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Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico

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1
ETICA
Kleber Duarte
B274e
[ 11891092]
A clínica psicanalítica, onde quer 
que ela seja exercida, põe sempre 
as questões técnicas sob a tutela da 
ética. O clínico, para resistir àquela 
vontade tão humana de fazer as 
coisas acontecerem rapidamente, 
para enfrentar e vencer aquela sen­
sação de que não está fazendo nada, 
deve sustentar-se numa clara visão 
teórica dos processos que assiste e 
isto, no fundo, vem estreitamente 
associado a certas atitudes básicas 
de respeito, atenção, capacidade de 
espera e de participação discreta 
nesses processos. Quanto mais de-
sestruturados e móveis são os exer­
cícios da clínica, quanto menos con­
vencionais — e supostamente sim­
ples — são os "procedimentos" a 
serem "aplicados", mais avulta a 
importância dessa dimensão ética (e 
teórica). O acompanhamento tera­
pêutico é uma dessas situações.
O trabalho de Kleber Duarte 
Barretto é um precioso exemplo do 
que precisa ser considerado e arti­
culado para que o acompanhamen­
to terapêutico de pessoas profun­
damente tomadas pelo sofrimento 
psíquico se mantenha eqüidistante 
tanto de um intervencionismo diri- 
gista onipotente quanto de um mero 
passa-tempo.
N o seu texto, ele consegue 
aproximar o leitor do cotidiano do 
acompanhamento terapêutico com 
tudo que este comporta de desafio,
surpresa, drama e ... hilariedade.
Este cotidiano, contudo, vem sem­
pre articulado a excelentes contra­
pontos teóricos nos quais o pensa­
mento de Donald Winnicott é ex­
posto de forma claríssima e com 
rara precisão. Este contraponto,
que poderia, em mãos menos há­
beis, parecer postiço e impertinen-
te, é facilitado pelo grande achado 
do texto: o de se apoiar nas andan­
ças de D. Quixote e nas suas singu­
lares relações com o escudeiro San- 
cho Pança. Nada mais oportuno 
para servir de espelho às andanças 
pela vasta cidade desta dupla for­
mada pelo acompanhante terapêu­
tico e seu acompanhado, dupla na 
qual, exatamente como na imagi­
nada por Cervantes, ficam muitas 
vezes indistintos os limites entre lou­
cura e sabedoria, entre ingenuida­
de e malícia.
O recurso ao grande romance 
renascentista traz ao texto de Kle- 
ber Barretto um elemento decisivo: 
o humor, a ironia. Sim, porque o 
sofrimento psíquico não pode ser 
enfrentado com o estupor nem ape­
nas com a compaixão lacrimejante; 
é necessária esta extraordinária li­
berdade interior que só um refina­
do senso de humor garante e ex­
pressa. A qui também, uma deter­
minada tonalidade afetiva, uma ati­
tude básica diante do humano e de 
suas mazelas — enfim, uma postu­
ra ética — é a condição para a es­
colha e elaboração de procedimen­
tos técnicos realmente eficazes.
Teoricamente bem concebido, 
impregnado de experiências clínicas 
profundamente verdadeiras e mo- 
bilizantes, literariamente bem estru­
turado e, muitas vezes, engraçadís- 
simo, mas sempre banhado numa 
ironia generosa e libertadora, assim 
é o livro que o prezado leitor tem 
nas mãos. O que mais desejar?
KLEBER D U A R TE B A R R ETTO
Nascido em Itapira-SP. Formado pelo Instituto de Psico­
logia da USP, Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica 
pela PUC-SP. Professor da U N IP e responsável pelo estágio 
em Acompanhamento Terapêutico (A T) realizado pelos alu­
nos de graduação em Psicologia, Professor do Centro de Es­
tudos e Pesquisa em Psicanálise da Universidade São Marcos. 
Membro do LET-Laboratório de Estudos da Tr«. icionalida- 
de (PUC-SP).
Luis Cláudio Figueiredo 
(PUC - USP)
F i c h a C a t a l o g r á f i c a
B a r r e t t o , K l e b e r D u a r t e
E t t c a e t é c n i c a n o a c o m p a n h a m e n t o t e r a p ê u t i c o : a n d a n ç a s 
c o m D o m Q u i x o t e c S a n c h o P a n ç a . S ã o P a u l o : U n i m a r c o E d i ­
t o r a , 1 9 9 8 .
2 1 0 p .
B i b l i o g r a f i a
( C a t a l o g a d o p e l o S e r v i ç o d e B i b l i o t e c a d a U n i v e r s i d a d e S ã o M a r c o s )
U n i m a r c o E d i t o r a
A v e n i d a N a z a r é , 9 0 0 
0 4 2 6 2 - 1 0 0 - S ã o P a u l o - S P
t e l . ( 0 * * 1 1 ) 2 7 4 - 5 7 1 1 r . 2 0 6 1 / F a x . ( 0 * * 1 1 ) 6 1 6 3 - 7 3 4 5
E m a i l : u n i m a r c o @ s e r v e r . s m a r c o s . b r 
h o m e p a g e w w w . s m a r c o s . b r
E d i t o r : M a r c e l o P e r i n e
E d i t o r a s s i s t e n t e : L u i z P a u l o R o u a n e t
G r a v u r a d a C a p a : G u s t a v e D o r é
D i a g r a m a ç ã o e c a p a : S i m o n e d e C a s t r o P i n h e i r o M a c h a d o 
R e v i s ã o : M a r e i a R o d r i g u e s N u n e s
C o m i s s ã o E d i t o r i a l
J o r g e C u n h a L i m a , C á s s i o M e s q u i t a B a r r o s , R o b e r t o G i r o l a , 
M y r i a m A u g u s t o d a S i l v a V i l a r t n h o , L u i z G o n z a g a B e r t e l l i , 
L u i z P a u l o R o u a n e t , J o ã o R o d a r t e , P a u l o N a t h a n a e l P e r e i r a d e 
S o u z a , C l a u d i a N e g r ã o B a l b y .
I S B N 8 5 - 8 6 0 2 2 - 1 7 - 9
© U n i m a r c o E d i t o r a - I a E d i ç ã o - 1 9 9 8
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■ 4 G i l b e r t o S a f r a
F i c h a C a t a l o g r á f i c a
B a r r e t t o , K l e b e r D u a r t e
É t i c a e t é c n i c a n o a c o m p a n h a m e n t o t e r a p ê u t i c o : a n d a n ç a s 
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t o r a , 1 9 9 8 .
2 1 0 p .
B i b l i o g r a f i a
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A v e n i d a N a z a r é , 9 0 0 
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A G i l b e r t o S a f r a
S U M A R I O
P r e f á c i o .........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................7
C a p í t u l o I
N o q u a l s e i n t r o d u z o p e r c u r s o s i n u o s o d e s t a c a m i n h a d a .....................................................................1 7
C a p í t u l o I I
O n d e s e c o n t a m a s m o t i v a ç õ e s d e t a m a n h a s a v e n t u r a s ................................................................................................ 2 7
C a p í t u l o I I I
D a i m p o r t â n c i a d a i l u s ã o n a c o n s t i t u i ç ã o d a s u b je t i v i d a d e 
e d a r e a l i d a d e ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................3 7
C a p í t u l o I V
N o q u a l s e d i s c u t e m a l g u n s a s p e c t o s d o s o f r i m e n t o h u m a n o .................................................................. 4 7
C a p í t u l o V
D o q u a l s e r e s s a l t a a f u n ç ã o d e h o l d i n g ...................................................................................................................................................................................5 7
C a p í t u l o V I
D a q u e l a f u n ç ã o , m u i t a s v e z e s c o n f u n d i d a c o m a a n t e r i o r 
( h o l d i n g J , p o r c a m i n h a r e m t ã o p r ó x i m a s q u e , c o m u m e n t e ,
n ã o g u a r d a m o s a s d e v i d a s d i s t i n ç õ e s : a c o n t i n ê n c i a .....................................................................................................................6 7
C a p í t u l o V I I
N o q u a l s e t r a t a d a n ã o m e n o s i m p o r t a n t e f u n ç ã o d e
a p r e s e n t a ç ã o d e o b j e t o .................................................................................................................................................................................................................................................................8 7
C a p í t u l o V I I I
N o q u a l s e a b o r d a a f u n ç ã o d e m a n i p u l a ç ã o c o r p o r a l
{ h a n d l i n g ) e o c o n t a t o c o m a s n e c e s s i d a d e s c o r p o r a i s .............................................................................................................. 9 9
C a p í t u l o I X
D o v a l o r d a d e s i l u s ã o , o u a i n d a , d a c a p a c i d a d e d e d i s c r i m i n a ç ã o : 
r e a l i d a d e s u b j e t i v a e r e a l i d a d e c o m p a r t i l h a d a ........................................................................................................................................... 1 0 9
C a p í t u l o X
O n d e s e d i s c u t e a f u n ç ã o d e i n t e r d i ç ã o ........................................................................................................................................................................... 1 1 7
C a p í t u l o X I
D a n ã o m e n o s v a l i o s a f u n ç ã o d e m t e r l o c u ç ã o d o s d e s e j o s 
e a n g ú s t i a s ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 2 9
C a p í t u l o X I I
D a i n t r i n c a d a e s u t i l f u n ç ã o d e d i s c r i m i n a ç ã o d e c a m p o s
s e m â n t i c o s ..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 3 5
C a p í t u l o X I I I
N o q u a l s e r e f l e t e s o b r e a f u n ç ã o e s p e c u l a r e a e m e r g ê n c i a d a
e x p e r i ê n c i a e s t é t i c a ............................................................................................................................................................................................................................................................................ 1 4 3
C a p í t u l o X I V
D a q u e l a n ã o m e n o s a p a z i g u a d o r a f u n ç ã o d e a l i v i a r a s
a n s i e d a d e s p e r s e c u t ó n a s ................................................................................................................................................................................................................................................... 1 5 1
C a p í t u l o X V
Q u e t r a t a d a f u n ç ã o d o a c o m p a n h a n t e c o m o m o d e l o
d e i d e n t i f i c a ç ã o ...............................................................................................................................................................................................................................................................................................1 6 3
C a p í t u l o X V I
O n d e s e a d e n t r a n o c a m p o d a t r a n s i c i o n a l i d a d e e s e d i s c u t e 
a p a r t i c i p a ç ã o d a p e s s o a d o t e r a p e u t a n o t r a b a l h o c l í n i c o ......................................................................................... 1 7 1
C a p í t u l o X V I I
E m q u e s e o b s e r v a m a s t r a n s f o r m a ç õ e s o c o r r i d a s e m S a n c h o 
P a n ç a a p a r t i r d a c o n v i v ê n c i a c o m D o m Q u i x o t e e v i c e - v e r s a ; 
e o u t r a s c o n t a s m a s .............................................................................................................................................................................................................................................................................1 8 3
C a p í t u l o X V I I I
D a f u n d a m e n t a ç ã o d o A T c o m o u m c a m p o d o e x p e r i e n c i a r 
e c u j a t é c n i c a p r i v i l e g i a d a d e i n t e r v e n ç ã o é o m a n e j o ........................................................................................................ 1 9 5
C a p i t u l o X I X
Q u e t r a t a d a s r e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s 2 0 7
P R E F Á C I O
A c o n c e i t u a ç à o e l a b o r a d a p o r W i n n i c o t t s o b r e o b j e t o s e f e n ô m e ­
n o s t r a n s i c i o n a i s d e m a n d a q u e s e t e n h a , n a s i t u a ç ã o c l í n i c a , p r i n c í ­
p i o s e a t i t u d e s d i f e r e n t e s d a q u e l e s t r a d i c i o n a l m e n t e a d o t a d o s n a c l í n i c a 
p s i c a n a l í t i c a .
