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AngústiA 1 Graciliano ramos �Autor�destA�Análise:�CPV O AUTOR Graciliano Ramos, o primeiro de quinze irmãos, nasceu em em outubro de 1892, em Alagoas, onde passou sua infância e parte da adolescência. Sempre visto pela família como um sujeito difícil, taciturno e introspectivo. No sertão nordestino, conheceu as dificuldades da seca e da pobreza da região. Fez os estudos secundários em Maceió, sem, no entanto, cursar nenhuma faculdade. O pai vivia do comércio e o filho mais velho foi aventurar-se: esteve, por breve período, no Rio de Janeiro, onde, por volta de 1914, trabalhou como revisor e redator nos jornais Correio da Manhã e A Tarde. Ao saber que três de seus irmãos tinham morrido de febre bubônica, retorna ao Nordeste e passa a ser jornalista, fazendo política também. Foi prefeito de Palmeiras dos Índios entre os anos de 1928 e 1930. De 1930 a 1936 viveu em Maceió, dirigindo a Imprensa e a Instrução do Estado de Alagoas. E é de março de 36 a janeiro de 1937 que vive os mais difíceis dias de sua vida: acusado de subversivo e comunista, passa dez meses de prisão em prisão, sem saber do que o acusam, sem sequer ser ouvido em depoimento ou processado. Desse tempo nasceu mais tarde Memórias do Cárcere, um relato que soma a angústia de existir, o medo e a inquietação. Mudou-se para o Rio de Janeiro. Homem problematizado, a mania por higiene o acompanhou. Há quem diga que ao manusear dinheiro, o escritor utilizava uma tesoura para não se sujar. Diziam ser um sujeito ríspido, que respondia aos cumprimentos de “bom-dia” com um seco “por quê?”. Quando lhe pediam a opinião sobre algum livro, garantia: “Não li e não gostei.” Em 1945, com o fim do Estado Novo, o escritor filiou-se ao Partido Comunista. Em 1952, viajou a Rússia e países comunistas da Europa, experiência que inspirou seu último livro, Viagem. As dificuldades financeiras o acompanharam a vida inteira. Sua produção literária foi lenta e mal remunerada, acumulando funções além da de escritor. Nunca se submeteu ao patrulhamento ideológico dos companheiros do Partido Comunista, que insistiam para que sua obra se voltasse para um realismo socialista. Graciliano preferia denunciar a miséria brasileira por meio de personagens ásperas e uma linguagem sem rebuscamentos. No ano de 1953, foi publicado seu livro Memórias do Cárcere. No mesmo ano, depois de retornar ao Rio de Janeiro, morreu debilitado pelo câncer no pulmão. No ano seguinte, foi publicado seu livro Viagem, postumamente. A obra de Graciliano é representante do Romance Regionalista. Utilizando-se de uma linguagem concisa, sem sentimentalismos, sem muitas inovações formais, e com o objetivo de captar, em estilo direto, a vida do homem atormentado e oprimido pelas difíceis condições do meio físico e social, o escritor conseguiu, mais do que retratar a realidade de uma região ou de uma época, abordar conflitos universais da alma humana. Suas obras já foram traduzidas para o russo, francês, inglês e alemão. E, em 1964, o romance Vidas Secas ganhou versão cinematográfica pelas mãos de Nélson Pereira dos Santos. Poucos escritores podem dizer que escreveram unicamente sobre o que conheciam. Graciliano foi assim, mas isso não fez dele um narrador “espontâneo”, nem de sua prosa um texto solto e fluente. O regionalismo salta aos olhos em suas obras, mas a sua universalidade também é mais visível que a de qualquer outro escritor tido como regionalista — sua ligação com o Nordeste nunca rendeu livros de fácil exportação ou que provocassem emoções fáceis, advindas do estranhamento da gente do Sul. O engajamento social, outra de suas preocupações, não transformou seus livros em panfletos políticos ou obras datadas. Na verdade, a principal dimensão de sua obra nunca foi a terra ou mesmo a luta, mas sim o homem. O realismo dos cenários e da ação é tão forte quanto o aprofundamento psicológico das personagens, descritas em cada ato cotidiano, permitindo ao leitor compreender e justificar até mesmo seus gestos arrebatados, seus atos mais passionais. Quatro das suas principais obras foram escritas nos anos 1930, década áurea do romance de cunho regional e social. Em Caetés, de 1933, o protagonista João Valério escreve um livro sobre a vida dos índios caetés, durante o período colonial, e acaba fazendo analogia entre os antropófagos e a sociedade em que vive. Seu segundo romance, São Bernardo, retrata Paulo Honório, um proprietário de terras que vai perdendo seu valores humanos em favor de uma visão do mundo baseada estritamente no lucro. Casando-se apenas para ter um herdeiro, apaixona-se pela esposa no momento em que sua fazenda entra em crise. Angústia, de 1936, escrito no cárcere, apresenta Luís da Silva, outro narrador-protagonista dilacerado entre necessidades e sentimentos. Em 1938, recém-saído da cadeia, publicou seu maior sucesso, Vidas Secas. Pela primeira vez um romance de Graciliano não é narrado em primeira pessoa. Há uma fusão entre o discurso indireto e o pensamento das personagens expressos diretamente, especialmente os de Fabiano, o retirante, e de Baleia, sua cadela, a personagem mais humanizada do livro. A obra é a mais forte denúncia da condição subumana em que vivem os nordestinos despossuídos nos sertões da seca. FUVEST – 2020 – AngústiA2 CONTEXTO HISTÓRICO A Segunda Geração Modernista, compre-endida entre 1930 e 1945, foi profundamente marcada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, e pela crise geral então provocada no mundo e, particularmente, no Brasil. A depressão econômica gerou a falência de várias instituições e empresas, provocando desemprego e miséria, rompendo as relações econômicas estabelecidas no início do século XX. No Brasil, o abalo na exportação de produtos agrícolas, principalmente de café, derrubou muitos empresários e fazendeiros. A elite brasileira (decadente) e a insatisfação frente ao modelo econômico da democracia oligarco-burguesa determinaram o crescimento de ideais e partidos comunistas e socialistas. Artistas e intelectuais assimilaram as ideias políticas de esquerda e as obras que produziram a partir de 1930 passaram a refletir as preocupações da época. Os autores viam no romance um instrumento de denúncia da opressão e da miséria social, o que emprestou à literatura um tom de engajamento político. A preocupação dos escritores em evidenciar a decadência das relações sociais, econômicas e políticas fez a Geração de 30 romper com as inovações, o otimismo e as perspectivas de mudanças que inspiraram os artistas da Primeira Geração do Modernismo. A inovação passa a se realizar pela temática. Com o intuito de retratar grupos e regiões brasileiras esquecidas e excluídas pelo desenvolvimento da economia, que se concentrava nos grandes centros urbanos, os chamados Romances Regionalistas traziam, em primeiro plano, o homem como vítima das transformações históricas e do meio opressor que se configurava: o universo rural ainda em declínio ou já desaparecido, a migração do sertanejo para as grandes cidades e a adaptação deste ao meio urbano repleto de desigualdades. A intenção de demonstrar como o meio físico e a realidade política e social determinavam o caráter do homem e suas atitudes perante o mundo norteou a literatura da Segunda Geração Modernista no Brasil. Para trabalhar a temática social, houve uma retomada da estrutura narrativa do Realismo, em que o romance seria o meio que melhor permitiria ao leitor uma análise das condições do homem em sociedade. A linguagem, objetiva e enxuta, visava ao retrato direto da realidade humana. O retorno à antiga forma literária (o romance) e a simplicidade da linguagem serviram de mecanismos para que os escritores regionalistas da Segunda Geração do Modernismo brasileiro se aprofundassem no conteúdo de suas obras e na crítica social. FOCO NARRATIVO E DISCURSO A obra, relatada em 1a pessoa (narrador-personagem), não apresenta divisão estrutural em capítulos: é escrita como um fluxo confessional, um relato de arrependimento,uma confissão de um homem desesperado. Uma autobiografia de um narrador emocionalmente perturbado, assustado com as proporções de seus próprios atos, um delírio que, na estrutura narrativa, apresenta-se como desordenação e fragmentação de ideias, tempo que se estrelaça sem indicação de passado e presente. Por isso o monólogo interior (em sua forma radical da stream of consciousness) substitui, frequentemente, como técnica narrativa, a narração tradicional: “Esse passatempo idiota dá-me um espécie de anestesia: esqueço as humilhações e as dívidas, deixo de pensar.” “Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba.” “A cadeira perto da cama, o livro fechado sobre a palha. — A calça está rasgada. ‘Cosa o rasgão com uma corda.’ Albertina de tal, parteira diplomada. Escuridão. Um estremecimento, uma queda. Ia cair da cama, o chão se abriria, eu rolaria pelos séculos dos séculos fora disto. O espírito de Deus boiava sobre as águas.” * stream of consciousness: fluxo de consciência. TEMPO NARRATIVO Sob o ponto de vista do tempo físico (cronológico), os fatos que motivam a narração de Luís da Silva têm a duração de menos de um ano. “Foi lá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amigos.” Nesse intervalo de tempo, Luís conhce Marina, apaixona-se; perde a namorada, que se deixa envolver pelos galanteios de Julião Tavares, e finalmente comete o crime. O narrador conta “Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo”, é a partir desse fato que ele começa a contar a sua história, pelo menos no que se refere aos acontecimentos cruciais da narrativa. Sob esse ângulo de análise, é possível constatar que Luís da Silva inicia o relato de sua história trinta dias após o restabelecimento de seu estado febril causado pelo crime: “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente,” diz o narrador na primeira frase da obra. Mais que o enredo, o que interessa em Angústia é a vida interior e a análise psicológica do narrador Luís da Silva. Assim, predomina no romance o tempo psicológico. O tumulto psicológico da personagem acaba confundindo presente e passado. As lembranças do narrador invadem o presente, fundindo, por meio das mais variadas associações, o presente e o passado. A presença de um tríplice tempo — o da narração do presente, o da recordação da infância e do passado e dos devaneios subjetivos (o tempo subjetivo interior) — introduz um universo fragmentado e estilhaçado. Embora os acontecimentos da narrativa decorram no intervalo de um ano, o narrador nos remete a fatos ocorridos na sua infância e juventude. Assim, o tempo se estilhaça, as ideias surgem fragmentadas, soltas, se presentificam com observações pessimistas: FUVEST – 2020 – AngúSTiA 3 A N G Ú S T IA “Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo, os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do Partido que Padre Inácio chefiava.” “Há quinze anos, era tudo diferente: dividia o quarto que morava com Dagoberto, que era estudante e repórter, havia um calor infernal e um cheiro de gás invadia o ar.” “O carro passa pelos fundos do Tesouro. É ali que trabalha. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.” Não obstante as constantes evocações do passado, o tempo faz um movimento circular: a narrativa começa trinta dias após o restabelecimento de Luís da Silva e termina nos momentos mais intensos de febre e delírio, ocorridos em consequência do crime. Ou seja, a noção de tempo não obedece ao padrão lógico de continuidade temporal. A NARRATIVA E A LINGUAGEM DO NARRADOR Angústia é uma narração desesperada da tentativa de colocar em ordem os fatos e a vida: a decepção amorosa, o ciúme, o desejo contido e humilhado, a mulher escolhida pertencendo a outro. O ódio pela perda gera o crime; o assassinato que transtorna o narrador-personagem e o põe doente, após matar o adversário. Angústia é narrado em primeira pessoa, por um homem atormentado e preso a uma vida medíocre, a uma rotina de onde emerge para o drama passional. Tem a obsessão de criar uma obra, um romance e termina pelo relato da própria vida, da experiência amarga em que se mete e de onde olha o mundo. Não são somente os acontecimentos atuais que ele revolve: é o conjunto terrível de suas lembranças de homem que se confundem: a infância desolada, o isolamento, o sentimento de inferioridade, as necessidades físicas, as urgências emocionais. Em seu artigo “Angústia, uma teoria do romance de Graciliano Ramos” (Estado de São Paulo, 10/09/2000), o professor Ivan Teixeira, da USP, escreveu: “Angústia possui estrutura de autobiografia, podendo ser entendido como espécie de diário íntimo, com notável progressão no andamento do assunto: origina-se na alucinação decorrente do ciúme e da ideia do crime, passa pela reconstituição de seus motivos, até chegar, sempre em meio à memória afetiva, ao crime propriamente dito. Essa ordem decorre da racionalização da leitura, que seleciona, corta, ata, intercala e reata, porque vê tudo de fora, depois que tudo foi vivido e relatado pela personagem em desespero. Mas ela própria, que sentiu intensamente os acontecimentos que narra, não consegue organizá-los de maneira coerente. Para ela, tudo é confuso e caótico, porque, ao falar, ainda se encontra emocionada com o que fala. Cada pormenor assume importância desmedida, até mesmo os olhos do gato que a espia do muro, horas depois do crime. O livro é organizado de modo a sugerir impressão de desarranjo e absurdo, pois procura representar as categorias subterrâneas de um indivíduo atormentado pelo isolamento e pela mania de auto-análise.” Tudo é confuso e caótico. É o fluxo de lembranças desordenado que chama a atenção do leitor: o pensamento navega solto, ao sabor das recordações que se hierarquizam de acordo com o valor que se dá a elas. “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa. (...) Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.” O romance é pura memória, uma espécie de diário onde se registram, de forma desordenada, alucinada e aleatória os fatos que magoaram o narrador. Some-se a isso a culpa que sente pelo ato cometido e, por fim, acrescente-se a mágoa que, pouco a pouco, transforma-se em rancor contra a mulher que um dia amou (ou apenas desejou) e quis para si. “Na forma de Angústia, o egoísmo do personagem principal se afirma pela concentração do romance em sua própria pessoa. Luís da Silva é todo o romance Angústia. Contando a sua história, Luís da Silva absorve-a em si mesmo. O romance toma, por isso, a forma e as dimensões do seu espírito. Torna-se um diário que a personagem escreve posteriormente. A sua memória se desdobra em ziguezague e a narração romanesca acompanha fielmente esse ziguezague da memória de Luís da Silva. O seu método é o da confissão psicanalítica: uma palavra que explica a outra, um pensamento que esclarece o outro. E também o da associação de ideias: uma ideia que atrai outra ideia, uma lembrança que sugere outra lembrança. Luís da Silva não vive senão da sua memória e da imaginação. Mas a sua imaginação, no romance, constitui um resultado da memória. Luís da Silva conta o queimaginou anteiormente; a sua imaginação já se tornou um fato do passado, um patrimônio da memória.” (Álvaro Lins, Os Mortos de Sobrecasaca, Ed. Civilizaçao Brasileira, 1963) No romance, o que mais chama a atenção é a impotência do protagonista em sair dos seus delírios. Significativo é o fato de que a sequência das últimas páginas do romance está nas primeiras: isso caracteriza uma circularidade, um universo fechado do qual o gesto tresloncado de Luís da Silva não conseguiu libertá-lo. Portanto, a ideia central da obra reside nessa impotência do protagonista em superar a insignificância da vida e a solidão: a inutilidade de todos os esforços. “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. FUVEST – 2020 – AngústiA4 Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa. (...) Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.” A OBRA Angústia, mais do que regionalista, pode ser classificado como um romance existencialista. A narrativa, escrita em primeira pessoa, não visa ao retrato objetivo dos acontecimentos e das atitudes do narrador-personagem Luís da Silva, mas ao fluxo de consciência e à tentativa de compreensão do narrador de seu próprio “eu” , atormentado pelas figuras do seu passado remoto e da sua história recente. Dessa forma, Angústia é uma obra marginal ao Romance Regionalista e, por isso, a mais moderna de Graciliano Ramos. O enredo trata do modesto funcionário público Luís, membro de importante família sertaneja nordestina que, à época da República Velha (1889 a 1930), entrou em processo de decadência e desintegração após a morte do avô, o coronel Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, enforcado por uma cobra, e o assassinato do pai, Camilo Pereira de Silva. Desligado dos laços familiares e sociais do sertão — marcados pelas relações rudes e pelo coronelismo — e encantado com a possibilidade de mudanças revolucionárias vislumbradas nas grandes cidades, Luís da Silva instala-se na capital de Alagoas, depois de passar por enormes dificuldades, como a mendicância e a fome. Em Maceió, sofre uma série de adversidades: dorme em pensões precárias e endivida-se junto a colegas e proprietários. No tempo presente do romance, Luís mora em uma casa simples e sem estrutura, localizada na periferia da cidade, na companhia de ratos, da sua criada Vitória e de um papagaio. Escreve matérias encomendadas pelo governo e, à noite, no quintal da casa, dedica-se à literatura e ao jornalismo revolucionário. A ação principal do livro centra-se na paixão obsessiva por Marina, sua vizinha, que, após selar o namoro com Luís, o trai com o milionário Julião Tavares, de quem se torna amante por algum tempo. O tormento de Luís é tanto que o conduz ao assassinato do rival. Luís da Silva, distante das raízes sentimentais do ambiente rural, não se adapta às novas configurações urbanas. Devido à sua incompatibilidade em relação às outras personagens e ao sistema, não aceita o mundo e nem a si próprio, o que gera uma tensão do começo ao fim do livro e culmina no crime. Educado sob a sociedade sertaneja decadente, o protagonista, motivado pela solidão da capital e pela hostilidade da nova realidade, busca resolver o tormento da traição e do ódio por meio da concepção de justiça e de moral do sertão, caminho aparentemente oposto ao da moral da sociedade urbana. O ódio à futilidade de Marina e ao símbolo de superioridade social de Julião Tavares desperta em Luís um desejo de destruição do outro e de si próprio. Ao mesmo tempo em que pragueja a moça, pela índole interesseira dela, e Tavares, pela arrogância e sedução inescrupulosa, Luís da Silva se auto-destrói com bebedeiras, noites em claro, perseguição ao casal, críticas a suas próprias atitudes e ao seu insignificante papel na sociedade. Por fim, o assassinato leva Luís à febre, ao delírio e à auto-punição. Entretanto, seria uma classificação parcial considerar Angústia somente um Romance Regionalista. Graciliano parte de uma temática comum aos escritores de sua geração, mas supera o rótulo do regionalismo, abordando temas humanos universais. É claro que o autor não despreza o contexto social e político em que vive a personagem e a constrói como um ser em eterno conflito. Porém, a narrativa em primeira pessoa permite a análise dos motivos individuais do ser humano frente à dura realidade que o rodeia e contra a qual deve lutar para sobreviver. A intenção do romance, mais do que fornecer o retrato objetivo de uma realidade, é investigar a alma humana e os desejos reprimidos pela moral social, independente da época tratada, e descobrir o que há por trás de cada ato, conformado ou revoltado, e de cada lembrança da personagem, consciente de sua função medíocre na teia das relações sociais. O mergulho do leitor no mundo interior do narrador-personagem é intensificado por dois aspectos fundamentais presentes em toda a narrativa. O primeiro é constituído pelas memórias que, a todo momento, interrompem o fluxo narrativo da ação principal. Essas reminiscências trazem à tona figuras e acontecimentos do passado remoto de Luís, no sertão e na fazenda do avô, na cidade do Rio de Janeiro e em Maceió, e associam-se aos elementos da ação principal. Luís convive com sua memória e imaginação, as quais se desdobram em várias outras memórias, na tentativa de explicar seus sentimentos e pensamentos e justificar cada atitude que toma em relação a Marina e a Julião Tavares. O segundo aspecto, consequente do primeiro, é a oscilação do tempo e do espaço. No fluxo de consciência do narrador, que permite o acesso do leitor aos fatos, o tempo e o espaço são relativos e pouco delimitados. Podem estender-se por páginas ou encurtar-se, de acordo com os sentimentos despertados em Luís. Essa aparente desordem é a fiel consequência de a narrativa estar muito mais voltada para o mundo interior do protagonista do que para o espaço e os fatos reais. O espaço, a passagem do tempo, as personagens e os objetos descritos (como o relógio da sala e a corda usada no assassinato) são projeções do estado psicológico do narrador. O título do livro relaciona-se com a sensação de sufocamento e alucinação transmitida pelas reflexões e pelas lembranças de Luís da Silva. Esse estado de delírio acentua-se gradativamente ao longo do texto, conforme o narrador revela sua paixão por Marina, sua antipatia e futuro ódio mortal pelo milionário Julião Tavares e pela classe que esse representa. A vertigem atinge seu ápice após o crime, no monólogo final do romance, em que, por várias páginas, Luís, em estado febril, remonta toda a sua vida em síntese e menciona as figuras que fizeram e fazem parte de sua história. FUVEST – 2020 – AngúSTiA 5 A N G Ú S T IA Luís da Silva é um ser angustiado porque sabe de sua condição insignificante entre as pessoas com quem convive, sofre pela decadência dos seus laços sertanejos, é oprimido e humilhado pela sociedade na qual depositara esperança de transformação revolucionária e, sobretudo, é consciente do seu delírio revoltado e da falta de sentido de sua vida. Luís conhece a miséria moral e social à sua volta, assim como percebe a sua impotência diante dela, o que o torna também miserável. PERSONAGENS As personagens de Angústia, assim como as dos outros romances regionalistas brasileiros, representam classes e padrões sociais do país, dos anos 1930. Graciliano Ramos tinha por intenção, mais do que apenas retratar os tipos e comportamentos da época, desenvolver uma crítica à sociedade que se configurava pelo enriquecimento das cidades e pelo declínio daeconomia agrária. Esse processo, ao mesmo tempo que significou a ascensão de uma nova classe (a dos comerciantes e dos empresários urbanos, que se submetiam e enriqueciam às custas dos investimentos do capital estrangeiro), resultou no empobrecimento dos homens do sertão e dos pequenos funcionários. Tomando as características e as ambições das personagens do romance, é possível perceber a denúncia social que o autor se propôs a fazer. Luís da Silva: narrador-personagem, trinta e três anos, é um homem que teve seus laços familiares cortados devido ao declínio da economia rural. Seu avô, o coronel Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, fora um fazendeiro respeitado no sertão de Alagoas, cuja fazenda foi lentamente abandonada após sua morte. Luís saiu da fazenda depois do assassinato do pai e foi tentar a sorte, primeiro na capital do Rio de Janeiro, onde chegou à mendicância, instalando-se em definitivo em Maceió. É funcionário de um jornal e escreve artigos políticos por encomenda. A personagem é um ser insatisfeito e revoltado com sua condição submissa e a consciência que tem da sua inferioridade social torna-o extremamente angustiado. É o anti-herói que, em primeira pessoa, relata um ano de sua vida. Um homem com os nervos em frangalhos, trinta e cinco, feio, funcionário público: “Trinta e cinco anos, funcionário público, (...) Além de tudo, sei que sou feio.” “Um sujeito feio: olhos baços, o nariz grosso, um sorriso besta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesmo uma desgraça. (..) Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam. (...) Trabalho num jornal. À noite dou um salto por lá, escrevo umas linhas. (...)” Luís é produto da sociedade rural em decadência, pertencendo a dois mundos com os quais não consegue se identificar. O passado de desagregação da família ruralista a que pertence e o presente urbano em que se insere, não lhe trazem qualquer segurança ou compensação. Caracteriza-se como a própria imagem dessa dissolução na ausência significativa dos sobrenomes ancestrais importantes: apenas Luís da Silva, enquanto o avô fora Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva. A constante evocação de um passado decadente envolve a personagem em moticações psico-sociais, que se reúnem num complexo gerador e determinantes de suas opções como ser (indivíduo). A liberdade inexiste, tudo se acha previamente decidido e Luís da Silva, sem vontade, passivo e submisso, deixa-se envolver por todas as situações, arrastando-se por caminhos sem saída. Encurralado, sobrevive, alimentado por uma neurose que tem caminho certo: o crime. Quando imagina Julião Tavares numa fornalha “derretendo as banhas”, não está sonhando: é um desejo que ainda quer ver realizado. Isolado como pessoa, obcecado pelo ciúme, talvez pudesse respirar como ser social, como um intelectual que possui manuscritos guardados, periodicamente revistos, severamente julgados. Mas não, a prisão é a mesma, se não pior. Não existe possibilidade de identificação do seu trabalho com o mundo que o esmaga. Na ânsia de libertar-se das baneiras asfixiantes, é dominado pela ideia fixa de vingança: após o rompimento torna-se monomaníaco — só destruindo o seu rival, e Julião Tavares personifica tudo aquilo que ele não é, tudo aquilo que o conduziu a uma vida inútil e sem sentido —, é possível recuperar o equilíbrio perdido, afirmar-se como homem autêntico, superar a sua condição de coisa inerte e desprezível. O assassínio lhe parece a única maneira de sentir uma liberdade sempre desejada e jamais alcançada, a única forma real, possível de realização humana: “Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, (Julião Tavares) voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu era um homem ... A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu ... Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai dava no poço da Pedra, a palmatória do mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça.” “O proprietário da casa, o diretor da repartição, o chefe da redação são homens que me dominam sem mostrar o focinho, manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel.” Mata o rival: o inimigo tangível, símbolo de tudo o que ele odeia. Ou seja, Julião Tavares funciona como uma projeção das suas frustrações, dos seus recalques e dos seus desejos reprimidos. Imediatamente após o assassinato, Luís da Silva diz “veio-me a certeza de que me havia tornado velho e impotente. — Inútil, tudo inútil.” Julião Tavares: rico bacharel, metido a patriota discursador. Gordo, carão redondo e vermelho, representa o chato, o intragável conquistador barato: seduzia as moças pobres, abandonando-as a seguir. Luís conhece-o, uma noite, no Instituto Histórico, passa a odiá-lo pelo seu jeito acanalhado: “Tudo nele era postiço, era dos outros.” Logo depois de engravidar e abandonar Marina, já está de amante nova, mocinha pobre dos arrabaldes. É assassinado por Luís da Silva. FUVEST – 2020 – AngústiA6 Marina: “Cabelos de milho, unhas pintadas, beiços vermelhos e o pernão aparecendo ...” É uma jovem mulher, vulgar, ambiciosa e extremamente interesseira. Vizinha e namorada do protagonista. Depois de gastar as economias do noivo em um enxoval irrealizado, deixou-se seduzir por Julião Tavares sem qualquer resistência. Grávida, é abandonada pelo “amigo” de Luís da Silva. Seu Ramalho: pai de Marina, homem decente e sistemático, é um sujeito prático e de poucas palavras. Desgosta-lhe o comportamento da filha. Quer que ela arrume um emprego para ajudar nas despesas da casa. É ele quem primeiro alerta Luís sobre a futilidade de Marina avisando-o de que a filha não é “grande coisa”. D. Adélia: mãe de Marina, é uma senhora muito simples e recatada. Fora bem bonita na juventude, mas o tempo encarregou-se de lhe tirar a beleza e a disposição. Submissa ao marido, queixa-se frequentemente de tudo e, segundo a visão do narrador, é a responsável pela “perdição da filha”. Ao contrário do marido, justifica todas as ações da filha. Estimula-a a um casamento de conveniência e joga-a de encontro a Julião, quando descobre que ele é rico. Vitória: empregada de Luís da Silva. Velha, maníaca, lê todos os dias as notícias de saídas e chegadas de navios. Tagarela com o papagaio, mudo, a quem pretende ensinar palavras. Furta moedas encontradas pela casa e, junto com seu salário, enterra no fundo do quintal, na horta, ao lado dos pés de alface. “A voz é áspera e desdentada. E, acompanhando a cadência, tremem as pelancas do pescoço de peru, tremem os pêlos do buço e as duas verrugas escuras. É terrivelmente feia.” Seu Ivo: pobre coitado que viaja por todo lado, “entra nas casas sem se anunciar” e está sempre faminto. É dele que o narrador recebe, como presente, a corda com a qual enforcará Julião. Moisés: judeu amigo do protagonista. Credor de Luís, envergonha-se de cobrar o amigo. É socialista e pessimista inveterado. Cada personagem, por suas características e seus comportamentos, permite que seja identificada como pertencente a uma determinada camada social do Brasil. Luís da Silva identifica-se com a população sertaneja em declínio e em processo de empobrecimento, a qual não consegue adaptar-se aos novos modelos econômicos e sociais da vida urbana. Marina e seus pais, sobretudo D. Adélia, representam uma classe desfavorecida, mas cujos interesses centram-se em uma possível ascensão social, mais do que econômica. Vitória e Ivo são seres excluídos da economia do país: a criada trabalha em troca do escasso dinheiro que Luís pode lhe oferecer, mas nada gasta; e o andarilho, privado de qualquer bem, sobrevive por meio das esmolasrecebidas nas cidades. Enfim, Julião Tavares, o milionário negociante, insere-se nos padrões sociais de pessoas que enriqueceram devido à transferência do capital do campo para a cidade. Às custas do declínio da economia rural, os centros urbanos passam a centralizar o dinheiro do país. Julião Tavares faz parte do seleto grupo de pessoas que, além de usufruir do capital, tornam-se exploradoras do trabalho que cabe a figuras como Luís da Silva, seu Ramalho, Marina e Vitória desempenhar. ENREDO O livro foi escrito por Luís um mês depois do crime e do delírio febril, lançando mão do recurso de flashback. O narrador confidencia os detalhes dos seus pensamentos e de suas ações e os sentimentos que resultaram dos acontecimentos ocorridos. Para narrar sua história com Marina e Julião Tavares, Luís traz ao fluxo narrativo principal suas memórias sertanejas, as quais intervêm nos fatos mais recentes e quebram a linearidade da narração, que possui dois processos de memória: a do passado distante e rural e a do passado próximo e urbano, de pouco