mesmo enclausurado) em cada disciplina, conforme Davini? Chevallard (1991) aponta a necessidade de um trabalho interno no processo de transposição, onde o professor é o responsável por esse novo momento na transformação do conteúdo. Mas nós nos perguntamos: quem é esse professor? Onde está o coletivo de professores? De que forma foi realizada a formação desse professor? Pode ele produzir adequadamente o que dele se espera? Há fragilidades que precisam ser superadas, especialmente na articulação dessas duas esferas da transposição. Há a necessidade de um rigor e uma vigilância epistemológica, do contrário os saberes se perderão num labirinto de pequenas interpretações. Compreendemos que há um trabalho político pedagógico necessário para que os conteúdos escolares sejam negociados, filtrados, escolhidos, propostos. Essa ideia existe desde Comenius. Concordamos com Gimeno – Sacristán (1996:42) quando realça que uma das razões de ser do saber-fazer pedagógico tem sido propiciar a elaboração da cultura transmissível para que seja assimilável por determinados receptores. Essa possível simplificação que a transposição pode gerar, foi também comentada por Lopes (1999) quando propôs o conceito de mediação didática em substituição ao conceito de transposição didática, sugerindo uma perspectiva dialética que substituísse a idéia de reprodução, ou mesmo de um “movimento de transportar de um lugar a outro, sem alterações” (p.208). Também Forquin (1993), relembra a importância do resgate da dimensão epistemológica na discussão do conhecimento escolar. O autor preconiza o retorno à lógica pedagógica em oposição à razão sociológica, que por muito tempo impregnou os estudos de construção dos saberes curriculares. Lopes vai mais adiante e reafirma o que talvez estejamos buscando com a Didática Multidimensional: Além da crítica de Forquin, defendo que o papel da epistemologia não se resume à discussão da validade epistemológica dos saberes, mas na possibilidade de introduzir uma nova forma de compreender e questionar o conhecimento, internamente, na sua própria forma de se constituir.”(grifos nossos) (1999:167). Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00635 17 Na seleção de conteúdos didáticos, para além das questões específicas postas pelas didáticas das disciplinas, há toda uma teoria pedagógica presente na formulação de projetos de organização da escola. Os conteúdos a serem ensinados passam necessariamente pela análise das diferentes culturas presentes nas instituições, bem como pela análise das tensões e dos valores necessários à explicitação das finalidades do ensino; pela análise das diversas e divergentes concepções de educação e ideologias presentes nos sistemas de ensino; pela incorporação de diferentes contribuições das áreas de conhecimentos específicos no desenvolvimento humano que produzem processos de subjetividade e socialização dos sujeitos aprendentes e ensinantes. Ao delinear conteúdos de ensino há que se ocupar com as (novas) formas de comunicação entre as gerações; com o estudo e o desenvolvimento de modelos metodológicos e didáticos; com a formulação e crítica de critérios para a seleção de conteúdos e organização de atividades de aprendizagem, coerentes ao projeto educativo institucional; com a ressignificação dos sistemas de avaliação para que sejam estratégias de inclusão, participação e indiquem caminhos de superação dos problemas e das dificuldades dos estudantes e das escolas. Ainda temos a considerar que todo processo didático está imbricadocom as políticas de formação dos docentes em diferentes cenários nacionais e internacionais, na busca de práticas que possibilitem o desenvolvimento de capacidades de reflexão crítica nos futuros docentes. Ou seja, há múltiplas dimensões pedagógicas dos processos e atividades formativas dos sujeitos que ensinam e que aprendem. Daí, entendemos que a essa Didática, que tem seu suporte na teoria pedagógica que parte da práxis educativa e a ela retorna, seria próprio denominar de Multidimensional. A Didática Multidimensional explicita assim seu campo próprio e dialoga com as didáticas específicas porque há princípios formativos e pedagógicos que devem estar presentes em todo processo de ensino-aprendizagem, sem os quais essa não se realiza. Afirmamos assim que, a ausência desses fundamentos pedagógicos, torna o ensino de qualquer disciplina em simples treinamento do fazer ou do pensar. Ou, conforme FRANCO (2010), ao considerar [...] a Pedagogia [como] o espaço dialético para a compreensão e a Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00636 18 operacionalização das articulações entre a teoria e a prática educativa, e nessa direção ela se organiza como espaço comunicativo à Didática, conclui que: Não basta à Pedagogia refletir ou teorizar sobre o ato pedagógico; não basta à Pedagogia também, orientar ou, muito menos, prescrever ações práticas para a concretização das práticas educativas. É preciso que a Pedagogia produza conhecimentos na direção da superação da fragmentação dos saberes pedagógicos, docentes e científicos que foram historicamente dissociados. (2010, p. 32). Quando falamos em multidimensionalidade, falamos de convergência, de fundamentos pedagógicos que subsidiam a proposta multirreferencial. Entendemos que há uma relação dialética entre multirreferencialidade e multidimensionalidade. A multirreferencialidade permite a compreensão das totalidades no todo e a multidimensionalidade, do todo às totalidades. O multirreferencial nos ajuda a compreender a educação em sua complexidade e totalidade; já a multidimensionalidade foca o ensino na perspectiva da totalidade. Pois, conforme aponta Ardoino, 1995:7-8: [...] o problema que a análise multirreferencial se coloca é utilizar várias linguagens para a compreensão dos fenômenos sem misturá-las, sem reduzi-las umas às outras; o conhecimento produzido por essa postura seria, portanto, um conhecimento ‘bricolado’, ‘tecido’. A Didática Multidimensional afirma a perspectiva da totalidade, articulando as partes no todo como forma de síntese, superando a