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1 ETICA Kleber Duarte B274e [ 11891092] A clínica psicanalítica, onde quer que ela seja exercida, põe sempre as questões técnicas sob a tutela da ética. O clínico, para resistir àquela vontade tão humana de fazer as coisas acontecerem rapidamente, para enfrentar e vencer aquela sen sação de que não está fazendo nada, deve sustentar-se numa clara visão teórica dos processos que assiste e isto, no fundo, vem estreitamente associado a certas atitudes básicas de respeito, atenção, capacidade de espera e de participação discreta nesses processos. Quanto mais de- sestruturados e móveis são os exer cícios da clínica, quanto menos con vencionais — e supostamente sim ples — são os "procedimentos" a serem "aplicados", mais avulta a importância dessa dimensão ética (e teórica). O acompanhamento tera pêutico é uma dessas situações. O trabalho de Kleber Duarte Barretto é um precioso exemplo do que precisa ser considerado e arti culado para que o acompanhamen to terapêutico de pessoas profun damente tomadas pelo sofrimento psíquico se mantenha eqüidistante tanto de um intervencionismo diri- gista onipotente quanto de um mero passa-tempo. N o seu texto, ele consegue aproximar o leitor do cotidiano do acompanhamento terapêutico com tudo que este comporta de desafio, surpresa, drama e ... hilariedade. Este cotidiano, contudo, vem sem pre articulado a excelentes contra pontos teóricos nos quais o pensa mento de Donald Winnicott é ex posto de forma claríssima e com rara precisão. Este contraponto, que poderia, em mãos menos há beis, parecer postiço e impertinen- te, é facilitado pelo grande achado do texto: o de se apoiar nas andan ças de D. Quixote e nas suas singu lares relações com o escudeiro San- cho Pança. Nada mais oportuno para servir de espelho às andanças pela vasta cidade desta dupla for mada pelo acompanhante terapêu tico e seu acompanhado, dupla na qual, exatamente como na imagi nada por Cervantes, ficam muitas vezes indistintos os limites entre lou cura e sabedoria, entre ingenuida de e malícia. O recurso ao grande romance renascentista traz ao texto de Kle- ber Barretto um elemento decisivo: o humor, a ironia. Sim, porque o sofrimento psíquico não pode ser enfrentado com o estupor nem ape nas com a compaixão lacrimejante; é necessária esta extraordinária li berdade interior que só um refina do senso de humor garante e ex pressa. A qui também, uma deter minada tonalidade afetiva, uma ati tude básica diante do humano e de suas mazelas — enfim, uma postu ra ética — é a condição para a es colha e elaboração de procedimen tos técnicos realmente eficazes. Teoricamente bem concebido, impregnado de experiências clínicas profundamente verdadeiras e mo- bilizantes, literariamente bem estru turado e, muitas vezes, engraçadís- simo, mas sempre banhado numa ironia generosa e libertadora, assim é o livro que o prezado leitor tem nas mãos. O que mais desejar? KLEBER D U A R TE B A R R ETTO Nascido em Itapira-SP. Formado pelo Instituto de Psico logia da USP, Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor da U N IP e responsável pelo estágio em Acompanhamento Terapêutico (A T) realizado pelos alu nos de graduação em Psicologia, Professor do Centro de Es tudos e Pesquisa em Psicanálise da Universidade São Marcos. Membro do LET-Laboratório de Estudos da Tr«. icionalida- de (PUC-SP). Luis Cláudio Figueiredo (PUC - USP) F i c h a C a t a l o g r á f i c a B a r r e t t o , K l e b e r D u a r t e E t t c a e t é c n i c a n o a c o m p a n h a m e n t o t e r a p ê u t i c o : a n d a n ç a s c o m D o m Q u i x o t e c S a n c h o P a n ç a . S ã o P a u l o : U n i m a r c o E d i t o r a , 1 9 9 8 . 2 1 0 p . B i b l i o g r a f i a ( C a t a l o g a d o p e l o S e r v i ç o d e B i b l i o t e c a d a U n i v e r s i d a d e S ã o M a r c o s ) U n i m a r c o E d i t o r a A v e n i d a N a z a r é , 9 0 0 0 4 2 6 2 - 1 0 0 - S ã o P a u l o - S P t e l . ( 0 * * 1 1 ) 2 7 4 - 5 7 1 1 r . 2 0 6 1 / F a x . ( 0 * * 1 1 ) 6 1 6 3 - 7 3 4 5 E m a i l : u n i m a r c o @ s e r v e r . s m a r c o s . b r h o m e p a g e w w w . s m a r c o s . b r E d i t o r : M a r c e l o P e r i n e E d i t o r a s s i s t e n t e : L u i z P a u l o R o u a n e t G r a v u r a d a C a p a : G u s t a v e D o r é D i a g r a m a ç ã o e c a p a : S i m o n e d e C a s t r o P i n h e i r o M a c h a d o R e v i s ã o : M a r e i a R o d r i g u e s N u n e s C o m i s s ã o E d i t o r i a l J o r g e C u n h a L i m a , C á s s i o M e s q u i t a B a r r o s , R o b e r t o G i r o l a , M y r i a m A u g u s t o d a S i l v a V i l a r t n h o , L u i z G o n z a g a B e r t e l l i , L u i z P a u l o R o u a n e t , J o ã o R o d a r t e , P a u l o N a t h a n a e l P e r e i r a d e S o u z a , C l a u d i a N e g r ã o B a l b y . I S B N 8 5 - 8 6 0 2 2 - 1 7 - 9 © U n i m a r c o E d i t o r a - I a E d i ç ã o - 1 9 9 8 © U n i m a r c o E d i t o r a - 2 a E d i ç ã o - 2 0 0 0 mailto:Emaihunimarco@server.smarcos.br http://www.smarcos.br ■ 4 G i l b e r t o S a f r a F i c h a C a t a l o g r á f i c a B a r r e t t o , K l e b e r D u a r t e É t i c a e t é c n i c a n o a c o m p a n h a m e n t o t e r a p ê u t i c o : a n d a n ç a s c o m D o m Q u i x o t e e S a n c h o P a n ç a . S ã o P a u l o : U n i m a r c o E d i t o r a , 1 9 9 8 . 2 1 0 p . B i b l i o g r a f i a ( C a t a l o g a d o p e l o S e r v i ç o d c B i b l i o t e c a d a U n i v e r s i d a d e S ã o M a r c o s ) U n i m a r c o E d i t o r a A v e n i d a N a z a r é , 9 0 0 0 4 2 6 2 - 1 0 0 - S ã o P a u l o - S P t e l . ( 0 * * 1 1 ) 2 7 4 - 5 7 1 1 r . 2 0 6 1 / F a x . 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í t u l o I I I D a i m p o r t â n c i a d a i l u s ã o n a c o n s t i t u i ç ã o d a s u b je t i v i d a d e e d a r e a l i d a d e ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................3 7 C a p í t u l o I V N o q u a l s e d i s c u t e m a l g u n s a s p e c t o s d o s o f r i m e n t o h u m a n o .................................................................. 4 7 C a p í t u l o V D o q u a l s e r e s s a l t a a f u n ç ã o d e h o l d i n g ...................................................................................................................................................................................5 7 C a p í t u l o V I D a q u e l a f u n ç ã o , m u i t a s v e z e s c o n f u n d i d a c o m a a n t e r i o r ( h o l d i n g J , p o r c a m i n h a r e m t ã o p r ó x i m a s q u e , c o m u m e n t e , n ã o g u a r d a m o s a s d e v i d a s d i s t i n ç õ e s : a c o n t i n ê n c i a .....................................................................................................................6 7 C a p í t u l o V I I N o q u a l s e t r a t a d a n ã o m e n o s i m p o r t a n t e f u n ç ã o d e a p r e s e n t a ç ã o d e o b j e t o .................................................................................................................................................................................................................................................................8 7 C a p í t u l o V I I I N o q u a l s e a b o r d a a f u n ç ã o d e m a n i p u l a ç ã o c o r p o r a l { h a n d l i n g ) e o c o n t a t o c o m a s n e c e s s i d a d e s c o r p o r a i s .............................................................................................................. 9 9 C a p í t u l o I X D o v a l o r d a d e s i l u s ã o , o u a i n d a , d a c a p a c i d a d e d e d i s c r i m i n a ç ã o : r e a l i d a d e s u b j e t i v a e r e a l i d a d e c o m p a r t i l h a d a ........................................................................................................................................... 1 0 9 C a p í t u l o X O n d e s e d i s c u t e a f u n ç ã o d e i n t e r d i ç ã o ........................................................................................................................................................................... 1 1 7 C a p í t u l o X I D a n ã o m e n o s v a l i o s a f u n ç ã o d e m t e r l o c u ç ã o d o s d e s e j o s e a n g ú s t i a s ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 2 9 C a p í t u l o X I I D a i n t r i n c a d a e s u t i l f u n ç ã o d e d i s c r i m i n a ç ã o d e c a m p o s s e m â n t i c o s ..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 3 5 C a p í t u l o X I I I N o q u a l s e r e f l e t e s o b r e a f u n ç ã o e s p e c u l a r e a e m e r g ê n c i a d a e x p e r i ê n c i a e s t é t i c a ............................................................................................................................................................................................................................................................................ 1 4 3 C a p í t u l o X I V D a q u e l a n ã o m e n o s a p a z i g u a d o r a f u n ç ã o d e a l i v i a r a s a n s i e d a d e s p e r s e c u t ó n a s ................................................................................................................................................................................................................................................... 