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Disciplina: Psicologia da Saúde Aula 4: O sujeito psicossomático Apresentação: Nesta aula, abordaremos a visão da Psicossomática moderna, que se afasta da visão da dicotomia entre corpo e mente para retornar ao ser humano em sua totalidade. Discutiremos o conceito de estruturação do sujeito psicossomático e as possíveis causas e mecanismos que buscam explicar a interação entre o somático e as histórias de vida desse sujeito. Bons estudos! Objetivos: Reconhecer o conceito de sujeito como um ser integral; Entender o sujeito e seus determinantes: a disposição somática do sujeito e sua história; Analisar os possíveis mecanismos que explicariam as interações da mente com o corpo. O caso M O caso abaixo nos dá a possibilidade de refletir sobre a relação entre mente e corpo e buscar entender como esta interação está mediada pela história de vida do sujeito. M., casada, com três filhos, apresenta um quadro de lúpus, já com indícios de neuropatia. Essa paciente é muito tensa e insegura com a doença, com a vida e com o marido, principalmente por ser este um homem branco, e ela, uma pessoa “de cor”. Sua mãe era “preta, feia e pobre”, e viveu amasiada com seu pai, “branco, rico e alemão”. Em uma quarta gestação, resolveu fazer um aborto. Consumado este, começou a se sentir deprimida, “sentindo frio no corpo todo”. Essa depressão continuou com o início do quadro lúpico, que a substituiu (Mello, 2002, p. 115). M. constrói sua visão de mundo a partir de sua história, mas essa história vem também inscrita em seu corpo. Nosso corpo é capturado em um mundo simbólico, criado por nós como sujeitos, assim como nossas vivências e nosso ambiente. Nessa perspectiva, o somático se organiza simbolicamente no corpo, que passa a ser também a sede das significações não expressas em palavras pelo sujeito. Na aula passada, mostramos alguns modelos explicativos desde fenômeno, relação do somático com o psíquico, às vezes difícil de entender. O somático e o psíquico Mello (2002) mostra a importância de algumas teorias explicativas para o fenômeno psicossomático. Vamos retomar algumas conceituações da aula passada, para buscar entender como alguns teóricos têm pensado o sujeito e sua relação com o corpo. Modelo proposto por Freud Foto de Freud | Fonte: Revista Galileu <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/11/freud- explica-entenda-sete-conceitos-basicos-da- psicanalise.html> A partir desse modelo, vamos entender os fenômenos conversivos na histeria. Na aula passada, mencionamos que o corpo de que se trata para o sujeito não é um corpo biológico. Agora partiremos do conceito proposto por Freud de uma erotização do corpo. Esta deve ser entendida como uma desnaturalização do corpo, isto é, o corpo biológico passa a ter também uma dimensão simbólica. Leitura Leia o texto “Pensamento psicossomático de Freud <galeria/aula4/anexo/freud.pdf> ” e conheça mais sobre esse assunto. Aqui poderíamos dizer que estamos no registro do biopsíquico. Isto quer dizer que nós seres humanos saímos, desde nossos primeiros dias de vida, do biológico, e entramos no registro da história e da biografia. Escrevemos parte de nossa história de vida também no nosso corpo. Nesta perspectiva é que podemos agora entender como nosso corpo é representado em nossa subjetividade e passa a poder também simbolizar. Melhor dizendo, passa a somatizar, ou seja, expressar um conflito ou sofrimento mental no somático (corpo). Homem com dor no coração | Fonte: (File404/Shutterstock) Podemos aqui evocar novamente o caso de M. já citado: a culpa de ter feito um aborto, uma possível causa de uma depressão, se expressa em seu corpo de forma radical, com o lúpus. Estruturação biopsicossocial do sujeito de Abram Eksterman Foto de Abram Eksterman | Fonte: portal.cfm.org <https://portal.cfm.org.br/index.php? option=com_content&view=article&id=27107:2017- 08-10-21-01-43&catid=3> Abram Eksterman explicita muito apropriadamente esta estruturação biopsicossocial do sujeito humano, e revela como o corpo é representado na nossa mente: O corpo terá assim de se adaptar àquele mundo particular, criado pelo próprio indivíduo e pela sua cultura, que passa a ser sua única realidade. Assim, pois, não existe ambiente natural para o homem, porque, para ele, a natureza foi convertida em “mundo humano” por seus próprios processos mentais. (Mello, 2011, p. 95). A história do sujeito e suas interações com o meio cultural criam como que um “envelope”, que define um espaço psíquico interno. A partir desse espaço psíquico, o indivíduo passa a entender o mundo que o circunda e reagir a ele de forma singular. 