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NORMA, NORMAL E ANORMAL EM CANGUILHEM E FOUCAULT

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35 
 
Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 
ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 
IX Edição (2013) 
NORMA, NORMAL E ANORMAL EM CANGUILHEM E FOUCAULT 
 
Caio Souto1 
 
Iremos limitar nossa exposição a dois problemas concernentes à conceituação da 
norma no que se refere aos organismos vivos, os quais acreditamos serem os que mais 
propiciam uma articulação entre as obras O normal e o patológico, de Georges 
Canguilhem, e O nascimento da clínica, de Michel Foucault: o primeiro deles reporta à 
natureza da diferença entre os estados normal (ou fisiológico) e anormal (ou 
patológico); o segundo se refere ao papel exercido pela clínica nessa diferenciação. 
Pretendemos abordar, com a primeira dessas questões, a crítica que a epistemologia 
histórica proposta por Canguilhem dirige ao positivismo científico, bem como a 
qualquer forma idealista de compreensão da ciência, a partir da consideração sobre a 
impossibilidade de determinação científica da norma; com a segunda, trataremos o 
papel que o campo das práticas externas ao conteúdo intrínseco de uma ciência exerce 
na elaboração dos conceitos mesmos dessa ciência. Ao final, mencionaremos algumas 
das principais relações entre esse pensamento e a arqueologia do saber praticada por 
Foucault em sua inflexão sobre o domínio médico, apenas apontando para a abertura 
que o autor iria dar à questão nos seus livros posteriores, notadamente em As palavras e 
as coisas, quando estenderia sua análise a todas as chamadas ciências do homem. 
*** 
Canguilhem dividiu a redação do ensaio original de O normal e o patológico, 
apresentado como tese de doutorado em medicina no ano de 1943, em duas partes. Na 
primeira delas, encarregou-se de refutar o argumento positivista, atribuído a Augusto 
Comte e, parcialmente, a Claude Bernard2, segundo o qual haveria uma identidade entre 
os estados fisiológico e patológico de um organismo vivo. Ampliando a concepção 
nosológica estabelecida por Broussais, Comte teria postulado que qualquer modificação 
na ordem própria a um organismo seria devida a uma variação de intensidade de um ou 
de alguns dos seus fatores constitutivos. Nesse sentido, uma disfunção do organismo 
não alteraria a natureza de nenhum componente existente em seu funcionamento 
 
1 Doutorando em Filosofia pela UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail: <caiosouto@ufscar.br> 
2 A segunda edição do texto de Canguilhem (de 1966) aponta para novas publicações de Bernard 
(notadamente a dos seus Principes de médecine expérimentale, em 1947) que teriam levado a atenuar as 
relações entre fisiologia e patologia neste pensador. 
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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 
ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 
IX Edição (2013) 
normal, conservando-o portanto em suas características essenciais3. As doenças seriam 
assim meras “mudanças de intensidade na ação dos estimulantes indispensáveis à 
conservação da saúde” (CANGUILHEM, 2012, p. 17). E tais mudanças 
corresponderiam a um excesso ou a uma falta nas funções normais que mantêm um 
organismo vivo. 
O problema identificado em Broussais, e consequentemente em Comte, é o de 
asserir um estado fisiologicamente normal, o qual é admitido como pressuposto. Ao 
dizer que as patologias são uma variação quantitativa do estado fisiológico normal, o 
positivismo procede-se a uma avaliação normativa a qual só pode ser qualitativa. Eis 
porque, para Canguilhem, o objetivo maior dessa teoria não é atingido, uma vez que o 
parâmetro propriamente científico de aferição do normal, estado ante o qual as 
variações constituiriam as patologias, não pode ser atribuído ao organismo senão por 
um ato de valor, portanto proveniente de um domínio extracientífico. 
 
Definir o anormal por meio do que é de mais ou de 
menos é reconhecer o caráter normativo do estado dito 
normal [...] Esse estado normal ou fisiológico deixa de 
ser apenas uma disposição detectável e explicável como 
um fato para ser a manifestação do apego a algum valor 
(CANGUILHEM, 2012, p. 24). 
 
