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Ana C Figueiredo - Vastas confusões e atendimentos imperfeitos - A clínica psicanalítica no ambulatório público

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Vastas confusões 
atendimentos imperfeitos 
Ana Cristina Figueiredo 
Vastas confusões e 
atendimentos imperfeitos 
A CLÍNICA PSICANALÍTICA 
NO AMBULATÓRIO PÚBLICO 
3 3 E D I Ç Ã O 
© Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997 
Direitos cedidos para esta edição à 
DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. 
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Revisão 
Rosa do Prado 
Editoração 
Carlos Alberto Herszterg 
Capa 
Gustavo Meyer 
Desenho de Lula 
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. 
Figueiredo, Ana Cristina 
F488v Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicana-
lítica no ambulatório público / Ana Cristina Figueiredo. — Rio de 
Janeiro: Relume-Dumará, 1997 
Inclui bibliografia 
ISBN 85-7316-128-0 
1. Psicanálise. 2. Assistência em hospitais públicos. I. Título. 
CDD 616.8917 
97-1389 CDU 159.964.2 
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, 
por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988. 
http://www.relumedumara.com.br
http://com.br
A meu pai 
que me deixou 
vontade de ensinar 
e o amor pela 
universidade 
Sumário 
Ao Leitor 9 
/ O que é feito da psicanálise 13 
1. A polêmica da psicanálise 13 
2. O campo psicanalítico em questão 17 
3. A psicanálise no ambulatór io: um novo contexto? 30 
/ / Interrogando o ambulatório 35 
1. Sobre a pesquisa: uma part icipação observante 35 
2. Sobre os serviços 41 
2.1 Recepção, triagem c encaminhamento 42 
2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57 
2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65 
2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 85 
3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório 97 
3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97 
3.2 Deitando o olhar sobre o divã 108 
3.3 Que tempo para tratar? 115 
/ / / Por uma psicanálise possível 123 
1. Evocando a "bruxa metapsicologia" 123 
1.1 Sobre a realidade psíquica 126 
1.2 Sobre a transferencia 137 
1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura 149 
1.4 Sobre o desejo do analista 162 
2. Para concluir: o psicanalista que convém 168 
Bibliografia 179 
Ao Leitor 
A proposta de tratar da clínica psicanalítica no ambulatório público, que 
resultou em uma tese de doutoramento, é fruto do trabalho desenvolvido 
no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 
que congrega as atividades de ensino, pesquisa e assistência. Minha 
atuação como docente tem se pautado na formação de profissionais que 
se propõem a desenvolver um trabalho clínico referido à psicanálise 
voltado para o atendimento ambulatorial em instituições públicas de 
saúde. Minha função é transmitir os fundamentos teóricos da psicanálise 
e acompanhar o cotidiano desse trabalho clínico realizado pelos alunos, 
prioritariamente no ambulatório, podendo ser estendido para outros se-
tores, como as enfermarias e o hospital-dia. 
A idéia de desenvolver uma pesquisa junto aos profissionais — psica-
nalistas, psicólogos e psiquiatras, vinculados à rede pública de saúde — 
'teve como objetivo ampliar o leque de informações sobre as possibilida-
des e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados. 
De posse de um material heterogêneo sobre a estrutura e o funciona-
mento dos serviços, sobre o perfil dos profissionais e seu trabalho clíni-
co, pude equacionar as diferenças. Apresento relatos de experiências e 
de casos clínicos como exemplares — no duplo sentido de amostra e 
paradigma — da complexidade da clínica, de seus impasses e soluções 
em relação às possibilidades do trabalho psicanalítico. 
Minha proposta, no entanto, não se esgota em descrever e analisar as 
diferentes situações clínicas mais ou menos características do trabalho 
psicanalítico. Antes, descrevo para prescrever e prescrevo descrevendo. 
Meu trabalho é, a um só tempo, descritivo e prescritivo. Desse modo, 
10 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
articulo a pesquisa com o ensino, sabedora de que a transmissão da 
psicanálise não se reduz a seu ensino. O que prescrevo é um modo de 
conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista, para 
que se possa identificá-la e praticá-la a partir do percurso da cada um, 
situando-a frente às demais modalidades do conjunto de psiquiatria, a 
saber: a psiquiatria médica, as psicoterapias e as práticas em saúde mental. 
Tomo a psiquiatria como um conjunto, porque entendo que ela deve 
comportar essas práticas distintas, incluindo a psicanálise como um de 
seus componentes. Em princípio, a psicanálise está incluída na categoria 
das psicoterapias. Mas é importante que se estabeleça sua diferença para 
não diluí-la ou mesclá-la com variações que descaracterizem sua especi-
ficidade. Assim, a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de 
psicoterapia, e sim diferenciá-la das demais psicoterapias. Entretanto, 
considero que não é imprescindível instituir a psicanálise como mais 
uma especialidade na lista de ofertas dos serviços. 
Primeiro, porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais 
com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao 
instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudes-
sem praticá-la. Quem designaria? Segundo, porque, além de não dizer 
quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizações 
que, na melhor das hipóteses, decepcionam e, na pior, aumentam a 
resistência tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa 
atopia, um estar 'à sombra', pode ser salutar como lugar para o psicana-
lista no trabalho institucional. Acredito que, ao longo do texto, minha 
posição se explicitará melhor. 
Outro ponto a ser discutido é a escolha do ambulatório como local 
para o desenvolvimento da pesquisa. Todos os profissionais pesquisados 
desenvolvem seu trabalho nos ambulatórios. Há alguns casos em que 
trabalham também em enfermarias, na psiquiatria ou no hospital geral, 
ou nas chamadas estruturas intermediárias na psiquiatria — hospitais-dia 
e centros de atenção psicossocial. O ambulatório é, sem dúvida, o local 
privilegiado para a prática da psicanálise porque faculta o ir-e-vir, man-
tém uma certa regularidade no atendimento pela marcação das consultas, 
preserva um certo sigilo e propicia uma certa autonomia de trabalho para 
o profissional. 
Uma das críticas feitas freqüentemente ao ambulatório, especialmen-
te pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de 
funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática, 
com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço 
Ao Leitor I 11 
público. Penso justamente ao contrário. O ambulatório não é um simu-
lacro do consultório; é o próprio consultório tornado público. Nesse 
sentido, o termo público adquire uma significação ampla. Primeiro, para 
designar a rede estatal de serviços que oferece atendimento gratuito à 
população na área da saúde, o serviço público. Segundo, como facultado 
ao público em geral, qualquer pessoa tem o direito de ser atendida. 
Terceiro, e mais importante, é a idéia de tornar público, visível, e deixar 
transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como 
privativo de alguém. Por mais privatizado que seja o funcionamento de 
um ambulatório, o volume de pessoas que circulam, as formas de registro 
e as várias relações aí estabelecidas tornam sua marca de público inapa-
gável. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais público. 
Se a clínica psicanalítica requer uma certa intimidade, discrição e 
sigilo, isto não quer dizer que sua prática deva se perder no intransmis-
sível. O tornar público a que me refiro, no que diz respeito à psicanálise, 
é fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clínica 
com seus impasses e sucessos. É também produzir trabalhos, estudos de 
casos e pesquisaspara redimensionar o alcance da teoria em relação à 
experiência clínica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitário 
é bem propício, assim como as associações dc psicanalistas. 
Definido o objetivo do trabalho, passo à apresentação do seu conteúdo. 
O primeiro capítulo — "O que é feito da psicanálise" — apresenta 
uma breve discussão sobre a difusão da psicanálise, e, ao enfocar o 
ambulatório, discute os obstáculos à psicanálise, por um lado, em relação 
à clientela e, por outro, em relação às outras práticas na psiquiatria. Em 
seguida, apresenta a heterogeneidade do campo psicanalítico como pro-
blemática para sua definição. Na última parte, discute a psicanálise no 
contexto do ambulatório, propondo uma redefinição do termo 'contexto'. 
Nesse ponto, recorro às concepções de contexto e recontextualização 
propostas por Richard Rorty e Jacques Derrida para desfazer equívocos. 
O que devemos deduzir é que não há duas psicanálises, uma para o 
consultório e outra para o ambulatório. Minha referência primordial é 
Freud, considerando que a psicanálise não pode ser dissociada do seu 
fundador. Também recorro à leitura de Lacan e às suas contribuições 
conceituais para resolver impasses deixados por Freud, abrindo novas 
possibilidades de recontextualização da psicanálise no próprio campo da 
teoria com ênfase na função do analista. 
O segundo capítulo — "Interrogando o ambulatório" — apresenta a 
pesquisa sobre o ambulatório, recortando as principais etapas do trabalho 
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12 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
clínico como o atendimento inicial (recepção ou triagem) e o encaminha-
mento, o trabalho em equipe e o tratamento propriamente dito. Em 
seguida, discuto as peculiaridades dos profissionais 'psi' (psiquiatras, 
psicólogos e psicanalistas) e proponho três questões para a clínica psica-
nalítica no ambulatório sobre os principais pontos em que este difere do 
consultório: a questão do dinheiro, onde é proibido cobrar; a questão do 
divã, onde este praticamente não existe; e a questão do tempo, onde a 
burocracia dos serviços e a peculiaridade da clientela podem gerar obs-
táculos. 
O terceiro capítulo — "Por uma psicanálise possível" — apresenta o 
que considero as condições mínimas para se definir a clínica psicanalíti-
ca, em sua diferença para com as demais psicoterapias, como uma clínica 
da realidade psíquica que condiciona a fala ao movimento da transferên-
cia dirigida ao analista que, por sua vez, tem na interpretação e numa 
relação peculiar com o tempo instrumentos para o manejo do tratamento. 