mais de um ano atrás, quando Luís vê Marina pela primeira vez. No início do romance, Luís, um mês após se recuperar da febre, ainda com as mãos machucadas pela corda usada no enforcamento de Julião Tavares, comenta seu dia a dia sem grandes interesses: o trabalho na repartição pública; o encontro no fim da tarde com seus colegas Pimentel e Moisés (esse, judeu e revolucionário, com quem Luís já se endividara); os passeios pela cidade e pelos cafés; o atraso no pagamento do aluguel a dr. Gouveia; a rotina com a criada Vitória, que enterra seus trocados ao pé da cerca do quintal e se distrai com as notícias do porto e com as conversas com o papagaio; e a leitura de artigos e livros. Luís não consegue se ater às ações cotidianas. Seus afazeres são sempre interrompidos pela lembrança de Julião Tavares e de Marina e pela memória dos acontecimentos do sertão e das dificuldades por que passara depois de chegar à cidade. No primeiro parágrafo do livro, o narrador, no ritmo em que flui sua consciência, conta ao leitor sua infância, sua trajetória pelo sertão e pelas cidades, sua paixão, seu ódio, seus pensamentos e o crime: Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.(...) Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro.(...) Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições (...), dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Graciliano Ramos. Angústia. Posfácio de Silviano Santiago. 60a ed. Rio, São Paulo: Record, 2004. FUVEST – 2020 – AngúSTiA 7 A N G Ú S T IA Além da memória obsessiva do crime que cometera, do qual o leitor só tomará conhecimento no final do romance, o trecho acima deixa evidente o espírito revolucionário de Luís ao identificar, com raiva, as figuras representantes de uma sociedade desigual e opressora. O narrador começa a entranhar-se nas lembranças do passado remoto e do passado recente, oscilando entre os tempos e entre os espaços e fazendo comparações entre os seus desejos e pensamentos: O poço da Pedra era uma piscina enorme.(...) Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida repetia a tortura.(...) Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o suplício um dia inteiro... Graciliano Ramos. Angústia. op. cit.. Luís revela as figuras que fizeram parte de sua mocidade, a morte do pai, Camilo Pereira da Silva, e a solidão que se instalou depois disso, tendo de perambular pelas cidades para garantir sua sobrevivência: Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos definhando na morrinha, o chiqueiro bodejando, relâmpagos cortando o céu.(...) Desde esse dia tenho recebido muito coice.(...) Aquilo agora tinha outro dono.(...) Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereira da Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pelas portas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outras almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, sinha Germana, não me atemorizavam; mas aquela, tão próxima, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. O suor corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de Camilo Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, verdes, com pedaços ficando pretos. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. E, nesse movimento de oscilação temporal, o protagonista começa a relatar o dia em que viu Marina pela primeira vez e suas impressões sobre ela (era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados), ao mesmo tempo em que recupera outros acontecimentos do passado e descreve sua rotina no tempo presente. Ainda não contei que moro na rua do Macena, perto da usina elétrica. Ocupado em várias coisas, frequentemente esqueço o essencial. Que, para mim, a casa onde moramos não tem importância grande demais. Tenho vivido em inúmeros chiqueiros.(...) Não esperem a descrição destas paredes velhas que dr. Gouveia me aluga, sem remorso, por cento e vinte mil-réis mensais, fora a pena de água.(...) Afinal, para a minha história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que, de volta da repartição, me sentava todas as tardes, com um livro. Foi lá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amigos. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Desde o primeiro momento, Luis encanta-se e deixa-se dominar por Marina, apesar de achar a moça frívola e fútil pelos interesses materiais demonstrados por ela e pela admiração que a mesma tem por d. Mercedes, uma vizinha espanhola vaidosa, amante de um oficial que a visita de madrugada. Marina mostra-se também muito vaidosa e interessada em luxos e riquezas, o que irrita Luís, na medida em que ele vai se apaixonando por ela. Leia um trecho em que o narrador, num momento de reflexão, evidencia sua criação sertaneja, rude e machista, comparando Marina às prostitutas que circulavam pela rua da Lama: Para o diabo. Aqui me preocupando com aquela burra! Unhas pintadas, beiços pintados, biblioteca das moças, preguiça, admiração a d. Mercedes. — total: rua da Lama. Acaba na rua da Lama, sangrando na pedra-lipes. Vamos deixar de besteira, seu Luís. Um homem é um homem. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Na época em que se aproximara de Marina, Luís conheceu Julião Tavares, com quem logo se indispôs. Mesmo assim, o milionário passou a frequentar a casa e a vizinhança de Luís, pedindo artigos a este e vendendo favores às pessoas. Conheci esse monstro numa festa de arte no Instituto Histórico.(...) Pelo meio da função um sujeito gordo assaltou a tribuna e gritou um discurso furioso e patriótico.(...) À saída deu-me um encontrão, segurou-me um braço e impediu que me despencasse pela escada abaixo.(...) Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo por alto a vida, o nome e as intenções do homem. Família rica. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhados, donos de prédios, influentes da Associação Comercial, eram uns ratos.(...) Dias depois fez-me uma visita. Em seguida familiarizou-se.(...) — Que diabo vem fazer esse sujeito? murmurei com raiva no dia em que Julião Tavares atravessou o corredor sem pedir licença e entrou na sala de jantar, vermelhoe com modos de camarada. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. FUVEST – 2020 – AngústiA8 São descritas, no meio do romance, as personagens que convivem com o protagonista na vizinhança: d. Rosália, cujo marido está sempre viajando, e sua criada Antônia; Lobisomem, apelido dado pelas bocas más, e suas três filhas; o homem que enche dornas; e a mulher que lava garrafas. Mas é com os pais de Marina que Luís tem mais contato. D. Adélia é uma mulher submissa e desencantada; seu Ramalho, um homem seco e humilde, que conhece o caráter leviano da filha e adverte Luís. Depois de firmar o namoro com Marina e endividar-se para lhe dar dinheiro para o enxoval, um dia, ao voltar do trabalho, Luís surpreende a noiva com Julião Tavares à janela. Inicia-se aí o processo de desilusão e de auto-destruição do narrador. A roupa do intruso era bem feita, os sapatos brilhantes. Baixei a cabeça. Os meus sapatos novos estavam mal engraxados, cobertos de poeira. Pés de pavão.(...) Lembrei-me da fazenda de meu avô. As cobras se arrastavam no pátio.(...) Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava de longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra batida e gritava: — ‘Tira, tira, tira.’. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Este é o primeiro momento em que Luís pensa em exterminar Tavares, visto que, ao se sentir traído, vem-lhe à memória a morte do avô enforcado por uma cobra. O protagonista, na tentativa de livrar-se da angústia e da raiva provocadas pelo prenúncio da traição, sai a perambular pelas ruas e pelos bares suburbanos, deita-se com uma prostituta de quem tem pena, embebeda-se. Marina, no primeiro instante, nega a Luís a traição, dissimulando e pedindo mais dinheiro para comprar tapetes e outros objetos do enxoval. Assim, acabei de encalacrar-me. Marina recebeu os panos friamente, insensível ao sacrifício que eu fazia, aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no entendimento, teria percebido logo que ela estava com a cabeça virada. Virada para um sujeito que podia pagar-lhe camisas de seda, meias de seda.