1 5 1 C a p í t u l o X V Q u e t r a t a d a f u n ç ã o d o a c o m p a n h a n t e c o m o m o d e l o d e i d e n t i f i c a ç ã o ...............................................................................................................................................................................................................................................................................................1 6 3 C a p í t u l o X V I O n d e s e a d e n t r a n o c a m p o d a t r a n s i c i o n a l i d a d e e s e d i s c u t e a p a r t i c i p a ç ã o d a p e s s o a d o t e r a p e u t a n o t r a b a l h o c l í n i c o ......................................................................................... 1 7 1 C a p í t u l o X V I I E m q u e s e o b s e r v a m a s t r a n s f o r m a ç õ e s o c o r r i d a s e m S a n c h o P a n ç a a p a r t i r d a c o n v i v ê n c i a c o m D o m Q u i x o t e e v i c e - v e r s a ; e o u t r a s c o n t a s m a s .............................................................................................................................................................................................................................................................................1 8 3 C a p í t u l o X V I I I D a f u n d a m e n t a ç ã o d o A T c o m o u m c a m p o d o e x p e r i e n c i a r e c u j a t é c n i c a p r i v i l e g i a d a d e i n t e r v e n ç ã o é o m a n e j o ........................................................................................................ 1 9 5 C a p i t u l o X I X Q u e t r a t a d a s r e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s 2 0 7 P R E F Á C I O A c o n c e i t u a ç à o e l a b o r a d a p o r W i n n i c o t t s o b r e o b j e t o s e f e n ô m e n o s t r a n s i c i o n a i s d e m a n d a q u e s e t e n h a , n a s i t u a ç ã o c l í n i c a , p r i n c í p i o s e a t i t u d e s d i f e r e n t e s d a q u e l e s t r a d i c i o n a l m e n t e a d o t a d o s n a c l í n i c a p s i c a n a l í t i c a . A s c a r a c t e r í s t i c a s b i o l ó g i c a s e a s p o t e n c i a l i d a d e s p s í q u i c a s d o b e b ê f a z e m c o m q u e e l e n e c e s s i t e d e u m t i p o d e c u i d a d o q u e s ó p o d e r á s e r m i n i s t r a d o p o r a l g u é m q u e e s t e j a , f r e n t e a e l e e a o s e u d e s e n v o l v i m e n t o , e m u m e s t a d o d e d e v o ç ã o e d e r e l a ç ã o e m p á t i c a . O b e b ê t e m , d e s d e o i n i c i o d e s u a v i d a , u m a s i n g u l a r i d a d e , q u e s e a p r e s e n t a p e l o s e u r i t m o b i o l ó g i c o , s e u p o t e n c i a l m u s c u l a r , p e l a m a n e i r a c o m o o s d i v e r s o s o r g ã o s d o s s e n t i d o s s e a p r e s e n t a m e s e d e s e n v o l v e m . E f u n d a m e n t a l q u e e s s a s c a r a c t e r í s t i c a s s e j a m c a p t a d a s e i n t e g r a d a s n a m a n e i r a c o m o e l e s e r á c u i d a d o p e l o o u t r o . E v i d e n t e m e n t e , o o u t r o e s t a r á , t a m b é m , p r e s e n t e c o m s u a s c a r a c t e r í s t i c a s , c o m s u a h i s t ó r i a , c o m s u a c u l t u r a . O i m p o r t a n t e é q u e e s t a r e l a ç ã o s e c o n s t i t u a d e t a l fo r m a q u e p o s s i b i l i t e a o b e b ê e x i s t i r c o m o s e r , e n ã o s ó c o m o o r g a n i s m o b i o l ó g i c o . I s t o s i g n i f i c a q u e o b e b ê p o d e s e r r e c o n h e c i d o p e l a m ã e e p o d e i n s c r e v e r a s s u a s c a r a c t e r í s t i c a s n a s u b j e t i v i d a d e d a m ã e , o q u e l h e p e r m i t e d e s e n v o l v e r u m s e n t i d o d e c o n ü n u i d a d e e u m c e r t o e s ü l o d e s e r . E s t e s d i n a m i s m o s c o n s t i t u e m u m f e n ô m e n o e m q u e o b e b ê e o o u t r o v i v e m e m u m e s t a d o e m q u e n ã o f a z s e n t i d o f a l a r e m s u j e i t o e o b j e t o , m a s s i m e m u n i d a d e d e s e r . T e m o s e n t ã o o e s t a b e l e c i m e n t o d a s i t u a ç ã o d e i l u s ã o , n a q u a l o q u e é n e c e s s i t a d o é e n c o n t r a d o e a p a r e n t e m e n t e c r i a d o . T r a t a - s e d o n a s c i m e n t o d a r e a l i d a d e s u b j e t i v a , r e s p o n s á v e l p e l o e s t a b e l e c i m e n t o d o s e r d o b e b ê n o m u n d o h u m a n o . E i m p o r t a n t e e s c l a r e c e r q u e a s i t u a ç ã o d e i l u s ã o a s s i n a l a d a p o r W i n n i c o t t n ã o t e m r e l a ç ã o c o m o c o n c e i t o d e i l u s ã o u t i l i z a d o n a p s i q u i a t r i a . A i l u s ã o n a p s i q u i a t r i a é e n t e n d i d a c o m o u m d i s t ú r b i o p e r c e p t i v o e m q u e u m o b j e t o d a r e a l i d a d e é d i s t o r c i d o e v i s t o p e l o i n d i v í d u o d e f o r m a s u b j e t i v a , a o p a s s o q u e a i l u s ã o d e W i n n i c o t t c r i a a p o s s i b i l i d a d e d e s e c o n s t i t u i r o s e n t i d o m e s m o d e r e a l i d a d e . 7 Klebcr Duarte Barretto À medida que o bebê prossegue em seu processo maturaciona! vai havendo a possibilidade de que ele possa discriminar o si-mesmo do outro, o que permite, gradualmente, que ele possa não só existir no mundo humano, mas ser com outros humanos. Surgem, então, as condições para a entrada na realidade compartilhada. * E interessante observar que a ilusão vivida no primeiro estágio do processo maturacional vai sofrendo metamorfoses. Não é possível ir em direção à realidade compartilhada sem que se possa encontrar nela algo de si-mesmo. Temos aqui o fenômeno de ilusão a serviço da constituição e manutenção da realidade compartilhada, Da mesma forma, em determinado momento é possível criar-se uma terceira re alidade: a intermediária. Esta terceira realidade chamada por Wínnicott de transicional permite que o indivíduo possa suspender o julgamen to do que sou eu ou o outro, do dentro e do fora; do passado, do presente e do futuro, do imaginado e do acontecido. Abre-se o cam po para o jogo, o faz de conta, o era uma vez, e para o repouso ativo. O ser do homem cria-se e recria-se neste espaço intermediário em formas artísticas através das palavras, imagens, sonoridades, tudo o que puder ser utilizado como meio de constituir a sua experiência existencial. O mundo na área intermediária não é só o lugar do encontro com o outro, mas também consigo mesmo, com o porvir e com o que nunca existirá. Nele temos um espaço privilegiado de interven ção em que os diferentes elementos da organização do self podem ser trabalhados ou mesmo constituídos. O fato é que nem sempre o paci ente tem a possibilidade de funcionar nesta área, o que significa que o profissional precisará dispor desta capacidade para trabalhar com os aspectos do self de seu paciente. Wínnicott já afirmava que, se o paci ente não pode brincar, o primeiro trabalho do analista será ajudá-lo a vir a brincar. Quando trabalhamos dentro da área dos fenômenos transicio- nais, podemos nos servir do mundo como campo de jogo. Nesta pers pectiva, a rua, os elementos do cotidiano, as situações presenciadas em nosso caminhar pela cidade, os objetos da cultura, podem ser ins- 8 trumentos de intervenção para a mobilização e/ou constituição do self do paciente, desde que o profissional tenha esta habilidade. Rom pe-se o espaço do consultório, ampliando-o, para ir em direção ao mundo, o espaço onde o acontecer humano se dá. Kleber Barretto, através deste trabalho, apresenta de maneira consistente e divertida como ocorrem esses processos em sua prática. Trata-se de um livro em que o leitor terá a oportunidade de conhecer mais profundamente os princípios da clínica winnicottiana, através de situações clínicas e o mais interessante: tendo ele mesmo uma ex- periência no campo dos fenômenos transicionais. Kleber soube pelo uso de um objeto cultural, a obra de Cervantes, trazer o leitor para uma situação de ilusão, em que, ao acompanhar as aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança, ele vai acompanhando as situações teórico- clínicas do autor do livro. O leitor é capturado para tornar-se, tam bém, um participante das mesmas aventuras clínico-literárias narra das ao longo do texto. Importante assinalar, ainda, que podemos ir percebendo ao lon go da leitura como a função de acompanhante terapêutico desloca-se pelos participantes da aventura. Em um momento o acompanhante é o profissional, em outro, o assim chamado acompanhado, em outros ainda, o acompanhante será Dom Quixote ou Sancho Pança. Desta maneira, vemos acontecer o fenômeno transicional: a função não é possuída por ninguém, ela se dá ali onde ela pode acontecer. Penso que Kleber traz com este livro uma contribuição funda mental, não só para o campo do acompanhamento terapêutico, apre sentando um modelo de trabalho nesta área, firmemente conceitua do, como também para o campo da psicanálise. Winnicott, com os conceitos que formulou, tem obrigado o psicanalista a repensar o seu trabalho clínico. O fato é que o analista, na perspectiva winnicottiana, intervém não só pela palavra, mas também com os objetos do mun do, da cultura. Não só acompanha, mas é acompanhado. Outro fato que deve ser assinalado