Além disso, apresento uma condição que marca fundamentalmente o 
trabalho do analista definida como seu desejo, que difere do desejo de 
um sujeito. Ao final, concluo traçando o perfil do "psicanalista que 
convém" para levar adiante o trabalho psicanalítico nos serviços públicos 
de saúde, esse mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos. 
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Destaque
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/ 
O que é feito da psicanálise 
1. A polêmica da psicanálise 
A psicanálise, tal como Freud a concebeu, sempre foi praticada em con-
sultórios privados, e os psicanalistas jamais dependeram de uma formação 
universitária ou de órgãos oficiais de reconhecimento da profissão para 
exercerem sua clínica. Tudo sempre se passou de modo a manter a forma-
ção e a prática psicanalíticas numa espécie de extraterritorialidade, como 
ironizou Castel (1978), em relação às outras profissões liberais e às de-
mais práticas médico-psiquiátricas. Essa peculiaridade, no entanto, não 
impediu que a psicanálise se difundisse, expandindo sua área de influên-
cia. A primeira vista, poderíamos dizer que a psicanálise veio, viu e 
venceu. Ocupou parte do território das instituições psiquiátricas como, 
por exemplo, as comunidades terapêuticas; provocou mudanças nosográ-
ficas, diagnosticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psico-
dinâmica; instrumentou práticas psicoterapêuticas diversas, difundiu-se 
para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, através da mídia, 
a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes médias urbanas sob a 
forma de uma 'cultura psicanalítica'. Esse fenômeno se deu de modo 
desigual e em diferentes períodos, principalmente nos EUA (Nunes, 
1984), na França (Turkle, 1970) e no Brasil (Martins, 1979; Santos, 1982; 
Figueiredo, 1984e 1988; Figueira, 1985; Russo, 1987). A psicanálise teria 
se tornado ubíqua e sempre haveria um ponto de vista psicanalítico para 
tudo. Em parte, isso é inegável, e alguns estudiosos apontam para os 
efeitos, muitas vezes nefastos, dessa psicanalisação do cotidiano sobre a 
própria clínica psicanalítica (Figueira, 1985b). 
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14 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
O que interessa, entretanto, não é julgar se a difusão da psicanálise é 
boa ou má em seus efeitos, mas atentar para o fato de que esse fenômeno 
não se deu de modo tão efetivo no que diz respeito ao exercício sistemá-
tico da clínica psicanalítica nas instituições médico-psiquiátricas. Refi-
ro-me particularmente ao caso brasileiro, mas não creio que sejamos a 
exceção. 
Especulando sobre possíveis causas, destaco das argumentações cor-
rentes dois aspectos distintos, porém complementares: o da demanda de 
atendimento e o dos próprios dispositivos de tratamento. 
Quanto ao primeiro, a demanda pode ser de atendimento médico em 
geral ou de psicoterapia — aqui costuma-se incluir a psicanálise. Há 
vários estudos discutindo a questão da diferença sociocultural e da con-
seqüente discrepância entre os pontos de vista do terapeuta e do paciente 
sobre as representações de doença, tratamento e cura. Além de autores 
estrangeiros como Boltanski (1979) e Bernstein (1980), autores brasilei-
ros como Lo Bianco (1981), Duarte & Ropa (1985), Duarte (1986), 
Bezerra (1987) e Costa (1989a) trataram da questão apontando para a 
necessidade de relativizar valores e concepções de subjetividade e cau-
salidade psíquica, quando se trata de atendimento psicoterapêutico à 
população de baixa renda que aflui aos serviços públicos de saúde. 
Em primeiro lugar, não devemos reduzir a complexidade do disposi-
tivo psicanalítico — isto talvez não sirva para outros modelos de psico-
terapia — aos ideais do terapeuta, enquanto representante da classe 
média escolarizada. Se os ideais de cura do terapeuta são pautados por 
seus próprios valores, sua função, no entanto, não deve sê-lo. O que ele 
acha que deve ser há que ser posto em suspenso e as condições de 
analisabilidade não devem se orientar exclusivamente pelos conteúdos 
mais ou menos psicologizados da fala do cliente. E claro que um certo 
patamar de individualização deve ser atingido para que o sujeito possa 
desenvolver alguma reflexão sobre si, o que também é parte do processo 
analítico. Isto sem mencionar os casos de pacientes psicóticos de quem 
não podemos abrir mão de tratar, ou pelo menos tentar. Estes estariam 
bem mais distantes do ideal de analisando-padrão.* 
Sobre o problema das diferenças socioculturais impeditivas para se estabelecer 
um processo psicanalítico temos, no limite, um curioso exemplo de algumas 
experiências bem sucedidas no trabalho de Ortigues, M.C. & E. (1989), realiza-
do na década de 1960, no Senegal. Ali se viveu a experiência de ura entrecruza-
mento de três culturas: o tradicional sistema tribal, onde a possessão pelos 
ancestrais e a feitiçaria marcam os rituais e as relações intersubjetivas; a cultura 
O que é feito da psicanálise \ 15 
Em segundo lugar, é importante frisar que o suposto modelo univer-
salizante da psicanálise refere-se, que deve ser entendida como um con-
junto de conceitos articulados como 'universais' — algo que não é em si 
um defeito teórico mas pré-condição de um sistema — suficientemente 
operacionalizáveis para serem aplicados a uma demanda diversificada. 
Não se trata de defender a posição ingênua de 'psicanálise para todos' , 
mas de apostar numa maior aplicação do dispositivo psicanalíticoque 
permita seu exercício além dos consultórios privados com clientes estrei-
tamente afeitos à cultura 'psi ' . E, mais ainda: se fazer psicanálise é 
produzir mais cultura psicanalítica, só nos resta a escolha de recuar 
diante dessa oferta em nome de uma idealização purista das diferenças 
culturais ou assumir que esse atravessamento cultural pode ser benéfico 
para todos aqueles que embarcam nessa aventura. 
O segundo aspecto refere-se aos dispositivos de tratamento que con-
correm entre si, tornando-se mais ou menos hegemônicos, de acordo 
com variáveis histórico-políticas que não serão discutidas aqui. O que 
temos observado, mais recentemente, é o recrudescimento de uma ten-
dência na psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso em 
nome de uma maior rapidez e eficácia dos resultados. Os próprios crité-
rios de classificação diagnostica apontam para uma fragmentação das 
grandes categorias clínicas de neurose e psicose para compor um mosai-
co de síndromes variadas e de transtornos da personalidade. Produzem, 
assim, uma combinatória de sinais e sintomas, com base em substratos 
químicos e neuro-anatômicos, rastreáveis por aparelhos que detectam 
alterações antes imperceptíveis ao olhar clínico. 
Tudo isso pode ser muito bom para os tumores e lesões do sistema 
nervoso central, mas mesmo os comportamentos acabam submetidos a 
essa varredura, e novas categorias nosológicas são formuladas no intuito 
de ampliar o alcance do tratamento medicamentoso. Temos na fobia 
social, na síndrome do pânico e no distúrbio obsessivo-compulsivo três 
bons exemplos. Nesse cenário, a psicoterapia ocupa um lugar secundário 
ou acessório, sendo que as psicoterapias cognitivas parecem atender 
melhor à proposta de efeitos rápidos na remissão de sintomas, além de 
islâmica que pratica o monoteísmo e o culto ao livro sagrado e se apresenta como 
mais evoluída em relação ao sistema tribal; e a cultura européia de língua 
francesa que atua maciçamente no processo de escolarização e medicalização, e 
representa a dominação estrangeira como um ideal de evolução civilizatória. 
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16 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
serem consideradas mais objetivas, passíveis de estudos de follow up, 
estatísticas etc. Se, de fato são mais eficazes, não nos compete responder. 
Mas, certamente, dependem de variáveis que não são consideradas em 
seu próprio método, ou seja, daquilo que Freud chamou de efeito da 
sugestão que está na base dos fenômenos da transferência. 
O que interessa não é comparar modelos, ou analisar um determinado 
modelo a partir de outro, mas apenas atentar para esses dispositivos que 
se apresentam com a bandeira da eficácia e da rapidez. A psicanálise, 
nessa visão, torna-se praticamente inútil. Considerada um processo de-
masiado longo, não-objetivável, que exige uma formação de técnicos 
muito complexa e igualmente prolongada, a solução possível foi encur-
tá-la na chamada psicoterapia breve. A meu ver, um breve contra a 
psicanálise. Da alquimia psicanalítica às bombas químicas de rápidos 
efeitos (colaterais?) de longa duração. Eis o paradoxo: pacientes que 
permanecem freqüentando os ambulatórios, por um longo tempo, em 
busca de receitas de ansiolíticos e/ou antidepressivos. Por que não a 
longa duração de um tratamento psicanalítico? 
Quanto à formação profissional, a dos psicanalistas não é tarefa sim-
ples. A universidade não é o lugar recomendado ou suficiente, embora 
este não seja um bom motivo para se abandonar o projeto. A universidade 
não deve se furtar a este desafio, mesmo admitindo que estudar psicaná-
lise e ter supervisões clínicas não bastam para fazer do aluno um psica-
nalista. Diríamos que é um bom caminho andado. Mas isso pode ser um 
desvio da questão. Não me proponho a discutir a psicanálise na univer-
sidade e sim as possibilidades e limites da clínica psicanalítica nos 
serviços de saúde da rede pública em geral. 
