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pelo amigo; as cartas do amor de sua vida rareiam, depois cessam por completo. Ele decide morrer, mas antes escreve a Eugénie para lhe dizer que “viva contente, sem pensar no infeliz Clisson”. “Beija [meus ϐilhos] por mim”, pede; “possam eles não ter a alma ardente do pai, de modo a não serem vítimas dos homens, da glória e do amor.” Em seguida, carrega a boca-de-fogo e cai “perfurado por mil rajadas”. A inocência e a seriedade desses retratos idealizados parecem tocantes para alguns, entediantes para outros, mas é inegável que são banais. O mesmo se pode dizer da prosa; tem-se a impressão de que o autor estava aϐlito demais por contar a história para se preocupar muito com estilo. Tal como escrito, Clisson et Eugénie é bem o que um jovem de inclinação romântica, leitor de Rousseau e Plutarco, poderia ter destilado após seu primeiro amor. A diferença é: o jovem comum não teria passado em seguida a viver essa história e o que impressiona em Clisson et Eugénie é seu valor profético. Napoleão, como veremos, permanecerá à sombra dessa fantasia quando, pouco depois, encontrar sua verdadeira Eugénie. A realidade, quando ela se apresentar, não lhe trará nesse sentido nada de novo; suas previsões se transformarão em suas coerções; como o sino para Macbeth, elas o convidarão a agir. Seja como for, será graças à autoimagem de Napoleão como homem traído que, um dia, um certo capitão Hippolyte Charles escapará da morte e a adúltera, de um processo de divórcio. Retornando a Mlle Clary, Napoleão a estava traindo claramente em espírito, se não de fato, no verão e no outono de 1795, e continuou a cozinhá-la em fogo brando até começar a freqüentar os salões em que conheceu uma certa viúva da Martinica. Quando ϐinalmente rompeu com Désirée, em janeiro de 1796, o fez de maneira vergonhosa. Sabendo que ela era menor de idade, escreveu-lhe insistindo em que se casasse com ele imediatamente. A menina só podia negar, mas ϐicou inconsolável. Quando, alguns meses depois, Napoleão a informou bruscamente de seu casamento com Joseϐina, Désirée lhe escreveu uma carta que contém uma linha notável tanto pelo pathos quanto pela veracidade: “A comparação que deves fazer [entre tua esposa e mim] só poderia me ser desvantajosa, tua esposa sendo superior em todos os aspectos à pobre Eugénie, exceto por não superá-la em sua extrema afeição por ti.” Uma rosa por algum outro nome No dia 15 de agosto de 1795, o general-de-brigada Napoleone Buonaparte (como ele ainda se autodenominava) fez 26 anos. Era um rapaz esbelto e pálido, de pele azeitonada. É verdade que, com 1,60m de altura, era baixo,5 mas não extraordinariamente para a época. Em meados do século XVIII, a altura média dos soldados franceses era 1,65m; o arquiduque Charles, o melhor general da Áustria na época, media 1,52m. Assim, compreensivelmente, nem a altura de Napoleão, nem sua tendência a enϐiar a mão direita no colete (pose nada estranha em retratos do século XVIII) chamavam a atenção de seus contemporâneos como chamaram da posteridade. Ele podia ser brilhante e loquaz; em geral era simplesmente taciturno e reservado, visivelmente tenso. Mas os retratos que dele se traçam — então como agora — variavam segundo a opinião (em geral, forte) de quem o contemplava. Os que não gostavam, ou passaram a não gostar, de Napoleão — como muitas mulheres da aristocracia (de Chastenay, de Rémusat, de Staël etc.) — enfatizavam seu cabelo “gordurento”, não empoado e despenteado, que usava na altura dos ombros lembrando “orelhas de cachorro”. Notavam o chapelão puxado até os olhos, o andar lépido mas incerto, as mãos muito magras e sujas, sem luvas; alguns o descreveram como magro, de faces cavadas e uma “palidez de fantasma”; outros o qualiϐicaram simplesmente de “magricela”, acrescentando que suas pernas ϐinas ϐicavam engraçadas em suas botas grandes, baratas e não engraxadas — davam-lhe um ar de “Gato de Botas”, como Joseϐina o apelidou. Os maledicentes destacavam ainda uma cabeça desproporcionalmente grande para o corpo, em que os olhos eram o traço dominante; o olhar era penetrante, amedrontador, pronto a expressar desprazer. A boca, diziam, tinha uma expressão natural de escárnio, condizente com suas maneiras brutais e rudes. Finalmente, comentavam, aquele corso falava francês com um sotaque italianado. Os que admiravam ou gostavam de Napoleão, ou se impressionavam com ele — com mais freqüência homens (o banqueiro Ouvrard, o poeta Heine, os pintores Gros e David, os oϐiciais militares em geral) — comparavam seu rosto às “cabeças de mármore dos gregos e dos romanos”. Falavam de olhos grandes e amendoados, de uma expressividade quase feminina, emoldurados por sobrancelhas largas; de um nariz aquilino, maçãs do rosto altas e uma testa larga. Reconheciam que a cabeça era grande para um homem pequeno, mas diziam que ela o tornava impressionante e sugeria inteligência. O lábio superior alongado, nessa leitura, revelava uma boca sensível. No conjunto, um rosto imponente, diziam seus admiradores, especialmente os olhos. Bonaparte talvez não fosse nenhum Hoche — homem de rosto aberto, cabelo anelado, agradável e bonito como um ator —, admitiam, mas insistiam que era imponente e vistoso de uma maneira não convencional. Quanto às maneiras, o que parecia assustador aos críticos de Napoleão era visto pelos devotos como interessante, imponente. Lembravam que sua entrada numa sala era imediatamente percebida pelos que ali estavam. Para eles o andar desajeitado era uma marcha em grandes passadas — militar, enérgica, decidida. Historiadores favoráveis a Napoleão observaram mais tarde como seu andar foi copiado por militares tão diferentes dele quanto Patton. Se suas maneiras eram estudadas, argumentam seus defensores, era porque esse homem precisava afastar pessoas que nada tinham a lhe dizer e o fariam perder tempo. Admiradores e críticos concordam que Napoleão era um homem usualmente tenso, raramente relaxado; só que para os primeiros essa faceta era expressão de pensamento, orientação, determinação. Assim é, e sempre será, quando o gosto estético se curva ao julgamento moral, mas raras vezes as divergências são tão impressionantes como no caso de Napoleão Bonaparte, que quase inevitavelmente impressiona as pessoas como bonito ou feio, segundo lhes pareça bom ou mau. O Napoleão de meados de 1795 era um homem agudamente atento ao sexo feminino. Laure Permon, futura mulher do general Junot (teria o título de duquesa d’Abrantès), expressou isso bem quando ele chegou a Paris naquela primavera: “Ele está apaixonado por todas as mulheres.” As cartas que escrevia a José mencionavam vez por outra os encantos femininos e o novo papel das mulheres na Paris do Termidor e do Diretório. Excepcionalmente, sua misoginia corsa parecia contida, não estava dominado pela reprovação do que chamava “o império das mulheres” nos negócios sociais e públicos. “Aqui, o único entre todos os lugares da Terra”, escreveu a José, “[as mulheres] parecem segurar as rédeas do governo, e os homens fazem papel de bobos por causa delas, só pensam nelas, vivem só para elas.” A estrela de Désirée logo esmaeceu sob a luz de um sol muito mais próximo e brilhante. Com sua ação no Vendemiário, Napoleão ϐicou mais famoso em Paris do que ϐicara no Midi graças a Toulon. Entre outros beneϐícios, ela o transformou numa espécie de atração