é que este livro foi original mente a dissertação de mestrado de Kleber. Com isso quero chamar a atenção do leitor para um modelo profundamente original de realização Etica e técnica no acompanhamento terapêutico 9 Kleber Duarte Barretto de um trabalho acadêmico. O estilo de seu autor, sua experiência de vida fazem parte da sua estratégia de investigação e da construção do texto acadêmico, sem que o rigor necessário a um trabalho deste por te seja perdido. Kleber costuma citar em conversas com seus amigos um trecho de um dos diálogos do filme de Wim Wenders “Asas do Desejo”: Para que se possa ser selvagem é preciso ser capaç de manter a seriedade! Penso que esta frase sintetiza o estilo de ser de Kleber que o leitor poderá saborear ao longo deste livro. Convido o leitor a montar em seu alazão e cavalgar com nossos amigos pelos campos da transicionalidade. Boa Viagem! São Paulo, 9 de fevereiro de 1998. Gilberto Safra 10 “M as o que há de louco no m undo, eis o que D eus escolheu para confundir os sábios; o que há de fraco no m undo, eis o que D eus escolheu para confundir a força ; o que no m undo é sem nome e o que se desprezay eis o que D eus escolheu.. ” (1 Cor 1,27-28) Advertência Caro leitor, cabe a mim fazer-vos uma advertência sobre as histórias que se seguirão e esta vem a ser a seguinte: Tudo que aqui se diga e que vos cheirar mais a confusão...Tudo que aqui se diga e que vos desperte um gosto de dogmatismo...Tudo que aqui se diga que vos to que de maneira parcial e reducionista...Tudo que vos sal tar aos olhos como despropósitos...Tudo isto crediteis na conta deste andarilho completamente perdido, que se atre veu a relatar andanças por campos que apenas vislumbrou...Tudo que aqui se diga a respeito do valoro so Dom Quixote dela Mancha e de seu fiel escudeiro Sancho Pança, sirva — somente — para aumentar a glória e a admiração por ambos conquistadas ao longo dos sécu los. Caso em algum momento, caro leitor, tiverdes im pressão contrária a esta, favor lembrar-vos de que se tra tam de histórias contadas por alguém cujos limites e ína- bilidades e insensibilidade, muitas vezes, o cegam para o verdadeiro valor dos pequenos grandes gestos... Viram o homem andar, umas vezes com passeando, outras parar, arrimado sossegada postura, à sua lança. CAPÍTULO No qual se introduz o percurso sinuoso desta caminhada N estas andanças, refletirem os sobre a prática do acom panhamento terapêutico (AT)1 utilizando, principalmente, de um referencial psicanalítico winnicottiano. As formulações de Win- nicott, contribuem bastante, a meu ver, no manejo clínico. Este últi mo consistiría nas intervenções, no enquadre ou no cotidiano de um sujeito que visam a possibilitar a simbolizaçào de uma questão exis tencial e/ou o desenvolvimento de alguma função psíquica. O tema do manejo será mais discutido no Capítulo X V III. As formulações desse autor também fundamentam teórica e conceitualmente este novo procedimento clínico com o qual nos ocuparemos. A fim de enriquecer as discussões, nos serviremos de exemplos clínicos de diversos acompanhantes, de alguns psicanalistas e de quem vos escreve. Tenho a honra de comunicar-vos, como bem sabeis, que teremos a companhia do memorável cavaleiro andante Dom Quixote de la Mancha e de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Não deixaremos, é claro, suas montarias de lado: o inigualável Rocinante e o inesquecível ruço. Eles estarão aqui, para nos auxiliar a explicitar o que se passa na relação acompanhante-acompanhado. Eles estarão aqui, acima de tudo, para cum prir uma missão das mais importantes, qual seja a de amparar e acompa nhar este andarilho completamente perdido. Além dos pontos mencionados, percorreremos alguns aspec tos do desenvolvimento psíquico humano, a partir das funções ambientais necessárias para que uma subjetividade se constitua satis fatoriamente. Tentei abordá-las dentro de uma perspectiva evolutiva, Doravante utilizarei AT para designar acompanhamento terapêutico e at para acompanhante terapêutico. 17 Klcbcr Duarte Barretto ou seja, desde as mais básicas e fundamentais até aquelas que se tor nam significativas depois que o sujeito já trilhou todo um percurso em termos do seu desenvolvimento. Caro leitor, devo esclarecer-vos que nas páginas que se seguem náo encontrareis uma apresentaçào rigorosa e detalhada da história da loucura na cultura ocidental. Isto se deve, pelo menos, a dois motivos básicos: O primeiro é que o objeto de estudo deste trabalho nào é a loucu ra, mas sim o AT. Talvez, aqueles mais familiarizados com este campo e até aqueles que tenham ouvido falar brevemente sobre este procedimen to clínico, estejam pensando: mas como escrever sobre AT sem se deter na história da loucura? O surgimento do AT não está diretamente ligado ao tratamento das psicoses? A resposta à última pergunta é sim. Nào há como negar esta filiação e logo abordaremos este aspecto na breve história do AT. Entretanto, temos observado nos últimos anos que este tipo de trabalho vem se am pliando cada vez mais, possibilitando intervenções no campo da deficiên cia mental, drogadiçào, alcoolismo, depressão pós-parto, casos de aciden tados que necessitam de um apoio domiciliar especializado, recuperações cirúrgicas, terceira idade e também em casos onde há uma recusa e/ou contra-indicação de um trabalho terapêutico no consultório. Assim sen do, este livro tem como um de seus objetivos tentar fundamentar esta ampliação do campo do AT para além do trabalho em situações de crises psicóticas, fato que já ocorre na prática. O segundo motivo seria a resposta à pergunta levantada anteri ormente: mas como escrever sobre o AT sem se deter na história da lou cura? Pois é, algo inconcebível se tal assunto nào tivesse sido aborda do em outros trabalhos sobre esse campo. Nos dois livros já publica dos sobre AT2, o tema da história da loucura foi abordado com mai or cuidado. O leitor interessado poderá encontrar nestes livros boas Susana MAU li R c Silvia R liSN I/K Y (1985) c licjuipc dc AT do Instituto “A Casa” (org.) (1991). 18 referências bibliográficas para um aprofundamento no assunto, Quem vos escreve também já abordou este tema no artigo “Uma Proposta V de Visào Etica para o A T”, apresentado no II Encontro Paulista de Acompanhantes Terapêuticos; a partir dos trabalhos desse encontro, organizou-se um livro que aguarda publicação pela editora EDUC (1998). Assim sendo, para o momento, basta sabermos que a forma de interaçào, concepção e/ou tratamento da loucura variou e se trans formou ao longo dos séculos. Grosso modo, poderiamos dizer que existiu um período em que ela (loucura) fazia parte do convívio soci al. Este período foi seguido por aquele em que o confinamento pas sou a ser a principal forma de tratamento dos sujeitos ditos “loucos”. Ou seja, um período caracterizado por uma grande internação. Hoje em dia, estes sujeitos voltam, gradualmente, à convivência cotidiana com a família e à comunidade a que pertencem. Valéria a pena abordar, neste momento, como se constituiu historicamente a prática do AT. Ela é herdeira do movimento antipsi- quiátnco inglês, da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia institucional francesa. Este percurso está bem fundamentado na dis sertação de mestrado de Deborah Sereno (USP — 1996). Pelas infor mações que disponho, o AT surgiu no início da década de 70 em Bue nos Aires. Na Argentina, muitos psicanalistas estiveram ligados aos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, criaram novas funções para os agentes de saúde mental denominadas: auxiliares psiquiátricos e em outros lugares, a tendentes terapêuticos. As funções desses agentes fo ram o embrião daquilo que mais tarde foi denominado amigo qualifi cado e, posteriormente, acompanhante terapêutico. Isto ocorreu à medida que o trabalho foi se dando mais na rua, na casa do paciente e deixando a instituição psiquiátrica. O processo acima descrito teve suas influências no Brasil. A idéia do auxiliar psiquiátrico passou por Porto Alegre (Clínica Pinei) e, por sua vez, chegou às comunidades terapêuticas do Rio de Janei ro, principalmente, à Clínica Vila Pinheiros. Porém, no final da déca da de 70, com o declínio e fechamento das comunidades terapêuticas, os auxiliares psiquiátricos continuaram a ser solicitados por terapeutas e familiares que buscavam uma alternativa à internação. Esse traba É tica e técnica no acompanhamento terapêutico 19 Klebcr Duarte Barretto lho foi se solidificando, e hoje, eles se denominam acompanhantes psicoterapêuticos. Faz-se necessário esclarecer que essa atividade, em geral, era exercida por estudantes de psicologia, ciências sociais e medicina. Gra dualmente, o AT foi se constituindo como um recurso a mais no tratamento de pessoas em crises psicóticas. Dada a complexidade dos fenômenos dessas crises e o volume de angústia mobilizado, perce beu-se que as terapias tradicionais — individual, grupai e familiar, além dos remédios — não eram suficientes em determinados casos. À medida que esta atividade (AT) era cada vez mais requisita da, foi havendo uma especialização do acompanhante terapêutico. Não só estudantes, mas também psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros profissionais passaram a trabalhar como acompanhantes. O surgimento do acompanhamento terapêutico em São Paulo teve características um pouco diferentes, ao menos no que diz respei to à equipe de AT do Instituto “A Casa”. A idéia foi trazida por uma psicanalista argentina que fazia par te do grupo que implantou o hospital-dia em 1979. No entanto, essa função só foi utilizada em 1981 com a denominação de amigo qualifi cado. Após alguns anos, observou-se que o termo acompanhante terapêutico se adequavamelhor àquilo que estava sendo feito, além de evitar algumas confusões. O termo acompanhamento expressava uma função que implicava uma ação, uma intervenção junto a um outro sujeito, sendo portanto, mais adequado à tarefa que se estava realizando. Por outro lado, o uso da palavra “amigo” gerava confu sões, na medida em que dificultava a discriminação e a caracterização do vínculo entre paciente e esse profissional. Vivemos um período no qual o tratamento, o cuidado para com o outro ganha dimensões muito próximas do dia-a-dia, conside rando as potencialidades terapêuticas das atividades e vivências do * sujeito. E também com o objetivo de fundamentar esta visão que nos propusemos a relatar essas andanças. 