Porém, se Comte tivesse se apercebido da real tarefa que ele subjacentemente 
conduzia, teria de admitir essa valoração como atividade própria à ciência, o que estaria 
em desacordo com o que ele ademais professava. Se assim o fizesse, no entanto, teria 
sido possível conceber a variação (conceito quantitativo) como, na verdade, uma 
alteração (conceito qualitativo), e ele teria podido ver, por conseguinte, que se a norma 
só é estabelecida segundo um critério, não científico, mas valorativo, aquilo que difere o 
normal do anormal deveria ser igualmente uma valoração. Mas havia um motivo 
consistente para Comte não fazê-lo, já que ele queria instituir cientificamente uma 
doutrina política: “Comte se justifica por ter afirmado que a terapêutica das crises 
políticas consiste em trazer as sociedades de volta à sua estrutura essencial e 
permanente, em só tolerar o progresso nos limites de variação da ordem natural 
definitiva pela estática social” (CANGUILHEM, 2012, p. 30). 
 
3 Citação da lição n° 40 do Curso de filosofia positiva de Comte: “O estado patológico não difere 
radicalmente do estado fisiológico, em relação ao qual ele só poderia constituir, sob um aspecto qualquer, 
um simples prolongamento mais ou menos extenso dos limites de variações” (apud CANGUILHEM, 
2012, p. 19). 
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No mesmo sentido, visando refutar muitos fisiologistas de sua época que 
consideravam as doenças como a incursão de elementos extrafisiológicos no organismo, 
Claude Bernard argumentava que elas consistiam em alterações de funções orgânicas 
normais. Tomando como um de seus exemplos a análise do caso particular da diabetes e 
de seus sintomas, como a presença de alto teor de glicose no sangue ou na urina, 
Bernard foi obrigado a admitir que a glicose seria fruto de uma produção do próprio 
indivíduo, a qual caracterizaria uma disfunção na medida em que se elevava para além 
dos índices considerados normais. Não excluindo a importância de tais considerações, 
que representaram renovações importantes na medicina, Canguilhem pretende 
denunciar a conclusão última de tal teoria, a qual é homóloga, em seus principais 
aspectos, à de Comte: a de que há uma continuidade entre os estados fisiológico e 
patológico. E visando enaltecer a enorme contribuição de Bernard, sugere haver aí na 
verdade uma ambiguidade: embora o seu vocabulário seja quantitativo, suas conclusões 
remetem a uma compreensão qualitativa das doenças perante o estado fisiológico 
normal. Pois, se por um lado Bernard admite uma homogeneidade entre esses dois 
estados (o normal e o patológico), suas conclusões levam-no a admitir que não há 
propriamente uma continuidade entre eles, mas sim uma ruptura provocada pela 
disfunção de algum elemento constitutivo do organismo que altera o funcionamento do 
todo, isto é, que produz nele uma mudança qualitativa: “Quando classificamos como 
patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo 
que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um 
comportamento individual” (CANGUILHEM, 2012, p. 51). 
O que nos remete ao segundo problema que gostaríamos de mencionar, qual seja 
o da função da clínica no estabelecimento do conceito de norma e, consequentemente, 
na diferenciação entre o normal e o anormal. As pesquisas de Bernard, e de qualquer 
fisiologista, sempre advêm de uma análise experimental de certos organismos humanos, 
os quais, por sua vez, só foram expostos ao saber clínico porque perturbavam os 
homens no exercício normal de suas vidas. No entanto, segundo Canguilhem, deve-sea 
outro fisiologista, René Leriche, a exposição clara de tal constatação, uma vez que, 
como vimos, Bernard teria dado a ela um caráter ainda ambíguo. Teria sido Leriche o 
primeiro a dizer que a doença, bem como a saúde, são alheias à consciência do ser vivo. 
Isto é, a consciência que o ser vivo tem de seu estado (são ou doente) não pode ser 
levada em consideração para a aferição seja da doença seja do estado normal daquele 
mesmo ser. Com a significativa frase: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”, 
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Leriche abria para a medicina um campo de pesquisa em que apenas o olhar do médico 
deveria ser levado em conta nos diagnósticos dos corpos doentes, e não mais a opinião 
do próprio doente, afinal a doença muitas vezes já existe sem que o doente dela se dê 
conta. Notam-se desde logo as consequências que sua teoria pôde produzir perante as 
teses da homogeneidade entre os estados normal e patológico até então admitidas. Uma 
vez admitido que a consciência do doente não deve ser levada em conta na definição da 
doença, que ela não pode ser considerada como fundamento da percepção sobre a 
doença, tem-se que esse fundamento acaba por não poder ser buscado em nenhum outro 
lugar. Pois se a saúde é um mero conceito vulgar, já que cabe aos homens no exercício 
comum de suas vidas constatar se estão ou não sofrendo de alguma doença, é forçoso 
admitir que não se pode determinar com rigor o que seja o estado saudável, conforme a 
máxima: “Não há ciência da saúde” (CANGUILHEM, 2005, p. 37)4. 
Por doença, não se poderá mais entender uma modificação quantitativa dos 
estados fisiológicos, mas sim um estado “autenticamente anormal”, como diz Leriche: 
“A doença é uma nova ordem fisiológica” (apud CANGUILHEM, 2012, p. 57). 
Estendendo tal consideração à nossa questão inicial, aquela referente à natureza da 
diferença entre o estado normal e o estado anormal, tem-se que também não pode haver, 
a rigor, ciências do normal e do patológico. E como não há mais, segundo nos informa o 
autor, um “limiar quantitativo identificável por métodos objetivos de medida”, uma vez 
que há “certamente distinção e oposição qualitativas, pelos efeitos diferentes da mesma 
causa quantitativamente variável” (CANGUILHEM, 2012, p. 56) – uma artéria 
obstruída, por exemplo, deixa de ser fisiologicamente uma artéria (não tem mais função 
de circulação), o mesmo ocorrendo quanto a uma célula esclerosada – a aferição 
científica do conceito de norma permanece aberta a erosões provenientes de um 
domínio extracientífico, submetida a uma percepção vulgar ou a um senso comum 
acerca da doença. É portanto a fisiologia (ciência das funções orgânicas vitais) que é 
tributária da patologia (ciência das disfunções orgânicas) em seu necessário 
entrecruzamento com a instituição clínica, e não o contrário: a conceituação do normal 
se deve à conceituação do anormal, a qual é necessariamente intermediada por uma 
observação das anormalidades com objetivos a princípio terapêuticos. A formação de 
um conceito como o de norma não pode ser isolada de um campo prático correlato. É o 
que observa P. Macherey: 
 
