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haviam lançado inexoravelmente um contra o outro. Fazer vista grossa para a lógica profunda e coercitiva de escolhas e dos fatos foi um erro que muitos cometeram na Revolução Francesa, mas surpreende em alguém tão astuto quanto Napoleão. Ou será que só se tornou astuto depois da grande decepção e fracasso da sua juventude? Estaria seu “patriota” corso interior ainda em conϐlito com seu patriota francês aparente? Ou será que sonhava que Paoli o nomearia seu generalíssimo?23 Paoli defendeu-se com tranqüilidade. Numa declaração igualmente eloqüente enviada à Convenção, reiterou seu próprio compromisso e o de seus compatriotas com a França e a Revolução. Isso não fez diferença alguma. As posições estavam presas à polaridade de revolução e contra- revolução. Chegou então a Corte a notícia do discurso de Luciano em Toulon. O costume corso do clã exigiria que, nesse momento, Napoleão matasse ou renegasse Luciano, ou endossasse suas palavras e deixasse a Córsega. Napoleão não hesitou em apoiar o seu sangue. Apesar disso, escreveu ao ministro da Guerra francês, em quem conϐiava, admitindo francamente que a presença de Luciano no sul da França era “perigosa não só para ele, como para o bem público” e pedindo ao ministro que despachasse o irmão de volta para a Córsega. Finalmente, após meses de tergiversação e hipocrisia, as adagas eram abertamente sacadas entre Napoleão e Paoli, assim como entre a Revolução e a Córsega. Nessa altura, os Bonaparte viram seu pai ser caluniado: no decreto que o governo paolista emitiu condenando a família à “morte civil” (perda de todos os bens e da cidadania) foram feitas alusões à rápida deserção da causa corsa por Carlo Bonaparte e às suas estreitas relações com o conde de Marbeuf. Ironicamente, os Bonaparte sofreram o mesmo destino que os Buttafoco: a desgraça — a expulsão de sua terra natal por razões políticas — e sob a mesma acusação: traição em favor da “causa francesa”. A casa da rua Saint Charles foi pilhada, talvez incendiada; seus moradores esconderam-se e depois fugiram da ilha.24 Não antes, porém, que Napoleão, sob ordens de Saliceti, desfechasse um ataque militar à fortaleza de Ajaccio, usando as tropas republicanas (legalistas franceses) disponíveis. Foi um ϐiasco tão melancólico quanto o da expedição às Madalenas. Os Bonaparte embarcaram rumo à França e ali aportaram no dia 13 de junho no golfo Juan, onde, no futuro, Napoleão faria um famoso desembarque. Com sua paranóia, a Convenção promoveu a conϐirmação de seus temores na Córsega. Paoli foi impelido a fazer o que seus inimigos haviam suposto, erroneamente, que queria fazer o tempo todo: abrir a Córsega para os ingleses. Era isso ou esperar sentado em Corte pela prisão e a guilhotina. O regime anglo-corso do rei Jorge III foi estabelecido em 1794; sua Constituição monárquica concedeu a Paoli muito menos poder do que ele tinha sob os franceses. O Babbù se deu tão mal com o vice-rei inglês que foi obrigado a partir para Londres em 1795. A ilha foi retomada pela França em 1796. Quando se tornou primeiro-cônsul, Napoleão teve a esperança de persuadir Paoli a deixar o exílio para retornar à Córsega e governá-la para a França. Isso não haveria de acontecer, embora o Babbù tenha de fato se reconciliado com o imperador antes de morrer em 1807 (em seu testamento — ϐiel até o ϐim a seus princípios iluministas —, Paoli deixou dinheiro para a recriação de uma universidade em Corte). Os homens que Napoleão escolheu para governar a Córsega foram, sem exceção, ex-paolisti. Sua missão: tornar a Córsega deϐinitivamente francesa — meta que nem eles, nem sucessivos governos franceses jamais alcançaram plenamente. A ruptura com Paoli foi algo de que Napoleão se envergonharia e passaria o resto da vida tentando explicar. A desculpa que inventou foi que aquilo era inevitável e não ocorrera por culpa sua (no que havia certo grau de verdade). Em Santa Helena, Napoleão explicou o problema alegando que Paoli fora o tempo todo, secretamente, um anglóϐilo e um contra- revolucionário, ao passo que os Bonaparte eram leais à Revolução Francesa. É claro que isso é parcialmente falso. Não há dúvida de que Paoli, diferentemente de Napoleão, nutria grande afeição e admiração pela Inglaterra, mas ele não desejava romper com a França e com a Revolução. Certa vez Napoleão escreveu que a única ação imperdoável na história ocorria quando um homem empunhava armas não contra seu rei, mas contra sua pátria — isto é, o que ocorreu quando Paoli voltou com os ingleses para reivindicar a Córsega. Mas a situação real era mais complexa do que isso sugere. A Revolução Francesa podia se alimentar da idéia de pátria, mas ao mesmo tempo patenteava a ambigüidade da palavra e a diϐiculdade de se seguir um programa patriótico coerente. Por muito tempo, Paoli e Napoleão haviam ambos considerado a Córsega sua pátria. A França revolucionária surgiu muito depois, criando uma situação em que os dois homens acabaram por atacar sua pátria: Napoleão em aliança com seus antes odiados franceses; e Paoli alinhado com seus antes bem-amados ingleses. De fato, se alguém evoluiu em sua compreensão do que a pátria signiϐicava, foi certamente Napoleão, não Paoli. Uma frase num relatório de auto-exoneração que Napoleão escreveu no verão de 1793 para o ministro da Guerra francês demonstra isso. Ele observa que Saliceti e os demais delegados franceses que haviam ido à Córsega “devem certamente ter encontrado ali um grande número de bons patriotas”.25 Embora fosse uma frase inteiramente casual, ela reϐletia uma virada da maré, pois o que o autor das Lettres de Corse entendia nessa altura por “patriota” não era mais o corso que lutava pela liberdade, mas alguém que era, não apenas pró-franceses — isso Paoli era —, mas pró-Convenção, pró-jacobino e também anti-Paoli. Foi esse o novo signiϐicado de que a língua e a lógica da Revolução dotaram a palavra, e que Napoleão veio a aceitar tão inconscientemente quanto Luciano e José. A idéia sagrada da pátria, em suma, ϐizera em sua mente um giro de 180 graus em relação ao que era três anos antes. Para Napoleão, Saliceti e companhia, “pátria” deixara de ter uma signiϐicação em grande parte irredentista (“Córsega independente para sempre!”), para se tornar um elemento nuclear de uma política complexa de revolução democrática e agressão imperial. O teor do relatório ao ministro da Guerra consistia em recomendar uma incursão militar francesa a ϐim de retomar a Córsega para a Revolução. Militarmente, isso seria fácil, aϐirma o autor. Por quê? Bem, porque “Paoli encontra-se sem nenhum general”. A superação do patriotismo Lembrando a fraqueza confessada do jovem Napoleão, sua “consciência demasiado apurada do embotado coração humano”, podemos perguntar se seu entusiasmo juvenil não teria a essa altura “evaporado sob um conhecimento aguçado dos homens”. A nosso ver, ao partir de Calvi com a família no dia 11 de junho de 1793, ele era um homem que se conhecia a si mesmo e aos “homens” melhor que antes — talvez melhor que desejasse. Seu tempo de kairos terminara mal havia começado. Essa partida às pressas fez dele um corso ou um francês? É verdade que Napoleão sempre conservou a tez morena de alguém “que foi amamentado com azeite”, mas isso poderia caracterizar tanto um corso quanto um francês do Sul. Se “a