20 E tica e técnica no acompanhamento terapêutico Partiremos, agora, para outras histórias não menos importan tes e interessantes. Cabe a mim a honra de apresentar-vos uma pessoa da mais alta estima, apesar de que provavelmente o conheceis ou com certeza já tendes ouvido falar dele. Pessoa a quem devo mui respeito pelos feitos perpetrados em prol dos mais necessitados, os quais lhe cobraram fama mundial: Na região de la Mancha vivia um fidalgo por volta dos seus 50 anos. “Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rostoy madrugador; e amigo da caça... # ...E pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero. ...E m suma, tanto n a q u e la s le itu ra s s e e n fra s e o u , que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe s e c o u o c é r e b r o , de maneira que c h e g o u a p e r d e r o ju íz o . E n c h e u - s e - lh c a fa n ta sia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo. A fin a i, rematado já de todo o juzjo , deu no mais estranho pensamento em que nunca jam ais caiu louco algum do mundo, e fo i: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fa^er-se cava leiro andante, e ir-se p or todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fam a. ” (Cervantes - 1605; pp. 29 e 30; gnfo nosso) 21 Klcbcr Duarte Barretto Este trecho apresenta algumas concepções de loucura que exis tiam na época em que tudo se passou: perda do juízo face a uma erupção imaginativa que, por sua vez, foi causada pela desidratação do cérebro do fidalgo, fruto do excesso de leitura. Acreditava-se, nes ta época, que a leitura de romances podia ser muito prejudicial à saú de das pessoas, especialmente das donzelas. Todas aquelas fantasias românticas nào haveríam de fazer bem aos miolos, pois desconectando- o da vida prática, colocava o sujeito em um mundo irreal. Sabe-se que a loucura sempre fez parte da experiência humana e a ela (loucura) sempre se atribuíram significados. Esta significação oscilou — e ainda oscila — de acordo com a concepção que se tem deste fenômeno. Existem diferentes perspectivas que divergem tanto naquilo que consideram formas de loucura, suas origens e caracterís ticas, quanto em relação à própria noção de loucura enquanto doen- ça. Era uma vez... em outro lado do mundo, por volta de 1910, na região de Itapira, cidade do interior paulista, nas vizinhanças de Mogi- Mirim, Amparo, Lindóia e Jacutinga; existia uma família que morava em um sítio. Eram pai, mãe, filhos e filhas. A mãe dera à luz a mais uma criança. Certo dia, seus familiares tiveram um grande choque ao vê-la segurando o bebê em cima do poço d’água, ameaçando jogá-lo buraco abaixo. A mãe havia enlouquecido, mas os familiares puderam interceder e salvar a criança. O grande drama que se instalou na família foi de que maneira poderiam cuidar da esposa e da mãe. O único hospital que tratava desse tipo de situação, na época, era o Juquerí em Franco da Rocha. O pai e outros parentes achavam que em Franco da Rocha ela ficaria muito longe da família, mas a preocupação maior era que ela fosse maltratada ou recebesse um tratamento desumano. A saída encontrada para o dilema foi mantê-la em casa, ou melhor, devido aos rompantes de agressividade, decidiu-se construir um aposento próximo à casa. Esse aposento simples não era muito grande, com janela e porta pequenos. E foi nesse aposento-cela que ela viveu o resto de sua vida, cerca de 26 anos. A filha mais velha cuidava da mãe nos tratos alimentares e de higiene pessoal como banho, cuidado com 22 É tica e técnica no acompanhamento terapêutico os cabelos e tudo mais. Esse aposento-cela, anos após a morte de sua moradora, deu lugar, por iniciativa da filha mais velha, a uma capeiinha com imagem de Nossa Senhora, santinhos e florezinhas de plástico. Uma capeiinha como tantas outras... Uma capeiinha dedicada a Ana Carolina de Oliveira, minha bisavó por parte de pai. Ainda nas cercanias de Itapira, nos começos deste século, um grupo de pessoas, inspirado pela caridade espírita-crista, preocupava- se com as condições em que viviam as pessoas que eles denominavam enfermos mentais. Eles (enfermos) viviam como indigentes pela cida de, alguns permaneciam presos ou amarrados na casa de seus familia res, como minha bisavó; e, os mais perigosos ou incomodativos eram levados para as delegacias. Devido aos maus tratos e às condições pre cárias, estes logo acabavam morrendo. Aquele grupo de pessoas caridosas se condoía das condições subhumanas a que eram submeti dos os enfermos e, movido pelo ideal da caridade cristã, via a necessi dade de se ter um local adequado para abrigar e cuidar daquele tipo de sofrimento. O grupo tentou durante anos dar corpo a esse ideal, mas as dificuldades eram inúmeras. Até que um casal resolveu doar um pequeno pedaço de terra para se iniciarem as construções. Enquanto isso, esse mesmo casal, que possuía família numerosa, dispôs-se a re ceber uma enferma em uma das casinhas que possuíam na chácara onde moravam. Estas casinhas eram destinadas a algumas famílias ca rentes que não tinham onde morar. A esposa do casal tivera a experi ência de cuidar da própria mãe que adoeceu (mentalmente) quando já estava velhinha, o que a “habilitava” a cuidar da enferma mental que chegara recentemente. O grupo se transformou e se ampliou, assim como aquilo que começou nos fundos de uma chácara, somados aos esforços e trabalhos de inúmeras pessoas deu origem ao que hoje leva o nome de Fundação Espírita Instituto “Américo Bairral”. Nome dado em homenagem a um dos idealizadores do projeto, que desencarnou, como dizem os espíritas, antes que o sonho tomasse corpo. O casal que cedeu parte da proprieda de inicial e que mais tarde iria empenhar todos seus esforços e patrimônio 23 Kleber Duarte Barrctto na consolidação daquele ideal, chamava-se Onofre Batista e Gracinda Batista. Onofre e Gracinda, juntamente com a maior parte de seus fi lhos, trabalharam muito para que um simples albergue se transfor masse em um hospital. Na verdade, as circunstâncias fizeram com que se transformasse em um grande hospital. Onofre era um dos en carregados de levantar fundos para a Instituição, o que fazia através de suas viagens como vendedor. Em trocados donativos era, no mais das vezes, obrigado a prometer uma ou mais vagas no que já ia se tornando um sanatório. Eis que, com o tempo, começou chegar a Itapira um grande fluxo de pessoas enfermas mentais. Pessoas que, na maior parte das vezes, eram abandonadas na cidade pela família ou chegavam de trem sem passagem de volta e apenas com a roupa do corpo. Onofre e Gracinda foram meus bisavós maternos que também não cheguei a conhecer pessoalmente. Pais de minha avó. Seu esposo, meu avô, mudou-se de Salto-SP para Itapira logo após o casamento e juntos trabalharam no hospital por muitos anos. Ela como enfermeira e ele como encarregado geral. Mais tarde, vieram a trabalhar, outros tantos anos, como enfermeiros na Clínica de Repouso Santa Fé, localizada na mesma Itapira. No início, meus avós moraram por muitos anos em uma casinha que fazia parte do hospital e foi nessa casinha que minha mãe menina e minha tia, ainda menor, passaram a infância. Mamãe menina cresceu e no colégio se apaixonou pelo profes sor de Educação Física, uns pares de anos mais velho e recém regresso à cidade. Digo recém regresso, porque esse jovem cheio de ideais era filho e fruto da mesma terra e ali retornara para plantar as sementes de seus sonhos: constituir família e difundir a prática desportiva na comunidade. Papai também correspondia com a mesma paixão àque la colegial, o que depois de alguns anos de namoro resultou em casa mento. Papai, dinâmico e idealista, além do trabalho no Ginásio e na organização de atividades desportivas comunitárias, resolveu implan tar um trabalho de esportes no Bairral — maneira como o hospital é conhecido na região. Esse trabalho com esportes para enfermos men 24 tais durou cerca de vinte anos, sendo que boa parte deie íoi realizado na Clínica Santa Fé. Nos hospitais aplicou a mesma filosofia de traba lho do Ginásio: atividades esportivas variadas, jogos amistosos, olim píadas, passeios campestres e acampamentos. Papai e mamàe tiveram quatro filhos: uma menininha; depois de dois anos, nasceu um menininho; e, passando um ano e poucos