Talvez pareça uma pretensão fútil, uma veleidade de psicanalista, 
insistir na defesa de um aparato tão sofisticado, quando as instituições de 
saúde atravessam uma crise tão séria, com sua existência ameaçada pelo 
descaso das autoridades públicas, tanto pelo profissional quanto pela 
população usuária. No entanto, não devemos recuar, uma vez que o 
trabalho de ensino, pesquisa e qualificação acadêmica deve estar sempre 
à frente das condições efetivas de sua realização. Especialmente agora, 
quando se consolida uma ampla política de combate à estrutura asilar de 
cronificação da doença mental, urge que mantenhamos viva a discussão 
sobre o tratamento psicoterapêutico em regime ambulatorial, o que, cer-
tamente, pode dar suporte ao projeto de desenclausuramento dos pacien-
tes psiquiátricos. Ao trabalho político e social deve-se somar o trabalho 
clínico. É preciso revisitar o funcionamento inercial dos ambulatórios 
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O que é feito da psicanálise | 17 
sem desfazer de seu potencial terapêutico. Além do mais, penso que o 
dispositivo psicanalítico não foi posto à prova o suficiente para ser 
descartado como ineficaz ou impróprio para atender à população que 
procura os serviços públicos. 
2. O campo psicanalítico em questão 
Ao examinar os pressupostos teóricos da psicanálise, logo me deparo 
com problemas em sua definição. Do que se trata quando se fala em 
psicanálise? 
Esta é uma preocupação de vários analistas de diferentes orientações 
e há um certo consenso em admitir que a existência de concepções 
diversas de psicanálise gera uma dispersão irreversível na produção con-
ceituai e, conseqüentemente, nas concepções do trabalho clínico.* 
São reconhecidos, pelo menos, três modelos pregnantes que compõ-
em o mosaico do campo psicanalítico: o kleinianismo e suas variações, 
conhecido como escola inglesa; a psicologia do ego como fruto de uma 
'americanização' da psicanálise liderada por imigrantes europeus; e o 
movimento lacaniano conhecido como escola francesa. 
Desenvolverei brevemente cada um, situando-os em seu aparecimen-
to na história e em seus fundamentos metapsicológicos, nosológicos, de 
tratamento e cura. 
A escola kleiniana, que se estabeleceu eminentemente na cultura 
britânica, é herdeira do pensamento de Karl Abraham, mestre e analista 
de Melanie Klein, e inaugura a clínica infantil. 
Quanto à metapsicologia, a referência inicial em Abraham é à primei-
ra fase da démarche freudiana, especialmente dos textos de 1915; em 
seguida, ao ciclo maníaco-depressivo, em particular à melancolia, aos 
estádios pré-genitais e aos processos de incorporação e desenvolvimento 
da relação de objeto nas diversas modalidades genéticas da ambivalên-
cia. Seu pensamento é centrado na dialética da ambivalência primitiva e 
Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a, 
1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco 
(1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histórico-
política, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com 
as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen-
volveram. 
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18 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
da totalização do objeto, e essa é a matriz de Melanie Klein. Num 
segundo momento, a nova dualidade pulsional e a segunda tópica freu-
diana constituem os conceitos de base do modelo kleiniano. Um certo 
antropomorfismo presente em Freud fundamenta a concepção do con-
junto da atividade psíquica como um mundo interno de fantasias atemo-
rizantes, que fomentam o conflito ambivalente, a partir do inatismo das 
pulsões de vida e morte, da precocidade do superego sádico e avassala-
dor, da pregnância das imagens corporais e dos processos de incorpora-
ção e rejeição dos objetos parciais. 
As diferentes modalidades pulsionais que constituem o funcionamen-
to psíquico e seus objetos internos sucederiam-se assim: inicialmente, há 
a posição esquizo-paranóide, dominada pelo ódio,pela retaliação perse-
cutória e pela idealização; em seguida, vem o equilíbrio entre a culpabi-
lidade depressiva autodestrutiva e a onipotência reparadora da defesa 
maníaca; e, por fim, o predomínio da integração objetai com os meca-
nismos de reparação, a assunção do Édipo e a instauração da saúde 
mental. Para um estudo mais detalhado, remeto o leitor ao trabalho de 
Jean-Michel Petot (1988). 
Segundo Bercherie (1988), apesar de este encadeamento de posições 
remeter a uma reconstrução genética da vida infantil à adulta, sua apre-
sentação fenoménica tem um caráter atemporal e mesmo transcendental, 
em que se destaca a simbiose do sujeito com o objeto como um estado 
de confusão de limites entre o interior e o exterior. A personalização do 
vivido da fantasia do seio e do falo, por exemplo, se apresenta mais como 
uma fantasmagoria, na qual o objeto externo não passa da externalização 
do objeto interno. O objeto real tem um papel subsidiário de agravação 
ou correção da fantasia. 
Quanto à nosología, Klein não produz exatamente um modelo. Vários 
críticos encontram nela uma tendência à psicotização da estrutura subje-
tiva da fase esquizoparanóide, a partir da noção de ambivalência em sua 
forma mais primitiva. Para Bercherie, o kleinismo considera a totalidade 
da estruturação subjetiva e sua patologia mais à luz da fenomenologia 
dos mecanismos de introjeção, rejeição, denegação, onipotência, cliva-
gem etc., do ciclo maníaco-depressivo, enfatizando o aspecto fundamen-
talmente dual do funcionamento psíquico. A força inata das pulsões de 
vida e morte contradiz em parte sua própria formulação da presença 
precoce do conflito edípico que, pelo menos em Freud, tem uma compo-
sição triádica. 
O que é feito cia psicanálise | 19 
Quanto ao tratamento e à cura, a ética kleiniana enfatiza o amor como 
fator positivo (pulsão de vida) e o ódio como fator negativo (pulsão de 
morte/destrutiva) no remanejamento do universo da fantasia, concebido 
como interno, endógeno, e desemboca numa postura clínica extrema-
mente crítica, culpabilizante, pondo o analisando, de certa forma, sob 
suspeita. A transferência seria a cxternalização do mundo interno do 
sujeito que revela sua profunda dependência regressiva e ambivalente. 
Cabe ao analista, em sua perspicácia, exercer uma atividade quer expli-
cativa, para aliviar os estados de angústia emergentes, quer descritiva da 
própria situação transferencial, numa espécie de tradução simultânea do 
discurso no 'aqui e agora' para o referencial teórico que subsidia a 
interpretação. A tática principal é explicitar para o analisando suas defe-
sas narcísicas contra a integração de sua ambivalência e a assunção de 
sua dependência dos bons objetos. Essa espécie de vigilância constante 
submete o funcionamento psíquico a uma certa censura moral, dificul-
tando uma mudança subjetiva frente ao analista e, conseqüentemente, a 
dissolução da transferência (Little 1951; Figueiredo 1992). 
Numa etapa posterior, o kleinismo é alçado a um nível mais sofisti-
cado de metapsicologia e criatividade clínica. Entre seus discípulos, 
destacam-se Bion, o nome principal, e Meltzer, seu epistemólogo, que 
dão uma especial atenção ao conceito de identificação projetiva, formu-
lado desde 1946. Privilegiam seu aspecto interacional como instrumento 
de clarificação da comunicação inconsciente do paciente com o analista, 
nunca ao contrário, e ampliam a exploração dos fenômenos da contra-
transferência e da psicose. A contratransferência passa a ser uma referên-
cia central para a interpretação, a bússola do analista. Este se coloca mais 
como um continente das projeções do analisando que o afetariam 'inter-
namente' e não apenas como uma suporte dessas projeções. A técnica 
interpretativa adquire uma coloração subjetiva, onde a expressão do 
vivido pessoal do analista tem mais peso do que o material clínico 
propriamente dito (Garrigues e cois. 1987). Na observação de Bercheric, 
por um lado, esse viés de intuição do analista atingido diretamente pelas 
projeções do analisando, pode ter a função de esvaziar o excesso de saber 
do analista presente nas interpretações-traduções do primeiro momento 
do kleinismo. Por outro, transformar o vivido do analista em sua bússola 
para interpretação, pode gerar distorções ainda mais graves. 
De um modo geral, a teoria kleiniana atinge um nível de conceituali-
zação interacional no campo dos processos de simbolização, mas ainda 
deixa de lado a relação desses processos com a linguagem como institui-
20 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
ção social, mantendo a mão única das produções psíquicas da criança 
para o adulto e do paciente para o analista. 
A psicologia do ego, patrocinada, em seus primórdios, por Freud 
através de sua filha, Anna Freud, e dos membros mais influentes do 
grupo vienense, se desenvolveu principalmente nos EUA. Desdobrando-
se a partir do modelo freudiano, acentua a inspiração funcionalista do 
ego adaptativo. Heinz Hartmann é considerado seu fundador, com o livro 
Psicologia do eu e o problema da adaptação, publicado em 1939. Seu 
trabalho desenvolve a proposta de Anna Freud em O ego e seus mecanis-
mos de defesa, de 1936. Posteriormente, são absorvidas certas concep-
ções kleinianas dando origem a um modelo híbrido. 
Quanto à metapsicologia, suas principais características são a rejeição 
do conceito de pulsão de morte, substituído por uma pulsão de agressão 
(uma espécie de segunda pulsão de vida com caráter um tanto negativo); 
a apreensão bastante biologizante da atividade psíquica com ênfase num 
modelo genético; e o contato com a psicologia cognitiva experimental. 
Daí a valorização da observação de bebês. O livro O primeiro ano de vida 
do bebê de René Spitz, publicado em 1958, é uma referência. 
O ego é concebido como uma instância de adaptação externa e síntese 
interna que se diferencia funcionalmente do id pelos aparelhos perceptivo, 
motor e cognitivo, canalizando as energias pulsionais selvagens do id em 
descargas regradas, adaptadas às necessidades da realidade-ambiente. 
Essa realidade se define como sendo de ordem relacional e social, indu-
zindo o analista a um interesse constante pelas especificidades sociohis-
tóricas do ambiente, pelo culturalismo e disciplinas sociológicas afins. As 
publicações de Erik Erikson no início da década de 50, como Identidade, 
juventude e crise e Infância e sociedade, são um bom exemplo. 
