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O feminino nas canções de Chico Buarque - uma análise jungia

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 42 
UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA
Projeto Novo Saber
Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” –
Especialização em Literatura Brasileira
O FEMININO NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE – UMA ANÁLISE JUNGIANA DOS ARQUÉTIPOS MITOLÓGICOS
por
Élin Cunha Luiz Cardoso
Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Especialização em Literatura Brasileira da Universidade Salgado de Oliveira, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Literatura Brasileira.
Goiânia
Outubro de 2003
ÉLIN CUNHA LUIZ CARDOSO
O FEMININO NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE – UMA ANÁLISE JUNGIANA DOS ARQUÉTIPOS MITOLÓGICOS
Goiânia
Outubro de 2003
SUMÁRIO
 RESUMO
I. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 3
II. UM POUCO DE CHICO, DAS MULHERES E DE MITOLOGIA ..................... 4
2.1. Chico Buarque – Vida e Obra ......................................................................... 4
2.2. O feminino nas canções de Chico ................................................................... 6
2.3. Aspectos do feminino na Mitologia ................................................................ 8
III. FIGURAS FEMININAS MITOLÓGICAS NAS CANÇÕES DE CHICO .......... 10
3.1. As várias deusas influenciando o comportamento da mulher ....................... 10
3.2. Hera ................................................................................................................ 12
3.3. Deméter .......................................................................................................... 20
3.4. Héstia ............................................................................................................. 24
3.5. Afrodite ......................................................................................................... 26
3.6. Hécate ............................................................................................................ 36
IV. SOBREVIVER À PERDA E AO PESAR ........................................................... 40
V. A PSICOLOGIA DA MULHER ......................................................................... 41
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 42
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 43
RESUMO
Dizer que a mulher sempre esteve à margem da sociedade, portanto, vista como ser inferior, sendo vítima constante de preconceitos, não é uma verdade absoluta. Na Grécia Arcaica, o mundo era regido pela Deusa Mãe, que, mais tarde, fragmentou-se em suas muitas faces: Afrodite, Deméter, Ártemis, Héstia, Atena, Hera, entre outras. Somente quando o mundo passou a ser regido por uma entidade masculina (com o advento da revolução olímpica, isto é, com a introdução do patriarcado), a mulher deixou de ser o centro. A partir de então, passando para segundo plano, a mulher perdeu a sua primazia. Muito tempo depois, com os estudos de Freud e Jung, as mulheres passaram a ser analisadas em seu comportamento, atitude, temperamento e muitas outras facetas. Porém, sua posição desprivilegiada manteve-se e mantém-se, até hoje (apesar de sua luta por igualdade de direitos e oportunidades), na marginalidade. Chico Buarque, um compositor engajado e presente, emblema da resistência à ditadura e à censura, sempre privilegiou em sua obra os marginalizados: o malandro, o menor de rua, a mulher, entre outros. Com base nos tipos psicológicos e os arquétipos jungianos, a mulher é analisada sob o ponto de vista mitológico das deusas gregas. Hera, Deméter, Héstia, Afrodite e Hecate são as entidades enfocadas na presente análise das figuras femininas, além de um breve estudo sobre uma temática comumente observada no cancioneiro elencado (a separação, rompimento, perda de um preceiro, filho ou alguém muito importante), também a psicologia da mulher e a interferência que cada arquétipo constantemente faz na personalidade das mulheres em suas várias épocas da vida, são analisadas (de forma breve e concisa) nas canções deste excepcional e versátil escritor.
INTRODUÇÃO
Hera, Deméter, Afrodite, Ártemis, Palas Atena e Héstia. As mulheres imortalizadas pela mitologia greco-romana estão presentes na vida de cada uma, simbolizando diferentes aspectos da alma feminina. Elas podem se identificar mais com uma, mas todas fazem parte, em determinada época, do seu comportamento. Elas representam arquétipos, palavra definida pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung, discípulo de Freud, como "imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que são patrimônio comum a toda a humanidade".
Dulce Lowe, psicóloga junguiana, aponta para a importância de se conhecer esses mitos. "A mulher vive muitas emoções que ela não consegue identificar profundamente", aponta ela. Assim, pode-se notar determinados aspectos que faltam ou que são exaltados na personalidade de cada uma. Se isso estiver incomodando, é possível entender como resgatar e transformar esses aspectos, já que todas as deusas moram nas mulheres. "Somos portadoras de todas as deusas. Elas nos visitam, dependendo do momento que vivemos", explica Dulce. 
É apontada uma divisão entre as mulheres mais poderosas da mitologia grega e romana. Hera, Héstia, Deméter e Afrodite são deusas conectadas com os papéis femininos mais clássicos. A esposa, a mantenedora do lar, a fertilidade e o amor. Já Ártemis e Palas Atena são os aspectos masculinos da personalidade feminina, a caçadora e a estrategista de guerra, aquela que age com racionalidade.
Na música de Chico Buarque a mulher é a eterna musa. Cantar com magia a sedução pelo feminino é a sua grande arte. Ele abarca desde a mulher dionísiaca, aquela que se oferece à felicidade plena, quase ingênua, à mulher da raça de Prometeu, racional e trágica como o próprio deus da civilização, do trabalho, da cultura e, também, da repressão. Ou a mulher de Atenas, prisioneira do inescapável papel social de “serva da espécie”. É uma galeria interminável, modelada às vezes com suave lirismo, às vezes com dramas de separações dilacerantes, sempre com jogos de entregas, perdas, ambivalências e a infinitude da busca de felicidade, de amor. Apesar de haver tantas relações com a mitologia, sua obra não foi, necessariamente, construída sobre este prisma.
Outro escritor poderia ser estudado a partir do ponto de vista jungiano dos tipos psicológicos e arquétipos, no entanto, por haver tamanha riqueza na personalidade das suas figuras femininas e por ser um escritor contemporâneo de um talento fora do comum, Chico Buarque foi escolhido como objeto de análise.
II. UM POUCO DE CHICO, DAS MULHERES E DE MITOLOGIA
2.1. Chico Buarque – Vida e Obra
Chico Buarque (Rio de Janeiro RJ 1944) iniciou curso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 1963, mas não chegou a conclui-lo. 
Em 1964 participou no Festival de Música Popular Brasileira, em São Paulo SP, com Sonho de um Carnaval, defendida por Geraldo Vandré. No mesmo ano apresentou-se no programa O Fino da Bossa, com Alaíde Costa, Zimbo Trio, Jorge Benjor e outros. 
Em 1965 foi lançado seu primeiro disco compacto, com as músicas Sonho de um Carnaval e Pedro Pedreiro. Conquistou o primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record com a música A Banda. 
Musicou a peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que estreou no Teatro da Universidade Católica - TUCA em 1966.
Nos anos seguintes publicou as peças teatrais Roda Viva, Gota d'Água, com Paulo Pontes, Calabar e Ópera do Malandro. Durante apresentação da peça Roda Viva em São Paulo, em 1968, houve invasão do Comando de Caça aos Comunistas - CCC, no Teatro Galpão. 
Ainda em 1968 foi preso e levado ao Ministério do Exército, acusado de participar da Passeata dos Cem Mil, contra o regime militar. Exilou-se em Roma, entre 1969 e 1970.
Nos anos de 1970 e 1980 compôs músicas para vários filmes, entre os quais Bye ByeBrasil e Eu Te Amo, e também músicas para os espetáculos de dança O Grande Circo Místico e Dança da Meia-Lua, para a peça O Corsário do Rei, todas em parceria com Edu Lobo.
Entre 1991 e 1995 publicou os romances Estorvo, que recebeu o Prêmio Jabuti de Romance em 1992, e Benjamim. Chico Buarque é um dos maiores compositores da canção popular brasileira; sobre sua obra, escreveu Tom Jobim: "Eterno, simples, sofisticado, criador de melodias bruscas, nítidas, onde a Vida e a Morte estão sempre presentes, o Dia e a Noite, o Homem e a Mulher, tristeza e alegria, o modo menor e o modo maior, onde o admirável intérprete revela o grande compositor, o sambista, o melômano inventivo, o criador, o grande artista, o poeta maior Francisco Buarque de Hollanda (...)". 
Seu mais recente trabalho (publicado em setembro) é o romance Budapeste, que segundo a crítica, o novo livro é o mais bem elaborado de sua carreira como ficcionista.