A s c a r a c t e r í s t i c a s b i o l ó g i c a s e a s p o t e n c i a l i d a d e s p s í q u i c a s d o b e b ê 
f a z e m c o m q u e e l e n e c e s s i t e d e u m t i p o d e c u i d a d o q u e s ó p o d e r á s e r 
m i n i s t r a d o p o r a l g u é m q u e e s t e j a , f r e n t e a e l e e a o s e u d e s e n v o l v i m e n t o , 
e m u m e s t a d o d e d e v o ç ã o e d e r e l a ç ã o e m p á t i c a . O b e b ê t e m , d e s d e o 
i n i c i o d e s u a v i d a , u m a s i n g u l a r i d a d e , q u e s e a p r e s e n t a p e l o s e u r i t m o 
b i o l ó g i c o , s e u p o t e n c i a l m u s c u l a r , p e l a m a n e i r a c o m o o s d i v e r s o s o r g ã o s 
d o s s e n t i d o s s e a p r e s e n t a m e s e d e s e n v o l v e m . E f u n d a m e n t a l q u e e s s a s 
c a r a c t e r í s t i c a s s e j a m c a p t a d a s e i n t e g r a d a s n a m a n e i r a c o m o e l e s e r á c u i ­
d a d o p e l o o u t r o . E v i d e n t e m e n t e , o o u t r o e s t a r á , t a m b é m , p r e s e n t e c o m 
s u a s c a r a c t e r í s t i c a s , c o m s u a h i s t ó r i a , c o m s u a c u l t u r a . O i m p o r t a n t e é 
q u e e s t a r e l a ç ã o s e c o n s t i t u a d e t a l fo r m a q u e p o s s i b i l i t e a o b e b ê e x i s t i r 
c o m o s e r , e n ã o s ó c o m o o r g a n i s m o b i o l ó g i c o . I s t o s i g n i f i c a q u e o 
b e b ê p o d e s e r r e c o n h e c i d o p e l a m ã e e p o d e i n s c r e v e r a s s u a s c a r a c t e ­
r í s t i c a s n a s u b j e t i v i d a d e d a m ã e , o q u e l h e p e r m i t e d e s e n v o l v e r u m 
s e n t i d o d e c o n ü n u i d a d e e u m c e r t o e s ü l o d e s e r .
E s t e s d i n a m i s m o s c o n s t i t u e m u m f e n ô m e n o e m q u e o b e b ê e o 
o u t r o v i v e m e m u m e s t a d o e m q u e n ã o f a z s e n t i d o f a l a r e m s u j e i t o e 
o b j e t o , m a s s i m e m u n i d a d e d e s e r . T e m o s e n t ã o o e s t a b e l e c i m e n t o d a 
s i t u a ç ã o d e i l u s ã o , n a q u a l o q u e é n e c e s s i t a d o é e n c o n t r a d o e a p a r e n t e ­
m e n t e c r i a d o . T r a t a - s e d o n a s c i m e n t o d a r e a l i d a d e s u b j e t i v a , r e s p o n s á v e l 
p e l o e s t a b e l e c i m e n t o d o s e r d o b e b ê n o m u n d o h u m a n o . E i m p o r t a n t e 
e s c l a r e c e r q u e a s i t u a ç ã o d e i l u s ã o a s s i n a l a d a p o r W i n n i c o t t n ã o t e m r e l a ­
ç ã o c o m o c o n c e i t o d e i l u s ã o u t i l i z a d o n a p s i q u i a t r i a . A i l u s ã o n a p s i q u i ­
a t r i a é e n t e n d i d a c o m o u m d i s t ú r b i o p e r c e p t i v o e m q u e u m o b j e t o d a 
r e a l i d a d e é d i s t o r c i d o e v i s t o p e l o i n d i v í d u o d e f o r m a s u b j e t i v a , a o p a s s o 
q u e a i l u s ã o d e W i n n i c o t t c r i a a p o s s i b i l i d a d e d e s e c o n s t i t u i r o s e n t i d o 
m e s m o d e r e a l i d a d e .
7
Klebcr Duarte Barretto
À medida que o bebê prossegue em seu processo maturaciona! 
vai havendo a possibilidade de que ele possa discriminar o si-mesmo 
do outro, o que permite, gradualmente, que ele possa não só existir 
no mundo humano, mas ser com outros humanos. Surgem, então, as
condições para a entrada na realidade compartilhada.
*
E interessante observar que a ilusão vivida no primeiro estágio 
do processo maturacional vai sofrendo metamorfoses. Não é possível 
ir em direção à realidade compartilhada sem que se possa encontrar 
nela algo de si-mesmo. Temos aqui o fenômeno de ilusão a serviço da 
constituição e manutenção da realidade compartilhada, Da mesma 
forma, em determinado momento é possível criar-se uma terceira re­
alidade: a intermediária. Esta terceira realidade chamada por Wínnicott 
de transicional permite que o indivíduo possa suspender o julgamen­
to do que sou eu ou o outro, do dentro e do fora; do passado, do 
presente e do futuro, do imaginado e do acontecido. Abre-se o cam­
po para o jogo, o faz de conta, o era uma vez, e para o repouso ativo. 
O ser do homem cria-se e recria-se neste espaço intermediário em 
formas artísticas através das palavras, imagens, sonoridades, tudo o 
que puder ser utilizado como meio de constituir a sua experiência 
existencial.
O mundo na área intermediária não é só o lugar do encontro 
com o outro, mas também consigo mesmo, com o porvir e com o 
que nunca existirá. Nele temos um espaço privilegiado de interven­
ção em que os diferentes elementos da organização do self podem ser 
trabalhados ou mesmo constituídos. O fato é que nem sempre o paci­
ente tem a possibilidade de funcionar nesta área, o que significa que o 
profissional precisará dispor desta capacidade para trabalhar com os 
aspectos do self de seu paciente. Wínnicott já afirmava que, se o paci­
ente não pode brincar, o primeiro trabalho do analista será ajudá-lo a 
vir a brincar.
Quando trabalhamos dentro da área dos fenômenos transicio- 
nais, podemos nos servir do mundo como campo de jogo. Nesta pers­
pectiva, a rua, os elementos do cotidiano, as situações presenciadas 
em nosso caminhar pela cidade, os objetos da cultura, podem ser ins-
8
trumentos de intervenção para a mobilização e/ou constituição do 
self do paciente, desde que o profissional tenha esta habilidade. Rom­
pe-se o espaço do consultório, ampliando-o, para ir em direção ao 
mundo, o espaço onde o acontecer humano se dá.
Kleber Barretto, através deste trabalho, apresenta de maneira 
consistente e divertida como ocorrem esses processos em sua prática. 
Trata-se de um livro em que o leitor terá a oportunidade de conhecer 
mais profundamente os princípios da clínica winnicottiana, através 
de situações clínicas e o mais interessante: tendo ele mesmo uma ex- 
periência no campo dos fenômenos transicionais. Kleber soube pelo 
uso de um objeto cultural, a obra de Cervantes, trazer o leitor para 
uma situação de ilusão, em que, ao acompanhar as aventuras de Dom 
Quixote e Sancho Pança, ele vai acompanhando as situações teórico- 
clínicas do autor do livro. O leitor é capturado para tornar-se, tam­
bém, um participante das mesmas aventuras clínico-literárias narra­
das ao longo do texto.
Importante assinalar, ainda, que podemos ir percebendo ao lon­
go da leitura como a função de acompanhante terapêutico desloca-se 
pelos participantes da aventura. Em um momento o acompanhante é 
o profissional, em outro, o assim chamado acompanhado, em outros 
ainda, o acompanhante será Dom Quixote ou Sancho Pança. Desta 
maneira, vemos acontecer o fenômeno transicional: a função não é 
possuída por ninguém, ela se dá ali onde ela pode acontecer.
Penso que Kleber traz com este livro uma contribuição funda­
mental, não só para o campo do acompanhamento terapêutico, apre­
sentando um modelo de trabalho nesta área, firmemente conceitua­
do, como também para o campo da psicanálise. Winnicott, com os 
conceitos que formulou, tem obrigado o psicanalista a repensar o seu 
trabalho clínico. O fato é que o analista, na perspectiva winnicottiana, 
intervém não só pela palavra, mas também com os objetos do mun­
do, da cultura. Não só acompanha, mas é acompanhado.