Quanto à nosologia, esta assenta-se sobre um tripé. A neurose, onde 
um ego estável tenta se adaptar às exigências de um superego sádico, 
pré-genital, ou às pulsões do id que o transbordam. Os estados borderli-
ne, em que ego e objeto estão separados, mas submetidos aos golpes de 
uma dinâmica pulsional, ameaçadora e incontrolável, clivada em amor 
idealizado versus hostilidade persecutória (nesse ponto, o recurso a Me-
laine Klein é incontestável). E a psicose, onde há uma desagregação das 
estruturas psicológicas e de suas representações de objeto, principalmen-
te por uma liberação de agressão livre desneutralizada, vitória da violên-
cia pulsional sobre o ego, do pólo autístico ao pólo fusionai simbiótico 
de estrutura oral. 
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O que é feito da psicanálise \ 21 
Quanto ao tratamento, a transferência constitui seu meio fundamental 
como uma dinâmica psíquica em suas modalidades patológicas e arcai-
cas, que provocam uma distorção projetiva da relação analítica. Em 
contrapartida, surgem as noções de "aliança terapêutica", "aliança com 
a parte sadia do ego", "aliança de trabalho", para redefinir o pacto 
terapêutico proposto por Freud. O insight, processo cognitivo — o que 
o paciente aprende de seus conflitos e sintomas — aliado ao processo 
afetivo — a identificação com o analista que vai adquirindo formas mais 
sutis e abstratas — é o caminho da cura. O analista funciona como 
personificação da objetividade e da maturidade racional, egóica, para 
enfrentar o irracional projetivo e arcaico da transferência, utilizando-se 
exclusivamenteda interpretação. Seu ponto cego reside na contratrans-
ferência, em seu 'irracional' não analisado, que ameaça romper o equilí-
brio do setting analítico. 
Este modelo, com sua aspiração racionalista, objetivista e evolucio-
nista, parece bastante compatível com os ideais médico-científicos que 
dão sustentação a uma determinada concepção de psiquiatria, e se presta 
à instituição de uma ortodoxia que ultrapassa em rigor técnico a postura 
um pouco mais livre do próprio Freud. 
Há, ainda, o grupo dos heterodoxos, cujos principais representantes 
são Winnicott, Balint, Ferenczi, Searles e Kohut, a quem Bercherie se 
refere como a "nebulosa marginal". Seu ponto comum seria a alteridade 
em sua dimensão fundadora. A 'realidade psíquica' não seria mais do que 
um efeito, sombra do real histórico. 
Bercherie esclarece a designação como pertinente tanto à situação de 
seus representantes na organização institucional da psicanálise quanto à 
sua ideologia e valores. Essa corrente não constitui propriamente um 
modelo. São trajetórias individuais que têm como ponto comum a busca 
de uma maior eficácia da clínica através de novas formas de intervenção. 
Da técnica ativa de Ferenczi ao holding de Winnicott, transgride-se a 
técnica clássica difundida pelas correntes ortodoxas, considerada insufi-
ciente e muito limitada. 
As diferentes tendências ordenam-se sobre variações balizadas, de 
um lado, pela referência ao trauma como fator patogênico, retomando a 
teoria da sedução freudiana num sentido mais amplo e, de outro, pela 
modificação do conceito e do manejo da regressão na análise. Em Fe-
renczi, por exemplo, o tratamento catártico é revalorizado e a escuta 
analítica deve tornar-se menos neutra e mais participante, incentivando 
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22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
a compreensão e o diálogo como uma função simbólica reparadora do 
vivido traumático infantil. 
A metapsicologia e o tratamento se aliam a certas referências noso-
lógicas centradas no conceito de narcisismo primário com Winnicott e 
Balint, por exemplo, em que o interesse teórico e clínico do analista recai 
sobre a relação primária do analista com a mãe. Com Ferenczi, Searles 
e outros, a ênfase é dada à incorporação patogênica das comunicações 
inconscientes intrafamiliares, onde a criança é tomada como depositária 
das perturbações e desejos mais secretos dos pais, especialmente nas 
psicoses.* Mas também é valorizada a função paterna aliada aos proces-
sos de aculturação e socialização. 
Nesse cenário, a ortodoxia é condenada como cúmplice da negação 
e da mistificação da realidade dos fatos e das interações vividas pelo 
paciente em sua história. A função do analista no tratamento é a de um 
facilitador do desenvolvimento vital, do processo de maturação, prejudi-
cado pelas relações patogênicas. A contratransferência funciona mais 
como guia para o analista e menos como perigo. As interpretações não 
devem ter a insistência intrusiva presente no kleinismo. O dispositivo 
analítico opera como uma dinâmica intersubjetiva, aberta c imprevisível 
em seu trajeto, em oposição ao enquadramento concebido como cienti-
ficista-objetivista e inteleetualista dos ortodoxos. O pensamento incons-
ciente é criativo e a experiência de si, do verdadeiro self, se dá uma vez 
que são levantadas as barreiras defensivas de um ego clivado que intro-
jetou o ambiente patogênico. Seguindo a referência freudiana, a realiza-
ção aloplástica deve sobrevir à inversão autoplástica da libido narcísica. 
Diferentemente da psicologia do ego, a cura depende mais da auten-
ticidade do vivido, da espontaneidade do processo maturativo, do que da 
força ou estabilidade do ego. Para Winnicott, por exemplo, o chamado 
'ego forte' não passa de um falso self. Esse processo diz respeito à 
presença da ordem objetai como fundadora da subjetividade em seu 
caráter interacional. A adaptação à realidade cede lugar à inventividade 
própria, à espontaneidade criadora do self. 
Ao analista, resta a postura empática, receptiva, devotada e acessível, 
c a humildade técnica que chega a admitir que há uma ajuda terapêutica 
Destaco dois textos de referência sobre esse tema: "Confusão de línguas entre 
os adultos e as crianças" de Sàndor Ferenczi e "O esforço para enlouquecer o 
outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold 
Searles. 
O que é feito da psicanálise I 23 
inconsciente constante do paciente ao analista. Há posições críticas entre 
os 'marginais' do exagero dessa tendência procurando retomar a regra 
fundamental freudiana e um certo rigor técnico. 
No essencial, interessa destacar a filiação da antipsiquiatria a essa 
concepção da clínica em contraste com a psiquiatría eminentemente 
médica Esta última se afina mais com os psicólogos do ego e com os 
kleinianos. 
O último e mais recente modelo se constitui a partir do nome e do 
ensino de Lacan, mais precisamente a partir da cisão na Sociedade 
Psicanalítica de Paris em 1953 (Roudinesco, 1986). O famoso Discurso 
de Roma — "Fonction et champ de la parole et du langage en psychana-
lyse" — é o marco teórico e político de uma nova 'ortodoxia'. 
A partir de uma fusão dos dois estruturalismos — a antropologia de 
Lévi-Strauss com a lingüística de Saussure revisitada — e do recurso aos 
conceitos de metáfora e metonimia de Jakobson, Lacan inaugura o estru-
turalismo na psicanálise. O conceito de simbólico de Lévi-Strauss se 
funde com o conceito de significante extraído da equação saussureana do 
signo. A ordem do significante transcende e instaura o sujeito por sua 
inscrição na linguagem. 
O recurso ao materna — análogo ao mitema de Lévi-Strauss — aos 
esquemas e grafos, à teoria dos conjuntos e à topologia, complementa e 
reafirma o modelo lacaniano lançando-o para além do estruturalismo 
clássico. 
O 'retorno a Freud' toma como referência a formulação da primeira 
tópica do inconsciente sexual recalcado e estabelece uma certa homolo-
gía, guardando as devidas diferenças entre o associacionismo e o estru-
turalismo. Quanto ao primeiro, critica seu caráter psicológico, represen-
tacional e mecanicista e, quanto ao segundo, afirma seu caráter lógico e 
relacional. Os significantes não são representações de sensações ou ima-
gens de objetos e, apesar de serem unidades discretas, só produzem 
sentido enquanto articulados entre si numa cadeia linear constituída por 
metáforas e metonimias. A fala, por sua vez, já é sintomática no sentido 
em que há sempre um hiato entre o que se diz e o que se quer dizer, e a 
significação se produz, em última instância, no Outro. Posteriormente, 
com o nó borromeano, Lacan vai situar a significação na interseção entre 
imaginário (outro) e simbólico (Outro). 
Lacan nunca pretendeu fazer uma teoria da comunicação. O Outro 
guarda sua dimensão terceira, de alteridade, sobre o outro como interlo-
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24 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
* Para um estudo mais detalhado da topologia de Lacan, remeto o leitor ao traba-
lho de Jeanne Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan. Quanto à formu-
lação do nome-do-pai como o quarto nó que constitui o sintoma fundamental, 
ver Le sinthome, seminário de 18 de novembro de 1975, publicado em Joyce 
avec Lacan, sob a coordenação de Jacques Aubert. 
** A concepção do estádio do espelho foi apresentada pela primeira vez no Con-
gresso de Marienbad em 1936, e, posteriormente, foi reapresentada no Congres-
so Internacional de Psicanálise de Zurique cm 17 de julho de 1949. Esta segunda 
versão está publicada nos Écrits. 
cutor da conversa de modo diverso da concepção interacional dos 'mar-
ginais' apoiada nas relações intersubjetivas. O modelo estrutural do Édi-
po é um bom exemplo. O nome-do-pai é uma função da linguagem, a 
metáfora paterna, como uma operação de substituição (recalque primá-
rio) que possibilita o advento da fantasia como resposta ao enigma do 
desejo da mãe (Outro primordial) e instaura a divisãodo sujeito em 
conjunção e disjunção com seu objeto. Eis a definição básica da fantasia, 
formulada já na década de 1960. Este é o modelo da neurose. 