(...) Nem olhou os pobres trapos, que ficaram em cima de uma cadeira, esquecidos. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Pouco a pouco, Marina afasta-se de Luís e aproxima-se de Julião Tavares, o qual algumas tardes visitava a moça. O narrador procura, então, outras mulheres em seus dias (a mulher dos olhos agateados) e em sua memória, relembrando as moças, todas com pouca importância, com quem já havia se relacionado. Tavares, enfim, seduz Marina e começa a namorá-la, inclusive dentro da casa de seu Ramalho. A ideia do assassinato instalava- se gradativamente na mente de Luís. Associações ocorriam-lhe enquanto esse observava um cano preso à parede de sua casa, ouvindo os rumores da conversa entre Julião Tavares e Marina na casa vizinha: O cano estirava-se como uma corda grossa bem esticada, uma corda muito comprida.(...) A voz precipitada de Marina era ininteligível; a de Julião Tavares percebia-se distintamente e causava-me arrepios: fazia-me pensar em gordura, em brancura, em moleza, em qualquer coisa semelhante a toicinho cru. Pescoço enorme, sem ossos, tudo banha.(...) Se o homem se calasse, as minhas apoquentações diminuiriam.(...) E olhava com insistência o cano que se estirava ao pé da parede, como uma corda. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Obcecado pelo ciúme, pela inveja e pela raiva, Luís dedica vários momentos à perseguição do casal, seguindo Marina e Julião Tavares pela cidade. Atormentado pelo desalento da solidão e da exclusão que sempre sentiu em sua vida, num processo de autodegradação, o narrador recorda as humilhações das quais fora vítima ao migrar para o mundo urbano: Além disso, eu necessitava beber muito, sentia preguiça, passava horas no café, esbagaçando dinheiro. O ordenado voava, as dívidas cresciam. Naquele momento, porém, não pensava em nada disso. Pensava na miséria antiga e tinha a impressão de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me.(...) A fome triturava-me a barriga, uma fome de muitos dias, enganada com pedaços de pão e cálices de aguardente. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. O narrador também confidencia sua visão do amor e como se comporta em relação aos seus desejos. Luís é um homem de natureza rural, recalcado e repressor da sua própria excitação, menos por preconceito do que por não saber lidar com o delírio amoroso. No trecho em que comenta os suspiros advindos da casa de d. Rosália, que recebia a visita do marido, Luís confessa que se entretém com os barulhos, aos quais associa lembranças de Marina e de sua avó na fazenda: Agora não podia arredar-me dali.(...) Que me importava que Marina fosse de outro? As mulheres não são de ninguém, não têm dono. Sinha Germana fora de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, só dele, mas há que tempo! Trajano possuíra escravos, prendera cabras no tronco. E os cangaceiros, vendo-o, varriam o chão com a aba do chapéu de couro. Tudo agora diferente. Sinha Germana nunca havia trastejado: ali no duro, as costas calejando a esfregar-se no couro cru do leito de Trajano. — ‘Sinha Germana!’ E sinha Germana, doente ou com saúde, quisesse ou não quisesse, lá estava pronta, livre de desejos, tranquila, para o rápido amor dos brutos. Malícia nenhuma. Como a cidade me afastara de meus avós! O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada e incompleta. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. FUVEST – 2020 – AngúSTiA 9 A N G Ú S T IA O recalque de Luís, mais do que simples repressão, é fruto da não identificação com os valores das sociedades com as quais conviveu. Não é um homem poderoso como fora seu avô, mas sim uma insignificante e pobre figura, em meio a tantas outras, na vasta paisagem urbana. Luís não encontra respostas aos seus desejos em parte alguma: nem em sua educação e no seu passado, nem em seu presente. Esse desencontro entre o protagonista e o amor constitui um dos motivos para a consumação do crime: Luís mata o homem que o impede de realizar sua satisfação. O afastamento de Luís e Marina prolonga-se por muitos meses, mas a agonia do narrador não se ameniza com o tempo. Pelo contrário, quanto mais Luís esmiuça os fatos e suas lembranças de outros tempos, mais sua imaginação é tomada pelo romance da moça com Julião Tavares. Certos atos aparecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão, em que avultava a ideia de reaver Marina. Mais de um mês, quase dois meses em intimidade com o outro. Procurei por todos os meios uma nova aproximação. O despeito, a raiva que senti naqueles dias compridos, uns restos de amor próprio, tudo se sumiu. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. O trecho permite perceber a intensificação do desespero do narrador anulando-se frente ao sentimento de traição e humilhação. Ele perde o resto do amor próprio. Conforme se encaminha para o final, o romance adquire uma atmosfera sombria, como se a degradação de Luís se fortalecesse a ponto de dominá-lo por completo. O estado de delírio vai se acentuando e o narrador passa a perseguir o casal com maior frequência, cada vez mais inconformado com a destacada posição social e as atitudes de Julião Tavares, contrastantes com a sua posição medíocre e submissa na sociedade. Luís, aos poucos, conscientiza-se do ínfimo valor que tem perante os outros, como se Tavares lhe roubasse o prestígio, social e amoroso, que ele poderia vir a conquistar. O assassinato mais fortemente se anuncia.Um esbarrão acidental de Luís em uma mulher grávida na rua leva-o à imagem onírica da gravidez de Marina: A aba do meu chapéu de palha bateu-lhe na testa, provavelmente feriu-a.(...) Era uma mulher gorda, amarela, mal vestida, com uma barriga monstruosa. Não sei como podia andar na rua conduzindo aquela gravidez que estava por dias. (...) Com uma das mãos segurava o braço de umacriança magra e pálida, com a outra escondia o olho e um pedaço da cara.(...) Com certeza já vinha recebendo encontrões, e aquele, demasiado rude, lhe esgotara a paciência. Andar no meio da multidão, aos emboléus, com semelhante barriga! Só muita necessidade.(...) Agora havia duas imagens distintas: uma barriga que se alargava pela cidade e a mulher que mostrava apenas um pedaço de cara. Nessa parte visível, endurecida pelo sofrimento, pouco a pouco se esboçavam as feições de Marina. Os cabelos, que a mulher tinha grisalhos, tornavam-se louros. A bochecha era pintada, a metade da boca excessivamente vermelha, o olho único muito azul. Eu fervia de raiva. Se tivesse encontrado Julião Tavares naquele dia, um de nós teria ficado estirado na rua. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Mais uma vez, Luís cogita matar Julião Tavares. Ao saber que a gravidez de Marina era um fato, escutando-a conversar com d. Adélia enquanto tomava banho, o narrador aumenta seu ódio por Tavares. Parodoxalmente a isso, sua preocupação, sua atração e seu zelo por Marina crescem. Para Luís, Marina merecia compaixão, e Tavares, a morte como justiça. No romance, o narrador declara essa sentença recordando a relação de posse que seu avô tinha sobre as pessoas da fazenda. Numa inversão dos papéis sociais e tomado pela sensação de superioridade a Julião Tavares, Luís declara: Julião Tavares devia morrer. Não procurei investigar as razões desta necessidade. Ela se impunha, entrava-me na cabeça como um prego.(...) Marina era instrumento e merecia compaixão.(...) Julião Tavares também era instrumento, mas não senti pena dele. Senti foi o ódio que sempre me inspirou, agora aumentado.