meses veio ao mundo outro menininho; e , finalmente, onze anos mais tarde tiveram outro menininho. Assim sendo, aquele que aqui rabisca é o menininho que por onze anos foi o sanduíche, o do meio. Esse menininho sanduíche que, — pensando agora, talvez nào fosse à toa - em tenra idade quando perguntado: “o que você vai ser quando crescer?”; sempre respondia: “salchicha”, para a diversão e deleite dos adultos presentes. Pois bem, esse menininho desde cedo era dado às aventuras, às incursões e excursões exploratórias por esse mundao. Papai também era dado às aventuras campestres. Ah!, meus avós maternos, de quando em quando, hospedavam pacientes ou ex- pacientes na própria casa, como forma de auxiliar nas suas recupera ções. Um deles, o Dito, tão próximo ficou que passou a fazer parte da família. Certo dia, ele contou para esse menininho sobre os macaqui nhos que viviam na Rua da Estação, a principal rua comercial da cidade. Essas histórias encheram-me a fantasia de curiosidade e vonta de de visitar sítio de tão rica vida selvagem a algumas quadras de onde minha família morava. E , assim foi que, no dia seguinte, logo pela manhãzinha, esse menininho desperta o irmãozinho e ambos dão vazão sem serem percebidos e ganham os campos da rua. Iam entusiasma dos ante a possibilidade de encontrar ao menos um macaquinho que fosse; quando, próximos à zoológica rua, foram avistados por seus avós que iam para a Clínica Santa Fé trabalhar. Estes levaram um susto e logo trataram de saber o que fazíamos ali tão cedo e tão sozinhos e tão longe de casa para crianças tão pequenas. Foi assim, caro leitor, que a diligência dos macaquinhos ficou interrompida, a apenas alguns metros de sítio tão interessante quanto fantástico. Graças aos bons ventos da fortuna, melhor desfecho teve a aven tura dos sapinhos, uns dois anos mais tarde. É isso mesmo, os sapinhos E tica e técnica no acompanhamento terapêutico 25 Klcbcr Duarte Barretto que a Natureza, na estação em que gosta de dar banho na terra e que os adultos chamam “das chuvas”; a Natureza presenteou a cidade, ou talvez apenas a região onde moravamos, com uma chuva de sapinhos. Choveram tantos sapinhos como nunca dantes havia chovido e como nunca se viu em nenhum dos anos seguintes. Uma verdadeira infestação de sapinhos pelas ruas e calçadas. Uma festa para nós, crianças, essa chuva de sapinhos. E assim foi que, mais cedo do que na campanha dos macaquinhos, acordei meu írmàozinho e nos munimos de saqui nhos plásticos para a coleta dos sapinhos. Alcançamos a rua sem que ninguém nos percebesse e partimos em direção à aventura. Nova mente, nossos avós nos encontraram a caminho do trabalho, só que desta vez, já estávamos há um bom tempo em campo e os saquinhos repletos daqueles serezinhos vindos do céu. A vida desse menininho foi marcada por essas e outras andanças. Algumas outras tereis a oportunidade, caro leitor, de compartilhar caso prossigais nessa caminhada. Assim, despeço-me com a esperança de que possais juntar-vos a nós — Dom Quixote e Sancho Pança e outros mais - nessas aventuras. 26 Capítulo II Onde se contam as motivações de tamanhas aventuras N este meio tempo, solicitou D om Q u ixo te a um lavrador seu vizinho, homem de bem ...e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe martelou, que o pobre se determinou a sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. Di%ia- Ihe entre outras cousas Dom Q uixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do p é para a mâo ganhasse alguma ilha, e o deixasse p or governador dela. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos, e se assoldadou p or escudeiro do fidalgo.” (Cervantes - 1605; p. 53) A promessa de Dom Quixote de tornar Sancho Pança governa dor de uma ilha parece ter sido a grande motivação para se juntar ao fidalgo. O desejo de se ver transformado de lavrador em governador significava uma mudança profunda na vida de Sancho: poder, prestí gio, riqueza e outras coisas do gênero. Talvez a intenção de se escudeirar não possa ser reduzida simplesmente à ganância, sem cairmos em gran de injustiça, pois Sancho Pança buscava dar melhores condições de vida à sua família; e, assim, abraçou a oportunidade oferecida por Dom Quixote, mesmo que isso implicasse em se afastar de seus entes queridos. Haveriamos de considerar também como um fator moti- vante a promessa de aventura e sonho que semeava a esperança de romper as cadeias de uma vida comum e previsível. O amo já havia partido uma vez de sua aldeia, mas retornou, a conselho de um hospedeiro, a fim de melhor prover-se para suas andanças: dinheiro e gêneros alimentícios. Dom Quixote pensou, entào, que seria interessante ter um escudeiro por companhia, assim como lera nos ro mances de cavalaria em que os cavaleiros andantes estavam sempre acom panhados por um ajudante de ordens. 2 7 Kleber Duarte Barrctto Minha grande motivação para me tornar um acompanhante terapêutico (ai) era a possibilidade de viver as aventuras que imagina va existirem nessa atividade. Imbuído principalmente desse espírito aventureiro, alistei-me para as fileiras do AT. Ouvi falar sobre o AT quando ainda cursava a faculdade de Psicologia. Achei interessante este tipo de atividade, embora as pessoas com quem conversava ques tionassem sua validade, pois, em sua opinião, esta função assemelha va-se à de “babá de psicóticos”1. Entretanto, algumas histórias conta das a respeito desse trabalho despertaram-me o desejo de experienciar esse tipo de relação terapêutica com um sujeito. Além da promessa de aventuras, outros motivos despertaram meu interesse. Em primeiro lugar, desde que decidi estudar Psicolo gia, tinha vontade de trabalhar com loucura. Sabia que somente uma experiência acadêmica não me satisfaria. Então, trabalharcom a lou cura era algo que desejava e considerava importante, pois imaginava que esse tipo de trabalho poderia me proporcionar um conhecimen to mais profundo do psiquismo humano e me colocaria mais em con tato com a singularidade do sujeito dito “louco”. Não podemos per der de vista a tradição familiar de quem vos escreve, no que tange ao trato e ao retrato da loucura. Lembro-me de um sonho que tive antes de começar a acompa nhar: “Estava acompanhando um rapaz. Um pessoal se reuniu para assis tir a um filme em seu apartamento. De repente, percebo que ele desapare ceu. Começo a procurá-lo desesperadamente. Entro no quarto dos pais e vejo que muitas coisas haviam sido quebradas. Revisto os armários e nada. No banheiro: coisas jogadas pelo chão, talco espalhado por todo lugar, espelho quebrado. Um verdadeiro estrago. Quando finalmente o encontro, dou-lhe uma gravata (chave de braço) e levo-o para a sala onde seria exibido o filme. Ao chegar à sala, vejo que tem muita gente e fico totalmente sem graça de estar segurando aquele cara pelo pescoço. Rapi damente solto-o.” Ksta cjuestão da comparação do at com “babá dc psicóticos” c “enfermeiro de luxo” é discutida em BARRKTTO (1996). 28 / Et?ca e técnica no acompanhamento terapêutico Esse sonho revela algumas questões que me mobilizavam na época: um temor de enlouquecer através de uma cnse de destrutividade; como empregar a agressividade para lidar com uma situação; submis são à opinião grupai, entre outras. Revendo anotações pessoais e tra balhos escritos naquela época, percebo que atravessava um período de vida em que se colocava mais fortemente a questão da agressividade/ destrutividade. Como lidar com elas? Como integrá-las às minhas experiências? Como utilizá-las na transformação do meu dia-a-dia? De certa forma, aquilo que me motivava ao AT talvez tivesse ecos na motivação de Sancho Pança, pois também ansiava por conseguir al gum governo sobre essa ilha vulcânica (dimensão da agressividade e da destrutividade) que me habitava; e que, por inúmeros motivos, tinha de ficar afastada. Qual a possibilidade de integrá-la ao território de meu ser sem colocar em risco minha integridade, minha sanidade, assim como meus vínculos sociais? Outro motivo da busca por essa atividade foi o fato do AT ser uma prática pouco conceituada. Havia apenas uma publicação sobre o assunto na época. A necessidade de sistematizar as experiências em termos teóricos interessava-me também, já que parecia tratar-se de um campo de trabalho aberto para investigações. A dimensão de lazer que estava conectada ao trabalho em AT me interessou em um primeiro momento. Um trabalho que implica va aparentemente em realizar um programa: ir ao cinema, a um bar , a um show ou talvez a uma viagem. Foi com estas expectativas, que fui selecionado para trabalhar na equipe de AT do Instituto C<A Casa”, em Maio de 1988. Uma história de muitas alegrias transformadas em euforia, muitas dificuldades transformadas em impotência, dores transforma das em sofrimento insuportável e grande vazio. Experiências difíceis que desaguaram nesse trabalho que agora vos apresento. Foram necessários alguns anos de experiência como at e como paciente em análise, para que realmente pudesse sentir aquela ativida de como trabalho. Alguns anos de trabalho, para que pudesse percebê- 29 Klcbcr Duarte Barretto lo como terapêutico. Digo terapêutico de mào-dupla, pois sempre percebi o quanto o acompanhamento era terapêutico para mim, na medida em que tocava em pontos desconhecidos e/ou reprimidos de minha subjetividade confrontando-me com minha própria loucura; e