Outro fato que deve ser assinalado é que este livro foi original­
mente a dissertação de mestrado de Kleber. Com isso quero chamar a 
atenção do leitor para um modelo profundamente original de realização
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
9
Kleber Duarte Barretto
de um trabalho acadêmico. O estilo de seu autor, sua experiência de 
vida fazem parte da sua estratégia de investigação e da construção do 
texto acadêmico, sem que o rigor necessário a um trabalho deste por­
te seja perdido.
Kleber costuma citar em conversas com seus amigos um trecho 
de um dos diálogos do filme de Wim Wenders “Asas do Desejo”: 
Para que se possa ser selvagem é preciso ser capaç de manter a seriedade! 
Penso que esta frase sintetiza o estilo de ser de Kleber que o leitor 
poderá saborear ao longo deste livro.
Convido o leitor a montar em seu alazão e cavalgar com nossos 
amigos pelos campos da transicionalidade. Boa Viagem!
São Paulo, 9 de fevereiro de 1998.
Gilberto Safra
10
“M as o que há de louco no m undo, 
eis o que D eus escolheu para confundir os sábios;
o que há de fraco no m undo, 
eis o que D eus escolheu para confundir a força ; 
o que no m undo é sem nome e o que se desprezay
eis o que D eus escolheu.. ”
(1 Cor 1,27-28)
Advertência
Caro leitor, cabe a mim fazer-vos uma advertência 
sobre as histórias que se seguirão e esta vem a ser a seguinte:
Tudo que aqui se diga e que vos cheirar mais a 
confusão...Tudo que aqui se diga e que vos desperte um 
gosto de dogmatismo...Tudo que aqui se diga que vos to­
que de maneira parcial e reducionista...Tudo que vos sal­
tar aos olhos como despropósitos...Tudo isto crediteis na 
conta deste andarilho completamente perdido, que se atre­
veu a relatar andanças por campos que apenas 
vislumbrou...Tudo que aqui se diga a respeito do valoro­
so Dom Quixote dela Mancha e de seu fiel escudeiro 
Sancho Pança, sirva — somente — para aumentar a glória 
e a admiração por ambos conquistadas ao longo dos sécu­
los. Caso em algum momento, caro leitor, tiverdes im­
pressão contrária a esta, favor lembrar-vos de que se tra­
tam de histórias contadas por alguém cujos limites e ína- 
bilidades e insensibilidade, muitas vezes, o cegam para o 
verdadeiro valor dos pequenos grandes gestos...
Viram o homem andar, umas vezes com 
passeando, outras parar, arrimado
sossegada postura, 
à sua lança.
CAPÍTULO
No qual se introduz o percurso sinuoso
desta caminhada
N estas andanças, refletirem os sobre a prática do acom ­panhamento terapêutico (AT)1 utilizando, principalmente, de 
um referencial psicanalítico winnicottiano. As formulações de Win- 
nicott, contribuem bastante, a meu ver, no manejo clínico. Este últi­
mo consistiría nas intervenções, no enquadre ou no cotidiano de um 
sujeito que visam a possibilitar a simbolizaçào de uma questão exis­
tencial e/ou o desenvolvimento de alguma função psíquica. O tema 
do manejo será mais discutido no Capítulo X V III. As formulações 
desse autor também fundamentam teórica e conceitualmente este novo 
procedimento clínico com o qual nos ocuparemos.
A fim de enriquecer as discussões, nos serviremos de exemplos 
clínicos de diversos acompanhantes, de alguns psicanalistas e de quem 
vos escreve. Tenho a honra de comunicar-vos, como bem sabeis, que 
teremos a companhia do memorável cavaleiro andante Dom Quixote de 
la Mancha e de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Não deixaremos, é claro, 
suas montarias de lado: o inigualável Rocinante e o inesquecível ruço. 
Eles estarão aqui, para nos auxiliar a explicitar o que se passa na relação 
acompanhante-acompanhado. Eles estarão aqui, acima de tudo, para cum­
prir uma missão das mais importantes, qual seja a de amparar e acompa­
nhar este andarilho completamente perdido.
Além dos pontos mencionados, percorreremos alguns aspec­
tos do desenvolvimento psíquico humano, a partir das funções 
ambientais necessárias para que uma subjetividade se constitua satis­
fatoriamente. Tentei abordá-las dentro de uma perspectiva evolutiva,
Doravante utilizarei AT para designar acompanhamento terapêutico e at para 
acompanhante terapêutico.
17
Klcbcr Duarte Barretto
ou seja, desde as mais básicas e fundamentais até aquelas que se tor­
nam significativas depois que o sujeito já trilhou todo um percurso 
em termos do seu desenvolvimento.
Caro leitor, devo esclarecer-vos que nas páginas que se seguem 
náo encontrareis uma apresentaçào rigorosa e detalhada da história da 
loucura na cultura ocidental. Isto se deve, pelo menos, a dois motivos 
básicos:
O primeiro é que o objeto de estudo deste trabalho nào é a loucu­
ra, mas sim o AT. Talvez, aqueles mais familiarizados com este campo e 
até aqueles que tenham ouvido falar brevemente sobre este procedimen­
to clínico, estejam pensando: mas como escrever sobre AT sem se deter na história 
da loucura? O surgimento do AT não está diretamente ligado ao tratamento das 
psicoses?
A resposta à última pergunta é sim. Nào há como negar esta filiação 
e logo abordaremos este aspecto na breve história do AT. Entretanto, 
temos observado nos últimos anos que este tipo de trabalho vem se am­
pliando cada vez mais, possibilitando intervenções no campo da deficiên­
cia mental, drogadiçào, alcoolismo, depressão pós-parto, casos de aciden­
tados que necessitam de um apoio domiciliar especializado, recuperações 
cirúrgicas, terceira idade e também em casos onde há uma recusa e/ou 
contra-indicação de um trabalho terapêutico no consultório. Assim sen­
do, este livro tem como um de seus objetivos tentar fundamentar esta 
ampliação do campo do AT para além do trabalho em situações de crises 
psicóticas, fato que já ocorre na prática.
O segundo motivo seria a resposta à pergunta levantada anteri­
ormente: mas como escrever sobre o AT sem se deter na história da lou­
cura? Pois é, algo inconcebível se tal assunto nào tivesse sido aborda­
do em outros trabalhos sobre esse campo. Nos dois livros já publica­
dos sobre AT2, o tema da história da loucura foi abordado com mai­
or cuidado. O leitor interessado poderá encontrar nestes livros boas
Susana MAU li R c Silvia R liSN I/K Y (1985) c licjuipc dc AT do Instituto “A 
Casa” (org.) (1991).
18
referências bibliográficas para um aprofundamento no assunto, Quem 
vos escreve também já abordou este tema no artigo “Uma Proposta
V
de Visào Etica para o A T”, apresentado no II Encontro Paulista de 
Acompanhantes Terapêuticos; a partir dos trabalhos desse encontro, 
organizou-se um livro que aguarda publicação pela editora EDUC 
(1998). Assim sendo, para o momento, basta sabermos que a forma 
de interaçào, concepção e/ou tratamento da loucura variou e se trans­
formou ao longo dos séculos. Grosso modo, poderiamos dizer que 
existiu um período em que ela (loucura) fazia parte do convívio soci­
al. Este período foi seguido por aquele em que o confinamento pas­
sou a ser a principal forma de tratamento dos sujeitos ditos “loucos”. 
Ou seja, um período caracterizado por uma grande internação. Hoje 
em dia, estes sujeitos voltam, gradualmente, à convivência cotidiana 
com a família e à comunidade a que pertencem.
Valéria a pena abordar, neste momento, como se constituiu 
historicamente a prática do AT. Ela é herdeira do movimento antipsi- 
quiátnco inglês, da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia 
institucional francesa. Este percurso está bem fundamentado na dis­
sertação de mestrado de Deborah Sereno (USP — 1996). Pelas infor­
mações que disponho, o AT surgiu no início da década de 70 em Bue­
nos Aires. Na Argentina, muitos psicanalistas estiveram ligados aos 
hospitais psiquiátricos. Dessa forma, criaram novas funções para os 
agentes de saúde mental denominadas: auxiliares psiquiátricos e em 
outros lugares, a tendentes terapêuticos. As funções desses agentes fo­
ram o embrião daquilo que mais tarde foi denominado amigo qualifi­
cado e, posteriormente, acompanhante terapêutico. Isto ocorreu à 
medida que o trabalho foi se dando mais na rua, na casa do paciente e 
deixando a instituição psiquiátrica.
O processo acima descrito teve suas influências no Brasil. A 
idéia do auxiliar psiquiátrico passou por Porto Alegre (Clínica Pinei) 
e, por sua vez, chegou às comunidades terapêuticas do Rio de Janei­
ro, principalmente, à Clínica Vila Pinheiros. Porém, no final da déca­
da de 70, com o declínio e fechamento das comunidades terapêuticas, 
os auxiliares psiquiátricos continuaram a ser solicitados por terapeutas 
e familiares que buscavam uma alternativa à internação. Esse traba­
É tica e técnica no acompanhamento terapêutico
19
Klebcr Duarte Barretto
lho foi se solidificando, e hoje, eles se denominam acompanhantes 
psicoterapêuticos.
Faz-se necessário esclarecer que essa atividade, em geral, era 
exercida por estudantes de psicologia, ciências sociais e medicina. Gra­
dualmente, o AT foi se constituindo como um recurso a mais no 
tratamento de pessoas em crises psicóticas. Dada a complexidade dos 
fenômenos dessas crises e o volume de angústia mobilizado, perce­
beu-se que as terapias tradicionais — individual, grupai e familiar, 
além dos remédios — não eram suficientes em determinados casos.
À medida que esta atividade (AT) era cada vez mais requisita­
da, foi havendo uma especialização do acompanhante terapêutico. 
Não só estudantes, mas também psicólogos, terapeutas ocupacionais 
e outros profissionais passaram a trabalhar como acompanhantes.
