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Mulheres trabalhadoras e Marxismo mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 1 3/15/2012 2:19:46 PM mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 2 3/15/2012 2:19:47 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo São Paulo, 2012 Carmen Carrasco Mercedes Petit mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 3 3/15/2012 2:19:47 PM 2012, Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann A editora autoriza a reprodução de partes deste livro para fins acadêmicos e/ ou de divulgação eletrônica, desde que mencionada a fonte. Coordenação Editorial: Henrique Canary Tradução e organização: Cecília Toledo Revisão e padronização: Patrícia Mafra Diagramação: Daniel Oliveira Capa: Thiago Mahrenholz Revisão final: Henrique Canary Carrasco, Carmen; Petit, Mercedes. Mulheres trabalhadoras e marxismo. Um debate sobre a opressão. São Paulo: Editora Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2012. 144 p., 1ª edição. ISBN: 978-85-99156-79-7 1. Opressão da mulher. 2. Marxismo. 3. Mulheres trabalhadoras. 4. Teoria. 5. Título Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann Avenida Nove de Julho, 925 • Bela Vista • São Paulo • Brasil • 01313-000 • 55 -11 3253 5801 vendas@editorasundermann.com.br • www.editorasundermann.com.br mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 4 3/15/2012 2:19:48 PM Sumário Prefácio, 7 Apresentação de Mercedes Petit, 13 Apresentação de Carmen Carrasco, 19 Introdução, 25 CAPÍTULO I - O capitalismo, a família e a opressão da mulher, 29 CAPÍTULO II - As lutas das mulheres: uma história marcada pelas divisões políticas e de classe, 47 CAPÍTULO III - Opressão e exploração, 81 CAPÍTULO IV - Método e programa para a luta das mulheres, 97 CAPÍTULO V - A necessidade do partido revolucionário, 119 APÊNDICE I - Pela defesa intransigente da mulher trabalhadora, 129 APÊNDICE II - As tarefas do trotskismo entre as mulheres, 143 APÊNDICE III - Pelos direitos da mulher e das trabalhadoras, 153 Bibliografia, 157 mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 5 3/15/2012 2:19:48 PM mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 6 3/15/2012 2:19:48 PM Prefácio Cecília Toledo Membro do Conselho Editorial da revista Marxismo Vivo e autora do livro Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide1 Começo este prefácio com uma pergunta: por que lançar este livro, contendo as concepções de nossa corrente morenista sobre a luta pela emancipação das mulheres? É tão fundamental neste mo- mento? Este livro foi escrito por Carmen Carrasco e Mercedes Petit depois de longas conversas com Nahuel Moreno, o mais importan- te dirigente trotskista da Argentina e fundador do MAS2 e da LIT3. Bem que eu gostaria de ter participado dessas conversas, que são transcritas neste livro com muita clareza e precisão. Naquela época nós estávamos buscando compreender melhor o caráter de classe da luta em defesa de todos os setores oprimidos, em especial a luta contra a opressão das mulheres, que já então eram praticamente 1 Publicado pela Editora Sundermann em 2008. (N. do E.) 2 Movimiento Al Socialismo, fundado em 1982. Tornou-se o maior partido trotskista da história da Argentina. Sofreu inúmeras rupturas a partir do início dos anos 1990, dando origem a distintas organizações. (N. do E.) 3 Liga Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1982. (N. do E.) mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 7 3/15/2012 2:19:48 PM 8 Carmen Carrasco e Mercedes Petit a metade da população economicamente ativa em toda a América Latina. O centro de nossas preocupações – a construção do partido revolucionário, nacional e internacional, e o esforço por mobilizar a classe trabalhadora – não encontraria solução se não tivéssemos uma política clara para convencer as mulheres trabalhadoras a partici- parem da luta de classes. E isso não era nada fácil. Precisávamos, antes, entender o caráter da opressão, nos convencer a nós mesmos de que as mulheres não são iguais aos homens, de que elas sofrem uma exploração como trabalhadoras que é distinta, porque vem potencializada pela discriminação enquanto mulheres, enquanto “sexo frágil” ou “segundo sexo”, como dizia Simone de Beauvoir. Precisávamos também nos conscientizar de que dentro de nossas fileiras não bastava ser trotskista e revolucionário. Era preciso tam- bém não ser machista. Moreno, como principal dirigente de nossa corrente, foi quem melhor conseguiu sintetizar todo esse complexo conjunto de preocu- pações e tarefas e fazer uma análise