(...) vio-o roxo, os olhos esbugalhados, a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capueira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus. Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Logo depois, Luís ganha de seu Ivo, andarilho que sempre o visitava a pedir comida, um pedaço de corda, presente ao qual reage com fúria, como se quisesse afastar da mente a ideia e a possibilidade cada vez mais facilitada do assassinato. Em posse da corda, Luís traz à lembrança vários crimes e várias imagens de defuntos que presenciara no sertão e carrega a todos os lugares o objeto, guardado no bolso do paletó. Uma tarde, enquanto seguia Marina, Luís a vê entrando na casa de uma parteira, em um bairro afastado, para realizar um aborto. Muito preocupado, o protagonista espera pela moça durante horas. Na saída, Luís a segura pelo braço, xinga-a e a leva de volta à cidade. Esse acontecimento foi o estopim para que o narrador decidisse pelo assassinato de Julião Tavares. Luís descobre a casa da nova amante do milionário e, uma noite, persegue-o. Espera-o por horas até que ele saia e retome, a pé, a estrada de ferro. Há névoa na paisagem descrita, numa alusão ao estado psíquico atormentado de Luís. FUVEST – 2020 – AngústiA10 Julião Tavares flutuava para a cidade, no ar denso e leitoso. Estaria longe ou perto? Aparecia vagamente nos pontos iluminados, em seguida o nevoeiro engolia-o, e eu tinha a impressão de que ele ia voar, sumir-se. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Durante a obstinada perseguição, Luís exalta as lembranças do sertão, a força e o modo de lutar dos sertanejos, as tocaias montadas por seu avô e pelo cangaceiro José Baía, a quem invoca para garantir coragem naquela sua tocaia solitária. Nesse momento, Luís divide-se entre o homem fraco e oprimido da cidade e o homem duro e valente do campo. Desejei que Julião Tavares fugisse e me livrasse daquele tormento.(...) Pensei em gritar, avisá-lo de que havia perigo, mas o grito morreu-me na garganta. Não grito: habituei-me a falar baixinho na presença dos chefes.(...) Ao mesmo tempo encolerizei-me por ele estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eu não era nada? Não bastavam as humilhações recebidas em público? No relógio oficial, nas ruas, nos cafés, virava-me as costas. Eu era um cachorro, um ninguém.(...) Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não.(...) Eu era um homem. Ali eu era um homem. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. Num salto, Luís enlaça o pescoço do inimigo. Tomado pelo seu papel de justiceiro e esquecido de sua insignificância no mundo urbano, sente-se superior a todos os moradores da cidade, os quais, segundo ele, haviam-no enganado e dominado por trinta e cinco anos. Sua vingança está consumada. Morto Julião Tavares, Luís amarra a corda no pescoço do defunto e o pendura em um galho de árvore a fim de simular um suicídio. Esse movimento é que fornece às mãos do narrador os machucados citados no início do romance. Porém, a sensação de liberdade e de alívio dura pouco. Logo, Luís sofre novamente com o pavor da prisão, mecanismo urbano de justiça, diante do qual voltaria a ser ninguém. Exausto, arrasta-se pela estrada em direção à cidade, sem noção das horas. É madrugada. No caminho, suas memórias dos acontecimentos e das figuras do sertão intensificam-se e misturam-se rapidamente às memórias de Marina e dos dois romances que ela teve. Entrelaçam essa oscilação a febre e o delírio que escravizam Luís e o fazem remontar toda a sua história numa espécie de transe. No extenso monólogo final, elementos se combinam aleatoriamente, em desordem temporal e espacial. Luís entreva-se na cama, doente, em surto febril, e só um mês depois de se levantar é que começa a escrever o romance que acabamos de comentar. O livro finaliza-se no próprio delírio, não há uma explicação final e objetiva do narrador. Permanece apenas a sensação de que o narrador não saiu do estado febril e inconsciente ao terminar de escrever sua história. A atmosfera de sonho fica suspensa e a angústia de Luís da Silva, expressa em imagens pinceladas por ele, transfere-se para o leitor, que se depara com a ausência de um desfecho que dissipe a sombra dos sentimentos, dos pensamentos e da culpa do narrador-personagem. Após citar visões embaçadas de todas as personagens mencionadas ao longo do romance, Luís termina: (...) Acomodavam-se todos.(...) Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras.(...) Íamos descansar. Um colchão de paina. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. TRECHO ANALISADO Por que seria que o peitilho de Julião Tavares brilhava tanto e não se amarrotava? Julião Tavares ficava duro como um osso fraturado envolvido em gesso, tinha o espinhaço aprumado em demasia, olhava em frente, com segurança, a vinte passos. O peitilho da camisa absolutamente chato. A minha camiseta entufa no peito, é um desastre. Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar dinheiro no chão, há sempre muito pano subindo-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo, ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estes movimentos contínuos dão-me a aparência de um boneco desengonçado, uma criatura mordida pelas pulgas.(...) Também não é possível manter a espinha direita. O diabo tomba para a frente, e lá vou marchando como se fosse encostar as mãos no chão. Levanto-me. Sou um bípede, é preciso ter a dignidade dos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andar empertigado, e eu curvar-me para a terra, como um bicho! Desentorto o espinhaço. Que é que pode me acontecer? Se dr. Gouveia passar por mim, finjo não vê-lo. É impossível pagar o aluguel da casa. Não pago. Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe. Se o governador e o secretário me encontrarem, é como se não encontrassem. Não os enxergo, na rua sou um homem.(...) Sou um bípede. É isto, um bípede. Masnão é necessário que dr. Gouveia, o governador e o secretário apareçam na rua. Aliás é bom que eu não veja essas criaturas exigentes. Se elas desejarem qualquer coisa de mim, falarão longe: escreverão um bilhete ou darão uma ordem para o jornal, ao Pimentel, pelo telefone. Mandarei um mês do aluguel da casa, se puder, ou escreverei mais uma coluna que já escrevi centenas de vezes e reproduzo sempre, substituindo palavras. Esses homens dominam-me sem mostrar o focinho: manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel. Graciliano Ramos. Angústia. op. cit. As reflexões acima ocorrem no momento em que Luís, da janela de sua casa, avista a limousine de Julião Tavares, o qual vem buscar Marina para a última apresentação de uma companhia lírica que estava em Maceió. Nesse trecho, é possível perceber recursos muito utilizados pela Segunda Geração Modernista, como a linguagem simples e longe de radicalismos. FUVEST – 2020 – AngúSTiA 11 A N G Ú S T IA A inovação em Angústia dá-se pelo conteúdo: um ser humano, produto de uma sociedade oligárquica desaparecida, tenta, de modo desajeitado, adaptar-se a uma nova estrutura social, cujos valores e cuja moral são diferentes dos que o formou. Nessa tentativa de inclusão, o homem debate-se contra a sua própria consciência, pois ele sabe que será sempre excluído dos novos meios políticos e econômicos. As constantes comparações que o narrador-personagem faz entre os homens e os bichos, recurso característico do Naturalismo, evidenciam a consciência angustiada do homem frente às fúteis relações sociais que se formam à sua volta e contra as quais nada consegue fazer. Luís da Silva, pela maneira como descreve suas atitudes, é quase um rato, semelhante àqueles com os quais ele convive em sua casa: curva-se para o chão e para as pessoas de poder social, envergonha-se de si mesmo, não