O surgimento do acompanhamento terapêutico em São Paulo 
teve características um pouco diferentes, ao menos no que diz respei­
to à equipe de AT do Instituto “A Casa”.
A idéia foi trazida por uma psicanalista argentina que fazia par­
te do grupo que implantou o hospital-dia em 1979. No entanto, essa 
função só foi utilizada em 1981 com a denominação de amigo qualifi­
cado. Após alguns anos, observou-se que o termo acompanhante 
terapêutico se adequavamelhor àquilo que estava sendo feito, além 
de evitar algumas confusões. O termo acompanhamento expressava 
uma função que implicava uma ação, uma intervenção junto a um 
outro sujeito, sendo portanto, mais adequado à tarefa que se estava 
realizando. Por outro lado, o uso da palavra “amigo” gerava confu­
sões, na medida em que dificultava a discriminação e a caracterização 
do vínculo entre paciente e esse profissional.
Vivemos um período no qual o tratamento, o cuidado para 
com o outro ganha dimensões muito próximas do dia-a-dia, conside­
rando as potencialidades terapêuticas das atividades e vivências do
*
sujeito. E também com o objetivo de fundamentar esta visão que nos 
propusemos a relatar essas andanças.
20
E tica e técnica no acompanhamento terapêutico
Partiremos, agora, para outras histórias não menos importan­
tes e interessantes. Cabe a mim a honra de apresentar-vos uma pessoa 
da mais alta estima, apesar de que provavelmente o conheceis ou com 
certeza já tendes ouvido falar dele. Pessoa a quem devo mui respeito 
pelos feitos perpetrados em prol dos mais necessitados, os quais lhe 
cobraram fama mundial:
Na região de la Mancha vivia um fidalgo por volta dos seus 50
anos. “Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rostoy madrugador; e amigo 
da caça...
#
...E pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais 
do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu 
quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto 
chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de 
semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa 
quantos pôde apanhar daquele gênero.
...E m suma, tanto n a q u e la s le itu ra s s e e n fra s e o u , que passava as noites de 
claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, 
se lhe s e c o u o c é r e b r o , de maneira que c h e g o u a p e r d e r o ju íz o . E n c h e u - 
s e - lh c a fa n ta sia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como 
pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates 
impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela 
máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no 
mundo.
A fin a i, rematado já de todo o juzjo , deu no mais estranho pensamento em que nunca 
jam ais caiu louco algum do mundo, e fo i: parecer-lhe convinhável e necessário, assim 
para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fa^er-se cava­
leiro andante, e ir-se p or todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de 
aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante 
cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, 
donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fam a. ” (Cervantes - 1605; pp. 
29 e 30; gnfo nosso)
21
Klcbcr Duarte Barretto
Este trecho apresenta algumas concepções de loucura que exis­
tiam na época em que tudo se passou: perda do juízo face a uma 
erupção imaginativa que, por sua vez, foi causada pela desidratação 
do cérebro do fidalgo, fruto do excesso de leitura. Acreditava-se, nes­
ta época, que a leitura de romances podia ser muito prejudicial à saú­
de das pessoas, especialmente das donzelas. Todas aquelas fantasias 
românticas nào haveríam de fazer bem aos miolos, pois desconectando- 
o da vida prática, colocava o sujeito em um mundo irreal.
Sabe-se que a loucura sempre fez parte da experiência humana e 
a ela (loucura) sempre se atribuíram significados. Esta significação 
oscilou — e ainda oscila — de acordo com a concepção que se tem 
deste fenômeno. Existem diferentes perspectivas que divergem tanto 
naquilo que consideram formas de loucura, suas origens e caracterís­
ticas, quanto em relação à própria noção de loucura enquanto doen- 
ça.
Era uma vez... em outro lado do mundo, por volta de 1910, na 
região de Itapira, cidade do interior paulista, nas vizinhanças de Mogi- 
Mirim, Amparo, Lindóia e Jacutinga; existia uma família que morava em 
um sítio. Eram pai, mãe, filhos e filhas. A mãe dera à luz a mais uma 
criança. Certo dia, seus familiares tiveram um grande choque ao vê-la 
segurando o bebê em cima do poço d’água, ameaçando jogá-lo buraco 
abaixo. A mãe havia enlouquecido, mas os familiares puderam interceder 
e salvar a criança. O grande drama que se instalou na família foi de 
que maneira poderiam cuidar da esposa e da mãe. O único hospital 
que tratava desse tipo de situação, na época, era o Juquerí em Franco 
da Rocha. O pai e outros parentes achavam que em Franco da Rocha 
ela ficaria muito longe da família, mas a preocupação maior era que 
ela fosse maltratada ou recebesse um tratamento desumano. A saída 
encontrada para o dilema foi mantê-la em casa, ou melhor, devido 
aos rompantes de agressividade, decidiu-se construir um aposento 
próximo à casa. Esse aposento simples não era muito grande, com 
janela e porta pequenos. E foi nesse aposento-cela que ela viveu o 
resto de sua vida, cerca de 26 anos. A filha mais velha cuidava da mãe 
nos tratos alimentares e de higiene pessoal como banho, cuidado com
22
É tica e técnica no acompanhamento terapêutico
os cabelos e tudo mais. Esse aposento-cela, anos após a morte de sua 
moradora, deu lugar, por iniciativa da filha mais velha, a uma capeiinha 
com imagem de Nossa Senhora, santinhos e florezinhas de plástico. 
Uma capeiinha como tantas outras... Uma capeiinha dedicada a Ana 
Carolina de Oliveira, minha bisavó por parte de pai.
Ainda nas cercanias de Itapira, nos começos deste século, um 
grupo de pessoas, inspirado pela caridade espírita-crista, preocupava- 
se com as condições em que viviam as pessoas que eles denominavam 
enfermos mentais. Eles (enfermos) viviam como indigentes pela cida­
de, alguns permaneciam presos ou amarrados na casa de seus familia­
res, como minha bisavó; e, os mais perigosos ou incomodativos eram 
levados para as delegacias. Devido aos maus tratos e às condições pre­
cárias, estes logo acabavam morrendo. Aquele grupo de pessoas 
caridosas se condoía das condições subhumanas a que eram submeti­
dos os enfermos e, movido pelo ideal da caridade cristã, via a necessi­
dade de se ter um local adequado para abrigar e cuidar daquele tipo de 
sofrimento. O grupo tentou durante anos dar corpo a esse ideal, mas 
as dificuldades eram inúmeras. Até que um casal resolveu doar um 
pequeno pedaço de terra para se iniciarem as construções. Enquanto 
isso, esse mesmo casal, que possuía família numerosa, dispôs-se a re­
ceber uma enferma em uma das casinhas que possuíam na chácara 
onde moravam. Estas casinhas eram destinadas a algumas famílias ca­
rentes que não tinham onde morar. A esposa do casal tivera a experi­
ência de cuidar da própria mãe que adoeceu (mentalmente) quando já 
estava velhinha, o que a “habilitava” a cuidar da enferma mental que 
chegara recentemente.
O grupo se transformou e se ampliou, assim como aquilo que 
começou nos fundos de uma chácara, somados aos esforços e trabalhos 
de inúmeras pessoas deu origem ao que hoje leva o nome de Fundação 
Espírita Instituto “Américo Bairral”. Nome dado em homenagem a um 
dos idealizadores do projeto, que desencarnou, como dizem os espíritas, 
antes que o sonho tomasse corpo. O casal que cedeu parte da proprieda­
de inicial e que mais tarde iria empenhar todos seus esforços e patrimônio
23
Kleber Duarte Barrctto
na consolidação daquele ideal, chamava-se Onofre Batista e Gracinda 
Batista.
Onofre e Gracinda, juntamente com a maior parte de seus fi­
lhos, trabalharam muito para que um simples albergue se transfor­
masse em um hospital. Na verdade, as circunstâncias fizeram com 
que se transformasse em um grande hospital. Onofre era um dos en­
carregados de levantar fundos para a Instituição, o que fazia através 
de suas viagens como vendedor. Em trocados donativos era, no mais 
das vezes, obrigado a prometer uma ou mais vagas no que já ia se 
tornando um sanatório. Eis que, com o tempo, começou chegar a 
Itapira um grande fluxo de pessoas enfermas mentais. Pessoas que, na 
maior parte das vezes, eram abandonadas na cidade pela família ou 
chegavam de trem sem passagem de volta e apenas com a roupa do 
corpo.
Onofre e Gracinda foram meus bisavós maternos que também 
não cheguei a conhecer pessoalmente. Pais de minha avó. Seu esposo, 
meu avô, mudou-se de Salto-SP para Itapira logo após o casamento e 
juntos trabalharam no hospital por muitos anos. Ela como enfermeira e 
ele como encarregado geral. Mais tarde, vieram a trabalhar, outros tantos 
anos, como enfermeiros na Clínica de Repouso Santa Fé, localizada na 
mesma Itapira. No início, meus avós moraram por muitos anos em uma 
casinha que fazia parte do hospital e foi nessa casinha que minha mãe 
menina e minha tia, ainda menor, passaram a infância.
Mamãe menina cresceu e no colégio se apaixonou pelo profes­
sor de Educação Física, uns pares de anos mais velho e recém regresso 
à cidade. Digo recém regresso, porque esse jovem cheio de ideais era 
filho e fruto da mesma terra e ali retornara para plantar as sementes 
de seus sonhos: constituir família e difundir a prática desportiva na 
comunidade. Papai também correspondia com a mesma paixão àque­
la colegial, o que depois de alguns anos de namoro resultou em casa­
mento. Papai, dinâmico e idealista, além do trabalho no Ginásio e na 
organização de atividades desportivas comunitárias, resolveu implan­
tar um trabalho de esportes no Bairral — maneira como o hospital é 
conhecido na região. Esse trabalho com esportes para enfermos men­
24
tais durou cerca de vinte anos, sendo que boa parte deie íoi realizado 
na Clínica Santa Fé. Nos hospitais aplicou a mesma filosofia de traba­
lho do Ginásio: atividades esportivas variadas, jogos amistosos, olim­
píadas, passeios campestres e acampamentos.