marxista do problema. Graças ao trabalho de redação feito por Carmen e Mercedes, agora temos este livro fundamental em mãos. Infelizmente ele ficou muito tempo en- gavetado. Moreno morreu em 1987, e somente hoje, 25 anos depois, o livro é lançado. Nesses anos todos não deixamos de militar pela questão das mulheres, mas foi mais difícil, porque não tínhamos a teoria revolucionária tão claramente exposta como está nestas pági- nas. As concepções do trotskismo sobre a luta das mulheres não eram amplamente conhecidas, e com isso cremos que muitas mulheres lu- tadoras tenham caído no conto do vigário das feministas reformis- tas, sem poder contar com uma política alternativa que lhes servisse de contraponto. Mas agora o que importa é que o livro foi publicado e cai em terreno fértil, porque mais do que nunca as mulheres hoje têm um papel central na produção industrial, na produção agrícola, nos setores secundários e terciários da economia latino-americana e mundial. Em contrapartida, centenas delas estão a serviço do capi- tal, ocupando postos de comando nos Estados burgueses: presiden- tas, deputadas, diretoras de organismos das Nações Unidas. Muitas são negras, vindas de famílias pobres. A burguesia sabe utilizar-se mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 8 3/15/2012 2:19:48 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 9 da opressão para manter subjugados os próprios oprimidos. Ao mesmo tempo, do lado de cá da fronteira de classe, centenas de outras mulheres, vestindo calças ou saias, macacões de operárias, chapelões de agricultoras, aventais de empregadas domésticas ou enfermeiras, estão ocupando seu lugar na produção e mostrando sua essencialidade para qualquer movimento mais brusco que faça a classe trabalhadora. Mesmo que ainda continuem atentas ao for- no e ao fogão para que a comida não queime, as mulheres já não podem ser esquecidas no fundo de um quarto escuro. Contradito- riamente, o mesmo capitalismo que as relegou ao porão da casa em seus primórdios, agora teve de arrastá-las para o chão da fábrica, para serem exploradas tanto quanto os homens. Também de forma contraditória, as mulheres fizeram grandes avanços, graças à sua disposição de manter os postos duramente conquistados, mas con- tinuam ganhando menos que os homens, continuam arrastando o fardo do preconceito, continuam vítimas do abuso sexual, con- tinuam sendo o saco de pancadas da sociedade, continuam cum- prindo o triste papel de escravas do lar. Desde que o conteúdo deste livro foi elaborado, em 1979, até hoje, a situação das mulheres mudou bastante. Mas mesmo assim a sensação que se tem é que o livro foi escrito ontem. E isso se deve, em grande parte, à própria política que aqui se combate, a política que então era defendida por Mary-Alice Waters e o SWP.4 Uma política que até hoje é defendida por inúmeros grupos feministas e partidos políticos no mundo inteiro. Então, não apenas o tema é atual, mas também os erros são atuais. O que Moreno combate neste livro, junto com Carmen e Mer- cedes, é uma política equivocada para as mulheres. E hoje temos a vantagem, dado o tempo que passou desde então, de confirmar esse equívoco. Nada como a prova da história. Basta perguntar como está a situação das mulheres hoje – e aqui estamos nos re- ferindo às mulheres trabalhadoras e pobres – para entender o que 4 Socialist Workers Party – Partido Socialista dos Trabalhadores. Seção norte‑americana da IV Internacional e que fazia parte do Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional. (N. do E.) mulheres e marxismo_refazendo138.indd 9 3/15/2012 2:19:49 PM 10 Carmen Carrasco e Mercedes Petit queremos dizer. A política defendida naquela época por Mary-Alice Waters e o SWP e que, com outras palavras, é a mesma que vem sen- do defendida hoje pela Marcha Mundial de Mulheres5 e outros gru- pos feministas, é tão contrária às necessidades e interesses políticos e organizativos da mulher trabalhadora, tão contrária às necessidades da luta revolucionária pelo socialismo e tão contrária à luta contra a opressão das mulheres, que foi adotada inclusive pela própria ONU, pelo Banco Mundial e por todos os governos burgueses que se dizem preocupados com a situação das mulheres. É, então, uma política perfeitamente ajustada às necessidades da democracia burguesa. A burguesia, que em sua época de ascenso como classe procurava consolidar seu sistema econômico, seu regi- me político e seus valores ideológicos, não conseguiu resolver o pro- blema da opressão e da desigualdade das mulheres. E agora encontra uma política