consegue olhar de frente para as criaturas exigentes, não se sente digno da convivência com elas. Prefere sumir diante delas, mesmo sabendo da frivolidade de caráter que domina todos. Mesmo quando tenta se considerar um ser digno de respeito, resume-se a um bípede, classificação animalizante e reducionista que o separa dos homens dotados de cultura e conhecimento. O momento de realização de Luís no romance é o enforcamento a que submete Julião Tavares. Nesse acontecimento, os dois lutam como dois animais, pela força e flexibilidade física. O protagonista dá o bote como fez a cascavel com seu avô Trajano. Foi a única possibilidade de o narrador ver a justiça feita em relação às leviandades de Tavares. Luís é um ser desprovido do acesso à justiça, à moral e ao dinheiro. E a sua consciência dessa situação faz que ele se considere ainda mais impotente, mais submisso e mais revoltado. BIBLIOGRAFIA — Ramos, Graciliano - Angústia, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1964, 9a ed. — Puccinelli, Lamberto - Graciliano Ramos, Edições Quíron/Mec, 1975 — Brayner, Sônia - Graciliano Ramos, Coleção Fortuna Crítica 2, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1977 — Cândifo, Antônio - Formação da Literatura Brasileira, 2 vols, Editora Itatiaia/Edusp, Belo Horizonte, 1975 — Cândido, Antônio e Castello, Aderaldo - Presença da Literatura Brasileira, Difel, 1976 — Todovov, Tzvetan - As Estruturas Narrativas, Editora Perspectiva, São Paulo, 1970 EXERCÍCIOS 01. (PUC-SP) Otto Maria Carpeaux, analisando o romance de Graciliano Ramos, afirma: “Após ter lido Angústia até o fim, é preciso rever as primeiras páginas, para compreendê-las.” Isso se justifica porque o romance apresenta a) um mundo fechado em si mesmo, mas com linhas narrativas independentes e soltas. b) estrutura circular em que início e fim se tocam em relação de causa e efeito. c) relação temporal em que o passado e o presente se interpenetram, dando ao texto uma estrutura labiríntica. d) narração em terceira pessoa, com linha narrativa ondulatória. e) desordem na sequência narrativa como consequência do distúrbio mental que acometera a personagem. 02. (PUC-SP) O crítico Álvaro Lins, analisando o romance Angústia, de Graciliano Ramos, assim se expressa: “As personagens são projeções da personagem principal. Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal — inclusive o instrumento do crime.” De acordo com esse texto e considerando a trama do romance, é possível depreender-se que a) Luís da Silva e Julião Tavares são projeções de um mesmo sentimento, qual seja o de destruição e morte de Marina. b) Luís da Silva, acometido por uma crise de ciúme, mata Marina, a vizinha por quem nutria uma paixão recalcada. c) o instrumento do crime ocorrido na narrativa foi um pedaço de cano que, segundo Luís da Silva era uma arma terrível, sim senhor, rebenta a cabeça dum homem. d) Julião Tavares seduz Marina, ex-namorada de Luís da Silva, e este se vinga, estrangulando-o com um pedaço de corda, presente de Seu Ivo. e) traído e espezinhado no orgulho de homem por Julião Tavares, Luís da Silva usa uma cobra como instrumento para enforcar o rival. 03. (UF-RS/2015) Leia a seguinte afirmação sobre a obra de Graciliano Ramos e avalie se ela está correta ou incoreta. Justifique sua resposta. No romance Angústia, Luís da Silva narra seu dilema de ou casar-se com a vizinha Marina ou mudar-se para o Rio de Janeiro para trabalhar como funcionário público. FUVEST – 2020 – AngústiA12 04. (ITA-SP) Leia o texto seguinte: Graciliano Ramos: Falo somente com o que falo: Com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto da cicatriz clara. (...) João Cabral de Melo Neto a) No poema, João Cabral faz referência ao estilo de Graciliano Ramos. Destaque um trecho do excerto acima e comente a caracterização feita pelo autor do poema. b) Justifique a colocação dos dois pontos após o nome Graciliano Ramos no título do poema. 05. (UNICAMP-SP) Leia o seguinte trecho extraído do romance Angústia: Onde andariam os outros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fome antiga me enfraqueceu a memória. Lembro-me de vultos bisonhos que se arrastavam como bichos, remoendo pragas. Que fim teriam levado? Mortos nos hospitais, nas cadeias, debaixo dos bondes, nos rolos sangrentos das favelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu, um emprego público, seriam parafusos insignificantes na máquina do Estado e estariam visitando outras favelas, desajeitados, ignorando tudo, olhando com assombro as pessoas e as coisas. Teriam as suas pequeninas almas de parafusos fazendo voltas num lugar só. Graciliano Ramos, Angústia. a) No momento da narração, a posição social do narrador- personagem difere de sua condição de origem? Responda sim ou não e justifique. b) Na citação anterior, o termo parafusos remete ao verbo parafusar que, além do significado mais conhecido, também tem o sentido de pensar, cismar, refletir, matutar. Como esses dois sentidos podem ser relacionados ao modo de ser do narrador-personagem ? c) De que maneira o segundo sentido do verbo parafusar está expresso na técnica narrativa de Angústia ? 06. (UNICAMP-SP) O texto abaixo, extraído de Angústia, romance de Graciliano Ramos, descreve um encontro entre três personagens. Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei de pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas. O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu. — Tem negócio comigo? A cólera engasgava-me.Julião Tavares começou a falar e pouco a pouco serenou, mas não compreendi o que ele disse. Canalha. a) Quem é o narrador desta passagem? Que vínculos existem entre o narrador, Marina e Julião Tavares? b) Transcreva expressões do trecho acima nas quais está caracterizada a reação emocional do narrador à conversa que presencia. c) De que maneira essas expressões antecipam o desfecho do romance? 07. (UNICAMP-SP) Em Angústia de Graciliano Ramos, encontramos sequências instigantes: Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo. Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. (...) Fomos morar na vila. Meteram-me na escola de seu Antônio Justino, para desasnar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a conjugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava olhando as paredes, esperando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra. a) Que processos permitem as construções preguiçando e desasnar na língua? b) Se substituirmos preguiçando por descansando e desasnar por aprender, observamos uma relação diferente com a poesia da língua. Explicite essa diferença. c) O uso de desasnar pode nos remeter, entre outras palavras, a desemburrecer e desemburrar. No Dicionário Houaiss, o verbete desemburrar apresenta como acepções tanto “livrar- se da ignorância” quanto “perder o enfezamento” e marca sua etimologia como des + emburrar. Seguindo nossa consulta, encontramos no verbete emburrar o ano de 1647 que, segundo a Chave do Dicionário Houaiss, indica a “data em que [essa palavra] entrou no português”. A fonte dessa datação é a obra Thesouro da lingoa portuguesa composta pelo Padre D. Bento Pereyra, publicada em Lisboa. Embora desemburrecer não apareça no dicionário, encontramos emburrecer, cuja entrada no português , segundo o Houaiss, data de 1998, atestada pela obra de Celso Pedro Luft Dicionário Prático de Regência Verbal, publicada em São Paulo. O verbete desasnar data de 1713, atestado pela obra Vocabulário portuguez e latino de Rafael Bluteau, publicada em Coimbra-Lisboa. Tendo em vista as observações acima apresentadas — a presença ou não desses verbetes no dicionário, as datas de entrada no português e as fontes que atestam essas entradas — o que se pode compreender sobre a relação entre o dicionário e a língua?
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