2.2. O feminino nas canções de Chico
A figura de Chico Buarque é, sem dúvida, uma das mais representativas da música popular brasileira. Com mais de trinta discos gravados, o autor tem conseguido uma penetração em meio ao público de classe média jamais alcançada por qualquer grande poeta da atualidade. Suas canções, ao contar a história contemporânea do país a partir da experiência do cotidiano das várias camadas sociais urbanas, atingem um vasto público. As diárias tribulações dos brasileiros aparecem, no texto poético e na voz de Chico Buarque, transformadas em arte. 
As representações do feminino na obra de Chico Buarque destacam a intensa valorização dada à mulher em sua obra, mas sem perder de vista que tais representações se inserem numa cultura patriarcal, da qual o próprio autor é produto e, até certo ponto, também representante. Fontes, por exemplo, assinala que: 
Como poeta de seu tempo, [Chico] é consciente da condição da mulher na sociedade, da opressão oriunda de situações econômicas e culturais (…). Entretanto, sobrevivem no poeta os arquétipos inconscientes e primordiais relativos ao Grande Feminino que impulsionam seu gesto criador e fazem com que se revelem em sua obra tanto a necessidade de valorização da mulher como deusa e fêmea, como a angústia de sua contraparte, a mulher castradora, face terrível da Grande Mãe (FONTES, 1999. p.10). 
Portanto, esses aspectos transparecem nas canções: a mulher é representada como deusa ou amante, protetora ou devoradora, diabólica ou submissa, sem que um deles exclua seu contrário. Seja ela emissora, referente ou destinatária do texto poético, ela é o feminino múltiplo: da submissão à transgressão. Às vezes, o poeta reveste o feminino com imagens de alta sensibilidade sensorial, convocando os sentidos do tato, do olfato e da vista. Outras vezes, tratar-se-ia do eu lírico feminino – a anima do autor, em termos jungianos. Chico consegue não só ser o outro, mas a outra. “Nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina”. (MENEZES, 2000. p.20) 
Chico abre o espaço íntimo da mulher, revelando-o não só para o amante e para ela mesma, mas para a sociedade que permanece estranha ao drama. Ao cantar, a dor da perda alcança o feminino coletivo e o sofrimento é exposto. Há comunhão entre o poeta e os sentimentos da mulher como ser socialmente marginalizado. 
Considera-se a mulher como ser marginalizado pois era vista desde Hesíodo até o século V a.C. como um grande mal, um castigo infringido aos homens por Zeus no mito de Prometeu e de Pandora1.
Pode-se encontrar nas canções do Chico as personagens femininas que compõem variadas concepções sobre a mulher presentes na nossa cultura, da santa à prostituta, de um feminino submisso e passivo a um feminino masculino e ativo. A importância da obra do Chico, para além da sua beleza plástica e sonora, está nas tonalidades interpretativas que ele compõe para se relacionar com as variações do feminino, sugerindo sempre a autoridade de uma identidade para cada mulher. 
A partir de Freud ganha-se a possibilidade e o estatuto de serem também histéricas. E para muitos, até hoje, além da maternidade, a histeria é tida como a única manifestação do feminino. "Ser mulher" então, também com Freud, é pertencer a categoria do patológico e do inferior a ser submetido pela cultura. 
Então "ser uma mulher", implica em localizar, dentro de um discurso masculino que constrói a feminilidade, alternativas para "que mulher se pode ser". Numa posição passiva do feminino, as opções oferecidas em geral situam-se entre "mãe" (ou "santa") e "histérica"(ou "puta"). Em geral caminha-se entre personagens da adolescente ingênua e romântica (Perséfone), da esposa virtuosa (Hera) ou da amante apaixonada (Afrodite). 
Chico sabe "o que quer a mulher" porque reconhece seus desejos e isto porque é capaz da experiência do encontro da sua própria contraparte feminina, como se soubesse que ser homem e ser mulher são possibilidades imanentes de um todo ao mesmo tempo masculino e feminino. Busca novos nexos, fluxos, figuras melódicas presentes na fluidez de uma outra ordem, na lógica dos sentimentos. Vai atrás de possibilidades ainda não exploradas, com a virilidade ativa de um homem, mas com a doçura sentimental e receptiva da mulher.
_______________________
1. Pandora aparece como um "presente" dado aos homens. Hesíodo conta que Hefesto moldou-a semelhante às deusas nas feições e que os demais deuses e deusas concederam-lhe ainda muitos dons. Hermes, especificamente, lhe pôs no coração a perfídia e os discursos enganosos, além da curiosidade... 
Pandora abriu a caixa, curiosa... e espalhou todos os males, até então presos na caixa, pelo mundo. Desde então, a mulher é considerada a origem de todos os tormentos do homem e deve ser vigiada. 
A tentativa de reduzir o feminino a uma condição de inferioridade e submissão ao homem demonstra o temor, ainda presente, em relação a esse ser tão misterioso e poderoso, a mulher, e sua versão divina, a Deusa (ou deusas). Dentre todas elas, a mais temida é, sem dúvida, Afrodite. Doce e generosa para com os que ama, terrível e implacável para com seus desafetos ou os que ousam não lhe oferecer culto.
Em suas músicas, as mulheres são sempre musas, deusas, a consorte escolhida. Levando em conta ser o autor contemporâneo, os arquétipos também são vistos de acordo com os conceitos atuais (e não como seres idealizados); são parte de uma história de caso real, mas essa história de amor não é profana, é sempre sagrada, são projeções femininas da sua alma.
2.3. Aspectos do feminino na Mitologia
O mistério do feminino intriga o homem desde sua origem. Ora venerada como a Senhora absoluta, amada e temida, ora relegada a um segundo plano, em favor de um Deus Macho, a Deusa Mãe e seus desdobramentos conheceu, ao longo dos milênios, a glória e a repulsa, mas nunca a indiferença. 
Desde as mais remotas origens o mito grego apresenta o feminino como um reflexo importante de diversos aspectos da realidade. A evolução e os limites do papel da mulher na sociedade grega é visível especialmente nos relatos míticos, em trechos da poesia épica, lírica e trágica, e em obras de arte. 
A mitologia e a religião das comunidades eram baseadas em conceitos fundamentalmente femininos. Isso se reflete nitidamente nos mitos da criação, em que todo o mundo conhecido emerge de uma entidade feminina primordial. Essenciais também ao processo de formação do mundo foram as titânides, contrapartes femininas dos titãs; as musas, que representavam as diversas formas do pensamento; e também as diversas divindades femininas "naturais", como as nereidas e as ninfas.
As primeiras representações femininas, encontradas em cavernas e em abrigos de caçadores-coletores, elas possuem formas bastante opulentas, que valorizam os seios, as nádegas e o ventre — atributos que as distinguem como representações da Deusa Mãe. Com a sedentarização do homem durante o Neolítico Médio e o advento da cerealicultura e da domesticação de animais, a Deusa Mãe passou a representarmais especificamente a terra 
fecunda na qual o homem trabalhava/semeava e da qual retirava tudo o que necessitava. Com algumas alterações na representação (mais "esbelta") a figura feminina ainda ocupava o lugar de destaque e recebia todas as honras, e como Senhora da fertilidade e da fecundidade ela ainda reinava. Com o correr dos milênios, a imagem da Deusa ganhou novos atributos, e foi associada a diversos animais e a outras funções. 
 Com a expansão das tribos guerreiras, as culturas matrilineares (cerealicultores e pastores) foram conquistadas por eles, e um Deus Macho e guerreiro dominou o panteão. 
A Deusa, então, assumiu o papel de mãe, esposa ou filha dele... Mas, apesar da religião oficial dar prioridade ao Deus, a Deusa (agora multiplicada e subdividida em muitas) ainda recebia um culto ostensivo, embora paralelo. A cidade continuou um espaço dos homens e Deuses machos; já o interior da casa, o campo, as matas e/ou as áreas limítrofes entre o civilizado e o selvagem, eram dominados pela Deusa Mãe em suas muitas faces: Afrodite (deusa da beleza e do amor – a amante), Deméter (deusa maternal – personificação do papel de mãe), Ártemis (deusa da caça e da lua – a irmã e competidora), entre outras. 
	
III. FIGURAS FEMININAS MITOLÓGICAS NAS CANÇÕES DE CHICO
3.1. As várias deusas influenciando o comportamento da mulher
Os poderosos padrões internos – ou arquétipos – são responsáveis pelas principais diferenças entre as mulheres. Por exemplo, algumas precisam da monogamia do casamento, ou dos filhos para sentirem realizadas. Elas se afligem quando não conseguem seus objetivos.