1 Ilustração de uma cabeça humana | Fonte: LovArt e Bloomicon / Shutterstock As doenças psicossomáticas são a forma radical de se expressar com o corpo. Em sua prática, os profissionais de saúde são desafiados a tratar desses pacientes, que podem ser denominados “somatizadores” (Mello, 2011). É justamente para auxiliar no cuidado dessas pessoas que o profissional de saúde precisa entender esse sujeito psicossomático. A estruturação do sujeito e seus mecanismos de defesa Como surge a incidência de um sofrimento mental no corpo? Quem é esse sujeito que simboliza seus conflitos mentais com uma inscrição no corpo? Quem é esse sujeito que somatiza? Por que M. desenvolve lúpus quando fica deprimida? Os sentimentos de medo, desamparo, vergonha e culpa são significados profundamente simbólicos, que podem levar um sujeito a adoecer. Vimos, no caso de M, como sua situação de vida, sua biografia, seus conflitos com sua cor e com sua mãe, a quem ela culpava por ter lhe deixado de herança a cor, a feiura e a pobreza foram o pano de fundo para a depressão e seu substituto: a doença somática, que veio a se instalar depois de um aborto, evento estressor desencadeante. É desse sujeito, com sua história, que vive sua culpa, seu desamparo, seus conflitos no corpo que precisamos tratar no cotidiano de nossa prática de cuidar. Mulher negra sentada sobre uma cama | Fonte: (Stock-Asso/Shutterstock) Atenção Como já pontuamos, são muitos os fatores de desencadeamento das doenças psicossomáticas. Enfatizamos que estes fatores estão relacionados com a forma como o sujeito se relaciona com o mundo externo (social) e com seu mundo interno (biopsiquíco). Hipóteses para as manifestações somáticas É no sentido de apreender a lógica de funcionamento desta interação corpo e mente que vamos apresentar algumas hipóteses. Essas hipóteses têm ajudado as equipes interdisciplinares a entender alguns possíveis mecanismos psíquicos que podem influenciar o desencadeamento e a manutenção de algumas manifestações somáticas de causas orgânicas totalmente desconhecidas. Embora a definição de somatização não seja um consenso entre os profissionais, ela propõe que se fale em fenômeno de somatização para o melhor entendimento dos vários fatores e mecanismos que: [...] interagem para o surgimento das queixas físicas... que não apresentam alterações anatomopatológicas que as justifiquem. (Mello, 2011, p. 534) Como o distúrbio que surge é sempre particular deste sujeito único, que tem sua própria interpretação do mundo, podemos entender o aparecimento e a instalação de uma doença como uma reedição de ansiedades e modos de defesa contra o desamparo que inventamos nas nossas experiências de vida. Homem adulto cobrindo o rosto com as mãos | Fonte: (igorstevanovic/Shutterstock) Modelo do método catártico O modelo do método catártico nos ajudará a entender essa interrelação, mente e corpo. O sintoma conversivo surge no momento em que o sujeito não pode colocar em palavras os afetos que, sem expressão na fala, retornam no corpo. Toda a palavra está ligada a um afeto que acompanha o sentido. Quando sentidoe afeto se separam em um momento traumático, o afeto se inscreve no corpo, formando um sintoma somático, e a representação à qual ele estava ligado é esquecida no inconsciente. Temos aqui um modelo para entender como somático e psíquico se enlaçam em um sintoma no corpo. Mulher isolada de um grupo | Fonte: (BlueSkyImage/Shutterstock) Com o conceito de inconsciente, todo comportamento humano não é mais da ordem de uma biologia, mas sim da ordem do sentido. É justamente por esse motivo que o fenômeno da doença não deve ser compreendido como um fenômeno isolado, mas como um elo nas vivências do sujeito. A hipótese freudiana de que somos determinados por nossos pensamentos inconscientes demonstra que os sintomas