assim, incrementando o trabalho analítico. Demorei a me reconhecer um terapeuta. Observava os colegas, com mais anos de trabalho e com mais experiência em AT, denomi nando-se terapeutas e eu os invejava, pois aquela ainda nào era a mi nha vivência. Penso que se reconhecer terapeuta, ou melhor, reconhecer-se trabalhando é uma tarefa bastante árdua, que cada a t tem de empreen der. Tarefa árdua, porque no acompanhamento nào existem tantos elementos externos invariáveis que se constituam em um enquadre claro e definido para se apoiar e ter uma garantia, mesmo que aparen te, de que se trata de um trabalho. Estou me referindo às questões de enquadre em seus aspectos sensoriais: sala de atendimento, encontro com hora marcada, tempo limitado, pagamento, por exemplo. Ape sar de os três últimos aspectos estarem presentes na prática do AT, nào me davam a impressão de um trabalho. Nessa atividade, nào se está em uma sala de consultório ou em uma instituição, mas sim, geralmente, assistindo à televisão ou a um filme no cinema, batendo papo em um bar ou no quarto do paciente, ou ainda com seus famili ares. Habita-se e transita-se pelo espaço privado (casa do paciente) e público o tempo todo. Espaços profundamente marcados pela di mensão do lazer, do descanso e também do conflito. O AT, aparentemente, oferece um limite muito tênue entre trabalho e lazer. As fronteiras parecem ser praticamente inexistentes. No princípio de minha experiência como acompanhante, sentia que essas separações nào existiam, o que apesar de dar um “grande bara to”, também gerava seu montante de angústia. Dessa forma, sào incontáveis as situações e momentos em que surgiram a dúvida: será que estou trabalhando? Será que isso é um trabalho sério? Esta é minha própria loucura tomando conta de tudo, ou estou podendo lidar com ela e a do outro? 30 E ííc a e técnica no acompanhamento terapêutico Quando comecei a trabalhar como acompanhante terapêutico, o mais importante para mim era poder estar junto a uma pessoa que tivera — ou estivesse atravessando — uma profunda crise psíquica. Nào me interessava saber definir psicose, neurose, loucura, ou como classificar as manifestações da pessoa acompanhada dentro de um qua dro patológico. Sentia um incômodo em relação a essas classificações, pois, geralmente, quando as pessoas se utilizam das categorias neuró tico e psicótico para entender o funcionamento do paciente, elas se colocam dentro do funcionamento neurótico diferenciando-se do fun cionamento psicótico. Tenho a impressão de que essa maneira de or ganizar os fenômenos clínicos ou a existência humana coloca uma distância enorme entre um funcionamento e outro. Distância que me parece ainda maior quando se fala em estruturas neurótica e psicótica. As vezes, por nào me identificar com esse tipo de abordagem, pensei que discordasse por ser louco — senão de todo, pelo menos em parte. Ao longo do tempo, fui percebendo que não era o único que tinha essa impressão e pude encontrar interlocutores (escritores, psicanalis tas e outros) que haviam organizado essas questões de uma maneira bastante distinta, uma forma diferente de compreender o ser huma no, a vida... Esse encontro de outros interlocutores proporcionou- me uma experiência de estar acompanhado, de ser compreendido. Inicialmente, o próprio fato de estarmos, muitas vezes, envol vidos (acompanhado e eu) em situações bastante angustiantes, já me absonda toda atenção. Lidar com essas situações representava um gran de desafio. Eis um exemplo: Milton discutia furiosamente com sua mãe por ela nào ter pas sado a calça comprida que ele queria usar. Exigia que fosse passada naquele exato momento, nào podia esperar; porém, sua mãe e a em pregada estavam ocupadas com o almoço. O clima ia ficando cada vez mais tenso, até que propus a ele que nós mesmos passássemos a calça. Ele disse que nào sabia passar roupa. Comentei que poderia mostrar a ele como se fazia. Através dessa intervenção tão simples, foi possí vel notar uma mudança imediata em seu humor e ele demonstrou toda uma satisfação enquanto passávamos sua calça. 31 Klebcr Duarte Barretto Essa e inúmeras outras situações que enfrentei e enfrento na experiência de acompanhar mobilizam angústias em todos os partici pantes presentes nessas ocasiões e exigem do a t alguma intervenção.Outro aspecto de minha experiência como acompanhante, que me chamou a atenção, foi perceber que não só as angústias eram com partilhadas mas também outros tipos de emoções: momentos de ale gria, tristeza e ternura, por exemplo. Com o passar do tempo, também fui acumulando experiências no acompanhamento que tinham a ver com satisfações e prazeres, que me levaram a perceber a loucura como expressão de liberdade. Enlouquecer implicava em ganho de liberdade interna: fazer coisas inusitadas, usar os espaços públicos de maneira incomum, falar e ima ginar absurdos. Comecei então a idealizar a loucura, acreditava ser essa a única saída de uma vida achatada, ordenada e previsível, que muitas vezes cultivamos pessoal e/ou socialmente. Acredito que as aventuras que buscava através do acompanhamento estariam relacio nadas ao viver “mais louco” do cotidiano, como única alternativa à vivência de futilidade e previsibilidade. Gradualmente, fui perceben do o recorte parcial que estava fazendo, tanto da qualidade de vida dos cidadãos comuns quanto daquele dito louco. Em relação a este, por não levar em conta como todo o sofrimento e até desespero com os quais ele se depara, são muitas vezes intensificados pelas maneiras pouco adequadas através das quais busca lidar com a dor psíquica. Por outro lado, em relação aos cidadãos comuns, não considerei aque les que desfrutam a vida de maneira criativa e imaginativa, e têm toda uma alegria em viver. Questionei-me, também, sobre o benefício da internação como intervenção terapêutica. No início, acreditava que seria suficiente, para dar conta da crise, um tratamento que envolvesse hospital-dia, tera pia (familiar, grupai e individual), terapia ocupacional, AT e outros recursos mais. Achava a internação algo violento e desumanizador. Com o passar do tempo, pude perceber que a internação, em deter minados momentos e tipos de crise, representava um cuidado para p com o paciente e sua família. E claro que havia uma indicação compa 32 E.t/ca e técnica no acompanhamento terapêutico tível com o contexto e o momento da crise do paciente. Percebí que recorrer à internação poderia propiciar ao paciente e à sua família uma intervenção que apontasse para um limite, mas que, também, oferecesse um acolhimento e holding. Essas funções são importantes, pois possibilitam uma integração mínima e ajudam a evitar que o paciente e/ou membros da família mergulhem em um estado que Winnicott chamou de angústia catastrófica. Em alguns casos, o AT pode funcionar como facilitador na transição de uma internação em uma clínica para o trabalho em hospital-dia, por exemplo. Pude ir percebendo que a medicação é mais um fator importante no trata mento. Em dosagens adequadas, o remédio pode ajudar o paciente a viver um nível suportável de angústia, que lhe permite interagir mi nimamente consigo — seus pensamentos, emoções, sentimentos e pulsões — e com as outras pessoas. Caro leitor, deixemos essas ilusões e desilusões de quem vos escreve para mergulharmos em outras de maior importância. 33 Janto lhe martelou, que o pobre rústico sc determinou a sair com ele. Capítulo I I I Da importância da ilusão na constituição da subjetividade e da realidade A companhemos, agora, Dom Quixote, em sua defesa da leitura das histórias da Cavalaria Andante e da importância da imaginação: ‘N ão quero alargar-me mais nisto, pois daqui se pode coligir que qualquer parte que se leia de qualquer história de cavaleiro andante há de causar gosto e maravilha a quem a ler. Creia-me Nossa M ercê, e, como já lhe disse, le ia e s t e s liv ro s , e v erá c o m o lh e d e s te rra m a m e la n c o lia e lh e m e lh o ra m a c o n d iç ã o , s e c a s o a tiv er m á E u de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro andante, sou bravo, comedido, liberal\ bem-criado, generoso, cortês, auda% brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos, e ainda que há tão pouco tempo me vi metido dentro de uma jaula , como se fosse doido, espero, pelo valor de meu braço, ser dentro de poucos dias rei de algum reino, onde possa mostrar o liberal agradecimento que o meu peito encerra ...”