Para elas, os papéis tradicionais são significativos. Tais mulheres diferem notadamente de outro tipo, aquele que dá mais valor à sua independência, enquanto enfoca alcançar objetivos que são importantes para elas; ou diferem ainda de outro tipo, aquele que procura intensidade emocional e novas experiências e, conseqüentemente, passa de um relacionamento para outro, ou de uma conquista para outra. Ainda outro tipo de mulher procura a solidão, e descobre que sua espiritualidade significa o máximo para ela. O que é realização para um tipo de mulher pode não ter sentido para um outro tipo, dependendo de qual “deusa” esteja atuando na pessoa.
Na canção “Mulheres de Atenas” (1976), a estirpe das mulheres citadas, efetivamente, corresponde muito mais ao modelo estrutural da sociedade brasileira e patriarcal de um modo geral: é o tipo mais comum, encontrado em qualquer parte.
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obcenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
 Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Na primeira estrofe, o autor refere-se a Hera (deusa do casamento e protetora do matrimônio), ela coloca o marido em primeiro lugar e tudo faz para tê-los ao seu lado.
O mito de Penélope2, que esperou durante vinte anos pela volta de seu amado Ulisses (levada pela poderosa influência de Afrodite, deusa do Amor e Hera) é mostrado na segunda estrofe da canção. Eis que surge o nome de Helena (que tinha Afrodite como madrinha), citada na terceira estrofe, que foi outra heroína da mitologia, esta, a responsável pela guerra de Tróia. Quando foi seqüestrada por Paris, príncipe de Tróia, (que a ganhou
como prêmio pelo julgamento da maçã de ouro3) ela já era casada com Menelau, rei de Esparta; ocasionando, portanto, o grande conflito que durou dez anos.
____________________________
2. Penélope, esposa de Ulisses (Odisséia de Homero), associada à fidelidade, paciência, aos trabalhos manuais com fios e tecelagem, enquanto o marido combatia em Tróia, ela foi assediada por inúmeros pretendentes. Para mantê-los afastados, prometeu escolher quando terminasse de tecer a mortalha de seu sogro. Para ganhar tempo, ela tecia a mortalha de dia e desfazia à noite. Esperou pelo marido durante 20 anos, quando o marido regressou. Com pensamento lógico-matemático (sob influência de Atena), Penélope traçou a estratégia de tecer a mortalha de Laertes e teve a inteligência de fazer com que ela só terminasse quando fosse a hora que ela determinou.
3. Todos os deuses olímpicos, menos Éris, deusa da discórdia, foram convidados para o casamento de Peleu. Mesmo não tendo sido convidada, eis que surgiu na festividade atirando uma maçã de ouro onde estava gravado “para a mais bela” entre as convidadas. Foi, reivindicada, no mesmo instante por Hera, Atenas e Afrodite, julgando-se cada uma como a merecedora. Páris, apreciador de mulheres bonitas, foi indicado por Zeus para fazer a escolha. Hera ofereceu-lhe poder sobre os reinos da Ásia, Atena prometeu-lhe vitória em todas as batalhas e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bonita do mundo. Sem hesitação, Paris declarou Afrodite a mais bela e ofereceu-lhe a maçã de ouro. A mulher mais bonita do mundo era Helena.
3.2 Hera
Hera (Juno para os romanos) é a esposa e irmã de Zeus, o senhor do Olimpo, deus dos deuses, conhecido também como Júpiter, na mitologia romana. Essa deusa é o arquétipo da esposa devotada, fiel, mas com um marido nem tão virtuoso. Zeus é famoso por suas escapadas e Hera, por sua ira ciumenta, como quando lançou uma maldição sobre um dos mais famosos filhos fora do casamento de Zeus, Hércules. Hera determinou que Hércules enlouqueceria e mataria sua esposa e filhos. Dito e feito. Foi por isso que surgiu a famosa história dos "doze trabalhos de Hércules": ele precisou passar por essas provas para se purificar do seu crime.
Como deusa do casamento, Hera foi reverenciada e injuriada, honrada e humilhada. Ela, mais que qualquer outra deusa, tem atributos marcadamente positivos e negativos.
O termo “síndrome de Medeia” descreve apropriadamente a vingativa mulher tipo Hera que se sente traída e descartada e que vai ao extremo para se vingar. O mito de Medéia4 é uma metáfora que descreve a capacidade de a mulher tipo Hera pôr seu relacionamento antes de qualquer outra coisa, e sua capacidade de se vingar quando descobre que seu compromisso não vale nada aos olhos dele. 
Em “PRIVATE
Uma canção desnaturada” (1979), fica clara a presença de Hera, com traços de Medeia, pela incapacidade de se ser mãe, chegando a ponto de rejeitar sua própria filha. 
Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquilada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder
Te ver, as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
___________________
4. Na mitologia grega, Medeia era a mulher mortal que assassinou seus próprios filhos para vingar-se de seu marido por abandona-la. Seu comportamento foi monstruoso, mas foi claramente a vítima de seu amor por Jasão. Enquanto algumasmulheres poderiam tornar-se deprimidas e até mesmo suicidas após serem rejeitadas e tratadas com desprezo, Medeia ativamente tramou e pôs em prática a vingança. Seu relacionamento com Jasão era o centro de sua vida. Tudo o que fez foi conseqüência de amá-lo ou perde-lo. Medeia foi atormentada, possuída e impelida à loucura por sua necessidade de ser companheira de Jasão. Sua patologia originou-se da intensidade do instinto de Hera de ser contrariada.
 Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
A mulher tipo Hera usualmente tem filhos porque esta função é parte de seu papel como esposa (na canção não faz referência a um marido ou companheiro), essa é uma característica de quem tem influência principal o arquétipo de Hera. Ela não terá muito instinto materno e nem apreciará fazer programas com as crianças, pois não consegue formar um elo de mãe-filho.
A mãe presente nesta canção remete-nos à Hera quando decidiu ser mãe sozinha de um filho, e concebeu Hefesto que, ao nascer com um pé torto – uma criança defeituosa – Hera o rejeitou e o jogou fora do monte Olimpo. 
Em “Cotidiano” (1971), Chico apresenta uma mulher essencialmente influenciada por Hera, mas tem outras deusas como arquétipo.
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Chico representa na canção o cenário no qual as mulheres tipo Hera prosperam. O marido sai do trabalho e vai para casa fazer as refeições em horário regular. Ele respeita sua mulher e supõe que ficará casado por toda a vida. Porém, a rotina, o estarem juntos na vida social e os papéis que cada um mantém contribuem para a estabilidade do casamento e para a satisfação que ele proporciona à sua mulher tipo Hera, estabilidade e satisfação que, para ele não é a mesma, pois esses eventos repetitivos acabam por sufocar o homem que é casado com essa mulher, principalmente, porque a esposa da canção também recebe influências de Héstia (que será tratada mais à frente) que adapta-se à idéia fora de moda de “boa esposa”. Ela toma conta da casa muito bem. Não é ambiciosa e não compete com seu marido nem o censura. Ela não é namoradeira nem promíscua, ela é fiel e não tem tentação em ser desleal.
Quando anoitece, Afrodite se manifesta, ela fica ávida por carinhos, carícias e beijos apaixonados, revelando seu lado sensual, sexual e instintivo.
Seguindo o mesmo arquétipo, em “PRIVATE
Logo eu?” (1967), Chico apresenta uma, entre tantas mulheres tipo Hera que projetam uma imagem de marido idealizado num homem e depois se tornam críticas e zangadas quando este não vive de acordo com suas expectativas. Tal mulher torna-se “geniosa”, impelindo-o a mudar.
Essa morena quer me transtornar
Chego em casa me condena
Me faz fita, me faz cena
Até cansar
Logo eu, bom indivíduo
Cumpridor fiel e assíduo
Dos deveres do meu lar
Essa morena de mansinho me conquista
Vai roubando gota a gota
Esse meu sangue de sambista
 Essa menina quer me transformar
Chego em casa, olha de quina
Diz que já me viu na esquina
A namorar
Logo eu, bom funcionário
Cumpridor dos meus horários
Um amor quase exemplar
A minha amada
Diz que é pra eu deixar de férias
Pra largar a batucada
E pra pensar em coisas sérias
E qualquer dia
Ela ainda vem pedir, aposto
Pra eu deixar a companhia
Dos amigos que mais gosto
E tem mais isso:
Estou cansado quando chego
Pego extra no serviço
Quero um pouco de sossego
Mas não contente
Ela me acorda reclamando
Me despacha pro batente
E fica em casa descansando
Porém, fica claro, no último verso da canção, que o trabalho que a mulher desempenha em casa não é reconhecido nem valorizado pelo marido.
