665 pág.

Pré-visualização | Página 14 de 50
do Ocidente não previram) ou a reuniϐicação da Alemanha; ou ainda a formação da União Européia. Mesmo que tenhamos familiaridade com o cataclísmico, o surpreendente e o auspicioso, desconhecemos o grau da esperança gerada pelo evento extraordinário ocorrido no ϐinal do século XVIII: a Revolução Francesa (1789-1815).2 É essencial recobrar o sentido dessa esperança — na realidade, dessa fé — se quisermos compreender o que impeliu Napoleão, o jovem. Mas isso não é fácil, pois vivemos em meio ao colapso de grandes eventos desencadeados por 1789 — em especial a Revolução Bolchevique de 19173 e a primeira uniϐicação da Alemanha —, e desenvolvemos uma carapaça de informações, tanto falsas quanto reais, que nos põe a salvo do que chamaríamos de “credulidade”. Mas se essa carapaça nos protege contra certa decepção e surpresa, ela também nos distancia do imenso investimento emocional feito pelo “partido da esperança” (expressão de Emerson) do ϐim do século XVIII, investimento que o moto latino inscrito na nota de um dólar, Annuit coeptis — “um novo começo é declarado” —, expressa perfeitamente. Aquele era de fato um admirável mundo novo, sem querer fazer ironia (ou citação). Como disse Wordsworth em palavras famosas: “Era uma bemaventurança estar vivo naquela aurora/ Mas ser jovem era o próprio Céu!” Os novos começos forjados ou tentados pelos franceses nesse quarto de século, o mais inusitado de sua improvável história, não envolveram apenas a abolição do feudalismo ou a derrubada da mais importante monarquia européia; não cessaram com a proclamação da República Francesa e os subseqüentes julgamento e execução do rei francês, nem com o exílio de grande parte da antiga classe dominante; foi além da racionalização econômica de um país que tinha ainda mais costumes legais do que queijos, além da expropriação do maior latifundiário institucional da França (a Igreja) e da venda de suas terras (cerca de 20% das terras produtivas do país). Aϐinal de contas, essas eram medidas de que uma ou outra das revoluções anteriores (inglesa, holandesa, americana ou corsa) haviam pelo menos cogitado seriamente, ou até empreendido; não eram pois o bastante para os franceses depois de sua arrancada. Não, depois que 1789 se tornou 1792 e levou à República Jacobina, em seguida às medidas de 1793 e 1794, os franceses se propuseram a remodelar a paisagem social e psicológica: mudaram a maneira como os exércitos eram recrutados e comandados, como as guerras eram lutadas, como jornais eram escritos e publicados, como as pessoas se vestiam e falavam. Chegaram até a pensar em remodelar o tempo e o espaço. Varreram as antigas províncias da França e as substituíram por 83 departamentos de dimensões aproximadamente iguais; e não hesitaram em abolir o calendário gregoriano (cristão) e trocá-lo por um revolucionário na tentativa de eliminar o que fora, ao longo de 13 séculos, a religião da França. Sob alguns aspectos, o catolicismo era o autor da própria França — certamente da monarquia francesa —, e ali estava a Igreja de Roma, vendo-se substituída pelo patriotismo e por cultos seculares organizados pelo Estado. Em suma, a França propôs ao mundo um novo sentido secular, efetivamente destinado a substituir aquele signiϐicado cósmico que Cristo e os apóstolos lhe haviam oferecido no século I. Descobrira-se que Deus era nada mais, nada menos que o próprio homem. Novus ordo seclorum substituiu Anno domini, mas a um alto preço. Tão importante para nossa história como o impacto das forças de mudança foi a reação dialética provocada em termos de violência contra-revolucionária e terror, guiada por sua própria variante das ideologias e políticas de Glausbenkrieg.4 Como Arno Mayer aϐirma com eloqüente insistência, a história de 1789 é inelutavelmente a das fúrias da guerra — tanto civil quanto entre nações —, mais cruel e violenta do que todas as guerras haviam sido até então. A Revolução Francesa fez uma outra coisa que é diϐícil qualiϐicar hoje de assombrosa, pois nos parece óbvia: ela “descobriu a política”, como expressou um eminente historiador francês.5 Poderíamos dizer que ela promoveu “o nascimentodeumanação”,entendendopelapalavra“nação”milhõesdecidadãos (não mais súditos reais) que passaram por um rápido aprendizado do que era para eles uma nova dimensão da vida: o político. Nessa dimensão, antigas injustiças sociais e econômicas, pânicos perenes, fomes e medos foram transferidos para novos canais, que os transformaram em matéria de eleições, partidos, ideologias e representantes — acima de tudo, uma dimensão em que a consciência coletiva foi remodelada e elevada por uma difusão generalizada de novos símbolos (inclusive 60.000 “árvores da liberdade”), e em que, ϐinalmente, para que tudo ϐicasse muito claro para todos, dúzias de “Rousseaus da imprensa sensacionalista” produziam centenas de artigos e panϐletos populares para milhares de leitores comuns — uma verdadeira plebe intelectual —, para lembrá-los, por assim dizer, do que era politicamente correto. Em suma, a política como um fenômeno de massa, não de casta. Assim a Revolução atingiu milhares, na verdade milhões, de vidas; afetou profundamente todas as classes da sociedade em toda a Europa (e não só nela). Mais do que qualquer outro grupo, exceto a burguesia liberal, porém, ela feriu a pequena nobreza, de que Napoleão provinha. De maneira mais especíϐica, desfechou um golpe retumbante no corpo dos oϐiciais das Forças Armadas, empurrando a maior parte deles para o exílio e abrindo possibilidades quase ilimitadas para os poucos que restaram. Num nível mais pessoal, a Revolução tocou profundamente jovens soldados (e escritores) românticos, turbulentos, talentosos e ambiciosos — homens enlevados por Ossian e Plutarco, que misturavam política com literatura, “suicídio” com patriotismo. E quanto ao (nessa altura) primeiro-tenente Napoleão Bonaparte, sua vida foi transformada pela Revolução tão drasticamente quanto ele, um dia, transformaria a Revolução. Isso não pode ser dito com tanta segurança sobre mais ninguém. A reação de Napoleão ao tumulto da primeira hora — o que Hannah Arendt chama a violência da revolta, antes ainda que ela seja revolução6 — foi uma irritação de oϐicial, seguida pela dúvida quanto à importância de longo alcance que aquelas revoltas poderiam ter.7 Mas depois, quando ϐicou claro que algo maior era iminente, veio o assentimento. Em certo sentido, Napoleão Bonaparte já havia sido conquistado pela Revolução desde o momento em que um aristocrata arrogante em Autun ou Brienne o esnobara. Mas em outro sentido — o de tolerar a violência popular —, ele nunca se entusiasmara. O foco de sua atenção consciente no despontar de 1789 não foi o que a Revolução prometia para ele pessoalmente (pensamento ignóbil para um patriota), mas para a pátria corsa. Havia grandes razões para otimismo. Os homens que estavam se aϐirmando rapidamente na França também se intitulavam patriotas. Em junho os Estados Gerais se haviam autoproclamado, atrevidamente, como Assembléia Nacional Constituinte, atribuindo-se a missão de esboçar a Constituição que transformaria o regime numa monarquia liberal. Mas os acontecimentos se sucediam numa rapidez que espantava a todos e, em poucas semanas, a Assembléia estava na prática governando