tomam seu sentido a partir de desejos e significações. Estes, por sua vez, são traduções em palavras do que é somático, assim substituindo por símbolos o que seriam nossas necessidades mais básicas. Pulsões Freud denomina as necessidades básicas de pulsões. São pulsões, e não instintos, pois todo e qualquer ser humano é um ser biopsicossocial desde o seu nascimento: somos multiplamente determinados pela nossa biologia, nossa cultura e nossa família. É neste sentido que devemos tomar a linguagem como o que faz o enlace do corpo com a mente: falamos e vivenciamos nosso sintoma. Legenda: Ilustração de uma cabeça humana Assim, os afetos inconscientes que não encontram um sentido na fala inscrevem-se no corpo. Este mecanismo é bem exemplar no caso de M. A nefrite lúpica aponta para um substrato inconsciente de sua relação primordial com sua mãe (Mello, 2004). Este deslocamento é simbólico: o lúpus simboliza um conflito. Para lidar com as exigências da vida, e ao mesmo tempo satisfazer seus desejos inconscientes, o sujeito precisa dar conta destes afetos. Assim, cria mecanismos de defesa, para evitar um sofrimento insuportável e procurar uma adaptação possível. Estes mecanismos servem para evitar conflitos ou para mantê-los em um grau mínimo, para evitar gerar ansiedade. Assim é que todos nós criamos uma estratégia de lidar com as exigências da vida: algumas delas incidem no corpo, como no caso de M. Estratégias disfuncionais São, entretanto, defesas inconscientes, dos quais o sujeito não tem conhecimento. Os sintomas psicossomáticos são estratégias disfuncionais, desenvolvidas pelos sujeitos no seu vivenciar. Nesta perspectiva, a cura do sintoma passaria pela fala. Quando o sujeito coloca em palavras seu sintoma, há uma remissão, e o sintoma pode ser modulado. Por isso, o profissional de saúde tem um compromisso também com o vivenciar daquele de quem cuida. Legenda: Atendimento psicológico | Fonte: (Lorelyn Medina/Shutterstock) Desta forma, a escolha do órgão onde a doença se instala também teria uma significação afetiva. M., por exemplo, reclamava que o lúpus a deixava “feia”, palavra que vinha na sua fala com a cor e a pobreza da mãe. Personalidade superindependente Franz Alexander (Mello, 2004), que fez importantes estudos e entrevistas com portadores de distúrbios funcionais digestivos chegou a importantes resultados. Vejamos: 2 01 Mostrou que o simbolismo é universal no comportamento humano. 02 Mostrou ainda que há um sentimento universal de dependência em todo ser humano, o que ele definiu como fundamental e que gera um conflito na vida adulta, vivido entre abandonar a dependência e ser independente. Este conflito, desencadeado por uma situação externa, é típico da personalidade que ele denomina “superindependente”, e que são, segundo Alexander, os sujeitos que desenvolvem processos ulcerosos. Até aqui vimos alguns fatores individuais que constituem a dimensão propriamente subjetiva desse sujeito que chamamos de psicossomático. Sabemos, entretanto, que esse sujeito é um sujeito total, e que é também determinado socialmente, e que a explicação de seus possíveis determinantes é sempre multifatorial. Agora passaremos a examinar os determinantes sociais: nossa herança cultural e nossa herança familiar. Os determinantes sociais Já enfatizamos os aspectos individuais do sujeito, mas estes aspectos não são suficientes para uma explicação multidimensional da saúde. No processo de cuidar, estamos também lidando com determinantes culturais, familiares e sociais. Assim, os pacientes podem apresentar ao profissional de saúde sua forma singular de lidar com sua doença, mas também a cultura na qual vive e o discurso de sua família moldam a apresentação de seu sofrimento para o profissional de saúde (Mello, 2011, p. 536). Grupo de pessoas abraçadas | Fonte: (Rawpixel.com / Shutterstock) Por que as pessoas apresentam queixas físicas no contexto da saúde, quando seu sofrimento é subjetivo? A herança familiar é só genética? Herdamos os símbolos e significados de nossos pais? As normas sociais interferem nos nossos sintomas? Estas perguntas têm intrigado os psicólogos há muito tempo. Vejamos como os determinantes culturais e familiares influenciam o indivíduo. Determinantes culturais