Em “PRIVATE
Com açúcar, com afeto” (1966), a mulher apresentada na canção é do tipo Hera insegura, altamente suscetível ao ciúme. Com muito pouca provocação ela suspeita de infidelidade e sente-se desconsiderada e humilhada em público pela falta de atenção do marido. Se suas reações não são justificadas, ela o afasta com suas acusações e, como conseqüência, o casamento deteriora.
Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
Vai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê
 Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você
A canção tem como voz a mulher que, por ser incapaz de deixar um casamento (que ela julga como ruim), torna-se negativamente afetada. Transforma-se numa mulher insatisfeita, rancorosa, amargurada, ferida e ciumenta quando seu marido é infiel ou se ela imagina que ele o seja. E, por influência de Afrodite, apesar de todos os defeitos do marido, ela o ama está sempre disposta a “abrir seus braços para ele” e perdoá-lo.
Um outro aspecto da mulher Hera está presente em “O casamento dos pequenos burgueses” (1977-1978). A canção apresenta um marido contemporâneo tipo Zeus que, muitas vezes, usa o casamento como um aspecto de sua fachada social. Ele se casou com uma mulher de sua própria classe social e aparece ao lado dela sempre que isso for necessário. Esse arranjo é um casamento utilitário para ambos, talvez por conveniência dos pais. Eles não compartilham seus interesses, não há um envolvimento emocional, mas como o padrão de mulher Hera é de tornar-se esposa, esta situação lhe é conveniente, passando a toda sociedade a imagem de casal perfeito.
Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto
Ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo
Ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto
Ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afeto
Elasó se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto
Ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una
Em “Atrás da porta” (1972), em parceria com Francis Hime, mostra o momento da separação em que o arquétipo de Hera fica bem reforçado.
Se o homem quer deixar a mulher tipo Hera, ela resiste profundamente ao ouvir o que ele está dizendo. O relacionamento é o mais importante para ela – em sua mente, eles ficarão juntos para sempre. Até mesmo após a separação, a mulher pode ainda pensar em si 
como se ainda estivesse com ele e sofrer novamente cada vez que se lembrar que não é mais. 
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito (Nos teus pelos)
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...
Hera é uma força obsessiva, e a mulher que apresenta essa característica precisa saber que, uma vez que o homem a abandonou, ela terá dificuldade em acreditar na perda. Ela tem problemas em aceitar a realidade e é mais provável acreditar num final mítico em que ele sentirá saudades dela e voltará.
Na canção “PRIVATE
Olhos nos olhos” (1976), Chico mostra a evolução da mulher tipo Hera que consegue desligar-se do outro, passando por um momento de equilíbrio (sob influência de Héstia), relacionando-se com outras pessoas (sob influência de Afrodite), até chegar à figura materna que oferece seu “colo”, pois sabe que já conseguiu superar a dor do rompimento.
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
 E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Quando ocorre a perda do amado, a mulher tipo Hera que não desenvolveu outros aspectos de si mesma pode ir de uma depressão de luto a uma depressão crônica, sem rumo e desolada. Essa reação é a conseqüência de sua atitude e ação anteriores limitadas (como ocorreu com a figura de “Atrás da porta”).
Essa mulher que reage com sofrimento à separação de seu companheiro, não é tão vulnerável se ela também tiver Héstia como um arquétipo, que inclusive, faz com que ela se sinta mais jovem e completa no princípio de uma nova vida.
 Somente quando ela pára de esperar pela eventual reconciliação é que pode recobrar o equilíbrio e prosseguir em sua vida, recomeçando sua vida e, dessa vez, podendo escolher sabiamente. 
Em seus novos relacionamentos (com a influência marcante de Afrodite), o ímpeto de ter um relacionamento estável novamente pode ser realizado de modo positivo.
No final, surge nela o arquétipo de Deméter (que será visto mais à frente), que a motiva (como uma mãe) a nutrir os outros, a ser generosa no dar, e encontrar satisfação como alguém que zela, oferecendo, inclusive sua casa ao antigo amor.
O momento da despedida é tema de “PRIVATE
Pedaço de mim” (1977-1978) em que ambas as partes estão sofrendo com a partida. Mas apenas a voz feminina será analisada, presente na segunda metade da canção. 
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
 Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus 
A mulher Hera sente-se parte do outro, portanto, quando sozinha, sente-se incompleta, pois sua vida só tem sentido na condição de casal.
 Quando é influenciada por Deméter, a mulher que perde um relacionamento (ou se distancia dele) não apenas sente a falta da pessoa, mas perde seu papel associado à maternidade que lhe deu sentido de importância e significado. Sente-se como se fosse deixada com um ninho vazio e um sentimento de solidão.
3.3 Deméter
É considerada a deusa da agricultura e da fertilidade. O mito de Deméter, Ceres para os romanos, pode ser melhor entendido através da relação com sua filha, Perséfone (que também é filha de Zeus). As duas fazem parte de princípios que convivem lado a lado na mulher: mãe e filha. Perséfone é raptada por Hades, deus que reina no inferno, depois de colher uma flor proibida pelos deuses, o narciso. A terra se abre e a filha, que há poucos momentos era inocente, é deflorada e vira mulher. 
É claro que a mãe, Deméter, fica inconsolável e determina que os homens passarão fome, devido à sua tristeza. É a época do outono e inverno, quando não há fertilidade. Zeus, preocupado com o destino da humanidade, faz um acordo com Hades. Perséfone passar a 
viver seis meses no subterrâneo e seis meses na terra, quando sua mãe se alegra e a fertilidade passa a reinar novamente - é a primavera e o verão.
Assim, essa deusa auxilia as mães e tudo que tenha a ver com filhos. O mito é associado também ao trabalho minucioso e à procura da pureza, com o tempo em que Perséfone era menina. Perséfone é a criança interior que é preciso preservar. Determinadas épocas ela aflora (segundo o mito, na primavera e no verão). Em outras, fica mais introspectiva (outono e inverno), mais madura para viver a ingenuidade daquela criança interior sem perigo.
A transformação das filhas em mulheres, simbolizada pelo rapto de Perséfone, é uma vivência feminina importante presente nesse mito.
Portanto, Deméter é o arquétipo materno. Representa o instinto maternal desempenhado na gravidez ou através da nutrição física, psicológica ou espiritual dos outros. Esse poderoso arquétipo pode ditar o rumo que tomará a vida de uma mulher, pode ter um impacto nos outros, e pode predispô-la à depressão, caso a sua necessidade de alimentar seja rejeitada ou frustrada.
Nas canções de Chico, algumas mulheres refletem exatamente o perfil do arquétipo desta deusa, como as mães que protagonizam “Angélica” e “O meu guri”.
 “Angélica” (1977) é uma parceria de Miltinho e Chico Buarque que falam do sofrimento real de uma mulher: Zuzu Angel5.
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5. Zuleika Angel Jones nasceu em Curvelo, MG. Mais tarde sua família se mudou para Belo Horizonte. Ousada, criativa, inovadora, anti-militarista, talentosa, corajosa, envolvente, charmosa e alegre. É essa a definição de sua personalidade. Morta aos 49 anos de idade, em 14 de abril de 1976, às 3:00 horas, na Estrada da Gávea, à saída do Túnel Dois Irmãos (RJ). Figurinista conhecida internacionalmente como Zuzu Angel, era mãe do militante Stuart Angel Jones, desaparecido político, preso em 14 de maio de 1971 pelos agentes do CISA, onde foi torturado e assassinado. O preso político Alex Polari de Alverga, escreveu da prisão – logo após a morte de Stuart – carta a Zuzu Angel, onde narrava as torturas sofridas por seu filho. Alex presenciou Stuart ser arrastado por um jipe pelo pátio interno da Base Aérea do Galeão, com a boca no cano de descarga do veículo. Também ouviuos gritos de Stuart – numa cela ao lado – pedindo água e dizendo que ia morrer e, pouco depois, seu corpo foi retirado da cela. Este depoimento de Alex consta do vídeo "Sônia Morta e Viva", produzido e dirigido por Sérgio Waisman, em 1985. A mãe desesperada incansavelmente denunciou as torturas, morte e ocultação do cadáver de Stuart, tanto no Brasil como no exterior. Em vários de seus desfiles no exterior denunciou a morte do filho para a imprensa estrangeira e a deputados norte-americanos, entregando em mãos uma carta a Henry Kissinger, na época Secretário de Estado do Governo norte-americano, visto que seu filho também tinha a cidadania americana. Sua atitude e a abrangência das denuncias, apesar da férrea censura, desnudavam o que a ditadura tentava esconder, os desaparecidos. Zuzu passou, então a fazer a primeira coleção de moda política da história, usando estampas com silhuetas bélicas, pássaros engaiolados e balas de canhão disparadas contra anjos. O anjo tornou-se o símbolo de Tuti, o filho desaparecido - caracterizando suas coleções de moda: anjos amordaçados, meninos aprisionados, sol atrás das grades, jipes e quépes. Durante cinco anos, buscou reaver o corpo de Stuart, cuja morte e prisão jamais foram admitidos pelos órgãos de segurança. O atrevimento, a criatividade, a audácia e até mesmo o bom humor foram as armas que ela usou contra a ditadura. Dizia sempre: "Eu não tenho coragem, coragem tinha meu filho. Eu tenho legitimidade". O acidente de automóvel em que veio a morrer foi bastante estranho, não ficando claro até hoje as circunstâncias dessa tragédia. Há testemunhas que afirmam que havia um jipe do Exército, logo após o acidente, na saída do túnel Dois Irmãos. Ela própria denunciou seu fim: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho". Seu óbito, de n° 384, foi firmado pelo Dr. Higino de Carvalho Hércules, que confirma a versão policial de morte em acidente. Uma semana antes do acidente que a vitimou fatalmente, Zuzu deixara na casa de Chico Buarque, um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse. Sua postura diante da vida, sua força e sua garra, inspiraram Chico Buarque (em parceria com Miltinho) que compôs a música "Angélica", onde ele pergunta, quem é essa mulher? 
 Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
 A persistência materna é um grande atributo de Deméter. Tais mães recusam desistir quando o bem-estar dos filhos está envolvido. Zuzu Angel é um caso brasileiro, assim como ela, as mães argentinas de filhos e filhas desaparecidos que foram raptados pela polícia militar também eram como Deméter em sua persistência. Chamadas as “Madres de la Plaza de Mayo”, as mães da Praça de Maio, recusavam resignar-se com a perda de seus filhos e continuavam a protestar contra a ditadura, embora fosse perigoso agir assim.
Quando o arquétipo de Deméter é muito forte e a mulher não pode realiza-lo, ela pode sofrer uma depressão característica do “ninho vazio e da solidão”. Se o filho morre, mais do que enraivecer ou lutar ativamente por aqueles que ela se sente responsável, modo como reage Hera, a mulher tipo Deméter tende a mergulhar em depressão. Ela sente pesar, e sua vida fica afetada por falta de significado e vazia.
A mãe apresentada em “PRIVATE
O meu guri” (1981) é diferente de Zuzu Angel porque é uma mulher simples, humilde, de poucos recursos e pouca instrução que narra a história de seu filho, seu maior orgulho, totalmente cega, portanto, para o que seu filho se tornou com o passar dos anos, ignorando os crimes que ele cometeu. Com uma alegria inocente, ficava feliz sempre que era presenteada pelo garoto, acreditava em tudo o que ele lhe dizia e ficava cada vez mais orgulhosa, fazendo questão de lembrar a todo o momento que “ele chegava lá” e ainda com mais orgulho dizendo: “É o meu guri!”. 
Sua inocência fica mais expressa quando, ao aparecer a foto do filho no jornal, morto (enquanto ela pensa que ele está rindo e o acha “lindo de papo pro ar” e, claro, vivo), ela tem ainda mais certeza, poderia dizer, inclusive, que nesse momento é a comprovação (para ela) de que seu filho realmente “chegou lá”, ficou famoso, pois foi manchete de jornal.
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
Quando o nascimento do filho não é programado (como no caso da mãe dessa canção), a mulher pode procurar seu modo de agir e ser mais maternal com o filho. Motivada por seus sentimentos pela criança, ela se esforçará por ser mais paciente, ou ser persistente em favor da criança. Conforme parece ser mais maternal, e se esforça por ser assim, o arquétipo de Deméter se desenvolve no seu interior.
As mulheres influenciadas por este arquétipo percebem-se uniformemente como boas mães que têm em mente os melhores interesses de seus filhos. Essas mães sempre temem que alguma coisa má possa acontecer à sua criança. Essas mães podem agir como se antecipassem a possibilidade de algo prejudicial desde o momento que a criança nascer. Sempre que seu filho se ausenta de casa, ela se preocupa, reza, e não fica tranqüila até que ele retorne.
O relacionamento entre mãe e filho presente na canção demonstra que, por permanecerem sempre juntos, o cordão umbilical psicológico continua intacto. Um consola o outro, dão e recebem colo reciprocamente.
3.4 Héstia
Héstia (Vesta em Roma), irmã de Zeus, é também a manifestação do feminino clássico. É aquela que mantém o fogo do lar acesso. Esse fogo também representa, além do calor do lar familiar, a dimensão do sagrado.
Junto com Hera e Deméter, ela completa a tríade que representa o lado passivo da mulher, do trabalho reverencial, que serve ao outro. Porém, a atualidade vive a desvalorização da manutenção do fogo sagrado, do lar, que pode representar também o corpo em que cada um habita. Ao lado de Palas Atena e Ártemis, Héstia também se manteve afastada das paixões amorosas, guardando a aura de pureza.
Como presença arquétipa na personalidade de mulher, Héstia é da mesma forma importante, proporcionando-lhe sentimento de integridade e inteireza. Concentrada em sua experiência interior subjetiva, seu modo de aprender é olhar para o interior e sentir intuitivamente o que está se passando, entrando em contato com os próprios valores, traz ao foco o que é pessoalmentesignificativo.
“Carolina” (PRIVATE
1967) é descrita por Chico como uma mulher introspectiva, que, apesar de não chamar atenção para si, não consegue guardar seu sentimento de dor, deixando-o transparecer através de seu olhar.
Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu
Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu
Carolina se mostra o tempo todo uma pessoa quieta e reservada, introvertida que parece alheia ao que acontece ao seu redor. Ela faz pouco para atrair a atenção para si própria ou para provocar fortes reações vindas dos outros.
Como arquétipo de Hera, é uma mulher que quando se fere ou fica desnorteada é provável que vá para seu quarto encontrar conforto na solidão.
A mulher Héstia se retrai emocionalmente e se retira para o próprio íntimo, confortando-se no meio de uma vida penosa, conflituosa ou num meio que pareça estranho a ela. Ela tenta não ser notada, tem uma passividade exterior e um sentimento interior de certeza de que é diferente dos que a cercam. É discreta em todas as situações e cultiva a solidão mesmo no meio dos outros.
Héstia se ausenta das grandes paixões e de contrair alianças com seus iguais. Como resultado, acaba tornando-se isolada socialmente.
A identificação de Carolina com uma Héstia emocionalmente desligada sufoca a expressão direta dos sentimentos de uma mulher. Ela expressa indiretamente seu amor e interesse pelos outros através de atos amáveis ou de silêncio.
A solidão pode tornar-se triste se as pessoas pelas quais ela tem profunda afeição não tiverem consciência de como ela se sente e a deixarem sozinha. Também é triste quando alguém que quer ser amado pela mulher tipo Héstia é amado por ela, mas nunca tem toda certeza disso. 
Seu entusiasmo parece impessoal e desligado, pois não é expresso por palavras ou abraços e pode não ser especificamente dirigido à pessoa que ela ama.
Ao ter que ir a uma grande concentração, ela se sente inadequada, desajeitada e tímida. Ela tem uma natureza desinteressada, portanto, não se preocupa em causar boa impressão.
A mulher que segue esse padrão pode ser influenciada por outras deusas como Afrodite, por exemplo, para aprender a expressar seus sentimentos, de tal forma que as pessoas que são especiais para ela saibam disso. Se Carolina se manifestasse de alguma forma, não somente quem fala dela na música, mas também quem escuta a canção poderia entender um pouquinho do que se passa no interior desta mulher tão introspectiva. 
3.5 Afrodite
Quem não conhece Afrodite, a deusa da beleza, da harmonia e do amor, talvez uma das faces femininas mais evidentes? Conhecida também como Vênus. O filho dessa deusa, Eros (ou Cupido), flechava os enamorados para que a paixão reinasse entre eles. Segundo o mito, é ele que inspira ou produz essa muitas vezes inexplicável simpatia entre os diversos para uni-los.
Há duas versões do nascimento biológico e da origem de Afrodite. Hesíodo e Homero contam duas histórias contraditórias.
Na versão de Homero, Afrodite teve nascimento convencional. Era simplesmente filha de Zeus e Dione, ninfa do mar.