4 Cf. as conclusões do artigo “A saúde: conceito vulgar e questão filosófica” (CANGUILHEM, 2005, pp. 
35-48). 
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[o campo prático] intervém no nível da 
experimentação, pelo papel efetivamente motor das 
técnicas que têm a ver com ciências diferentes da que 
está em obra; esse papel é determinante sem ser 
forçosamente dirigido. Mesmo no momento da 
observação, a ciência só se constitui se ela for solicitada 
por exigências que é incapaz de encontrar nela própria, 
e que tornam evidentes seus fenômenos cruciais: na 
história da fisiologia, esse papel é desempenhado pela 
clínica, por intermédio da patologia (MACHEREY, 
2012, p. 261). 
 
É a que se lança a segunda parte do ensaio original de Canguilhem sobre O 
normal e o patológico: se só é possível estabelecer os conceitos de normal e de anormal 
a partir de uma observação sobre os corpos vivos, e se eles só se dão a conhecê-los 
quando estão acometidos por moléstias que provocam um desvio em seu funcionamento 
vulgarmente reconhecido como saudável, tem-se que a avaliação sobre o estado 
fisiológico normal a que se quer restituir um organismo doente é feita, não pelo 
cientista, mas por uma relação necessária com as ideias dominantes no meio social em 
que estão imersos o indivíduo doente e o médico. Mais exatamente, a conceituação do 
normal não é propriamente científica, mas sim normativa, ela produz uma 
normatividade, mais do que a constata. Donde se erige uma concepção do que é a 
própria vida: uma atividade normativa em relação a um meio ante cujos desafios ela 
deve resistir. E é sempre mediada pela instituição da clínica que a medicina se exerce 
como normatividade vital. A vida que prevalece num determinado meio é uma vida 
socialmente normativa, e a medicina deve ser concebida, não como ciência, mas como 
técnica indispensável à produção de tal normatividade. 
*** 
Dos livros de M. Foucault, o que dialoga mais diretamente com Canguilhem é O 
nascimento da clínica. Optando por questionar a relação estabelecida entre a percepção 
do olhar médico sobre o corpo doente e a linguagem própria que irá passar a designar tal 
visibilidade, Foucault constrói uma reflexão radical sobre a norma, a ressoar junto 
àquela empreendida por Canguilhem. Num sentido que não é o mais visivelmente 
perseguido por este último, no entanto, O nascimento da clínica irá buscar nas regras 
que compõem o discurso médico aquilo que diferencia as naturezas do normal e do 
patológico, investigando o que de antemão pré-ordena todo o seu conteúdo. Isso não se 
faz sem que se note uma relação indissociável entre o que é propriamente discursivo e o 
objeto a ser observado: o corpo doente. 
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Durante os séculos XVII-XVIII, a medicina ainda estava atrelada a um discurso 
fantasista, correlato a uma prática de observação médica que se limitava a um olhar de 
superfície sobre os corpos. Isso porque, segundo O nascimento da clínica, no saber 
dessa época, a percepção seria identificada ao regime de luz, como se exemplifica pelas 
concepções de Descartes e Malebranche para quem ver era perceber: “a luz, anterior a 
todo olhar, era o elemento da idealidade, o indeterminável lugar de origem em que as 
coisas eram adequadas à sua essência e a forma segundo a qual estas a ela se reuniam 
por meio da geometria dos corpos” (FOUCAULT, 2008, p. X). Num tal espaço do 
saber, o olhar se ordenava segundo um regime de luz; a visibilidade dos corpos era 
determinada pela luminosidade que fazia aparecer a doença. Como correlato, havia uma 
linguagem da fantasia e dos fantasmas através dos quais esse regime de luz era 
enunciado. 
A partir do final do século XVIII, a espessura do olhar que penetra nas coisas 
vem substituir a força da luz. Perceber passa a se identificar não mais com a 
superficialidade da luz que ilumina os corpos, e sim com a profundidade do olhar. 
Quanto ao domínio médico, é a época da criação de condições precisas para a abertura 