Há muitas evidências de que há uma influência social na forma como os sujeitos relatam seus sintomas. Estudos realizados em várias partes do mundo evidenciam que há diferenças na forma de sentir e relatar os sintomas nas diferentes culturas. Os orientais, por exemplo, têm uma forma de traduzir seu mal em sintomas físicos de forma inteiramente diferente dos ocidentais. Isso se deve, justamente, porque a constituição da subjetividade é também determinada pelos meios culturais. Desta forma, a expressão do sofrimento parece depender dos meios que a cultura fornece para falar das emoções (Mello, 2011). Determinantes familiares Nossas famílias também nos deixam uma herança simbólica. Dela, herdamos padrões que repetimos. Criamos padrões para “obter alívio, e pressões e expectativas interpessoais para obter atenção” (Mello, 2011, p. 554). Em crianças expostas a padrões de doença na infância, a doença se transforma num padrão para obter atenção dos familiares. Haveria, portanto, um modo de percebermos através dos sintomas, não somente genéticos, mas também os que herdamos simbolicamente de nossa família e que podem ser entendidos como um padrão que repetimos. “Esses padrões tornam-se modelos cognitivos ou ‘modelos de funcionamento interno’ de resposta interpessoal, que persistem durante a vida” (Mello, 2011, p.554). A dimensão integral do sujeito psicossomático O sujeito psicossomático deve ser entendido na sua dimensão biopsicossocial. Embora seus sintomas se expressem no corpo, há uma multiplicidade de fatores etiológicos, como: Mulher com o semblante sério | Fonte: (Aodaodaodaod / Shutterstock) 1 As disposições somáticas, que permitem a tomada de partes do corpo para simbolizar um sofrimento mental; 2 Fatores culturais, que determinam a forma de os sujeitos se expressarem em seu sofrimento emocional; 3 Fatores familiares, que nos oferecem padrões, estratégias para aliviá-lo da pressão ou para obter atenção. Finalmente, o que tem a fazer o profissional de saúde? Não parece ser somente um trabalho sobre o corpo no processo de cuidar. Por isso, é de utilidade para esse profissional desenvolver uma forma de cuidar em uma experiência integrada. Um cuidado desenvolvido no sentido de criar formas de cuidado para ajudar seu paciente a modular e compreender os fatores emocionais e afetivos que são vividos no corpo. Atividade Vamos retomar o caso M., estudado em nossa aula: “M., casada, com três filhos, apresenta um quadro de lúpus, já com indícios de neuropatia. Essa paciente é muito tensa e insegura com a doença, com a vida e com o marido, principalmente por ser este um homem branco, e ela, uma pessoa “de cor”. Sua mãe era “preta, feia e pobre”, e viveu amasiada com seu pai, “branco, rico e alemão”. Em uma quarta gestação,resolveu fazer um aborto. Consumado este, começou a se sentir deprimida, “sentindo frio no corpo todo”. Essa depressão continuou com o início do quadro lúpico, que a substituiu (Mello, 2002, p. 115).” Agora explique por que M. desenvolve lúpus quando fica deprimida. Notas Abram Eksterman Médico, psicanalista, membro efetivo da IPA e do Colégio Internacional de Medicina Psicossomática. Pós-graduado em Psiquiatria e em Psicossomática. Franz Alexander Nascido Ferenc Gábor Alexander, foi um médico e psicanalista húngaro judeu radicado nos Estados Unidos. Ele é considerado o fundador da medicina psicossomática de base analítica e da criminologia psicanalítica. Referências 1 2 FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Imago. FREUD, S. Esboço da Psicanálise. Obras Completas, vol. 23. Rio de Janeiro: Imago. MELLO FILHO, Julio. Concepção psicossomática: visão atual. 11. Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. ______; BURD, Miriam; et al. Psicossomática hoje. 2. Ed. Artmed, 2011. Próximos Passos Noção de estresse na sua vertente adaptativa e de proteção da vida; Efeitos negativos que podem afetar a qualidade de vida das pessoas; Fatores estressores. Explore mais Faça as leituras: Artigo “Conceito mente e corpo através da História <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 73722006000100005> ”; Livro: EKSTERMAN, A. Psicossomática: o diálogo entre a Psicanálise e a Medicina.
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