feita na medida para “resolver” o problema sem que para isso tenha de mudar em nada seu sistema de exploração. É uma maquiagem de política feminista. Muda-se alguma coisa para que não se mude nada. No caso, muda-se o discurso, o campo simbólico e outros termos do tipo, tão em voga nestes tempos pós-modernos, e a mulher trabalhadora e pobre continua cada vez mais explorada e oprimida. As estatísticas são cada vez mais sombrias: a cada 4 minu- tos uma mulher é espancada em sua própria casa, 70% dos pobres no mundo são mulheres, e assim por diante. Em suma, a política do SWP, confirmando os prognósticos de Moreno, foi aplicada e não deu certo. Pelo menos para as mulheres. A política frente-populista, de irmandade das mulheres, mostrou toda a sua falácia, desnudou a sua traição de classe, o seu caráter de arma- dilha que agarrou as mulheres trabalhadoras pelo pé e as manteve atadas às políticas da burguesia. Diante do fracasso dessa política, diante do agravamento brutal da opressão, as mulheres trabalhado- ras e pobres arregaçaram as mangas e voltaram à luta. E o feminismo reformista viu-se diante da necessidade de encontrar uma nova fór- 5 Movimento mundial de mulheres, surgido no Canadá nos anos 1990 e que continua atuando em diversos países, aplicando e defendo políticas de gênero dirigidas ao Estado burguês. (N. do E.) mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 10 3/15/2012 2:19:49 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 11 mula para detê-las. Nos anos 1980 começam a usar o termo “gê- nero” para referir-se à opressão das mulheres, como se fosse uma grande invenção, a fórmula mágica para todos os males. Pena que Moreno não viveu esse tempo, gostaria de saber a sua opinião sobre isso. Mas no frigir dos ovos, muda-se o discurso para que o conteú- do continue igual. E o conteúdo é que o “gênero” é uma elaboração programática completa acerca da condição feminina no capitalis- mo, elaboração esta bem sofisticada e acadêmica, destinada a en- gambelar as mulheres que não são acadêmicas, as que nem estudo decente tiveram, para fazer com que se convençam de que sua con- dição precária na sociedade é triste sim, mas passageira; é desigual sim, mas nada que não possa ser resolvido com uma boa política de gênero encaminhada ao Estado, aos Ministérios das Mulheres, e posta nas mãos das primeiras-damas, nossas embaixadoras junto à ONU, à Unesco, ao FMI, enfim, a algum desses organismos do imperialismo que graças a um milagre qualquer mudaram o seu caráter e o seu papel e agora defendem as mulheres. Com outras palavras, é a mesma interpretação que fazia Ma- ry-Alice Waters e o SWP, que Moreno combate neste livro. Nos anos 1970 não se usava o termo “gênero”, mas isso não impediu que as feministas, sobretudo as norte-americanas, fizessem toda uma elaboração igualmente sofisticada, igualmente detalhada em milhões de documentos e livros e revistas e folhetos e progra- mas e escritos de todo tipo para convencer as mulheres da classe trabalhadora a se unirem às mulheres burguesas e construir um grande movimento policlassista contra a opressão. O argumento, perfeitamente justo, de que a opressão atinge as mulheres bur- guesas e trabalhadoras, ricas e pobres, intelectuais e analfabetas, operárias e camponesas, deveria nos levar a fazer lutas conjuntas por nossos direitos suprimidos. O maior exemplo histórico foi a luta sufragista, quando, no início do século 20, mulheres ricas e pobres saíram às ruas pelo direito de voto. Mas essas lutas são passageiras. A verdadeira transformação na situação das mulhe- res depende de uma transformação radical da sociedade, e para isso as mulheres trabalhadoras devem travar sua luta no seio de mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 11 3/15/2012 2:19:49 PM 12 Carmen Carrasco e Mercedes Petit sua classe, de forma independente das mulheres burguesas e sem depositar nelas a mínima confiança. A situação da mulher tem de ser vista historicamente. E a história nos mostra que a opressão, apesar de ser cultural, está assentada em um sistema econômico de exploração, de desigualdade, que necessita subjugar e discriminar para continuar existindo. Como dizem as au- toras deste livro, junto com Moreno, a política básica do capitalismo, imposta por suas necessidades econômicas, é extrair o máximo de lucro possível, explorando os trabalhadores, sejam homens ou mu- lheres, crianças e inclusive povos inteiros. Esse afã pelo lucro é o selo que marca a ferro e fogo todas as suas atividades e instituições, e se para isso for preciso, o capitalismo não hesita