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1 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia PANCREATITE AGUDA ANATOMIA DO PÂNCREAS FISIOPATOLOGIA Corresponde à inflamação aguda do pâncreas decorrente da autodigestão tecidual pelas pró- prias enzimas pancreáticas. O processo inflamatório se inicia pela lesão das células acinares, que passam a liberar enzimas pancreáticas para o interstício. Um aumento na concentração intracelular de cálcio também pa- rece ser capaz de promover a autoativação do tripsinogênio em tripsina, participando da gênese da pancreatite. As enzimas Fosfolipase A e Lipase são respon- sáveis pela autodigestão da gordura pancreática e peripancreática. A enzima Elastase é responsável pela lesão do tecido intersticial e pela ruptura da parede vas- cular. PANCREATITE LEVE Cerca de 80 a 90% dos casos correspondem à pancreatite aguda edematosa, ou pancreatite aguda leve. Cursa somente com edema do pân- creas, sem áreas de necrose e sem complica- ções. Tem curso autolimitado em 3 a 7 dias. Sua letalidade é inferior a 1%. PANCREATITE GRAVE 10 a 20% dos casos correspondem à pancrea- tite aguda necrosante/necro-hemorrágica ou pancreatite aguda grave. Cursa com extensa necrose parenquimatosa e hemorragia perito- neal. É um quadro sistêmico grave que tem evo- lução de 3 a 6 semanas. Sua letalidade varia de 30 a 60%. A infecção do tecido pancreático e peripan- creático ocorre em cerca de 30 a 40% dos casos de pancreatite aguda grave, acarretando uma letalidade ainda maior. ETIOLOGIAS As causas mais comuns de pancreatite aguda são a litíase biliar e o álcool, respondendo por cerca de 75% dos casos. Além das causas abaixo, incluem-se a hipercalce- mia, pós-operatório, pancreatite induzida por fármacos, trauma e infecções. PANCREATITE AGUDA BILIAR A passagem de cálculos biliares através da am- pola de Vater é a causa mais comum de pancre- atite aguda. Os cálculos geralmente são pequenos, inferiores a 5 mm. De 25 a 50% dos pacientes com pancreatite aguda biliar apresentam coledocolitíase associ- ada, na maioria das vezes assintomática. É mais comum no sexo feminino (2:1), em obesos e na faixa etária entre 50 a 70 anos. A pancreatite aguda complica 3 a 7% dos paci- entes com colelitíase. Não se associa à pancreatite crônica. A colecis- tectomia (retirada da vesícula) previne as fre- quentes recidivas de pancreatite aguda nesses pacientes. 2 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia PANCREATITE AGUDA ALCOÓLICA A pancreatite aguda é observada entre 5 a 10% dos alcoolistas. Geralmente já existe um acometimento crônico do pâncreas, mesmo que subclínico. A pancreatite alcoólica é marcada por vários epi- sódios recorrentes de pancreatite, em geral de- sencadeados após libação alcoólica. Os sintomas frequentemente surgem de 1 a 3 dias após o consumo alcoólico intenso. HIPERTRIGLICERIDEMIA É responsável por menos de 4% das pancreati- tes agudas. A maioria dos casos ocorre em pacientes diabé- ticos mal controlados e/ou com hipertrigliceride- mia familiar e em alcoolistas. Geralmente níveis de triglicerídeos superiores a 1000 mg/dL são necessários para o desenca- deamento do quadro. PANCREATITE AGUDA IDIOPÁTICA Cerca de 20% dos pacientes com pancreatite aguda se encontram nesse grupo. Apresenta duas causas principais: microlitíase bi- liar ou “lama biliar” (2/3 dos casos) e disfunção do esfíncter de Oddi (1/3 dos casos). QUADRO CLÍNICO Os principais sintomas são dor abdominal aguda, náuseas e vômitos. A dor abdominal aguda é contínua em andar su- perior do abdome. Pode se localizar em mesogás- trio, quadrante superior direito, ser difusa, ou, raramente, à esquerda. Uma característica da dor é a disposição em barra ou faixa e a irradiação para o dorso. A dor se mantém por dias e apresenta progres- são rápida, atingindo intensidade máxima dentro de 10 a 20 minutos. Há alívio da dor em posição de flexão anterior do tórax (genu- peitoral). A dor é acompanhada, em 90% dos casos, de náuseas e vômitos que podem perdurar por vá- rias horas. Os vômitos podem ser incoercíveis e, em geral, não aliviam a dor. O exame físico varia de acordo com a gravidade da doença. O exame abdominal revela desde dor à palpação até sinais de irritação peritoneal com descom- pressão dolorosa (Blumberg), nos casos mais graves. Distensão abdominal é um achado co- mum, devido ao íleo paralítico. A obstrução do ducto biliar principal devido à co- ledocolitíase pode ocasionar icterícia, geralmente leve, em cerca de 10% dos pacientes. Alguns sinais cutâneos podem aparecer, de forma incomum, na pancreatite aguda. São eles: equimose em flancos (sinal de Grey-Turner), equi- mose periumbilical (Sinal de Cullen), necrose gor- durosa subcutânea (paniculite) e equimose na base do pênis (sinal de Fox). Os sinais de Grey-Turner e de Cullen ocorrem em 1% dos casos. São caracte- rísticos de pancreatite aguda, mas não são patognomônicos. A necrose gordurosa subcutânea (paniculite) é um evento raro, assim como a retinopatia de 3 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia Purtscher, que é uma complicação da pancrea- tite aguda que se manifesta com escotomas e perda súbita da visão. O comprometimento respiratório pode piorar após os primeiros dias, se instalando derrame pleural (geralmente do lado esquerdo), atelecta- sia e síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), que se caracteriza pela hipoxemia refratária à administração de altos fluxos de O2. A insuficiência renal é comum na pancreatite grave, com aumento de ureia e creatinina. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL As doenças que se manifestam com intensa dor abdominal devem ser afastadas. Entre elas: do- ença péptica/úlcera perfurada; colelitíase, cole- docolitíase, colecistite aguda; isquemia mesenté- rica; obstrução intestinal aguda; IAM infe- rior/dissecção de aorta abdominal; gravidez ec- tópica. Na úlcera perfurada, o exame abdominal em ge- ral mostra irritação peritoneal proeminente (às vezes “abdome em tábua”). Esses achados não esperados na pancreatite aguda. Há casos em que os critérios clínicos e laborato- riais não são capazes de diferenciar com cer- teza a pancreatite aguda de seus diagnósticos diferenciais. Nesses casos, está indicada laparo- tomia exploratória. EXAMES LABORATORIAIS Leucocitose é comum, principalmente nos casos graves. O aumento da proteína C reativa (PCR) e de IL-6 são marcos de gravidade. Níveis de PCR superio- res a 150 mg/L indicam mau prognóstico. Hiperglicemia e hipocalcemia são achados fre- quentes. A hipocalcemia possui relação direta com a gravidade do quadro: quanto mais necrose, mais hipocalcemia. Outros marcos de gravidade são o aumento de escórias nitrogenadas e as alterações nas pro- vas de coagulação. Pode haver aumento das aminotransferases, fosfatase alcalina e bilirrubina. O aumento das aminotransferases tem valor prognóstico e pode sugerir o diagnóstico etiológico, uma vez que TGP > 150 U/L tem especificidade de 96% para pancreatite de origem biliar. O diagnóstico pode ser estabelecido com quadro clínico típico + dosagem sérica de amilase e lipase, que estarão mais de 3x acima do limite superior normal. AMILASE SÉRICA Costuma se elevar já no primeiro dia do quadro, entre 2 e 12 horas após o início dos sintomas, mantendo-se alta de 3 a 5 dias. Os níveis normais de amilase sérica geralmente são inferiores a 160 U/L. A especificidade para pancreatite aumenta muito quando considerados níveis acima de 500 e, principalmente, 1000 U/L. A amilase pode estar normal nos casos de pan- creatite crônica avançada agudizada, como na pancreatite alcoólica, e pode estar falsamente reduzida na hipertrigliceridemia. LIPASE SÉRICA Se eleva junto à amilase na pancreatite aguda, porém permanece alta por um período maior, de 7 a 10 dias. Se tanto amilase quanto lipase séricas estiverem aumentadas, a especificidade para pancreatite aguda é de 95%. Por outro lado, em apenas 5% dos casos as duas enzimas estarãonormais, como nos casos de pancreatite crônica agudizada. 4 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia EXAMES DE IMAGEM Métodos de imagem são úteis nos ca- sos duvidosos, podendo confirmar o di- agnóstico de pancreatite ao demostrar edema/necrose do parênquima pan- creática. No entanto, exames de imagem não são obrigatórios para o diagnóstico em todos os casos. TOMOGRAFIA CONTRASTADA A TC com contraste venoso é o melhor método de imagem para avaliar a presença de complica- ções, sendo indicada nos casos graves. É considerada padrão-ouro no diagnóstico de ne- crose pancreática. No caso de pancreatite grave é mandatório re- alizar uma TC abdominal com contraste endove- noso após as primeiras 72 horas do início do qua- dro, a fim de detectar a presença ou não de necrose, bem como outras complicações locor- regionais. Sua realização não se justifica nos casos leves, pois pode ser normal em 15 a 30% dos casos. As indicações de TC na pancreatite aguda in- cluem: diagnóstico duvidoso, critérios clínicos de gravidade, critérios de Ranson ≥ 3 ou escore APACHE-II ≥ 8, pacientes com deterioração clí- nica apesar do tratamento conservador inicial por 72 horas e deterioração aguda após melhora clínica inicial. Um escore prognóstico feito pela TC contras- tada mostra que um total maior ou igual a 6 pon- tos indica mau prognóstico. ULTRASSONOGRAFIA É o método de escolha para o diagnóstico de lití- ase biliar. Como esta é a causa mais comum de pancreatite aguda, a ultrassonografia está sem- pre indicada. RAIO X Deve-se ser sempre solicitado nos pacientes com quadro de abdome agudo. O RX de tórax pode revelar derrame pleural à esquerda ou atelectasia em bases pulmonares. Em casos mais graves pode haver infiltrado bila- teral compatível com a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). RESSONÂNCIA MAGNÉTICA Possui duas vantagens em relação à TC: a. Na suspeita de pancreatite biliar, a colangio- ressonância pode identificar mais de 90% dos cálculos na via biliar. b. No paciente que evolui com insuficiência re- nal aguda, no contexto da pancreatite aguda grave, a RNM evita a exposição ao con- traste iodado endovenoso. 