Na versão de Hesíodo, Afrodite nasceu como conseqüência de um ato violento. Crono, que mais tarde tornou-se governador dos Titãs e pai da primeira geração de deuses olímpicos, pegou uma foicinha, cortou os órgãos de seu pai Urano, e os atirou no mar. Espuma branca espalhou-se ao redor deles ficando como esperma e mar misturados, e daí nasceu Afrodite, emergindo de sua concepção oceânica como deusa totalmente desenvolvida.
O arquétipo de Afrodite governa o prazer do amor e da beleza, da sexualidade e da sensualidade das mulheres; como força em relação à personalidade de uma mulher, Afrodite pode ser tão exigente quanto Hera e Deméter, os outros dois fortes arquétipos instintivos. Afrodite impele as mulheres a preencherem funções criativas e procriativas.
O senso criativo de Afrodite é tão forte que pode manifestar-se de três formas distintas (e cada uma com suas nuances): celeste, um amor mais puro, mais envolvido, mais comprometido, que é oriundo da versão de Homero do seu nascimento; vulgar, um amor mais visceral, carnal, sem muito envolvimento, que é oriundo da versão de Hesíodo do seu nascimento; e a terceira que seria o equilíbrio entre os dois tipos anteriores, onde a libido e o envolvimento estão sempre associados.
Afrodite celeste tem sua influência facilmente detectável em “PRIVATE
Mulher, vou dizer quanto te amo” (1968) em que Chico traçou o perfil do amor dedicado à mulher inspirado na poesia e no discurso convincente, que simboliza o poder transformativo e criativo do amor.
O amor platônico, a conexão da alma, a amizade profunda, a comunicação e expressão empática são todas expressões do amor.
Onde quer que o crescimento seja gerado, uma visão mantida, um potencial desenvolvido, uma centelha de criatividade encorajada, então Afrodite lá está, afetando ambas as partes envolvidas.
 Nesta canção, outra deusa está exercendo influência, Pamona6. Esta uma divindade terrestre peculiar a Roma, ela é associada a jardins e árvores frutíferas. Sua influência torna a canção mais colorida, mais viva , mais bela, mostrando que o amor deve ser cultivado como uma flor ou um jardim.
Mulher, vou dizer quanto te amo
Cantando a flor
Que nós plantamos
Que veio a tempo
Nesse tempo que carece
Dum carinho, duma prece
Dum sorriso, dum encanto
 Mulher, imagina o nosso espanto
Ao ver a flor
Que cresceu tanto
Pois no silêncio mentiroso
Tão zeloso dos enganos
Há de ser pura
Como o grito mais profano
Como a graça do perdão
E que ela faça vir o dia
Dia a dia mais feliz
E seja da alegria
Sempre uma aprendiz
Eu te repito
Este meu canto de louvor
Ao fruto mais bendito
Desse nosso amor
Onde quer que a consciência de Afrodite esteja presente, aparece a energia: os amantes irradiam bem-estar e energia intensificada; a conversa brilha, estimulando pensamentos e sentimentos. Quando duas pessoas encontram uma à outra, ambas recebem energia do encontro e sentem mais vitalidade do que antes. Absorvidos pela companhia um do outro, perdem a noção do tempo, característica que Afrodite compartilha com Héstia. Todos estes detalhes estão claramente expressos na canção.
 O casal experiência a alquimia de Afrodite, sentindo-se atraídos um pelo outro e apaixonando-se. Eles puderam sentir quando foram tocados por seu poder de transformação e criatividade, pois conseguiram transformar o que focalizaram em belo e apreciado porque está imbuído do amor de ambos. O que quer que seja usual e não desenvolvido é o material “inferior” da vida do dia-a-dia, que pode ser transformado em “ouro” através da influência alquímica e criativa de Afrodite – do mesmo modo que a estátua de Galatéia feita por 
Pigmalião7 foi transformada em mulher verdadeira, com vida, através do amor.
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6. Pamona, ninfa de notável beleza, foi desejada por todos os deuses campestres, e preferiu Vertumno pela semelhança dos seus gostos. Nenhuma ninfa conhecia como ela a arte de cultivar os jardins e as árvores frutíferas. O seu culto passou dos etruscos aos romanos, que lhe erigiram templo e altares.Representavam-na ordinariamente sentada sobre um cesto cheio de flores e de frutas, tendo na mão esquerda algumas maçãs e na direita um ramo, ou ainda, coroada por folhas e cachos de uva, tendo nas mãos uma cornucópia (símbolo da abundância) ou um cesto cheio de frutos. 
7. Pigmalião, rei de Chipre, esculpiu uma estátua de sua mulher ideal em marfim,e quanto mais ele olhava para ela mais se enamorava de sua própria criação. Numa festa em honra de Afrodite, pediu-lhe em oração uma esposa como sua estátua. Posteriormente, enquanto beijava a figura de marfim, a estátua tornou-se um ser vivo. Agora ela era Galatéia, com quem ele se casou – resposta de Afrodite às suas orações.
A terceira forma de Afrodite é bem representada por Chico e Tom Jobim em “Eu te amo” (1980) que mostra um casal que já passou por muitas situações juntos e vêem-se prestes a se separar.
Quando duas pessoas se apaixonam, cada uma vê a outra num resplendor especial e intensificado e é atraída em direção à beleza da outra. Há magia no ar e um estado de
encantamento ou louca paixão é evocado. Cada qual sente-se bonito e especial, mais semelhante a um deus ou a uma deusa do que seu ordinário ser. O campo de energia entre eles torna-se emocionalmente carregado e uma “eletricidade” erótica é gerada, o que por sua vez cria uma atração magnética mútua. No espaço magnífico que os cerca as impressões sensoriais ficam intensificadas; eles ouvem música de modo mais envolvente, as fragrâncias ficam mais penetrantes, o paladar e o tato dos enamorado ficam intensificados (tudo isso ocorre por influência de Afrodite). Este é o cenário que fica claramente visível na canção.
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora 
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios 
Rompi com o mundo, queimei meus navios 
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas 
Já confundimos tanto as nossas pernas 
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão 
Se na bagunça do teu coração 
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido 
Meu paletó enlaça o teu vestido 
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos 
Teus seios inda estão nas minhas mãos 
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás só fazendo de conta 
Te dei meus olhos pra tomares conta 
Agora conta como hei de partir 
Quando uma pessoa ama alguém e este amor não é mais correspondido, ela perde o norte, fica confuso, não sabe o que fazer o que caminho seguir. Esse fato ocorre facilmente quando um homem se envolve com uma mulher como Afrodite, que é intensa em suas relações que, porém, não são duradouras.
 Em “O meu amor” (1977-1978), a mesma forma de Afrodite é apresentada, porém com duas vozes. São duas mulheres que verbalizam o que sentem pelo mesmo homem. E
ambas são mulheres cujos relacionamentos com os homens tem qualidades igualmente eróticas e de companheirismo.
A quem quer que Afrodite impregne com beleza torna-se irresistível. Resulta uma atração magnética, “a química” acontece entre os dois (no caso da canção entre os três), e eles desejam a união acima de tudo. Sentem um poderoso impulso de ficarem mais íntimos, de terem relação sexual. Enquanto esse ímpeto pode ser puramente sexual, o impulso é muitas vezes mais profundo, representando um ímpeto que é igualmente psicológico e espiritual. A relação sexual é sinônimo de comunicação, uma espécie de união, associando-se como um, com um desejo de conhecer e ser conhecido. Como pode-se constatar na canção. 
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
 .Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
O modo apaixonado como Afrodite trata outra pessoa como se ele fosse fascinante e belo é característico das duas mulheres da canção, que personificam o arquétipo de Afrodite, e é um modo natural de relatar e colher informações do ser amado.
Uma historinha engraçada acontece em “PRIVATE
Deixe a menina” (1980). Uma morena com energia de sobra que tem um companheiro que não acompanha seu ritmo e passa a noite toda aborrecido, vendo sua menina no centro das atenções, sendo assediada por outros homens, com uma vontade enorme de sair daquele lugar.
Como Afrodite está presente na morena como arquétipo dominante em sua personalidade, ela se enamora freqüente e facilmente. Tem um magnetismo pessoal que induz os outros mais intimamente num campo eroticamente carregado, que intensifica a percepção sexual.
Ela é reconhecida pela sua atratividade e não apenas por sua aparência. Criando, assim, um carisma pessoal, um magnetismo ou eletricidade que combinado com atributos físicos e “muito samba no pé”, tornando-a verdadeira Afrodite.