A démarche lacaniana redefine tanto a dinâmica subjetiva quanto a 
nosología, o diagnóstico e a função do analista na clínica. Apresento 
brevemente cada um desses pontos. 
Quanto à metapsicologia, ou sobre a constituição do sujeito, Lacan 
postula o entrelaçamento dos três registros: imaginário, simbólico e real. 
No decorrer de sua teorização, estes vão sendo redefinidos, variando em 
precedência, até a formulação do nó borromeano que os articula a um 
quarto nó, que será finalmente definido como o nome-do-pai, tendo a 
função de sintoma fundamental que amarra os três registros. A estrutura 
edípica, portanto, é o sintoma fundamental do neurótico.* 
O imaginário é definido, primeiramente, como imago, matriz do 
simbólico na formação do eu (je do sujeito e moi como o ego narcísico 
ou o ego ideal) no conhecido texto sobre o estádio do espelho.** Na 
década de 1950, passa a ser um precipitado do simbólico, consistente 
como imagem do corpo e dos objetos pulsionais, e totalizante como uma 
Gestalt. Aí se dão a circulação dos afetos (amor-ódio etc.) e as relações 
interpessoais como relações entre semelhantes. 
O simbólico é regido pelas leis do significante, em que o processo 
primário opera constituído como uma linguagem no desdobrar da metá-
fora (substituição) e da metonimia (deslocamento). Na primeira formu-
lação de Lacan, o simbólico é organizado a partir da metáfora paterna — 
primeira operação de substituição — como um ponto de ancoragem para 
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O que éfeito da psicanálise I 25 
o sujeito, entrelaçando-o ao eu imaginário e funcionando como barreira 
ao desejo enigmático e caprichoso do Outro — representado pelo desejo 
da mãe. O significante fálico registra a falta— impossibilidade de acesso 
ao desejo do Outro — por diferença da completude imaginária. Entre-
tanto, a constituição do eu, como projeção de uma imagem, só é possível 
pela sustentação simbólica do Outro. O esquema L formulado no Semi-
nário 2 (1954-55) mostra como os dois eixos, imaginário e simbólico, se 
articulam. 
O real, em sua primeira formulação, é o inefável, não captado na 
estrutura significante, o ser perdido do sujeito a partir da castração sim-
bólica, ou seja, da incidência da metáfora paterna. Lacan, posteriormen-
te, o define como seu próprio sintoma e, ao mesmo tempo, como sua 
contribuição à psicanálise através do conceito de objeto a — aquilo que 
se perde do ser pela marcação do simbólico e constitui, míticamente, a 
falta primordial do objeto.* 
A realidade seria o efeito da conjunção do simbólico com o imaginário 
que encobre o real em sua ex-sistance. Uma outra significação para o real 
é a de 'partes sem todo', contrariando a ordem do mundo, em sua absoluta 
ausência de sentido. Na década de 1970, o real vai comportar a letra em 
sua materialidade como suporte do significante e uma dimensão do gozo 
que escapa à ordem fálica e, paradoxalmente, só pode ser pensado a partir 
dessa ordem como um efeito da marcação do significante. 
Quanto à nosología, são definidas três estruturas: neurose (sujeito 
dividido); psicose (foraclusão — rejeição primordial da metáfora pater-
na); e perversão (desmentido da castração). O diagnóstico é feito na 
transferência, ou seja, no modo como o sujeito se apresenta ao analista 
(o Outro do sujeito): o neurótico como faltoso e demandante em sua 
queixa; o psicótico como invadido pelo Outro, ou anulando-o; e o p i 
verso (quando se apresenta!) como objeto para o Outro, não para o Ou> o 
absoluto do psicótico, mas para o sujeito dividido. A clínica lacaniana 
exige uma distinção entre neurose e psicose, sendo que a perversão é 
O conceito de objeto a é bastante complexo e não cabe desenvolvê-lo em toda a 
sua extensão. A partir do Seminário, livro 11 — Os quatro conceitos fundamen-
tais da psicanálise, de 1964, Lacan formula este conceito articulando-o com a 
pulsão escópica. Já na década de 1970, tendo desenvolvido sua topologia, Lacan 
lhe atribui uma função que perpassa os três registros deixando-o retido no centro 
do nó borromeano e, portanto, não se reduzindo ao registro do real. No imagi-
nário tem a função de objeto parcial — as vestimentas imaginárias; no simbólico 
é designado pelos significantes; e, no real, como objeto perdido. 
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26 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
mais problemática. Muitas vezes, localizam-se traços perversos na estru-
tura neurótica. 
Quanto à função do analista, Lacan introduz uma virada fundamental 
no conceito de transferência. Em sua diatribe contra os psicólogos do 
ego, denuncia mais a resistência do analista do que a do analisando. O 
analista resiste com seu ego, seu sintoma, suas interpretações plenas de 
significado, seu saber que, ao ser suposto, não deve ser encarnado num 
ego ideal. A transferência não é para ser interpretada. Ela constitui o 
dispositivo analítico. O conceito de 'sujeito suposto saber' é central para 
definir o estatuto da transferência. O analista, ao ser autorizado a escutar 
um sujeito, está suposto, não como aquele que sabe, mas como aquele 
que deve receber a fala do sujeito como produção de saber, para dar-lhe 
um destino pela via da interpretação. O sujeito, por sua vez, só fala 
porque supõe que isso irá levá-lo a algum lugar ainda não sabido. Se-
ria uma espécie de prova de fé no inconsciente como promessa de signi-
ficação.* 
A técnica deve dar lugar, por um lado, à ética, centrada no que Lacan 
conceitua como o desejo do analista, e, por outro, ao estilo, o savoirfaire 
do analista, com toda a carga semântica do termo, por diferença ao know 
how mais tecnológico. O desejo do analista é um conceito cuja força 
enigmática o transforma em legado e desafio permanente para a psica-
nálise lacaniana. Pode-se defini-lo como o desejo de pura diferença, 
sustentando na transferência o lugar de objeto perdido (objeto a) como 
causa de desejo. O lugar do analista não pode ser o de um outro sujeito 
— a intersubjetividade está fora de questão, apesar de ter constado de 
seus primeiros escritos — deve ser o do objeto que falta, lançando o 
sujeito ao desejo. Simplificando, trata-se de reduzir ao mínimo a pessoa 
do analista em suas intenções, seu ego; portanto seu sintoma; mas, para-
doxalmente, deixando-o livre quanto às possibilidades de sua interven-
ção. O analista se faz ao final de sua própria análise. 
Podemos situar em Lacan dois tempos na concepção do tratamento 
— em francês, cure por oposição a guérison — (Miller, 1987 e Bercherie, 
1988). O primeiro, na década de 1950, enfatiza a função central da fala 
como reveladora da verdade censurada da história e dos sintomas do 
sujeito, guiando a intervenção do analista sobre a emergência das forma-
Sobre o conceito de 'sujeito suposto saber', remeto o leitor ao trabalho de 
Jacques-Alain Miller, Percurso de Lacan, uma introdução, que o sistematiza de 
modo didático no capítulo "A transferência. O 'sujeito suposto saber'". 
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O que éfeito da psicanálise I 27 
ções do inconsciente {Discurso de Roma, 1953). O 'sujeito suposto 
saber' refere-se tanto à posição do analista na transferência quanto à 
suposição de saber atribuída ao inconsciente como o Outro do sujeito que 
põe o processo associativo em marcha. Deve-se evitar a confrontação 
imaginária ou ego-narcísica — analista identificando-se com o saber, 
confronto de sentimentos ou expectativas etc — típica da análise das 
defesas, para permitir a emergência do sujeito do desejo. O analista 
busca localizar-se como o Outro, o terceiro da função paterna. 
O segundo tempo, a partir da década de 1960, Lacan enfatiza o real. 
O analista deve ser o pivô do processo, fazendo as vezes (semblante) do 
objeto a, o objeto que falta e, por isso, causa desejo. No fim da análise, 
o analista deve se reduzir a um resto da operação simbólica.A análise 
deve conduzir o analisando a assumir sua determinação significante para 
ultrapassá-la até o ponto em que toda a significação, toda a produção 
analítica se lança num sem sentido esvaziado de gozo. E um processo 
exaustivo de desidentificações (travessia da fantasia) que desemboca 
numa posição vazia (destituição do sujeito do inconsciente) onde se 
encontra o lugar do analista (des-ser). A fantasia deve-se opor o enigma 
do desejo como um real opaco onde se situa o sujeito. Não o sujeito do 
inconsciente alienado ao discurso do Outro ou do Mestre, mas em seu 
movimento de separação. O recurso cada vez mais incisivo aos cortes nas 
sessões, que tendem a ser curtas, seria um meio de promover esse curto-
circuito. Este é o ponto mais controvertido da clínica lacaniana. Hoje, 
temos uma variedade de leituras de Lacan nas quais podemos reconhecer 
um divisor de águas esses dois momentos de sua teoria. 
Apresentados os diferentes modelos que compõem o campo psicana-
lítico, a questão não se reduz a reconhecer essas tendências em sua 
disputa pela ortodoxia. Deve-se tentar encontrar um ponto comum sobre 
o qual esses modelos se edificam sob a rubrica de psicanálise. E possível 
pensar em uma unidade diante de tanta diversidade? Ou o campo psica-
nalítico pode explodir numa babelização de discursos incompatíveis? 
Embora existam conceitos comuns, como inconsciente, recalque, pul-
sões, transferência, interpretação e, last but not least, associação livre, 
suas definições e seus usos diferem significativamente. 