. (Cervantes - 1605, p. 291; grifo nosso). Dom Quixote não tem dúvida do bem que lhe fizeram as leitu ras, e o ter-se tornado cavaleiro andante deu novo sentido à sua vida. Ele defende que a leitura dos romances de cavalaria tem um papel importante na transformação do humor das pessoas que os leem. Po deriamos dizer, então, que a imaginação seria capaz de transformar um humor melancólico em um sentimento de maior vitalidade. Isso parece ser ainda mais marcante, quando o amo decidiu tornar-se mem bro da Andante Cavalaria. As características e o refinamento desses cavaleiros passam a fazer parte da vida de Dom Quixote. Há uma verdadeira mutação a partir do momento em que o velho fidalgo decide adotar os princípios desta tão honrada Ordem, como parâmetro 37 Klcber Duarte Barretto para sua existência. Trata-se de uma nova organização de se/f4 e uma nova maneira de estar no mundo. Segundo Winnicott, o ser humano nasce com um potencial * para alucinação. E graças a esse potencial alucinatório que o bebê criará sua mãe, quando é possível a ela colocar-se ali onde ele a alucinou. Isso quer dizer que, se a mãe é capaz de compreender as necessidades do seu bebê e satisfazê-las sem expô-lo a um período excessivo de privação, ele viverá a experiência onipotente de estar criando sua mãe, conseqüentemente, o mundo. Nos primeiros meses de vida predomina, do ponto de vista do bebê, uma indiferenciaçào màe-bebê; ou melhor, entre eu e nâo-eu, pois o eu do bebê ainda não se constituiu enquanto entidade. Há uma indiferenciação de corpos, experiência que marca nossos primeiros meses de vida, mas que estará presente ao longo dela. Vejamos, como, cavaleiro e escudeiro possuem um só corpo: — M uito me pesa, Sancho, que tenhas dito e continues a di^er que fu i eu que te tirei da tua choupana, sabendo tu muito bem que eu não ftq u ei em casa. Ju n to s saím os, ju n to s nos fom os, e ju n to s peregrinam os; correu-nos a am bos a m esm a fo rtu n a e a m esm a so rte; se a ti te m antearam um a ve\, a m im derrearam -m e cem ve%es, e é essa a única vantagem que te lev o . — Isso era de rasção — respondeu Sancho — , porque, segundo Vossa M ercê di^ , m ais perseguem as desgraças os cavaleiros andantes do que os seus escudeiros. — Enganas-te, Sancho — redargüiu Dom Q uixote — , porque lá dieçem: 1quando caput d o l e t e t c . O self pode ser compreendido como o resultado das potencialidades inatas da criança e o holding proporcionado pela mãe nos primeiros meses de vida. Constitui-se uma totalidade baseada nas operações do processo maturacional. Trata-se dc uma constelação psicológica organizada dinamicamente, dando ao indivíduo senso dc continuidade e sentido de vida. K a personalidade orga nizada como um todo. 38 Etica e t é cn i ca no acompanhamento t erapêu t i co — E u cá não entendo outra língua senão a m inha — respondeu Sancho. — Q uero di%er —* tornou D om Q u ixo te ~ que, quando dói a cabeça, todos os membros nos doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou a tua cabeça e tu és parte de m im , visto que és meu criado; e p o r este motivo o m al que me toca ou me tocar há de doer a ti, e a mim o teu. — A .ssim devia ser — disse Sancho — , mas quando me mantearam como m embro estava a m inha cabeça, que era V ossa M ercê, alapardada a ver me voar pelos ares, sem sentir dor algum a; e, se os m em bros têm obriga ção de se doer dos m ales da cabeça, devia ela ter obrigação de se doer dos m ales deles. — Q uererás ditçer agora, Sancho — respondeu Dom Q uixote — , que me não doía quando te m antearam ? e se o di^es, não o digas nem o penses, p o rq u e m ais d or sentia eu no m eu esp írito , de que tu no teu corpo A (Cervantes - 1615, p. 321.) Há grande reticênciade Sancho em acreditar que os corpos de cavaleiro e escudeiro formam uma unidade, onde o primeiro seria a cabe ça, e o outro, os membros. Interessante esta divisão corporal onde cabe ao amo o pensar e o decidir, enquanto, ao escudeiro o executar e o agir. Existe uma divisào clara de tarefas e atribuições, mas à queixa de Sancho Pança de que só a ele cabia a dor quando o mantearam, Dom Quixote aponta para uma outra dimensão desta unidade. A fusão dos corpos se dá através de uma identificação empática com o corpo do outro a dor pode não ser sentida no corpo, mas sim no espírito. De acordo com o amo, a dor corporal é distinta da dor psíquica, sendo esta última, sempre mais doída que a outra. No AT, é comum observarmos esta indiferenciaçào de corpos entre acompanhante e acompanhado. Perdemos as fronteiras corpo rais, e podemos, em um momento, estar dentro do corpo do paciente — segundo sua perspectiva e/ou nossa também por que não?! — , em outro momento, é ele que nos habita. Freqüentemente, tem-se abor dado esse fenômeno, como um chamado do paciente (psicótico, por exemplo) à indiferenciaçào. Esta apreensão da situação aponta para 39 Klcbcr Duarte Barretto uma perspectiva de que se deve combater a mdiscriminação de cor pos, algo que só pode nos confundir e fazer-nos perder o rumo. Pen so que esta confusão é um risco e, ao mesmo tempo, uma possibilida de de compreender a subjetividade do paciente; é uma forma de co municação primitiva. Dentro de uma perspectiva winnicottiana, essa indiferenciaçào não só é inevitável como necessária, a fim de que se possa ajudar o paciente no seu desenvolvimento. Trata-se da possibi lidade do terapeuta sustentar a indiferenciaçào quando necessária, sem perder sua capacidade de discriminação. Espero que essa posição fi que mais clara no decorrer do capítulo. A esse período, em que predomina a indiferenciaçào e fusão de corpos, Winnicott chamou de período de ilusão. Isso implica que, do ponto de vista winnicottiano, a onipotência deve ser satisfeita, é fun damental que o bebê experiencie a ilusão de criar o mundo para que, futuramente, possa viver criativamente. A mãe, que inicialmente é mãe-ambiente — porque índiferen- ciada — pode vir a ser a primeira criação do bebê, se a relação do par ocorrer satisfatoriamente. Para que esta experiência de ilusão aconte ça, algumas condições precisam ser satisfeitas por parte do meio am biente em relação ao bebê: a mãe precisa se adaptar ativamente às necessidades do recém nascido. Ela vive um processo regressivo que Winnicott denominou preocupação materna primária. Esta se expressa por uma uma devoção3 ao recém nascido, há toda uma relação de identificação com o bebê que facilita a relação de cuidado. Esse tipo de experiência só é possível se todo o processo identificatório e re gressivo não coloca em risco a identidade materna. A mãe precisa ter recursos psíquicos para sentir que seu ser não está ameaçado. O ambi ente terá grande importância, pois tem de oferecer todo um amparo a essa mãe, o qual implica em uma função semelhante àquela exercida pela mãe com seu bebê. Quando esses aspectos são garantidos, haverá grande possibilidade de uma adaptação ativa às necessidades do bebê. Winnicott ressaltava a devoção exatamente por ser uma capacidade que não depende da dimensão intelectual. \l muito mais um movimento cmpático. 40 Efica e técnica no acompanhamento terapêutico Caso contrário, temos aqui um ponto focal para o estabelecimento das psicoses. Winnicott costumava afirmar que o bebê nào existe sem a mãe -— ou alguém que exerça essa função — , pois no início da vida temos uma dependência absoluta do meio ambiente. Se a experiência de ilusão foi satisfatória, o bebê é capaz de criar um objeto subjetivo que se desenvolve graças à adaptação mencionada anteriormente. O estabelecimento desse objeto subjetivo é fundamental no desenvolvi mento da criatividade do sujeito. Em situações em que esse processo não ocorreu ele buscará ao longo da vida uma oportunidade de viver esta experiência, ou seja, a busca de poder experienciar uma relação em que o outro funcione como uma criação do próprio sujeito. Segundo Winnicott, as necessidades do bebê não se restringem à dimensão da sobrevivência física; o ser humano, desde que nasce, tem necessidades psíquicas. Uma das necessidades mais importantes no início da vida, que precisa ser satisfeita para que haja a experiência de ilusão, é o ritmo. O ritmo seria o elemento que pnmeiramente apresenta o se lf do bebê, seria seu estilo, sua característica própria. Essa marca pessoal mostra-se através do intervalo e do ritmo das ma madas, do sono, da movimentação muscular, entre outros. Se o tem po do bebê nào for respeitado e satisfeito, ele não terá a possibilidade de viver a ilusão de criar o mundo (sua mãe-ambiente) e, assim, terá de adaptar-se ao meio ambiente. Dentro da teoria winnicottiana, esse fenômeno é conhecido como uma invasão do self que levará o bebê a uma reação e não mais criação. Abre-se, então, campo para a forma ção daquilo que se denominou falso self. Caso a vivência de ruptura de self devido às experiências invasivas, seja prolongada, o bebê po derá desenvolver um quadro autístico como forma desesperada de lidar com o horror de estar vivo. Na experiência de invasão dá-se uma perda de sentido do ser, o qual só se resgata através do isolamento. Caso essas experiências de invasão sejam muito intensas e/ou freqüentes, poderão levar o bebê ao abandono do contato com a realidade externa, refugiando-se no mundo subjetivo. Temos então os casos de autismo. Se, por outro lado, as experiências de invasão nào foram tão disruptivas, elas exigi rão do bebê um movimento reativo, ou seja, ele reagirá ao ambiente 41 Klebcr Duarte Barretto adaptando-se a ele e não mais criando-o. Como dissemos anterior mente, forma-se, a partir de então, o falso self Essa seria a tentativa de conseguir alguma organização — mesmo que através de uma dissocia ção — marcada por uma submissão ao meio ambiente. A existência do falso self teria duas funções: articular o sujeito ao mundo e prote ger o self verdadeiro, ocultando-o. Este último só pode ser vivido em segredo, em uma vida interior secreta. As experiências de desencontro na comunicação mâe-bebê (invasivas e conseqüentemente disruptivas) podem gerar buracos no self em formação, Esses buracos seriam necessidades que não puderam ser satisfeitas e/ou experiências que não puderam ser simbolizadas pelo meio ambiente. As psicoses resultariam, dentro da perspectiva winni- cottiana, de