Ela adora ser o centro da atenção, gosta de vestir roupas bonitas e de ser disputada. Ela é extrovertida, tem ânsia pela vida e um elemento impetuoso em sua personalidade. Gosta de homens e os atrai com sua atratividade e interesse por eles. Sua atenção é sedutora; faz um homem sentir que é especial (exceto aquele que “leva a sério” um romance com uma mulher Afrodite).
Entretanto, sua maneira apaixonada e atenciosa de relacionar-se pode ser interpretada erroneamente por homens que erradamente admitem que ela esteja especialmente interessada ou sexualmente atraída por eles. Então, quando ela os rejeita, pode ser tida como uma despedaçadora de corações e censurada por seduzir os homens.
Não é por estar na sua presença
Meu prezado rapaz
Mas você vai mal
Mas vai mal demais
São dez horas, o samba tá quente
Deixe a morena contente
Deixe a menina sambar em paz
Eu não queria jogar confete
Mas tenho que dizer
 Cê tá de lascar
Cê tá de doer
E se vai continuar enrustido
Com essa cara de marido
A moça é capaz de se aborrecer
Por trás de um homem triste
Há sempre uma mulher feliz
E atrás dessa mulher
Mil homens, sempre tão gentis
Por isso, para o seu bem
Ou tire ela da cabeça
Ou mereça a moça que você tem
Não sei se é pra ficar exultante
Meu querido rapaz
Mas aqui ninguém
O agüenta mais
São três horas, o samba tá quente
Deixe a morena contente
Deixe a menina sambar em paz
Não é por estar na sua presença
Meu prezado rapaz
Mas você vai mal
Mas vai mal demais
São seis horas, o samba tá quente
Deixe a morena com a gente
Deixe a menina sambar em paz 
Por outro lado, seu acompanhante sente-se enganado e ressentido, tornando-se hostil e zangado. Sentimentos de raiva, inferioridade e medo de perda são provocados nele, mas o sentimento de paixão que ele tem e a atratividade que ela exerce, também, sobre ele, fazem com que o ciúme consiga ser mantido sob controle.PRIVATE
Um relacionamento de uma mulher com um homem de comportamento e ações instáveis é tema da canção “PRIVATE
Sem açúcar” (1975). Como protagonista, uma mulher que nunca sabe de que forma o homem vai agir, ficando exposta a todo o tipo de situação.
Ela é um misto de Hera apaixonada e Afrodite. Com influência da primeira deusa, faz com que, uma vez casada, ela, mais do que qualquer outro tipo de mulher, sente-se ligada – para melhor ou para pior. Quando é “para pior”, como no contexto da canção, o arquétipo de Hera, muitas vezes com o apoio da cultura, opõe-se à saída de um casamento. As crenças religiosas e expectativas familiares podem “conspirar” para manter a mulher ligada a um alcoólatra, um namorador, ou a um espancador de esposa.
Todo dia ele faz diferente
Não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente
Não sei se ele fica na sua
 Talvezele chegue sentido
Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
Ou nem me adivinha os desejos
Dia ímpar tem chocolate
Dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate
Dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor
Na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor
Eu de noite sou seu cavalo
A cerveja dele é sagrada
A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
Sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado
E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
Eu rolo sozinha na esteira
Pela influência predominante de Afrodite (que não foi feliz nas suas escolhas), essa mulher tem uma grande atração sexual e ama um homem que a trata mal ou que a menospreza. Ela subordina tudo o mais em sua vida pelas “migalhas” de atenção que ocasionalmente obtém. Seu envolvimento pode ser de curta duração ou pode se estender por décadas. Caracteristicamente, ela é atormentada pelo relacionamento e por seus esforços de se convencer de que ele realmente a ama, apesar das provas contrárias. Ficando, portanto, deprimida e infeliz. 
Uma espécie de Rapunzel altamente sensual desinibida surge em “PRIVATE
Sem fantasia” (1967). O cenário remete o leitor aos contos de fadas, em que a princesa (lá do alto) clama pela volta de seu amor que está enfrentando as mais duras e penosas batalhas. 
Vem, meu menino vadio
Vem, sem mentir pra você
Vem, mas vem sem fantasia
Que da noite pro dia
Você não vai crescer
Vem, por favor não evites
Meu amor, meus convites
Minha dor, meus apelos
Vou te envolver nos cabelos
Vem perder-te em meus braços
Pelo amor de Deus
Vem que eu te quero fraco
Vem que eu te quero tolo
Vem que eu te quero todo meu
 Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus
A primeira parte da canção é a voz feminina, cuja qual será analisada. A mulher é uma, entre tantas que aquecendo-se no fulgor de seu foco, elas se sentem atraentes e interessantes enquanto elas fazem com que as pessoas se abram e reagem de modo carinhoso ou afirmativo, em vez de avaliativo ou crítico, como muitas outras mulheres fazem. É um estilo próprio seu estarem envolvidas genuinamente a cada momento no que quer que as interesse. O efeito na outra pessoa pode ser sedutor – e ilusório, se seu modo de interagir cria a impressão de que elas estão fascinadas ou enamoradas.
Como a protagonista está apaixonada pelo rapaz que também está enamorado dela, surge naquele momento uma personificação do arquétipo de Afrodite. Transformada temporariamente de mortal à deusa do amor, ela se sente atraente e sensual, pronta para concretizar esse amor sem máscaras, sem fantasia.
Em “PRIVATE
PRIVATE
Tatuagem” (1972-1973), Chico (em parceria com Ruy Guerra) cria um clima extremamente sensual, figurativo e, principalmente, sugestivo. O desejo de estar com o outro (Hera) une-se ao de fazer parte do outro, como uma fusão erótica (Afrodite), moldando uma forma singular de experimentar o amor em todas as suas realizações, como se ele fosse uma espécie de diamante lapidado que pode ser apreciado sob todas as facetas.
 Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
 Que é pra te dar coragem
 Pra seguir viagem
 Quando a noite vem
 E também pra me perpetuar em tua escrava
 Que você pega, esfrega, nega
 Mas não lava
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço
Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes 
Essa mulher segue a sexualidade instintiva de Afrodite que fica, de um lado, prensada em seu próprio desejo de ligação sexual e sua propensão por gerar energia erótica no outro e, de outro lado, com um grande sentimento de posse, influenciado por Hera, que quer ficar marcada no outro como uma forma de “demarcar seu território”, ou o que os donos de grandes rebanhos fazem para mostrar que aquele gado tem dono. E, assim, ela expressa, ao
seu modo, que esse homem pertence a alguém, no caso, a ela.
O
 arquétipo de Afrodite vulgar é manifestada nas duas canções que se seguem, pois em ambas a sexualidade é sentida como resposta instintiva, tendo pouco a ver com o lado amoroso ou ainda tendo pouco a ver com o amar ou até mesmo o gostar do homem que a excita, é sexualidade “desligada” de intimidade emocional. 
Começando por “PRIVATE
Folhetim” (1977-1978), Chico constrói uma mulher que em sua aparente subordinação ao homem, no final, mostra-se uma perfeita Afrodite que realiza seus desejos mais lascivos, dizendo sempre sim, mas descarta o homem quando ele deixa de ser interessante aos olhos dela. No início da canção, tem-se a impressão de que ela é usada, mas à medida em que se lê o texto, percebe-se que ela usa o homem e depois, ele já é “uma página virada” da sua vida, é apenas um passado. 
 Se acaso me quiseres
 Sou dessas mulheres
 Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim 
É da natureza “divina” de Afrodite envolver-se facilmente, experimentar atrações eróticas, e ter um forte impulso sexual que muitas outras mulheres não têm.
Ela abusa de sua sensualidade, faz todas as vontades do homem para satisfazê-lo, naquele momento, e satisfaz-se, portanto, no exato instante em que seu desejo arde dentro de si. Realizado o desejo, todo aquele acontecimento não tem significado algum para ela.
No caso de “Ana de Amsterdam” (1972-1973), a personagem é verdadeiramente uma prostituta, que vende seu corpo a qualquer um sem nenhum tipo de envolvimento (em Folhetim, o “casal” vai a lugares públicos juntos, por exemplo), tudo se passa em sua alcova, como o que acontece em bordéis ou prostíbulos.
Quando começou sua vida, ela sabia que poderia ser arrastada em direção à intimidade sexual por um desejo sobrepujante de repetir a experiência e, por ter uma grande influência de Afrodite vulgar (que é condenada pela sociedade patriarcal, que ainda considera uma mulher que já não é mais virgem como uma libertina, prostituta, devassa), acaba por levar uma vida promíscua, uma vez que seu corpo está excitado e sua atenção está atraída eroticamente por um homem. Então ela quer fundir-se com ele (ou eles), ser transportada pela sexualidade rumo à libertação orgásmica, levada pela onda da estimulação sexual a um clímax, onde sua individualidade é submergida na experiência orgásmica transpessoal. 