dos tecidos e sua consequente observação vertical, a qual foi contemporânea do 
surgimento de um discurso descritivo do percebido: “As formas da racionalidade 
médica penetram na maravilhosa espessura da percepção, oferecendo, como face 
primeira da verdade, a tessitura das coisas, sua cor, suas manchas, sua dureza, sua 
aderência” (FOUCAULT, 2008, pp. IX-X). O nascimento da histologiaé portanto 
correlato ao de uma tessitura descritiva do discurso científico. A luz perde sua força 
para o olhar. A doença não será mais descrita pelo discurso da fantasia, cuja iluminação 
dava aos olhos o que ver, mas pelo da constante perceptibilidade, do olhar que não cessa 
em descrever tudo até os mínimos detalhes e com uma profundidade e especialidade 
crescente. Trata-se do nascimento de uma linguagem das coisas, cuja luz não poderá 
mais absorvê-las na sua idealidade, “mas a aplicação do olhar sucessivamente as 
despertará e lhes dará objetividade” (FOUCAULT, 2008, p. XI), criando as condições 
de formação de um discurso de estrutura científica. 
Desse modo, O nascimento da clínica pode demonstrar como o olhar médico, 
este que tem um nascimento preciso na história ocidental, é possibilitado por condições 
que são de ordem prática, a instauração de um espaço em que se dará a observação dos 
corpos, um espaço a partir do qual o discurso científico da medicina irá se constituir, o 
espaço da clínica. Ora, uma vez que a instauração desse espaço está adstrita a toda uma 
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configuração normativa, tem-se que o nascimento do discurso da medicina com 
pretensões científicas, que portanto visa organizar o saber médico de modo normativo, é 
ele mesmo produto de uma normatividade: ele é normalizador ao mesmo tempo em que 
é normalizado. 
*** 
Vê-se em que as análises de O nascimento da clínica se aproximam daquelas 
expostas em O normal e o patológico, quanto a uma problematização acerca da norma 
tomando como mote a medicina e sua intervenção sobre os corpos. Ocorre que 
Canguilhem, na versão de 1943 de seu estudo, atribuía à vida, compreendida como 
atividade normativa, certo primado sobre a própria medicina e a atividade normativa 
que é própria a esta. É como se a técnica médica fosse um mecanismo da própria vida 
em sua normatividade orgânica ante o meio com o qual ela está em relação. Não é o 
caso com Foucault, para quem a vida não possui qualquer estatuto de experiência 
originária. Seria sem dúvida proveitoso realizar um estudo que investigasse o alcance da 
noção de experiência do vivo (expérience du vivant) em Canguilhem, e suas relações 
com autores como Bergson ou Merleau-Ponty. Em todo caso, dever-se-ia levar em conta 
os textos posteriores deste epistemólogo, notadamente os novos estudos sobre o normal 
e o patológico que ele coligiu à nova edição de sua obra em 1966, três anos após a 
publicação do livro de Foucault. Ali já se nota uma modificação no projeto de seu livro, 
que irá inverter a primazia concedida ao vital para o campo do social, compreendido 
este como qualitativamente diverso daquele, pois mescla o orgânico ao mecânico (ou 
estático), em contrariedade ao ideal positivista que gostaria de identificar o 
funcionamento da sociedade com o de um organismo vivo. Tais considerações 
aproximam Canguilhem do pensamento estruturalista, como o de Lévi-Strauss, por 
exemplo, para quem há uma correlação entre a estrutura estática de uma sociedade e os 
seres dinâmicos que nela vivem, e uma afecção daquela sobre estes.5 E é na direção de 
uma análise da relação entre o conhecimento conceitual estático e a atividade vital 
dinâmica que o seu pensamento se dirigirá doravante, como se observa em textos como 
O conhecimento da vida ou principalmente no artigo “O conceito e a vida” que serão 
publicados na década de 1960. 
Noutro sentido, e com uma inesperada similaridade, o pensamento de Foucault, 
que à época se circunscrevia a uma analítica da ordem do saber, seja, por um lado, em 
 