necessidades básicas não satisfeitas levando a dimensões da existência não simbolizadas. O bebê pode até se adaptar razoavel mente bem do ponto de vista social, mas não terá disponível certas funções psíquicas. O trabalho clínico com esse tipo de paciente exigi- ria do terapeuta toda uma adaptação ativa às suas necessidades para que, através da confiança no vínculo, ele possa experienciar pela pri meira vez algo que não lhe foi possível no seu desenvolvimento emo cional primitivo. Trabalho que implica em sustentar (to hold) todo um vínculo de indiferenciaçâo no qual o paciente vive uma depen dência absoluta do terapeuta. A partir das formulações de Winnicott e de autores como Khan, Little, Milner, entre outros, passou-se a compreender o papel da ilu são não só como um fator fundamental na gênese do psiquismo hu mano, como também um elemento indispensável para o processo de simbolizaçào; que é necessário para a criatividade, ou seja, o viver criativo. Eles reivindicam aos sonhos não só o caráter de realização de desejos, visão predominante no pensamento psicanalítico, mas tam bém o j'tatus de um pensamento, regido por uma lógica sincrética, mais comum às expressões artísticas. O sonho deixa de ser lugar ex clusivo da realização de desejos reprimidos, mas é, também, lugar de expressão de apreensões inconscientes do mundo e de si mesmo. As sim, para os analistasdo Grupo Independente da Escola Inglesa de Psicanálise, a imaginação é fundamental na constituição da subjetivi- 42 Ética e técnica no acompanhamento terapêutico dade e da própria realidade. Milner, tal como o poeta e pintor Blake, afirma que o que diferencia a espécie humana dos outros animais é a imaginação. Retomando a questão da ilusão e da onipotência, apresentada anteriormente, gostaria de discuti-la em relação à prática do AT. Um aspecto que sempre chamou a atenção da equipe de AT à qual perten ço foi a experiência de onipotência vivida pelo par acompanhante- acompanhado. Muitas vezes, essa vivência colocava a dupla em situa ções bastante perigosas. Ao mesmo tempo que se validava a onipo tência como algo inerente ao vínculo, procurava-se, nas supervisões, ficar atento a esse processo e, no momento adequado, poder colocar limites no acompanhante. Durante alguns anos — especialmente 87, 88 e 89 — dizia-se que o acompanhante teria de estar disponível para viver uma paixão, que ca racterizava o vínculo no AT — pelo menos nos períodos iniciais. Inúme ras vezes, lidou-se com o fato de o paciente querer ficar apenas com um acompanhante e abandonar o restante do tratamento, pois o at era tudo que ele queria e bastava. Algo que preocupava ainda mais quando o acompanhante compartilhava a mesma crença. O fenôme no por nós (membros da equipe) denominado paixão, penso estar sendo entendido nesse trabalho como período de ilusão, onde não há diferenciação de corpos, pelo menos para o bebê ou para o paciente e, às vezes, até para o acompanhante. 0 E necessário que o terapeuta sustente esse tipo de experiência, na perspectiva winnicottiana, a fim de que através dela o paciente possa desenvolver e/ou (r)estabelecer funções psíquicas que na sua história de vida ficaram comprometidas. Entende-se que os fenôme nos psicóticos se originam em falhas na comunicação bebê-meio am- / biente nos momentos mais primitivos do desenvolvimento emocio nal, onde ainda não existia a diferenciação eu - não-eu. Dessa forma, é bastante remota a possibilidade de retomada do desenvolvimento psí quico a não ser que se forneça ao paciente esse tipo de experiência e que seja possível, através de uma compreensão acompanhada de uma 43 Kleber Duarte Barretto adaptação ativa às necessidades do paciente, à simbolização da falha ambiental. Sendo que essa simbolização não se restringe à fala. Diz respeito à vivência do paciente ser encontrado nas experi ências que jamais foram compartilhadas com outro ser humano e po der, então, eventualmente, identificar-se com a cultura. A meu ver, parece mais profícuo entendermos o fenômeno de indiferenciaçào, por parte do acompanhante, desde uma perspectiva da devoção (preocupação materna primária) onde nosso ser se ocupa das necessidades do outro. A paixão aponta para a intensidade das emo ções presentes no vínculo, porém, enfatiza o elemento erótico que nem sempre está presente. E claro que não se deve negar a dimensão da sensualidade existente no vínculo, mas nem sempre é da ordem do erótico. Vale lembrar a distinção que Ferenczi (1966) faz entre a lin guagem de ternura — que contempla uma sensualidade — e a lingua gem da paixão, marcada pelo erotismo e pela intenção sexual (sedu ção). Digo isso por observar que, com certa freqüência, fazem-se indi cações de acompanhamento terapêutico em que o acompanhante ocupa o lugar de um(a) namorado(a) em função de se acreditar que através de uma erotizaçào, o paciente possa sair da estagnação em que se en contra. Outro fator que parece contribuir para se privilegiar esse tipo de indicação é o fato de que acompanhante e acompanhado fazem programas juntos. Penso que, se a paixão passa a ser a característica do vínculo para o at, estamos diante de uma distorção da relação; esta deixa de estar em função do desenvolvimento psíquico do acompa nhado para ser fonte de gratificações do narcisismo do acompanhan te. Talvez fosse interessante poder ilustrar a importância da ilusão na subjetividade de uma pessoa através de dois exemplos. José, um paciente de 41 anos de idade, passou a comprar durex em papelarias. Inicialmente, em uma papelaria próxima à sua casa e depois em pape larias no bairro onde viveu grande parte de sua vida (infância e ado lescência). O tipo de durex comprado deixou de ser o mais simples e passou a ganhar ares de requinte - determinada cor e espessura — , que no caso iam se traduzindo no preço do produto. Essas transforma- 44 Etica e técnica no acompanhamento terapêutico ções na compra do durex também se expressaram no uso que ele fazia do mesmo, ou pelo menos no uso que ele dizia fazer: no início, o durex funcionava como um acidinho, relembrando as baladas com LSD, depois foi utilizado como material de trabalho em seus “proje tos”. O fato é que esta história do durex já dura mais de três anos, o que faz com que José provavelmente tenha se tornado o maior coleci onador de durex na grande São Paulo. Em algumas ocasiões, tivemos a oportunidade de limpar e organizar seu apartamento e o curioso é que nos durex era expressamente proibido que eu mexesse. A posição da equipe de a ts que o acompanham (quatro membros) em relação à compra dessas fitas variou, chegando até a uma tentativa de proibição a fim de se empregar o dinheiro em outros passeios. Porém, a persis tência na compra nunca esmoreceu e até se intensificava em períodos de separação como férias e em momentos de forte angústia. Certo dia, uma das acompanhantes, já um pouco cansada da repetição do mes mo tipo de programa questionou-o sobre o durex, ao que ele respondeu: 0 — E o ponto do sonho! A resposta parece sugerir a função que tal objeto tem ocupado na subjetividade de José: ponto de sustentação do sonho, do processo de ilusão. Apesar do acúmulo das fitas, parece não ser possível que inter rompamos a atividade de compra, pois isto podería significar o esmaga- mento do sonho para ele, neste momento de sua vida. Outra situação ilustrativa ocorreu quando familiares de André - um rapaz com cerca de 14 anos na época e que apresenta um com prometimento intelectual — , diante da crença dele em coelhinho de Páscoa e papai Noel, resolveram fazer alguma coisa a fim de que ele se desse conta do engano em acreditar em tais seres com esta idade. A estratégia adotada foi a seguinte: ao se aproximar a Páscoa, sua tia fez questão de comprar os ovos com bastante antecedência e deixá-los expostos em uma bandeja na sala de jantar. Procurou-se ser o menos invasivo possível, assim deixou-se que ele descobrisse por si mesmo que lá estavam os ovos e que não haviam sido trazidos por coelhinho nenhum. Os dias foram se passando, a Páscoa se aproximando e André não “se tocava” da verdadeira face da realidade, cuja procedência os 45 Klcbcr Duarte Barrctto adultos bem sabiam, e continuava esperançoso pela chegada do coelhinho. Seus irmãos, inconformados com a situação, resolveram esclarecer, de uma vez por toda, a história. Chamaram-no à sala de jantar, apontaram os ovos que lá estavam há dias e começaram a ins truí-lo da inexistência de tal animalzinho pascal. André ouviu a argu mentação deles por um bom tempo sem se manifestar, até que em um determinado momento, levantou-se, dirigiu-se à porta e endereçou-se aos seus bem intencionados irmãos da seguinte maneira: — Eu quero acreditar em coelhinho de Páscoa e me deixem acreditar em coelhinho de Páscoa! A mensagem foi curta e grossa, e expressa com tamanha firme za que os deixou perplexos. Não tiveram tempo para réplica, pois estavam atônitos, mas isto nem seria necessário porque André batera a porta atrás de si ao deixar o sítio do parlatorio. Como desfazer essas crenças de André, sem com isso, podar sua vida imaginativa? Como esclarecê-lo do engano, sem com isso, borrar o ponto do sonho? Penso que estamos em um terreno vital para todos os seres humanos, principalmente, para esse sujeito que se encontrava diante de um comprometimento
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