O pior destino para a psicanálise seria a solução eclética que poderia 
transformar o sujeito psicanalítico numa espécie de ornitorrinco dotado 
de um ego forte e adaptado a uma ilusão, de um inconsciente interno c 
abissal, resultante de relações de duplo vínculo com pais perversos, que 
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28 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
não passam de significantes ambulantes, e de uma forte tendência agres-
siva, advinda das primitivas pulsões de morte que, por sua vez, resultam 
de um superego cultural, ora forte, ora fraco, que se vinga de um ego 
narcísico. 
Apresento algumas propostas de interesse: 
Kernberg (1994), muito preocupado com a queda do prestígio da 
formação profissional e da própria clínica psicanalítica nos EUA, lamen-
ta o grande desconhecimento, atribuído ao preconceito e à barreira lin-
güística, do que se passa na Europa, especialmente na França, e destaca 
os pontos positivos das "teorias alternativas" que incluem os novos de-
senvolvimentos da psicologia do ego, da teoria das relações de objeto, da 
psicologia do self, da análise interpessoal e, até mesmo, de algumas 
referências à teoria lacaniana. Propõe uma investigação empírica que 
ultrapasse a discussão teórica e uma abertura para as diferenças visando 
engrandecer o movimento científico sem a ingenuidade de assimilar 
modismos ou fundir modelos incompatíveis. Acrescenta que o candidato 
a analista deve ter acesso a abordagens diversificadas, mas alerta as 
instituições contra o "terrorismo intelectual" decorrente do proselitismo 
carismático de qualquer abordagem nova. Quanto à clínica, defende a 
multiplicidade de técnicas sob a égide de alguma trama teórica, com o 
objetivo explícito de diminuir os índices de evasão (que parece ocorrer) 
entre os pacientes da chamada psicanálise ortodoxa. 
Mezan (1988a,b,c) aponta os "monólogos cruzados" entre kleinianos 
e lacanianos por se situarem apenas no plano das respostas, ignorando 
que as teses não passam de respostas a perguntas diferentes. Daí sua 
constatação perplexa de que "os psicanalistas não falam a mesma língua" 
(1988b p. 15). Tal dispersão manifesta-se no que denominou uma "trípli-
ce diáspora": dispersão geográfica (contexto sociocultural europeu, nor-
te-americano e latino-americano); dispersão doutrinária (campo concei-
tuai); e dispersão institucional (política da psicanálise como produção de 
verdade avessa à relativização). Nesse ponto, Mezan enfatiza o caso 
brasileiro através daquilo que denomina "vulnerabilidade ao dogmatis-
mo": na impossibilidade de reconstituir a gênese do que nos é apresen-
tado, resta-nos acatar ou recusar cegamente o que está escrito (1988a, 
p. 11). Sua proposta é que se faça uma história epistemológica da psica-
nálise rastreando as perguntas que cada autor pretende responder, uma 
vez que o que pode ser fértil para a psicanálise reside não nas afirmações 
mas nas novas questões que podem ser formuladas. Para isso, constrói 
O que é feito da psicanálise I 29 
um método com base no conceito freudiano de sobredeterminação. 
Deve-se considerar os desdobramentos de quatro dimensões epistemoló-
gicas da obra de Freud como pontos de isomorfismo ou homologia entre 
as três principais escolas pós-freudianas — kleiniana, lacaniana e psico-
logia do ego. Essas dimensões são: uma teoria geral da psique (topologia, 
dinâmica e economia do aparelho psíquico); uma teoria da gênese e do 
desenvolvimento da psique (história concreta do sujeito referida a um 
modelo esquemático universal); como resultante das duas primeiras, 
uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique (soluções 
neuróticas, perversas ou psicóticas para os conflitos fundamentais); e, 
por fim, uma concepção do processo psicanalítico (modalidades de in-
tervenção visando modificar o funcionamento psíquico [1988c]). 
Lo Bianco (1991), por sua vez, abandona a epistemologia e relativiza 
os processos de legitimação das diferentes verdades psicanalíticas, his-
toricamente construídas para ressaltar o problema da importação de 
idéias na cultura brasileira. Destaca duas áreas problemáticas na contex-
tualização da clínica psicanalítica: a cultura psicanalítica que grassa 
nos extratos médios urbanos psicologizados e seu avesso, a distância 
sociocultural da psicanálise que os extratos de baixa renda da popula-
ção apresentam nos atendimentos ambulatoriais. Propõe, então, que os 
próprios psicanalistas façam um exame mais criterioso do contexto 
sociocultural em que se dá sua experiência analítica, a partir de sua 
clínica, a fim de avançar na elaboração teórica de seus conceitos, não 
deixando essa tarefa apenas aos teóricos da psicanálise nem aos sociólo-
gos ou antropólogos. 
Bezerra (1991) propõe uma rediscussão ética do problema, a partir 
da concepção pragmática do conhecimento em oposição à concepção 
metafísica. Ao invés de se tentar saber quem é o detentor da verdade 
última da psicanálise em seus fundamentos, em sua essência, deve-se 
fomentar uma discussão sobre o que há de convergente e contrastante nas 
diversas formas do pensar psicanalítico em sua capacidade descritiva e 
produtora de sentido segundo as urgências clínicas e determinações pes-
soais, políticas e culturais de cada um. 
Bercherie (1988) considera que não é pela via teórico-conceitual que 
se vai resolver o problema. Se Freud fazia questão da ciência, é preciso 
repensá-la num outro patamar. Por um lado, a necessidade de uma língua 
comum, de um consenso conceituai de base, limitaria o avanço que 
poderia se dar nos diferentes setores do campo psicanalítico. Por outro, 
a questão da filiação, seja de grupos ou pessoal, a determinado modelo 
30 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
é revestida de interdições, idealizações e exclusões pelo próprio poder da 
transferência que agencia fidelidades esterilizantes ao oferecer o que há 
de mais precioso ao futuro analista. Sua proposta para integrar a história 
c o estado atual do movimento freudiano é a de um atravessamento 
subjetivo como resolução da transferência dirigida à teoria, aos mestres 
e à instituição analítica e como assunção de uma nova relação do sujeito 
com o real, marcada pela passagem de um quadro claro e evidente à 
hiância de uma confusão, ao menos temporária, e de uma relativização 
permanente do conhecimento. 
A ética é evocada como um novo posicionamento, uma vez que 
saberes e conceitos sempre podem ser apropriados, partilhados ou inte-
grados. Apostura do sujeito seria unívoca, e é ela que comanda suas 
escolhas práticas e teóricas. Ao analista, portanto, cabe ultrapassar sua 
filiação, no sentido radical do termo, não só à teoria e aos mestres, mas, 
principalmente, à sua própria análise para se engajar na aventura de 
refazei" a psicanálise. A opção de Bercherie pelo referencial lacaniano é 
explícita. Ele defende que foi Lacan, com seu ensino peculiar, quem 
produziu uma dissimetria em relação às outras correntes psicanalíticas 
introduzindo a pluralidade do real frente às realidades subjetivas unitá-
rias e coerentes e a dimensão do desejo em sua obscuridade subjetiva 
mas também, em sua fecundidade simbólica. 
Permanece, entretanto, o problema de como inventar permanente-
mente a psicanálise sem ameaçar romper com o que a caracteriza e 
delimita. Seria, em última instância algo comum ao nome de Freud? 
Apenas um nome próprio vazio de significação? (Derrida, 1980; Forres-
ter, 1989). 
3. A psicanálise no ambulatório: um novo contexto? 
A primeira questão de que devo me ocupar são as condições mínimas, 
necessárias, para que a psicanálise seja viável no ambulatório. Se tomar-
mos as condições como contextos, esta pode ser uma falsa questão. Para 
discutir a noção de contexto apóio-me nas concepções de Richard Rorty 
e Jacques Derrida. 
Rorty (1991) sustenta que todos os objetos já são contextualizados. 
Portanto, a questão não é retirar o objeto de seu velho contexto e exami-
ná-lo em si mesmo para ver qual o contexto que lhe é mais apropriado. 
O que está sendo posto em contexto é apenas "boringly and trívially" 
uma crença. Falar sobre o objeto é falar sobre os efeitos práticos desse 
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O que efeito da psicanálise \ 3 1 
objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto é antes retecer cren-
ças do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das 
hipóteses um "focas imaginarius". E uma crença não passa de uma 
posição na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa é relacio-
ná-la com outras, e não há nada que preceda a contextualização (p. 98-
100). Nesse sentido, descrever a psicanálise, seja através dos relatos 
obtidos na pesquisa ou das definições que a caracterizam, retece a teia 
onde vai se evidenciar uma concepção de psicanálise que, ao mesmo 
tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em 
novas recontextualizações. 
Devemos, contudo, estar atentos para não' reificarmos a noção de 
contexto, erigindo-o à categoria de fundamento último das coisas. Rorty, 
em seu estilo desconcertante, nos tranqüiliza: um contexto pode ser uma 
nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu-
lário descritivo, um novo propósito particular ou político, o último livro 
que se leu, a última pessoa com quem se falou, as possibilidades são 
infindáveis (op. cit. p. 94). 
Para Derrida (1991), não há um contexto absolutamente determinável 
ou um conceito rigoroso e científico de contexto. Desse modo, recontex-
tualizar a psicanálise pode ser entendido como uma revisão conceituai, 
no campo próprio da teoria, como uma relocalização de sua prática no 
campo da clínica em suas variações. A dicotomia consultório privado 
versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre 
dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises, 
pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por 
excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa 
questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer 
o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as 
possibilidades do exercício da psicanálise. 
A questão, contudo, permanece: até onde essas possibilidades podem 
ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica-
tiva, o que garante que novas recontextualizações, ao produzirem novos 
objetos, não nos lançariam no paradoxo de não estarmos mais falando de 
psicanálise? Ou pior, poderíamos redescrever ou redefinir a psicanálise 
num movimento infindável, onde tudo pode ser psicanálise. Tudo ou 
nada são duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como 
identidade na diferença. 