Papai e mamàe tiveram quatro filhos: uma menininha; depois 
de dois anos, nasceu um menininho; e, passando um ano e poucos 
meses veio ao mundo outro menininho; e , finalmente, onze anos 
mais tarde tiveram outro menininho. Assim sendo, aquele que aqui 
rabisca é o menininho que por onze anos foi o sanduíche, o do meio.
Esse menininho sanduíche que, — pensando agora, talvez nào 
fosse à toa - em tenra idade quando perguntado: “o que você vai ser 
quando crescer?”; sempre respondia: “salchicha”, para a diversão e 
deleite dos adultos presentes. Pois bem, esse menininho desde cedo 
era dado às aventuras, às incursões e excursões exploratórias por esse 
mundao. Papai também era dado às aventuras campestres. Ah!, meus 
avós maternos, de quando em quando, hospedavam pacientes ou ex- 
pacientes na própria casa, como forma de auxiliar nas suas recupera­
ções. Um deles, o Dito, tão próximo ficou que passou a fazer parte da 
família. Certo dia, ele contou para esse menininho sobre os macaqui­
nhos que viviam na Rua da Estação, a principal rua comercial da 
cidade. Essas histórias encheram-me a fantasia de curiosidade e vonta­
de de visitar sítio de tão rica vida selvagem a algumas quadras de onde 
minha família morava. E , assim foi que, no dia seguinte, logo pela 
manhãzinha, esse menininho desperta o irmãozinho e ambos dão vazão 
sem serem percebidos e ganham os campos da rua. Iam entusiasma­
dos ante a possibilidade de encontrar ao menos um macaquinho que 
fosse; quando, próximos à zoológica rua, foram avistados por seus 
avós que iam para a Clínica Santa Fé trabalhar. Estes levaram um susto e 
logo trataram de saber o que fazíamos ali tão cedo e tão sozinhos e tão 
longe de casa para crianças tão pequenas. Foi assim, caro leitor, que a 
diligência dos macaquinhos ficou interrompida, a apenas alguns metros 
de sítio tão interessante quanto fantástico.
Graças aos bons ventos da fortuna, melhor desfecho teve a aven­
tura dos sapinhos, uns dois anos mais tarde. É isso mesmo, os sapinhos
E tica e técnica no acompanhamento terapêutico
25
Klcbcr Duarte Barretto
que a Natureza, na estação em que gosta de dar banho na terra e que 
os adultos chamam “das chuvas”; a Natureza presenteou a cidade, ou 
talvez apenas a região onde moravamos, com uma chuva de sapinhos. 
Choveram tantos sapinhos como nunca dantes havia chovido e como 
nunca se viu em nenhum dos anos seguintes. Uma verdadeira infestação 
de sapinhos pelas ruas e calçadas. Uma festa para nós, crianças, essa 
chuva de sapinhos. E assim foi que, mais cedo do que na campanha 
dos macaquinhos, acordei meu írmàozinho e nos munimos de saqui­
nhos plásticos para a coleta dos sapinhos. Alcançamos a rua sem que 
ninguém nos percebesse e partimos em direção à aventura. Nova­
mente, nossos avós nos encontraram a caminho do trabalho, só que 
desta vez, já estávamos há um bom tempo em campo e os saquinhos 
repletos daqueles serezinhos vindos do céu.
A vida desse menininho foi marcada por essas e outras andanças. 
Algumas outras tereis a oportunidade, caro leitor, de compartilhar caso 
prossigais nessa caminhada. Assim, despeço-me com a esperança de que 
possais juntar-vos a nós — Dom Quixote e Sancho Pança e outros mais - 
nessas aventuras.
26
Capítulo
II
Onde se contam as motivações de
tamanhas aventuras
N este meio tempo, solicitou D om Q u ixo te a um lavrador seu vizinho, homem de bem ...e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe 
martelou, que o pobre se determinou a sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. Di%ia- 
Ihe entre outras cousas Dom Q uixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, 
porque bem podia dar o acaso que do p é para a mâo ganhasse alguma ilha, e o 
deixasse p or governador dela. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança, 
que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos, e se assoldadou p or escudeiro 
do fidalgo.” (Cervantes - 1605; p. 53)
A promessa de Dom Quixote de tornar Sancho Pança governa­
dor de uma ilha parece ter sido a grande motivação para se juntar ao 
fidalgo. O desejo de se ver transformado de lavrador em governador 
significava uma mudança profunda na vida de Sancho: poder, prestí­
gio, riqueza e outras coisas do gênero. Talvez a intenção de se escudeirar 
não possa ser reduzida simplesmente à ganância, sem cairmos em gran­
de injustiça, pois Sancho Pança buscava dar melhores condições de 
vida à sua família; e, assim, abraçou a oportunidade oferecida por 
Dom Quixote, mesmo que isso implicasse em se afastar de seus entes 
queridos. Haveriamos de considerar também como um fator moti- 
vante a promessa de aventura e sonho que semeava a esperança de 
romper as cadeias de uma vida comum e previsível.
O amo já havia partido uma vez de sua aldeia, mas retornou, a 
conselho de um hospedeiro, a fim de melhor prover-se para suas andanças: 
dinheiro e gêneros alimentícios. Dom Quixote pensou, entào, que seria 
interessante ter um escudeiro por companhia, assim como lera nos ro­
mances de cavalaria em que os cavaleiros andantes estavam sempre acom­
panhados por um ajudante de ordens.
2 7
Kleber Duarte Barrctto
Minha grande motivação para me tornar um acompanhante 
terapêutico (ai) era a possibilidade de viver as aventuras que imagina­
va existirem nessa atividade. Imbuído principalmente desse espírito 
aventureiro, alistei-me para as fileiras do AT. Ouvi falar sobre o AT 
quando ainda cursava a faculdade de Psicologia. Achei interessante 
este tipo de atividade, embora as pessoas com quem conversava ques­
tionassem sua validade, pois, em sua opinião, esta função assemelha­
va-se à de “babá de psicóticos”1. Entretanto, algumas histórias conta­
das a respeito desse trabalho despertaram-me o desejo de experienciar 
esse tipo de relação terapêutica com um sujeito.
Além da promessa de aventuras, outros motivos despertaram 
meu interesse. Em primeiro lugar, desde que decidi estudar Psicolo­
gia, tinha vontade de trabalhar com loucura. Sabia que somente uma 
experiência acadêmica não me satisfaria. Então, trabalharcom a lou­
cura era algo que desejava e considerava importante, pois imaginava 
que esse tipo de trabalho poderia me proporcionar um conhecimen­
to mais profundo do psiquismo humano e me colocaria mais em con­
tato com a singularidade do sujeito dito “louco”. Não podemos per­
der de vista a tradição familiar de quem vos escreve, no que tange ao 
trato e ao retrato da loucura.
Lembro-me de um sonho que tive antes de começar a acompa­
nhar: “Estava acompanhando um rapaz. Um pessoal se reuniu para assis­
tir a um filme em seu apartamento. De repente, percebo que ele desapare­
ceu. Começo a procurá-lo desesperadamente. Entro no quarto dos pais e 
vejo que muitas coisas haviam sido quebradas. Revisto os armários e 
nada. No banheiro: coisas jogadas pelo chão, talco espalhado por todo 
lugar, espelho quebrado. Um verdadeiro estrago. Quando finalmente o 
encontro, dou-lhe uma gravata (chave de braço) e levo-o para a sala onde 
seria exibido o filme. Ao chegar à sala, vejo que tem muita gente e fico 
totalmente sem graça de estar segurando aquele cara pelo pescoço. Rapi­
damente solto-o.”
Ksta cjuestão da comparação do at com “babá dc psicóticos” c “enfermeiro de 
luxo” é discutida em BARRKTTO (1996).
28
/
Et?ca e técnica no acompanhamento terapêutico
Esse sonho revela algumas questões que me mobilizavam na 
época: um temor de enlouquecer através de uma cnse de destrutividade; 
como empregar a agressividade para lidar com uma situação; submis­
são à opinião grupai, entre outras. Revendo anotações pessoais e tra­
balhos escritos naquela época, percebo que atravessava um período 
de vida em que se colocava mais fortemente a questão da agressividade/ 
destrutividade. Como lidar com elas? Como integrá-las às minhas 
experiências? Como utilizá-las na transformação do meu dia-a-dia? 
De certa forma, aquilo que me motivava ao AT talvez tivesse ecos na 
motivação de Sancho Pança, pois também ansiava por conseguir al­
gum governo sobre essa ilha vulcânica (dimensão da agressividade e 
da destrutividade) que me habitava; e que, por inúmeros motivos, 
tinha de ficar afastada. Qual a possibilidade de integrá-la ao território 
de meu ser sem colocar em risco minha integridade, minha sanidade, 
assim como meus vínculos sociais?
Outro motivo da busca por essa atividade foi o fato do AT ser 
uma prática pouco conceituada. Havia apenas uma publicação sobre 
o assunto na época. A necessidade de sistematizar as experiências em 
termos teóricos interessava-me também, já que parecia tratar-se de 
um campo de trabalho aberto para investigações.
A dimensão de lazer que estava conectada ao trabalho em AT 
me interessou em um primeiro momento. Um trabalho que implica­
va aparentemente em realizar um programa: ir ao cinema, a um bar , 
a um show ou talvez a uma viagem.
Foi com estas expectativas, que fui selecionado para trabalhar 
na equipe de AT do Instituto C<A Casa”, em Maio de 1988.
Uma história de muitas alegrias transformadas em euforia, 
muitas dificuldades transformadas em impotência, dores transforma­
das em sofrimento insuportável e grande vazio. Experiências difíceis 
que desaguaram nesse trabalho que agora vos apresento.