5 Há, com efeito, uma citação do capítulo XXXVIII de Tristes trópicos no decorrer do capítulo “Do social 
ao vital” em que se argumenta pela não malignidade ou benignidade fundamental de uma sociedade. 
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sua incursão específica sobre campos como os da medicina, da psiquiatria, da economia 
política, da biologia e da linguagem, seja, por outro, buscando uma unidade epistêmica 
que pudesse unificar a produção de todos os discursos produzidos numa dada época 
numa dada sociedade, se dirigirá, na década seguinte, a uma compreensão das relações 
que o saber discursivo mantêm com as condições políticas e sociais que lhe são 
contemporâneas. E, no fim da vida, encontraremos em Foucault uma resposta estética 
ao impasse conferido pelo saber-poder que condicionaria nossas vidas a uma 
normalização. Encontrar-se-ia portanto um modo em que cada indivíduo pudesse dar a 
si próprio uma norma que não vergasse as forças produtivas do saber-poder em busca de 
uma forma normativa nova. Resta concluir com uma questão: se as forças que produzem 
tais novos modos de vida, as quais não poderiam ser dotadas originariamente de uma 
potência criativa (solução bergsoniana ou fenomenológica), são as mesmas que já 
compunham o social, sua inflexão no sentido de criação de novas formas, e portanto de 
novas normas, se dá à maneira de uma dobra. Ora, reconhecer como tarefa criativa, a 
qual possibilita a criação de novos modos de vida, a dobra de forças que nos impõem 
uma constituição normalizada, não seria recorrer ao argumento segundo o qual a 
produção qualitativa de diferença é própria à vida e que é ela quem deve trinfar sobre a 
resistência normativa mecânica que visa obstaculizar tal movimento, argumento vitalista 
por excelência? Mas é justamente nesse ponto que o pensamento de Foucault nada deve 
a esse vitalismo, por propor que não é a “vida”, ontologicamente concebida, quem 
conduz a novas formas orgânicas contra as resistências que insistem em obstaculizá-la, 
mas sim esta relação mesma que se estabelece com uma exterioridade, o que nos levaria 
a afirmar, por fim, que a vida é uma experiência do fora, pois ela se dá nos limites em 
que a existência é afrontada e convocada a sair de si mesma para que continue a viver. 
Que a vida é portanto uma experiência num sentido muito singular, o de uma erosão, e 
não de efetivação ou de autenticidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 
CANGUILHEM, G. (2012) O normal e o patológico. Trad. Maria Thereza Redig de 
Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7ª ed. 
________. (2005) Escritos sobre a medicina. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio de 
Janeiro: Forense Universitária. 
FOUCAULT, M. (2008) O nascimento da clínica. Trad. Roberto Machado. Rio de 
Janeiro: Forense Universitária, 6ª ed. 
MACHEREY, P. (2010) “De Canguilhem a Canguilhem, passando por Foucault”. IN: 
Georges Canguilhem: um estilo de pensamento. Trad. Fábio Ferreira de Almeida. 
Goiânia: Almeida e Clément Edições, pp. 71-80. 
 ______. (2012) “A filosofia da ciência de Georges Canguilhem” IN: CANGUILHEM, 
G. O normal e o patológico (Posfácio). Trad. Luiz Otávio Ferreira Barreto Leite. 
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7ª ed., pp. 243-277.

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