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deviam ser (e de fato eram) incomparáveis. Em poucas palavras, o mais provável é que um menino tão esperto e ambicioso como Napoleão Bonaparte percebesse sua boa sorte e contemplasse com entusiasmo seu futuro ao chegar ao collège (segundo o uso francês) de Autun, uma das mais antigas e bem conceituadas escolas preparatórias da França. Ali ele passou o inverno, estudando francês; depois, na primavera, transferiu-se para uma das 12 escolas militares reais distribuídas pela França, a que se localizava em Brienne, 56km a leste de Paris, na região da Champagne. Após cinco anos (1779-84) nessa escola, completou seus estudos militares cursando a École Militaire em Paris durante um ano. Nada disso aconteceu fácil ou naturalmente. Essa conversa de collèges e estudos não nos deveria fazer esquecer que Napoleão não passava de um menino nessa altura, um menino que estava sendo obrigado a fazer malabarismos numa língua estrangeira, que falava (e sempre falaria) com forte sotaque. Seu parco domínio do francês o punha em permanente desvantagem nos cursos de literatura, obrigando-o em geral se esforçar mais que os outros. Ademais, era o mais jovem aluno da sua turma. Tinha apenas 16 anos, por exemplo, quando recebeu sua patente na Artilharia Real em 1785. Por mais que fossem instituições severas, até draconianas, Autun, Brienne e a Escola Militar proporcionaram uma educação extraordinária para um nobre provinciano empobrecido. Apesar disso, a experiência teve um lado sombrio para Napoleão. Nos registros de Autun, pode-se encontrar a seguinte entrada na letra elegante de um dos padres- professores: “M. Néapoleonne de Bounaparte [sic] pour trois mois vingt jours, cent onze livres, douze sols, huit deniers 111, 12, 8.” As palavras não dizem muito: só que o aluno mencionado passara três meses e vinte dias no collège (que estava prestes a deixar) e devia dinheiro. Dois detalhes ressaltam: Primeiro, a soma devida representa, por si só, 10% do salário anual de Carlo como ϐiscal do condado de Ajaccio, seu principal emprego. A família tinha outras fontes de renda, mas quando somamos o custo da educação de Napoleão ao da dos outros ϐilhos, temos uma idéia da grandeza relativa do investimento feito por Carlo na educação dos ϐilhos. Ele estava sempre pedindo dinheiro emprestado para fazer face a esses pagamentos. Em segundo lugar, notamos o assassinato ortográϐico do nome de Napoleão por um professor que o considerava “esplêndido”. É um sinal de que alguma coisa andava errado em Autun, e continuaria a andar errado em Brienne e na École Militaire. O sacerdote em questão, o admirado padre Chardon, talvez pronunciasse o nome de Napoleão corretamente, mas os colegas do menino, não. Em suas caçoadas, “Napoleone” transformava-se no tolo “paille au nez” (palha no nariz). Isso não surpreende muito. Um provinciano de nove anos, proveniente de um território recém- conquistado, chega num internato de elite num reino famoso pelo esnobismo e um rígido sistema de classe. Era possível adotar uma de duas estratégias gerais diante das provocações inevitáveis, que todos que freqüentaram um internato de meninos conhecem bem. Tentar ganhar as boas graças dos colegas, ou isolar-se; misturar-se a eles e ganhar-lhes a estima ou sobressair e ser notado. José Bonaparte adotou a primeira. Em Autun, onde passou seis anos, era respeitado e unanimemente apreciado, embora suas memórias deixem claro que a experiência teve algum custo para ele e que não se sentia tão feliz ali quanto em geral se diz. Napoleão adotou a segunda opção. Tornou-se taciturno, distante, irascível, fazendo-se extremamente malquisto e temido. O preço do caminho que escolheu foi consideravelmente mais alto que o de José. Embora todos os relatos dos contemporâneos que conheceram Napoleão durante os anos que passou estudando na França tenham sido escritos décadas depois, e reϐlitam os fortes sentimentos dos autores em relação a ele,1 há neles alguma relevância por coincidirem não só entre si como com vários comentários que o próprio imperador teceu mais tarde sobre Brienne. Segundo todos eles, Napoleão foi infeliz como estudante na França, e, em conseqüência, tornava ou tentava tornar infelizes as pessoas à sua volta. Os que descrevem o adolescente Napoleão utilizam em geral os adjetivos usuais: “inadaptado, insociável, antipático e agressivo”, “excessivamente carrancudo e colérico”, lançando “olhares penetrantes, esquadrinhadores” etc. Com certeza não é diϐícil acreditar que Napoleão fosse tudo isso. Podemos facilmente imaginá-lo em Brienne, por exemplo, como uma vez ele se descreveu, sentado à sombra de seu carvalho predileto, macambúzio, sentindo uma pena desesperada de si mesmo, acalentando seu amor-próprio ferido a meditar sobre o quanto odiava os colegas franceses, e o quanto era por eles odiado (mais, porém, sobre seu próprio ódio), e sobre o “mal” que haveria de fazer um dia “àqueles franceses”. Mas nem tudo era comoção, nem tão grave: a disposição de ânimo e os humores de Napoleão não o conduziram a um impasse psicológico nos cinco anos que passou em Brienne, nem o impediram de fazer amigos (inclusive um genuíno conϐidente, Bourrienne) ou de estudar com aϐinco e alcançar sucesso acadêmico. Napoleão era generoso, raramente guardava rancores e possuía uma imaginação poderosa. Sentiu prazer em aprender nas várias escolas francesas que freqüentou, em especial Brienne. Bom em matemática — ganhou um prêmio na matéria —, o menino gostava mais ainda de história antiga. Realmente, é diϐícil subestimar o impacto do modelo romano sobre a cultura política do Antigo Regime; ela mais ou menos substituía o cristianismo como fonte, por excelência, de máximas para os políticos. Nem as ordens católicas dedicadas ao ensino resistiam: volta e meia seus monges destacavam as histórias e os personagens de Plutarco, Nepos (autor de Sobre homens ilustres), Lívio, Virgílio, Cícero etc., ao mesmo tempo em que despachavam todas essas almas pré-cristãs para o inferno ou o limbo (contradição que bastou para fazer o adolescente Napoleão perder a fé.) Em Brienne, Napoleão provavelmente descobriu César, o que não é nenhuma surpresa, dada a atenção que Plutarco dedica ao fundador do Império Romano. Plutarco forneceu-lhe modelos que o mundo do século XVIII levava muito a sério. A força que impele a narrativa de Plutarco, cujo efeito é apresentar suas grandes ϐiguras (Alexandre, César, Cícero, Brutus etc.) como heróis indiferenciados, deve ter deixado sua marca em Napoleão. Como Plutarco, ele admirava tanto Brutus quanto César, sem que a comparação entre um e o outro lhe inspirasse as mesmas prudentes lições morais ou políticas que aos romanos. O que importava é que ambos eram viri illustres: grandes homens. Em suma, Brienne não foi apenas um suplício pessoal ou intelectual para Napoleão. Ele venceu brilhantemente grande parte dos desaϐios que ali deparou, e sabia disso. Como observou em Santa Helena: “Eu era o mais pobre dos meus colegas ... eles sempre tinham uns trocados no bolso, eu nunca. Mas eu era orgulhoso e fazia todo o possível para que ninguém percebesse ... Nunca aprendi a rir e a brincar como os outros.” Muito provavelmente, isso não foi dito com raiva, mas com certo grau de merecida satisfação. Durante sua permanência em Brienne,