5 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia PROGNÓSTICO CRITÉRIOS DE RANSON É composto por 11 critérios, sendo 5 deles avaliados na admissão do paciente e 6 ao longo das 48 horas iniciais de evolução. Os critérios de admissão refletem a gravidade e a extensão do processo inflamatório, enquanto os critérios durante as 48 horas iniciais refletem o desenvolvimento das complicações sistêmicas. Como a maioria dos pacientes com pancreatite tem a forma leve da doença, o número médio de critérios de Ranson positivos é de 1,6. Já a média dos casos fatais é de 5,6. A presença de 3 ou mais critérios positivos define o caso como pancreatite grave. Sua desvantagem é o requerimento de 48 horas de curso clínico para se poder determinar o prognóstico do paciente. ESCORE APACHE-II Foi criado para a avaliação de pacientes graves no geral, podendo ser utilizado na pancreatite aguda. Avalia 14 parâmetros, sendo 12 variáveis fisiológicas. Possui vantagem em relação aos critérios de Ranson, pois pode ser calculado já nas primeiras 24 horas de admissão. Considera-se grave o paciente que soma 8 ou mais pontos. ESCORE BISAP É um escore de fácil aplicação à beira do leito. Contém 5 parâmetros para a definição de pan- creatite aguda grave: 1. Ureia sérica > 44 mg/ml. 2. Alteração do estado mental. 3. Síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS). 4. Idade > 60 anos. 5. Derrame pleural. ESCORE DE ATLANTA É um dos escores mais utilizados na prática clínica. Nele, a pancreatite pode ser classificada em 3 subtipos, a depender da sua gravidade. O que define se a pancreatite aguda é grave ou não é a presença da síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) desencadeada pela inflamação pancreática. 6 Jéssica N. Monte – Turma 106 Gastroenterologia TRATAMENTO FORMA LEVE Não indica internação em UTI. O paciente deve permanecer em dieta zero até a melhora do quadro clínico (principalmente da dor) e até que haja peristalse audível. A realimentação oral em geral é possível entre 3 a 5 dias. Os critérios para início da dieta são a melhora da dor abdominal, retorno da peristalse, ausência de vômitos e o desejo do paciente de se alimentar. A analgesia com opiáceos é recomendada, em especial a Meperidina. Se for necessário, é per- mitido o uso de Morfina. Deve-se manter hidratação venosa (para repo- sição volêmica) e controle eletrolítico e ácido bá- sico. FORMA GRAVE Assim como na forma leve, o fármaco de esco- lha para a analgesia é a Meperidina. A hidratação venosa é a medida mais importante. Deve ser feita visando uma reposição volêmica vigorosa, com o objetivo de normalizar a diurese, a PA, a FC e a pressão venosa central. Pelo menos 6 litros de cristaloide devem ser re- postos nas primeiras 24 horas. O fluido de es- colha pode ser o Ringer lactato ou o soro fisioló- gico. Coloides sintéticos devem ser evitados, pois podem aumentar o risco de SDRA. Como os pacientes ficam em dieta zero por pe- ríodos prolongados (mais que 4 semanas), torna- se necessário outro tipo de suporte nutricional, que deve ser iniciado nas primeiras 48 horas. A nutrição jejunal é a mais indicada atualmente. A nutrição parenteral total é indicada nos paci- entes que não toleram a dieta enteral, mas pos- sui risco de sepse pelo cateter venoso profundo e é mais cara e menos efetiva do que a dieta enteral. Até pouco tempo atrás se recomendava antibi- oticoterapia profilática para pacientes com pan- creatite aguda grave com mais de 30% de ne- crose do pâncreas. Estudos recentes sugeriram que não há benefício com essa conduta. Assim, não se deve indicar antibioticoterapia pro- filática em casos de necrose pancreática estéril somente se a necrose for comprovadamente in- fectada. NECROSE PANCREÁTICA INFECTADA A pancreatite aguda grave com mais de 30% de necrose na TC contrastada tem uma chance de 40% de infecção do tecido necrosado. Geralmente a infecção ocorre após 10 dias do início da pancreatite. Os germes mais comuns são gram-negativos en- téricos. Em 80% dos casos a infecção é monobacteriana. As bactérias chegam até o pâncreas por trans- locação, já que há quebra da integridade da bar- reira intestinal. Toda pancreatite com necrose infectada deve indicar a necrosectomia. A necrosectomia na ausência de infecção não traz benefício prognóstico e pode aumentar a mortalidade da pancreatite necrosante.
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