Foram necessários alguns anos de experiência como at e como 
paciente em análise, para que realmente pudesse sentir aquela ativida­
de como trabalho. Alguns anos de trabalho, para que pudesse percebê-
29
Klcbcr Duarte Barretto
lo como terapêutico. Digo terapêutico de mào-dupla, pois sempre 
percebi o quanto o acompanhamento era terapêutico para mim, na 
medida em que tocava em pontos desconhecidos e/ou reprimidos de 
minha subjetividade confrontando-me com minha própria loucura; e 
assim, incrementando o trabalho analítico.
Demorei a me reconhecer um terapeuta. Observava os colegas, 
com mais anos de trabalho e com mais experiência em AT, denomi­
nando-se terapeutas e eu os invejava, pois aquela ainda nào era a mi­
nha vivência.
Penso que se reconhecer terapeuta, ou melhor, reconhecer-se 
trabalhando é uma tarefa bastante árdua, que cada a t tem de empreen­
der. Tarefa árdua, porque no acompanhamento nào existem tantos 
elementos externos invariáveis que se constituam em um enquadre 
claro e definido para se apoiar e ter uma garantia, mesmo que aparen­
te, de que se trata de um trabalho. Estou me referindo às questões de 
enquadre em seus aspectos sensoriais: sala de atendimento, encontro 
com hora marcada, tempo limitado, pagamento, por exemplo. Ape­
sar de os três últimos aspectos estarem presentes na prática do AT, 
nào me davam a impressão de um trabalho. Nessa atividade, nào se 
está em uma sala de consultório ou em uma instituição, mas sim, 
geralmente, assistindo à televisão ou a um filme no cinema, batendo 
papo em um bar ou no quarto do paciente, ou ainda com seus famili­
ares. Habita-se e transita-se pelo espaço privado (casa do paciente) e 
público o tempo todo. Espaços profundamente marcados pela di­
mensão do lazer, do descanso e também do conflito.
O AT, aparentemente, oferece um limite muito tênue entre 
trabalho e lazer. As fronteiras parecem ser praticamente inexistentes. 
No princípio de minha experiência como acompanhante, sentia que 
essas separações nào existiam, o que apesar de dar um “grande bara­
to”, também gerava seu montante de angústia.
Dessa forma, sào incontáveis as situações e momentos em que 
surgiram a dúvida: será que estou trabalhando? Será que isso é um 
trabalho sério? Esta é minha própria loucura tomando conta de tudo, 
ou estou podendo lidar com ela e a do outro?
30
E ííc a e técnica no acompanhamento terapêutico
Quando comecei a trabalhar como acompanhante terapêutico, 
o mais importante para mim era poder estar junto a uma pessoa que 
tivera — ou estivesse atravessando — uma profunda crise psíquica. 
Nào me interessava saber definir psicose, neurose, loucura, ou como 
classificar as manifestações da pessoa acompanhada dentro de um qua­
dro patológico. Sentia um incômodo em relação a essas classificações, 
pois, geralmente, quando as pessoas se utilizam das categorias neuró­
tico e psicótico para entender o funcionamento do paciente, elas se 
colocam dentro do funcionamento neurótico diferenciando-se do fun­
cionamento psicótico. Tenho a impressão de que essa maneira de or­
ganizar os fenômenos clínicos ou a existência humana coloca uma 
distância enorme entre um funcionamento e outro. Distância que me 
parece ainda maior quando se fala em estruturas neurótica e psicótica. 
As vezes, por nào me identificar com esse tipo de abordagem, pensei 
que discordasse por ser louco — senão de todo, pelo menos em parte. 
Ao longo do tempo, fui percebendo que não era o único que tinha 
essa impressão e pude encontrar interlocutores (escritores, psicanalis­
tas e outros) que haviam organizado essas questões de uma maneira 
bastante distinta, uma forma diferente de compreender o ser huma­
no, a vida... Esse encontro de outros interlocutores proporcionou- 
me uma experiência de estar acompanhado, de ser compreendido.
Inicialmente, o próprio fato de estarmos, muitas vezes, envol­
vidos (acompanhado e eu) em situações bastante angustiantes, já me 
absonda toda atenção. Lidar com essas situações representava um gran­
de desafio. Eis um exemplo:
Milton discutia furiosamente com sua mãe por ela nào ter pas­
sado a calça comprida que ele queria usar. Exigia que fosse passada 
naquele exato momento, nào podia esperar; porém, sua mãe e a em­
pregada estavam ocupadas com o almoço. O clima ia ficando cada vez 
mais tenso, até que propus a ele que nós mesmos passássemos a calça. 
Ele disse que nào sabia passar roupa. Comentei que poderia mostrar 
a ele como se fazia. Através dessa intervenção tão simples, foi possí­
vel notar uma mudança imediata em seu humor e ele demonstrou 
toda uma satisfação enquanto passávamos sua calça.
31
Klebcr Duarte Barretto
Essa e inúmeras outras situações que enfrentei e enfrento na 
experiência de acompanhar mobilizam angústias em todos os partici­
pantes presentes nessas ocasiões e exigem do a t alguma intervenção.Outro aspecto de minha experiência como acompanhante, que 
me chamou a atenção, foi perceber que não só as angústias eram com­
partilhadas mas também outros tipos de emoções: momentos de ale­
gria, tristeza e ternura, por exemplo.
Com o passar do tempo, também fui acumulando experiências 
no acompanhamento que tinham a ver com satisfações e prazeres, 
que me levaram a perceber a loucura como expressão de liberdade. 
Enlouquecer implicava em ganho de liberdade interna: fazer coisas 
inusitadas, usar os espaços públicos de maneira incomum, falar e ima­
ginar absurdos. Comecei então a idealizar a loucura, acreditava ser 
essa a única saída de uma vida achatada, ordenada e previsível, que 
muitas vezes cultivamos pessoal e/ou socialmente. Acredito que as 
aventuras que buscava através do acompanhamento estariam relacio­
nadas ao viver “mais louco” do cotidiano, como única alternativa à 
vivência de futilidade e previsibilidade. Gradualmente, fui perceben­
do o recorte parcial que estava fazendo, tanto da qualidade de vida 
dos cidadãos comuns quanto daquele dito louco. Em relação a este, 
por não levar em conta como todo o sofrimento e até desespero com 
os quais ele se depara, são muitas vezes intensificados pelas maneiras 
pouco adequadas através das quais busca lidar com a dor psíquica. 
Por outro lado, em relação aos cidadãos comuns, não considerei aque­
les que desfrutam a vida de maneira criativa e imaginativa, e têm toda 
uma alegria em viver.
Questionei-me, também, sobre o benefício da internação como 
intervenção terapêutica. No início, acreditava que seria suficiente, para 
dar conta da crise, um tratamento que envolvesse hospital-dia, tera­
pia (familiar, grupai e individual), terapia ocupacional, AT e outros 
recursos mais. Achava a internação algo violento e desumanizador. 
Com o passar do tempo, pude perceber que a internação, em deter­
minados momentos e tipos de crise, representava um cuidado para
p
com o paciente e sua família. E claro que havia uma indicação compa­
32
E.t/ca e técnica no acompanhamento terapêutico
tível com o contexto e o momento da crise do paciente. Percebí que 
recorrer à internação poderia propiciar ao paciente e à sua família 
uma intervenção que apontasse para um limite, mas que, também, 
oferecesse um acolhimento e holding. Essas funções são importantes, 
pois possibilitam uma integração mínima e ajudam a evitar que o 
paciente e/ou membros da família mergulhem em um estado que 
Winnicott chamou de angústia catastrófica. Em alguns casos, o AT 
pode funcionar como facilitador na transição de uma internação em 
uma clínica para o trabalho em hospital-dia, por exemplo. Pude ir 
percebendo que a medicação é mais um fator importante no trata­
mento. Em dosagens adequadas, o remédio pode ajudar o paciente a 
viver um nível suportável de angústia, que lhe permite interagir mi­
nimamente consigo — seus pensamentos, emoções, sentimentos e 
pulsões — e com as outras pessoas.
Caro leitor, deixemos essas ilusões e desilusões de quem vos 
escreve para mergulharmos em outras de maior importância.
33
Janto lhe martelou, que o pobre rústico sc determinou a sair com ele.
Capítulo
I I I
Da importância da ilusão na constituição da
subjetividade e da realidade
A companhemos, agora, Dom Quixote, em sua defesa da leitura das histórias da Cavalaria Andante e da importância da imaginação:
‘N ão quero alargar-me mais nisto, pois daqui se pode coligir que qualquer parte que 
se leia de qualquer história de cavaleiro andante há de causar gosto e maravilha a 
quem a ler. Creia-me Nossa M ercê, e, como já lhe disse, le ia e s t e s liv ro s , e v erá 
c o m o lh e d e s te rra m a m e la n c o lia e lh e m e lh o ra m a c o n d iç ã o , s e 
c a s o a tiv er m á E u de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro andante, 
sou bravo, comedido, liberal\ bem-criado, generoso, cortês, auda% brando, paciente, 
sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos, e ainda que há tão pouco tempo 
me vi metido dentro de uma jaula , como se fosse doido, espero, pelo valor de meu 
braço, ser dentro de poucos dias rei de algum reino, onde possa mostrar o liberal 
agradecimento que o meu peito encerra ...”. (Cervantes - 1605, p. 291; grifo 
nosso).
Dom Quixote não tem dúvida do bem que lhe fizeram as leitu­
ras, e o ter-se tornado cavaleiro andante deu novo sentido à sua vida. 
Ele defende que a leitura dos romances de cavalaria tem um papel 
importante na transformação do humor das pessoas que os leem. Po­
deriamos dizer, então, que a imaginação seria capaz de transformar
um humor melancólico em um sentimento de maior vitalidade. Isso 
parece ser ainda mais marcante, quando o amo decidiu tornar-se mem­
bro da Andante Cavalaria. As características e o refinamento desses 
cavaleiros passam a fazer parte da vida de Dom Quixote. Há uma 
verdadeira mutação a partir do momento em que o velho fidalgo 
decide adotar os princípios desta tão honrada Ordem, como parâmetro
37
Klcber Duarte Barretto
para sua existência. Trata-se de uma nova organização de se/f4 e uma 
nova maneira de estar no mundo.