Para não cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanálise como 
a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepções de 
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32 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Derrida e Rorty para estancar uma dúvida que remonta à discussão dos 
filósofos pré-socráticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes-
mo no cosmos. 
Com Derrida, apóio-me no conceito de réstance — o que resta e 
resiste — para assegurar que algo do signo permanece para que seja 
reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece: 
"Uma vez que o contexto não é 'exaustivamente determinável', não 
há como traçar um limite até onde ele possa transformar o signo; tudo o 
que sabemos é que há um 'resto mínimo' {réstance) que nos permite 
reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um 
signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrências de um signo são 
reconhecidamente as mesmas, todavia, também são diferentes porque 
novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig-
nificação. (...) Contudo, esse não é um fenômeno arbitrário ou indiscipli-
nável; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variação das funções 
de uma palavra numa sintaxe construída com engenho e arte. (...) Sabe-
mos a priori que essa variação se estenderá num sem fim para além de 
nossas intenções conscientes. Mas a ausência de um limite determinável 
ou conhecível não significa que toda e qualquer coisa seja possível em 
todo e qualquer tempo; ao contrário, a variação da ativação futura do 
significado ocorrerá em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar 
aspectos correspondentes do significado" (p. 122, tradução minha). 
Esta afirmação apresenta o conceito de réstance não corno uma pro-
priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que é determinado numa 
sintaxe específica cuja variação remete ao tempo futuro na proliferação 
de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos 
tempos passado e presente. Estes tempos não são pura cronologia, são 
tempos que recortam costumes e crenças, por exemplo. 
Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual 
preconiza que não nos cabe ir além das determinações da cultura, das 
contingências históricas que nos constituem com suas palavras e crenças. 
Devemos nos contentar em estabelecer a controvérsia entre as partes de 
nossas próprias convicções (op. cit. p. 14). 
Tomando a psicanálise como uma cultura que produz psicanalistas e 
determina sua ação, cabe problematizá-la no seu interior ao invés de 
apreciá-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis-
tância de nosso objeto para apreendê-lo de outro modo, não devemos 
abandonar nosso vocabulário, mas sim ampliá-lo e modificá-lo em novas 
O que éfeito da psicanálise I 33 
contextualizações para que não se perca a referência ao ethnos psicana-
lítico. 
Tomando o termo psicanálise como nosso "signo", o que resta e 
resiste remete de imediato ao nome e à obra de Freud. Entretanto, na 
atual dispersão do campo psicanalítico, já se alardeia em certos meios 
psicanalíticos que o freudismo virou história. É passado e ultrapassado. 
No meu entender, o ethnos psicanalítico só faz sentido a partir de Freud 
e com Freud. Mas essa atualização ou recontextualização de Freud tem 
como contexto uma nova teoria explicativa que, como tal, lança-se pelo 
mote de um retorno a Freud. Como já mencionei, o nome de Lacan e sua 
teorização — seu ensino por transmissão oral e transcrição — que vem 
se constituindo como obra na última década, redimensiona o futuro da 
psicanálise. O texto de Lacan é, então, um novo contexto para a psicaná-
lise. Cito aqui um comentário prosaico de Thomas Ktihn que, ao discutir 
a tradição e a inovação na investigação científica, define-acomo uma 
tensão essencial: "Nas ciências, (...) é muitas vezes melhor fazer o que 
se pode com as ferramentas à disposição, do que fazer uma pausa para 
contemplar abordagens diferentes." (Kuhn, 1989, p. 275-6). 
Lacan, a meu ver, situa-se nessa tensão essencial entre o "pensamento 
divergente", como "a liberdade de ir em direções diferentes, (...) rejei-
tando a velha direção e arrancando numa nova direção qualquer"; e o 
"pensamento convergente", que mantém a tradição do "consenso estabe-
lecido, adquirido na educação científica e reforçado na vida subseqüente 
na profissão." (ibid. p. 276-8). 
Lacan rompe com a política, a teoria e a clínica instituídas em seu 
tempo, arrancando na direção paradoxalmente retroativa a Freud, ao 
mesmo tempo que 'redefine' a psicanálise. Hoje, tornou-se uma "ferra-
menta à disposição" exatamente porque não se limitou aos encantos da 
"revolução científica" que promoveu, e tratou de restabelecer o terreno 
do consenso na "educação" dos psicanalistas, fazendo escola. Convém a 
ressalva do termo 'científico', posto que Kuhn refere-se exclusivamente 
às ciências naturais, uma vez que não tenho a pretensão de discutir o 
estatuto científico da psicanálise nesses termos. O uso da palavra tem 
aqui o sentido da teoria como um sistema conceituai, suficientemente 
operacionalizável e aplicável na clínica. Esta sim, o elemento-surpresa 
que provoca a teoria em seu alcance explicativo e resolutivo. Nesse 
ponto, retorno a Derrida para reafirmar minha concepção de teoria: "Não 
há conceito metafísico em si. Há um trabalho — metafísico ou não — 
sobre sistemas conceituais" (op. cit. p. 37). 
Interrogando o ambulatório 
1. Sobre a pesquisa: uma participação observante 
Ao fazer uma pesquisa empírica para dar suporte à minha argumenta-
ção, tomo a experiência como um campo comum onde se turvam os 
limites entre o subjetivo e o objetivo, situando-me na realidade da pala-
vra, e reproduzo os relatos dos sujeitos pesquisados como fatos de lin-
guagem. Não se trata de comprovar a veracidade de cada dito, mas de 
citar, o mais literalmente possível, segmentos de falas, de enunciados, 
considerando o contexto em que se dá a enunciação. Isto é, no que se 
refere ao lugar de onde falam, para quem falam, e ao encadeamento da 
fala na seqüência. Não me limito a ser a ouvinte, mas falo com eles, 
através deles e para além deles, querendo dizer mais do que foi dito. 
Sabedora de que ao citar repito e modifico os relatos orais e escritos a 
que tive acesso, dando-lhes um destino peculiar em um novo contexto, 
conduzi essa empreitada. 
Desse modo, valho-me taticamente desses relatos, como dados dos 
quais me aproprio, para construir minha argumentação que pretende ser 
mais do que tendenciosa. Pretendo apontar-lhes novos sentidos, transfor-
má-los mesmo, segundo meu propósito de fundamentar a psicanálise 
possível fora do consultório privado. Aqui, para definir meu método, 
tomo emprestada a expressão "participação observante" de Eunice Dur-
ham em sua crítica bem humorada à tendenciosidade das pesquisas 
antropológicas que "resvalam para a militância" (Durham, 1986, p. 27). 
Ao me propor conviver e conversar com um meio tão familiar, entrego-
36 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
me à possibilidade de estranhá-lo, mas não abro mão da militância, da 
crença que aponta para o desejo de afirmar a psicanálise. 
Os procedimentos da pesquisa se desdobraram a partir de três mo-
mentos de meu trabalho que se sucedem e se complementam. Detalho 
cada um: 
1) Em minha experiência como docente do Instituto de Psiquiatria da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB), convivo com diferentes 
profissionais e seus paradigmas de doença, tratamento e cura. Registrei 
falas, atitudes e situações presenciadas no trabalho diário do ambulatório 
e na interação com outros setores, como a enfermar'a e o hospital-dia. 
Obtive, também, material oral e escrito mais detalhado sobre o funcio-
namento das diferentes modalidades de recepção e encaminhamento de 
pacientes no ambulatório.* Além disso, mantenho um trabalho de super-
visão e acompanhamento dos casos atendidos pelos pesquisadores (psi-
quiatras, psicólogos e psicanalistas) do Projeto de Assistência à Saúde 
Mental do Trabalhador (PRASMET).** Recolhi alguns casos que consi-
derei relevantes a partir do registro oral e escrito das sessões. 
Deliberadamente, não incluí material obtido na supervisão de casos 
atendidos por alunos, salvo uma ou outra exceção, já que sua posição é 
ambígua na instituição: são aprendizes ao mesmo tempo em que são 
profissionais e estão de passagem nos serviços. Seu trabalho tem a 
designação escolar de estágio e a responsabilidade pela clínica é dividida 
com o professor cuja autoridade remete o aluno a um lugar de submissão, 
não sem conseqüências para a clínica (Figueiredo, 1996b). 
2) Organizei um grupo de trabalho no Círculo Psicanalítico do Rio 
de Janeiro no período de março de 1993 a julho de 1994 com o tema 
'Clínica Psicanalítica no Ambulatório Público'. A participação era facul-
* A partir de 1994 foi implantado no ambulatório o sistema de recepção em grupos 
sob a coordenação de Sergio Levcovitz, psiquiatra e um dos idealizadores desse 
projeto. Acompanhei o trabalho e obtive material escrito produzido por ocasião 
do I Seminário sobre os Grupos de Recepção do IPUB realizado em abril de 
1995 pelos membros da equipe multiprofissional responsável pelo trabalho. 
** O Projeto de Assistência à Saúde Mental do Trabalhador (PRASMET) é coor-
denado por Silvia Rodrigues Jardim, psiquiatra e pesquisadora vinculada ao 
Programa de Pesquisa em Organização do Trabalho e Saúde Mental coordenado 
pelos professores João Ferreira da Silva Filho e Maria da Glória Ribeiro da 
Silva. 
Interrogando o ambulatório | 37 
tada a quaisquer profissionais vinculados à rede pública que tivessem 
uma afinidade direta com o tema proposto.* 
As discussões, inicialmente, se faziam em torno da descrição e ava-
liação desses serviços, dos seus problemas e de suas possibilidades em 
propiciar um trabalho psicanalítico. Posteriormente passamos à apresen-
tação e discussão de casos, etapa mais difícil e delicada, pois envolvia 
um esforço maior de construção dos casos, fazendo surgir os impasses 
propriamente clínicos de cada um. O registro foi feito com anotações 
minhas e com o material fornecido sobre os casos e o percurso dos 
participantes tanto nos serviços e na formação em psicanálise. 