 Sou Ana do dique e das docas
 Da compra, da venda, da troca das pernas
 Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
 Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana, da cama
Da cana, fulana, bacana (sacana)
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Anados dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
Como resultado, por agir conforme seus impulsos, ela tem má reputação, auto-estima manchada e auto-imagem negativa e é vítima constante do preconceito da sociedade conservadora e tradicional que ainda governa.
3.6. Hécate
Filha de Perses e Astéria, tem como principal atributo agir ao seu bel-prazer. Uma deusa inicialmente ligada à distribuição de bens e, mais precisamente, à difusão de prosperidade, porém com a introdução do patriarcado, torna-se a deusa da escuridão, da magia e dos sortilégios. Em noites sem luar, acreditava-se que ela vagava pela terra com uma matilha de uivantes lobos fantasmas. Era a deusa da feitiçaria e era especialmente adorada por mágicos e feiticeiras, que sacrificavam cães e cordeiros negros a ela.
Sutilmente, em “Se eu fosse o teu patrão” (1977-1978) a influência dessa deusa infernal é exercida em resposta ao comportamento dos homens.
A voz do homem contém um discurso machista, típico de Zeus, que em seus modos promíscuos teve seis companheiras diferentes antes do casamento. Este deus tinha suas relações sexuais com outras mulheres contra a vontade delas, pois ele as seduzia, estuprava ou enganava. Compartilham, portanto, do mesmo comportamento instintivo em relação à mulher, com o olhar superior sobre a figura feminina que é vista como objeto, sem vontade própria ou sentimentos.
Eu te adivinhava
E te cobiçava
E te arrematava em leilão
Te ferrava a boca, morena
Se eu fosse o teu patrão
Ai, eu te tratava
Como uma escrava
Ai, eu não te dava perdão
Te rasgava a roupa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encarcerava
Te acorrentava
Te atava ao pé do fogão
Não te dava sopa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encurralava
Te dominava
Te violava no chão
Te deixava rota, morena
Se eu fosse o teu patrão
Quando tu quebrava
E tu desmontava
E tu não prestava mais, não
Eu comprava outra morena
Se eu fosse o teu patrão
Pois eu te pagava direito
Soldo de cidadão
Punha uma medalha em teu peito
Se eu fosse o teu patrão
O tempo passava sereno
E sem reclamação
Tu nem reparava, moreno
Na tua maldição
 E tu só pegava veneno
Beijando a minha mão
Ódio te brotava, moreno
Ódio do teu irmão
Teu filho pegava gangrena
Raiva, peste e sezão
Cólera na tua morena
E tu não chiava não
Eu te dava café pequeno
E manteiga no pão
Depois te afagava, moreno
Como se afaga um cão
Eu sempre te dava esperança
De um futuro bão
Tu me idolatrava, criança
Se eu fosse o teu patrão
Como a figura de Hécate antes do mundo ser dominado pelos deuses e não mais pelas deusas, ela distribuía riquezas. A voz feminina se mostra generosa para com o homem, pois paga o salário direito, dá medalhas, num ato de cinismo e dissimulação para não deixar transparecer suas reais intenções. Hécate torna-se mais presente a cada momento, fazendo 
com que a mulher aja de modo cruel, envenenando-o aos poucos, rebaixando-o lentamente, até coloca-lo em uma situação tão inferior a ela, que acaba por transforma-lo em um animal.
Como uma espécie de bruxaria, ela vai aos poucos seduzindo o homem para, finalmente, humilha-lo, tornando-o um ser insignificante. 
	
IV. SOBREVIVER À PERDA E AO PESAR
Perda e pesar são temas na vida das mulheres (em sua totalidade e nas canções de Chico) e nos mitos das heroínas. Em algum lugar, em um momento da caminhada, alguém morre ou deve ser deixado para trás. A perda de um relacionamento tem papel significativo na vida das mulheres porque muitas delas se definem por seus relacionamentos e não por suas realizações. Quando alguém morre, ou as deixa, ou se muda, ou se afasta, isso é conseqüentemente dupla perda: a perda do relacionamento em si, e a perda do relacionamento como fonte de identidade.
Metaforicamente, a morte psicológica ocorre toda vez que é forçado pôr em liberdade alguma coisa ou alguém e sofrer pela perda. A morte pode ser um aspecto de cada um, um velho papel, uma posição anterior, ou a beleza ou outras qualidades juvenis que já passaram e devem ser choradas; ou um sonho que não existe mais. Ou pode ser um relacionamento, terminado pela morte ou distância, que deixa bastante pesar.
A mulher precisa permanecer em movimento, manter-se em atividade, fazer o que tem que ser feito, manter contato com as pessoas que a amam ou conduzir-se sozinha, para não parar e desistir, até mesmo quando se sente perdida, para ter esperança na escuridão.
Essa escuridão pode representar sentimentos melancólicos reprimidos (de raiva, desespero, ressentimento, reprovação, vingança, traição, medo ou culpa), pelos quais as pessoas devem passar para superar esses momentos difíceis. Lamentar e perdoar são usualmente modos de libertar-se. Daí em diante a vitalidade e a luz podem retornar à sua vida.
	
	
V. A PSICOLOGIA DA MULHER
A psicologia tem por princípio que as mulheres são influenciadas por poderosas forças interiores, os arquétipos, que podem ser personificados pelas deusas gregas. E a perspectiva feminista dá-nos a compreensão de como as forças exteriores, os esteriótipos – papéis com os quais a sociedade espera que as mulheres se conformem – reforçam alguns padrões de deusa e refreiam outros. Como resultado, cada mulher fica entre dois campos de influência: intimamente por arquétipos divinos, e exteriormente por esteriótipos culturais.
Toda mulher tem dons “concedidos por deusas”, que ela deve aprender e aceitar com gratidão. Toda mulher também tem deficiências “concedidas por deusas”, deficiências que ela deve reconhecer e superar para que haja modificação. A mulher não pode opor-se a viver um padrão determinado por um arquétipo subjacente de deusa até que ela esteja consciente de que tal padrão existe e procura realizar-se através dela.
Conforme a mulher “muda de conduta” e vai de uma faceta a outra de si própria, ela pode mudar de um padrão para outro de deusa: em um ambiente, por exemplo, ela é uma Atenas que presta atenção aos detalhes; em outra situação ela é uma Héstia introvertida, protetora da lareira, para quem “as águas silenciosas são profundas”. Essa mudança explica a dificuldade de se determinar o tipo dela segundo Jung, pois a mulher tem muitas facetas. Ela pode estar muito conscientizada dos detalhes estéticos (com influência de Afrodite) e não notar, por exemplo, que o fogão ainda está aceso, ou que o indicador de nível de gasolina registra quase vazio (detalhes que Atenas não perderia). A deusa predominante explica como uma função (neste caso a sensação) pode ser de modo paradoxal ao mesmo tempo altamente desenvolvida e consciente.
	
CONCLUSÃO
Toda mulher representa o papel principal na solução do que diz respeito à sua própria história existencial. Essa é uma verdade que sempre existiu no modo em que Chico Buarque vê a mulher.
Diferentemente dele, exatamente porque as mulheres costumam não ter consciência dos poderosos efeitos que os esteriótipos culturais exercem sobre elas, acabam por não ter consciência de poderosas forças que atuam no seu íntimo. Essas forças influenciam o que elas fazem e o modo como elas sentem.
Chico Buarque apresenta um modo de ser, na relação homem-mulher, que se situa, num exercício de deslocamento, na Grécia. Com uma boa dose de veracidade histórica pelo que conhece, documentalmente, da vida das mulheres reclusas em seu protótipo da mulher transformada numa deusa, uma heroína: a mulher que espera, restrita aos limites da casa, enquanto seu homem enfrenta odisséias.
Mas ele não deixa escapar nenhuma mulher, por mais anônima ou aparentemente apática que seja. Ele é despido de todo tipo de preconceito e revela a figura feminina em suas várias faces, apreciando-as, respeitando-as e inspirando-se nelas como se fossem verdadeiramente deusas (o que não deixa de ser um pouco de verdade).
Abordando todos os tipos de mulheres em sua obra, Chico Buarque, vai mostrando a realidade que o cerca, transformando fatos corriqueiros em poesia (da melhor qualidade). Cada detalhe, cada ação ou reação dessas mulheres

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