Segundo Winnicott, o ser humano nasce com um potencial
*
para alucinação. E graças a esse potencial alucinatório que o bebê 
criará sua mãe, quando é possível a ela colocar-se ali onde ele a alucinou. 
Isso quer dizer que, se a mãe é capaz de compreender as necessidades 
do seu bebê e satisfazê-las sem expô-lo a um período excessivo de 
privação, ele viverá a experiência onipotente de estar criando sua mãe, 
conseqüentemente, o mundo.
Nos primeiros meses de vida predomina, do ponto de vista do 
bebê, uma indiferenciaçào màe-bebê; ou melhor, entre eu e nâo-eu, 
pois o eu do bebê ainda não se constituiu enquanto entidade. Há uma 
indiferenciação de corpos, experiência que marca nossos primeiros 
meses de vida, mas que estará presente ao longo dela. Vejamos, como, 
cavaleiro e escudeiro possuem um só corpo:
— M uito me pesa, Sancho, que tenhas dito e continues a di^er que fu i eu 
que te tirei da tua choupana, sabendo tu muito bem que eu não ftq u ei em 
casa. Ju n to s saím os, ju n to s nos fom os, e ju n to s peregrinam os; correu-nos 
a am bos a m esm a fo rtu n a e a m esm a so rte; se a ti te m antearam um a 
ve\, a m im derrearam -m e cem ve%es, e é essa a única vantagem que te 
lev o .
— Isso era de rasção — respondeu Sancho — , porque, segundo Vossa M ercê 
di^ , m ais perseguem as desgraças os cavaleiros andantes do que os seus 
escudeiros.
— Enganas-te, Sancho — redargüiu Dom Q uixote — , porque lá dieçem: 
1quando caput d o l e t e t c .
O self pode ser compreendido como o resultado das potencialidades inatas 
da criança e o holding proporcionado pela mãe nos primeiros meses de vida. 
Constitui-se uma totalidade baseada nas operações do processo maturacional. 
Trata-se dc uma constelação psicológica organizada dinamicamente, dando 
ao indivíduo senso dc continuidade e sentido de vida. K a personalidade orga­
nizada como um todo.
38
Etica e t é cn i ca no acompanhamento t erapêu t i co
— E u cá não entendo outra língua senão a m inha — respondeu Sancho.
— Q uero di%er —* tornou D om Q u ixo te ~ que, quando dói a cabeça, 
todos os membros nos doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou a tua 
cabeça e tu és parte de m im , visto que és meu criado; e p o r este motivo o 
m al que me toca ou me tocar há de doer a ti, e a mim o teu.
— A .ssim devia ser — disse Sancho — , mas quando me mantearam como 
m embro estava a m inha cabeça, que era V ossa M ercê, alapardada a ver­
me voar pelos ares, sem sentir dor algum a; e, se os m em bros têm obriga­
ção de se doer dos m ales da cabeça, devia ela ter obrigação de se doer dos 
m ales deles.
— Q uererás ditçer agora, Sancho — respondeu Dom Q uixote — , que me 
não doía quando te m antearam ? e se o di^es, não o digas nem o penses, 
p o rq u e m ais d or sentia eu no m eu esp írito , de que tu no teu corpo A 
(Cervantes - 1615, p. 321.)
Há grande reticênciade Sancho em acreditar que os corpos de 
cavaleiro e escudeiro formam uma unidade, onde o primeiro seria a cabe­
ça, e o outro, os membros. Interessante esta divisão corporal onde cabe 
ao amo o pensar e o decidir, enquanto, ao escudeiro o executar e o agir. 
Existe uma divisào clara de tarefas e atribuições, mas à queixa de Sancho 
Pança de que só a ele cabia a dor quando o mantearam, Dom Quixote 
aponta para uma outra dimensão desta unidade. A fusão dos corpos se dá 
através de uma identificação empática com o corpo do outro a dor 
pode não ser sentida no corpo, mas sim no espírito. De acordo com o 
amo, a dor corporal é distinta da dor psíquica, sendo esta última, 
sempre mais doída que a outra.
No AT, é comum observarmos esta indiferenciaçào de corpos 
entre acompanhante e acompanhado. Perdemos as fronteiras corpo­
rais, e podemos, em um momento, estar dentro do corpo do paciente 
— segundo sua perspectiva e/ou nossa também por que não?! — , em 
outro momento, é ele que nos habita. Freqüentemente, tem-se abor­
dado esse fenômeno, como um chamado do paciente (psicótico, por 
exemplo) à indiferenciaçào. Esta apreensão da situação aponta para
39
Klcbcr Duarte Barretto
uma perspectiva de que se deve combater a mdiscriminação de cor­
pos, algo que só pode nos confundir e fazer-nos perder o rumo. Pen­
so que esta confusão é um risco e, ao mesmo tempo, uma possibilida­
de de compreender a subjetividade do paciente; é uma forma de co­
municação primitiva. Dentro de uma perspectiva winnicottiana, essa 
indiferenciaçào não só é inevitável como necessária, a fim de que se 
possa ajudar o paciente no seu desenvolvimento. Trata-se da possibi­
lidade do terapeuta sustentar a indiferenciaçào quando necessária, sem 
perder sua capacidade de discriminação. Espero que essa posição fi­
que mais clara no decorrer do capítulo.
A esse período, em que predomina a indiferenciaçào e fusão de 
corpos, Winnicott chamou de período de ilusão. Isso implica que, do 
ponto de vista winnicottiano, a onipotência deve ser satisfeita, é fun­
damental que o bebê experiencie a ilusão de criar o mundo para que, 
futuramente, possa viver criativamente.
A mãe, que inicialmente é mãe-ambiente — porque índiferen- 
ciada — pode vir a ser a primeira criação do bebê, se a relação do par 
ocorrer satisfatoriamente. Para que esta experiência de ilusão aconte­
ça, algumas condições precisam ser satisfeitas por parte do meio am­
biente em relação ao bebê: a mãe precisa se adaptar ativamente às 
necessidades do recém nascido. Ela vive um processo regressivo que 
Winnicott denominou preocupação materna primária. Esta se expressa 
por uma uma devoção3 ao recém nascido, há toda uma relação de 
identificação com o bebê que facilita a relação de cuidado. Esse tipo 
de experiência só é possível se todo o processo identificatório e re­
gressivo não coloca em risco a identidade materna. A mãe precisa ter 
recursos psíquicos para sentir que seu ser não está ameaçado. O ambi­
ente terá grande importância, pois tem de oferecer todo um amparo a 
essa mãe, o qual implica em uma função semelhante àquela exercida 
pela mãe com seu bebê. Quando esses aspectos são garantidos, haverá 
grande possibilidade de uma adaptação ativa às necessidades do bebê.
Winnicott ressaltava a devoção exatamente por ser uma capacidade que não 
depende da dimensão intelectual. \l muito mais um movimento cmpático.
40
Efica e técnica no acompanhamento terapêutico
Caso contrário, temos aqui um ponto focal para o estabelecimento 
das psicoses. Winnicott costumava afirmar que o bebê nào existe sem 
a mãe -— ou alguém que exerça essa função — , pois no início da vida 
temos uma dependência absoluta do meio ambiente. Se a experiência 
de ilusão foi satisfatória, o bebê é capaz de criar um objeto subjetivo 
que se desenvolve graças à adaptação mencionada anteriormente. O 
estabelecimento desse objeto subjetivo é fundamental no desenvolvi­
mento da criatividade do sujeito. Em situações em que esse processo 
não ocorreu ele buscará ao longo da vida uma oportunidade de viver 
esta experiência, ou seja, a busca de poder experienciar uma relação 
em que o outro funcione como uma criação do próprio sujeito.
Segundo Winnicott, as necessidades do bebê não se restringem 
à dimensão da sobrevivência física; o ser humano, desde que nasce, 
tem necessidades psíquicas. Uma das necessidades mais importantes 
no início da vida, que precisa ser satisfeita para que haja a experiência 
de ilusão, é o ritmo. O ritmo seria o elemento que pnmeiramente 
apresenta o se lf do bebê, seria seu estilo, sua característica própria. 
Essa marca pessoal mostra-se através do intervalo e do ritmo das ma­
madas, do sono, da movimentação muscular, entre outros. Se o tem­
po do bebê nào for respeitado e satisfeito, ele não terá a possibilidade 
de viver a ilusão de criar o mundo (sua mãe-ambiente) e, assim, terá 
de adaptar-se ao meio ambiente. Dentro da teoria winnicottiana, esse 
fenômeno é conhecido como uma invasão do self que levará o bebê a 
uma reação e não mais criação. Abre-se, então, campo para a forma­
ção daquilo que se denominou falso self. Caso a vivência de ruptura 
de self devido às experiências invasivas, seja prolongada, o bebê po­
derá desenvolver um quadro autístico como forma desesperada de 
lidar com o horror de estar vivo.
Na experiência de invasão dá-se uma perda de sentido do ser, o 
qual só se resgata através do isolamento. Caso essas experiências de 
invasão sejam muito intensas e/ou freqüentes, poderão levar o bebê 
ao abandono do contato com a realidade externa, refugiando-se no 
mundo subjetivo. Temos então os casos de autismo. Se, por outro 
lado, as experiências de invasão nào foram tão disruptivas, elas exigi­
rão do bebê um movimento reativo, ou seja, ele reagirá ao ambiente
41
Klebcr Duarte Barretto
adaptando-se a ele e não mais criando-o. Como dissemos anterior­
mente, forma-se, a partir de então, o falso self Essa seria a tentativa de 
conseguir alguma organização — mesmo que através de uma dissocia­
ção — marcada por uma submissão ao meio ambiente. A existência 
do falso self teria duas funções: articular o sujeito ao mundo e prote­
ger o self verdadeiro, ocultando-o. Este último só pode ser vivido em 
segredo, em uma vida interior secreta.