bricolagem, através do filtro pedagógico. Didática Multidimensional e formação de professores Em contínuos trabalhos e pesquisas junto à formação inicial e continuada de docentes, quer nos cursos de Pedagogia, quer nas diferentes licenciaturas, ou ainda em programas e projetos de formação continuada de professores, pude constatar, entre outras coisas, que a prática docente pode ser tanto uma circunstância para transformar a própria prática e os sujeitos que dela participam, como, paradoxalmente, a prática pode ser, também, a circunstância para reificar a própria prática e assim, blindar o sujeito, impedindo-o de receber da prática seus ingredientes fertilizantes e formadores. Percebi, trilhando os complexos caminhos de formadora de docentes, que há uma prática que forma, informa e transforma, simultaneamente, o sujeito e suas circunstâncias e há uma prática que oprime, distorce e congela, especialmente o sujeito que nela se exercita e, nesse caso, o sujeito perde o acesso às suas circunstâncias. Percebi nesse processo que a Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00637 19 prática é sempre mais do que aquilo que se supõe à primeira vista, e sempre menos inteligível do que seria necessário considerar. Percebi ainda, que os sentidos que as concepções tecnicistas foram atribuindo à prática, foram sempre bem recepcionados e bem vindos na estrutura de uma sociedade capitalista, pragmatista, muito distantes dos sentidos de prática expressos por Marx; e assim, a prática de formação, a prática que chamo de pedagógica, foi se estruturando também de forma tecnicista, no pressuposto de que não há um sujeito que possa/deva criar e transformar suas circunstâncias, mas no pressuposto de que esse sujeito, independentemente do que pensa e sinta, precisa realizar certas tarefas de um determinado jeito, considerado o ideal por algumas esferas de decisão anteriores. O sentido de formação prática que, historicamente permeou os percursos formativos no Brasil, não tiveram como pressuposto empoderar o sujeito para que este se aproprie de suas circunstâncias e perceba as possibilidades de criar seu fazer em sintonia com os sentidos de sua existência histórica. Esse sentido impregnou os procedimentos utilizados no processo formativo e a prática, sob forma de estágio supervisionado, foi sendo historicamente utilizada para que o sujeito, reificado em sua condição de não diálogo com suas circunstâncias, permaneça não estabelecendo relações de sentido entre ser e fazer, mas mesmo assim, aprenda a reproduzir um fazer considerado necessário. O pressuposto é que este sujeito é incapaz de criar sentido à sua atividade produtiva, no caso o fazer docente. Essa situação, decorrente da concepção de prática como treinamento do fazer, é um dos componentes que podem ajudar a compreender o desconforto de formandos, futuros professores, nos primeiros confrontos com as atividades da prática docente: são situações sempre angustiantes, pois as receitas de fazer que receberam no processo formativo não lhes permite colocar em prática as expectativas que haviam construído a respeito de um ensino melhor. Essa realidade é permeada por dissonâncias, o que pode demonstrar que o sujeito não está totalmente “engessado” por suas condições formativas, pois ainda é capaz de estranhar: Esse estranhamento, essa perplexidade é um espaço da possibilidade pedagógica: o estranhamento, a angústia, as dissonâncias, demonstram que há ainda um espaço para a construção de um fazer significativo. Há um espaço para que as práticas comecem a falar, a Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00638 20 informar, a formar. Há um espaço para transformação das práticas em instrumentos pedagógicos de formação. Compreender as lógicas das práticas para transformá-las em possibilidades formativas, que na sua relação, constituem-se em saberes orientadores do fazer que não se deixa render exclusivamente à cultura escolar de orientação tecnicista e dá ao professor a possibilidade de munir-se de um conjunto de elementos, que podem responder, criativamente, aos problemas enfrentados no cotidiano escolar. A história brasileira com formação de docentes utilizou-se sempre dos estágios para complementar o currículo de formação de professores, mas tais estágios foram sempre vistos na dimensão experimental: pressupunha-se que primeiro se aprende a teoria e depois se aplica na prática. Essa fórmula já está teoricamente desgastada, no entanto, na prática, ainda continua a fundamentar a formação de nossos docentes. O que se sugere é que o próprio nome de estágio seja substituído por práticas de formação, onde haja uma permanente parceria e colaboração entre escolas e instituições de formação, na perspectiva da pesquisa-ação pedagógica ( Franco, 2012). A construção e o diálogo de novos espaços-tempos de formação, com diferentes dispositivos de formação, de forma a se projetar um processo de multiformação, que possa impregnar a cultura local, realçando a pertinência da pesquisa e a presença contínua da reflexão coletiva, nos menores movimentos de decisão, de elaboração e de leitura do cotidiano. Abdalla e Franco (2003, p. 87). Será preciso, enfim, que os processos formativos de docenteabsorvam a dimensão experiencial, não mais separando teoria e prática, mas mergulhando desde o início, o aluno e o formador em situação de mediação dos confrontos da prática, buscando a significação das teorias. Só assim será possível fazer o exercício fundamental da pedagogia: criar articulações cada vez mais profundas entre a teoria e a realidade. Ou seja, fazer dialogar a lógica das práticas com a lógica da formação. Essa é a grande tarefa que os cursos de formação devem enfrentar. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 00639 21 Referências Bibliográficas ARDOÍNO, J. L’approche multireferentielle (plurielle) des situationes educatives et formatives. In 25 ans des Sciences de l’éducation. Paris. INRP, p. 103 – 130.1992. CAMBI, Franco. História da pedagogia. Dão Paulo. UNESP. 1999. CARR, Wilfred. 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