3) Elaborei entrevistas roteirizadas realizadas com 28 profissionais da 
rede pública entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que se dispuse-
ram a conversar sobre seu trabalho.** Entrevistei-os uma ou duas vezes, 
* Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vínculo empre-
gatício nas seguintes unidades: Centro de Saúde Carlos Antônio da Silva (Nite-
rói); Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão (Tijuca); Instituto de Cardiologia 
Aluysio de Castro (Humaitá); Hospital Infantil Ismélia Silveira (Caxias); Hospi-
tal Jurandir Manfredini da Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); Hospital 
Gafrée Guinle — ambulatório de adultos (Tijuca); Serviço de Saúde Mental de 
Cabo Frio; IASERJ — ambulatório Maracanã; Hospital Cardoso Fontes/Hospi-
tal Geral de Jacarepaguá — Serviço de Adolescentes; Serviço de Psicologia 
Aplicada da UERJ e Posto de Saúde do Município de Cantagalo. Estes profis-
sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na 
psicanálise. Alguns vinham de instituições psicanalíticas onde receberam uma 
formação regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formação atra-
vés do Círculo, embora já tivessem uma experiência pessoal em grupos de 
estudo, supervisão e análise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do 
Círculo. 
** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Médico — PAM Bangu 
(emergência e ambulatório); PAM Irajá (serviço de psiquiatria); PAM 13 de 
Maio — Centro (serviços de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM São 
FranciscoXavier (atualmente Policlínica Piquet Carneiro) e PAM Venezue-
la/Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (emergência); Centro de Saúde de 
Duque de Caxias (serviço de saúde mental); Centro Municipal de Saúde Manoel 
José Ferreira — Catete (serviço de psicologia); Centro de Saúde Santa Rosa — 
Niterói (serviço de saúde mental); Centro de Saúde Dr. Washington Luís Lopes 
— São Gonçalo (serviço de saúde mental); Programa Especial de Saúde Mental 
de Barra do Pirai (ambulatório); Posto Municipal de Saúde Dr. Cândido de 
Freitas — Duque de Caxias (serviço de psicologia); Posto de Saúde do Municí-
pio de Cantagalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde Santa Isabel — São 
Gonçalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde de Volta Redonda (serviço de 
38 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
saúde mental); Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba — Niterói (ambulató-
rio); Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho do Centro Psiquiátrico Pedro 
II — Engenho de Dentro; Hospital Phillipe Pinel — Botafogo [Núcleo de As-
sistência Intensiva à Criança Autista c Psicótica (NAICAP)]; Instituto de Assis-
tência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) — Maracanã e 
Gávea (serviço de psicologia); Hospital dos Servidores do Estado (serviço de 
psicologia); Hospital da Polícia Militar (serviço de psicologia); Hospital Pedro 
Ernesto/UERJ — Núcleo de Estudos do Adolescente (NESA). 
de acordo com minha necessidade e a disponibilidade de cada um, levan-
do em conta as informações de que dispunham e o tempo necessário para 
abrangê-las. Houve casos em que entrevistei várias pessoas ligadas ao 
mesmo serviço, ou apenas uma de determinado serviço. O critério se deu 
a partir do tamanho e da complexidade dos serviços e/ou da unidade a 
que estavam vinculados, sempre privilegiando o trabalho ambulatorial. 
As entrevistas foram gravadas e transcritas por mim, de modo que 
pude fazer da transcrição um bom momento para elaborar as informa-
ções e perceber sutilezas que me escaparam enquanto entrevistadora. Ao 
ouvir a repetição literal da conversa — estando posicionada como ouvin-
te de mim mesma e do outro, efeito da magia do gravador — deparei-me 
com novos sentidos, novas possibilidades de tradução, a partir de deta-
lhes de alguns ditos, de determinada entonação, pausas, uma certa mo-
dulação da voz, enfim, uma maneira de 'ouvir' nas entrelinhas que 
lançava questões e desafios não previstos. O efeito-surpresa deu-se aí de 
modo contundente. 
A escolha dos entrevistados não foi feita através dos serviços e, sim, 
por indicação de colegas psicanalistas mais próximos atendendo meu 
pedido de entrar em contato com profissionais que tivessem alguma 
ligação com a psicanálise e se propusessem a praticá-la nos ambulatórios 
públicos. Iniciei as entrevistas pelos meus colegas, é claro! Afinal, esse 
é o meio mais agradável e menos sujeito a resistências em fornecer 
informações. Daí em diante, obtive outros nomes e fui diversificando a 
amostra. Não me preocupei em definir a priori o número de sujeitos, seu 
perfil ou sua função nos serviços além da atividade clínica. Meu objetivo 
era fazer falar aqueles que tinham um percurso de no mínimo dois anos 
no serviço público, para melhor localizar os impasses e questões premen-
tes que advêm do seu trabalho clínico. Não se tratava de mapear os 
serviços nem de fazer uma avaliação mais rigorosa de seu funcionamento 
ou das políticas públicas que lhes deram origem. Essas informações 
foram acessórias e não constituem material expressivo para minha aná-
Interrogando o ambulatório I 39 
lise. Tinha uma escolha a fazer: ou bem tratava de traçar um perfil da 
rede pública ou me dedicava a pensar sobre as questões mais sutis do 
exercício da psicanálise, em sua feição peculiar, nos ambulatórios. Desde 
o início, a escolha já estava feita. O que precisava saber dizia respeito à 
diversidade ou semelhança das experiências de profissionais que, de 
alguma maneira, remetiam seu trabalho clínico à psicanálise. 
Obtive informações sobre diferentes tipos de serviços de acordo com 
o percurso dos entrevistados. Houve casos em que o entrevistado era 
procurado para falar de seu trabalho em determinado serviço e acabava 
falando de outro onde havia estado por um período maior, ou onde 
trabalhou melhor ou pior. Daí, traçávamos comparações, discutíamos 
modelos, formas de reconhecimento e validação da psicanálise que va-
riavam significativamente de um serviço para outro etc. 
Minha pesquisa, portanto, trilhou mais ou menos aleatoriamente ser-
viços heterogêneos —visitei alguns — quanto a local e população aten-
dida, proposta de trabalho clínico, política da direção das unidades e sua 
articulação com as políticas mais amplas de saúde mental e formação das 
equipes. Deixei de lado os serviços universitários diretamente ligados à 
formação de alunos, mas incluí um cuja característica era ter apenas 
técnicos e/ou pesquisadores à frente do trabalho clínico. Não me preocu-
pei quanto ao número total de entrevistas, considerando que em determi-
nado ponto haveria um basta. A premência do tempo não foi o fator 
menor, mas a recorrência de dados que incidiam sobre problemas seme-
lhantes foi a medida. 
Preparei um roteiro dividido em três partes: formação e percurso na 
psicanálise; modo de inserção e relação com o serviço; trabalho clínico 
com diferenças e aproximações do modelo do consultório. Para minha 
surpresa, a ordem não foi seguida, mas os tópicos entrelaçavam-se es-
pontaneamente como se fossem conseqüência natural um do outro. Con-
cluí que esse era o caminho e engavetei as cópias do roteiro. 
As entrevistas decorreram num processo análogo ao da associação 
livre — até onde podemos entendê-la como livre — e minhas perguntas 
foram a reboque das informações obtidas. Com freqüência, as entrevistas 
se iniciavam a partir de questões propostas pelos próprios entrevistados, 
que revelavam suas preocupações mais imediatas, como críticas ao fun-
cionamento dos serviços, projetos e idéias para sua melhoria, um caso 
clínico de difícil manejo, ou mesmo sua trajetória peculiar no serviço ou 
na psicanálise. Minha participação muitas vezes resultava em discutir os 
temas pensando soluções, emitindo opiniões, comentando os casos, en-
fim, trabalhando sobre as informações no decorrer das entrevistas de 
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40 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
modo que resultassem em alguma contribuição para os entrevistados. 
Encontrei pessoas entusiasmadas com suas conquistas, outras descrentes 
de qualquer possibilidade de renovação e, ainda, outras, temerosas po-
rém esperançosas, com prazer em reavivar suas idéias a partir de nossas 
conversas, que, espero sinceramente, tenham tomado novo fôlego para 
continuar. 
Concluída a pesquisa, obtenho anotações dispersas, um vasto mate-
rial de entrevistas transcritas e comentadas, e escritos diversos sobre 
casos clínicos e temas afins. Resta organizá-los metodicamente para 
deles extrair os fios com os quais devo tecer meu argumento. Do emara-
nhado de dados começo a agrupar os pontos comuns e contrastantes para 
dar-lhes uma coerência mínima. 
Meu método fundamenta-se na argumentação por exemplo, particu-
larizando as situações caso a caso. E, curiosamente, ao pedir que meus 
entrevistados dessem exemplos de sua clínica ou de situações que pode-
riam ilustrar suas afirmações gerais, adotei o modo de argumentação por 
exemplo no ato mesmo das entrevistas, entendendo que essa era a melhor 
maneira de me aproximar da clínica. Trabalho com segmentos de enun-
ciados, retirando-os dos contextos em que foram apresentados, transfor-
mando-os em citações para dar-lhes novos sentidos e extrair-lhes sua 
força exemplar. 
Ao exemplificar, recorro à citação, e citar é recontextualizar. E, ao 
citar as citações contidas nos relatos, refaço mais uma vez seu sentido. 
Mas não devemos entender que se tratam dc duas realidades ou dois 
níveis distintos de linguagem: a citação e o texto propriamente dito.

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