As experiências de desencontro na comunicação mâe-bebê 
(invasivas e conseqüentemente disruptivas) podem gerar buracos no self 
em formação, Esses buracos seriam necessidades que não puderam ser 
satisfeitas e/ou experiências que não puderam ser simbolizadas pelo 
meio ambiente. As psicoses resultariam, dentro da perspectiva winni- 
cottiana, de necessidades básicas não satisfeitas levando a dimensões 
da existência não simbolizadas. O bebê pode até se adaptar razoavel­
mente bem do ponto de vista social, mas não terá disponível certas 
funções psíquicas. O trabalho clínico com esse tipo de paciente exigi- 
ria do terapeuta toda uma adaptação ativa às suas necessidades para 
que, através da confiança no vínculo, ele possa experienciar pela pri­
meira vez algo que não lhe foi possível no seu desenvolvimento emo­
cional primitivo. Trabalho que implica em sustentar (to hold) todo 
um vínculo de indiferenciaçâo no qual o paciente vive uma depen­
dência absoluta do terapeuta.
A partir das formulações de Winnicott e de autores como Khan, 
Little, Milner, entre outros, passou-se a compreender o papel da ilu­
são não só como um fator fundamental na gênese do psiquismo hu­
mano, como também um elemento indispensável para o processo de 
simbolizaçào; que é necessário para a criatividade, ou seja, o viver 
criativo. Eles reivindicam aos sonhos não só o caráter de realização
de desejos, visão predominante no pensamento psicanalítico, mas tam­
bém o j'tatus de um pensamento, regido por uma lógica sincrética, 
mais comum às expressões artísticas. O sonho deixa de ser lugar ex­
clusivo da realização de desejos reprimidos, mas é, também, lugar de 
expressão de apreensões inconscientes do mundo e de si mesmo. As­
sim, para os analistasdo Grupo Independente da Escola Inglesa de 
Psicanálise, a imaginação é fundamental na constituição da subjetivi-
42
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
dade e da própria realidade. Milner, tal como o poeta e pintor Blake, 
afirma que o que diferencia a espécie humana dos outros animais é a 
imaginação.
Retomando a questão da ilusão e da onipotência, apresentada 
anteriormente, gostaria de discuti-la em relação à prática do AT. Um 
aspecto que sempre chamou a atenção da equipe de AT à qual perten­
ço foi a experiência de onipotência vivida pelo par acompanhante- 
acompanhado. Muitas vezes, essa vivência colocava a dupla em situa­
ções bastante perigosas. Ao mesmo tempo que se validava a onipo­
tência como algo inerente ao vínculo, procurava-se, nas supervisões, 
ficar atento a esse processo e, no momento adequado, poder colocar 
limites no acompanhante.
Durante alguns anos — especialmente 87, 88 e 89 — dizia-se que 
o acompanhante teria de estar disponível para viver uma paixão, que ca­
racterizava o vínculo no AT — pelo menos nos períodos iniciais. Inúme­
ras vezes, lidou-se com o fato de o paciente querer ficar apenas com 
um acompanhante e abandonar o restante do tratamento, pois o at 
era tudo que ele queria e bastava. Algo que preocupava ainda mais 
quando o acompanhante compartilhava a mesma crença. O fenôme­
no por nós (membros da equipe) denominado paixão, penso estar 
sendo entendido nesse trabalho como período de ilusão, onde não há 
diferenciação de corpos, pelo menos para o bebê ou para o paciente e, 
às vezes, até para o acompanhante.
0
E necessário que o terapeuta sustente esse tipo de experiência, 
na perspectiva winnicottiana, a fim de que através dela o paciente 
possa desenvolver e/ou (r)estabelecer funções psíquicas que na sua 
história de vida ficaram comprometidas. Entende-se que os fenôme­
nos psicóticos se originam em falhas na comunicação bebê-meio am- / 
biente nos momentos mais primitivos do desenvolvimento emocio­
nal, onde ainda não existia a diferenciação eu - não-eu. Dessa forma, é 
bastante remota a possibilidade de retomada do desenvolvimento psí­
quico a não ser que se forneça ao paciente esse tipo de experiência e 
que seja possível, através de uma compreensão acompanhada de uma
43
Kleber Duarte Barretto
adaptação ativa às necessidades do paciente, à simbolização da falha 
ambiental. Sendo que essa simbolização não se restringe à fala.
Diz respeito à vivência do paciente ser encontrado nas experi­
ências que jamais foram compartilhadas com outro ser humano e po­
der, então, eventualmente, identificar-se com a cultura.
A meu ver, parece mais profícuo entendermos o fenômeno de 
indiferenciaçào, por parte do acompanhante, desde uma perspectiva da 
devoção (preocupação materna primária) onde nosso ser se ocupa das 
necessidades do outro. A paixão aponta para a intensidade das emo­
ções presentes no vínculo, porém, enfatiza o elemento erótico que 
nem sempre está presente. E claro que não se deve negar a dimensão 
da sensualidade existente no vínculo, mas nem sempre é da ordem do 
erótico. Vale lembrar a distinção que Ferenczi (1966) faz entre a lin­
guagem de ternura — que contempla uma sensualidade — e a lingua­
gem da paixão, marcada pelo erotismo e pela intenção sexual (sedu­
ção). Digo isso por observar que, com certa freqüência, fazem-se indi­
cações de acompanhamento terapêutico em que o acompanhante ocupa 
o lugar de um(a) namorado(a) em função de se acreditar que através 
de uma erotizaçào, o paciente possa sair da estagnação em que se en­
contra. Outro fator que parece contribuir para se privilegiar esse tipo 
de indicação é o fato de que acompanhante e acompanhado fazem 
programas juntos. Penso que, se a paixão passa a ser a característica 
do vínculo para o at, estamos diante de uma distorção da relação; esta 
deixa de estar em função do desenvolvimento psíquico do acompa­
nhado para ser fonte de gratificações do narcisismo do acompanhan­
te.
Talvez fosse interessante poder ilustrar a importância da ilusão 
na subjetividade de uma pessoa através de dois exemplos. José, um 
paciente de 41 anos de idade, passou a comprar durex em papelarias. 
Inicialmente, em uma papelaria próxima à sua casa e depois em pape­
larias no bairro onde viveu grande parte de sua vida (infância e ado­
lescência). O tipo de durex comprado deixou de ser o mais simples e 
passou a ganhar ares de requinte - determinada cor e espessura — , que 
no caso iam se traduzindo no preço do produto. Essas transforma-
44
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
ções na compra do durex também se expressaram no uso que ele fazia 
do mesmo, ou pelo menos no uso que ele dizia fazer: no início, o 
durex funcionava como um acidinho, relembrando as baladas com 
LSD, depois foi utilizado como material de trabalho em seus “proje­
tos”. O fato é que esta história do durex já dura mais de três anos, o 
que faz com que José provavelmente tenha se tornado o maior coleci­
onador de durex na grande São Paulo. Em algumas ocasiões, tivemos 
a oportunidade de limpar e organizar seu apartamento e o curioso é 
que nos durex era expressamente proibido que eu mexesse. A posição 
da equipe de a ts que o acompanham (quatro membros) em relação à 
compra dessas fitas variou, chegando até a uma tentativa de proibição 
a fim de se empregar o dinheiro em outros passeios. Porém, a persis­
tência na compra nunca esmoreceu e até se intensificava em períodos 
de separação como férias e em momentos de forte angústia. Certo 
dia, uma das acompanhantes, já um pouco cansada da repetição do mes­
mo tipo de programa questionou-o sobre o durex, ao que ele respondeu:
0
— E o ponto do sonho!
A resposta parece sugerir a função que tal objeto tem ocupado na 
subjetividade de José: ponto de sustentação do sonho, do processo de 
ilusão. Apesar do acúmulo das fitas, parece não ser possível que inter­
rompamos a atividade de compra, pois isto podería significar o esmaga- 
mento do sonho para ele, neste momento de sua vida.
Outra situação ilustrativa ocorreu quando familiares de André 
- um rapaz com cerca de 14 anos na época e que apresenta um com­
prometimento intelectual — , diante da crença dele em coelhinho de 
Páscoa e papai Noel, resolveram fazer alguma coisa a fim de que ele se 
desse conta do engano em acreditar em tais seres com esta idade. A 
estratégia adotada foi a seguinte: ao se aproximar a Páscoa, sua tia fez 
questão de comprar os ovos com bastante antecedência e deixá-los 
expostos em uma bandeja na sala de jantar. Procurou-se ser o menos 
invasivo possível, assim deixou-se que ele descobrisse por si mesmo 
que lá estavam os ovos e que não haviam sido trazidos por coelhinho 
nenhum. Os dias foram se passando, a Páscoa se aproximando e André 
não “se tocava” da verdadeira face da realidade, cuja procedência os
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adultos bem sabiam, e continuava esperançoso pela chegada do 
coelhinho. Seus irmãos, inconformados com a situação, resolveram 
esclarecer, de uma vez por toda, a história. Chamaram-no à sala de 
jantar, apontaram os ovos que lá estavam há dias e começaram a ins­
truí-lo da inexistência de tal animalzinho pascal. André ouviu a argu­
mentação deles por um bom tempo sem se manifestar, até que em um 
determinado momento, levantou-se, dirigiu-se à porta e endereçou-se 
aos seus bem intencionados irmãos da seguinte maneira:
— Eu quero acreditar em coelhinho de Páscoa e me deixem 
acreditar em coelhinho de Páscoa!
A mensagem foi curta e grossa, e expressa com tamanha firme­
za que os deixou perplexos. Não tiveram tempo para réplica, pois 
estavam atônitos, mas isto nem seria necessário porque André batera 
a porta atrás de si ao deixar o sítio do parlatorio.
Como desfazer essas crenças de André, sem com isso, podar 
sua vida imaginativa? Como esclarecê-lo do engano, sem com isso, 
borrar o ponto do sonho? Penso que estamos em um terreno vital 
para todos os seres humanos, principalmente, para esse sujeito que se 
encontrava diante de um comprometimento

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