em revolucionar a fa- mília, em tirar a mulher do quarto escuro ou voltar a encerrá-la ali, desde que seus lucros estejam garantidos. Essa é a única lei realmen- te cumprida na sociedade capitalista. Por isso as políticas de gênero morrem no nascedouro, a bandeira da irmandade das mulheres vai para as calendas gregas e o empoderamento das mulheres, expressão tão cara às feministas de hoje, não significa outra coisa que dar po- der a determinadas mulheres escolhidas a dedo para que continuem oprimindo os infelizes oprimidos que não tiveram a mesma sorte. A pergunta do início deste prefácio, de por que lançar este li- vro neste momento, tem uma resposta simples: porque ainda temos muito a entender sobre o problema da opressão das mulheres, sobre seu caráter de classe, sobre a melhor forma de organizar as mulhe- res sem dividir a classe trabalhadora. Os erros que Mary-Alice e o SWP cometeram nos anos 70 devem nos servir nessa aprendizagem, para que não voltemos a cometê-los e possamos convencer muitas mulheres de nossa classe de que não existem fórmulas mágicas ou caminhos fáceis para vencer a opressão. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 12 3/15/2012 2:19:49 PM Apresentação de Mercedes Petit Este livro foi escrito em 1979, há trinta anos. Podemos extrair experiências e lições daqueles debates? Claro que sim. Aqueles debates foram feitos ao calor do poderoso movimento feminista que sacudiu os Estados Unidos e vários países europeus nos anos 1960 e início dos anos 1970. Aquelas mobilizações mudaram muitos aspectos da vida cotidiana das mulheres norte-america- nas, que conquistaram direitos, como o do aborto, maior liber- dade sexual e uma crescente participação em diversos aspectos das atividades da sociedade. A libertação feminina instalou-se de forma definitiva e conquistamos soluções de fundo? Não, de forma alguma. Inclusive periodicamente a direita volta a atacar o direito ao aborto, para suprimi-lo ou limitá-lo. O divórcio é uma conquista, mas cada vez é maior o número de mulheres que devem enfrentar sozinhas a criação dos filhos e a manutenção do lar. Ocorreu no mundo inteiro uma grande ampliação da parti- cipação das mulheres no mercado de trabalho, mas agudizando suas condições de exploração. É impossível conseguir a liberta- ção de todas as mulheres enquanto perdurar o sistema capitalista. Da mesma maneira que é impossível alimentar toda a populaçãomundial, dar a todos uma vida digna, saúde, educação, trabalho mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 13 3/15/2012 2:19:49 PM 14 Carmen Carrasco e Mercedes Petit e lazer devido às multinacionais e a uma economia baseada na ob- tenção do lucro para uma minoria de proprietários. A perspectiva é que a libertação se alcance com a conquista de um novo sistema mundial, o socialismo com democracia operária. No debate que estamos publicando neste livro, a corrente do trotskismo que foi encabeçada pelo dirigente argentino Nahuel Mo- reno polemizou contra concepções que defendiam a ideia de que movimentos autônomos e unitários de mulheres teriam uma per- manência no tempo e uma continuidade que lhes permitiria ser de- cisivos protagonistas de uma luta triunfante rumo ao socialismo. O simples fato de que aqueles movimentos tivessem tido seu ascenso, seu descenso e não tivessem voltado a ocorrer, deveria servir para se chegar a uma conclusão. Mas o debate mais importante da época era outro, e foi adquirindo uma atualidade cada vez maior. O ca- minho para a libertação passa pelos movimentos policlassistas de “todas” as mulheres? Respondíamos que não, que apesar de serem muito importantes e necessárias a unidade de ação e a participação unitária naqueles movimentos (mesmo sabendo que não seriam per- manentes), não se eliminavam as contradições de classe, os interes- ses antagônicos que geravam esses processos. E enfatizávamos que a trincheira dos revolucionários devia estar na defesa dos interesses das mulheres exploradas e sua confluência natural com os trabalha- dores, para fortalecer suas lutas e para avançar na construção do par- tido revolucionário. Reivindicamos uma experiência histórica breve mas muito pro- funda, na qual foram dados os passos mais importantes para avançar na libertação das mulheres: a vitória da primeira revolução socialista em 1917, na Rússia. O novo regime soviético, encabeçado por Lenin e Trotsky, concedeu imediatamente os mesmos direitos jurídicos e políticos às mulheres e homens, e começou a instalar um amplo sis- tema de creches, jardins de infância e lavanderias. Foi estabelecido o direito ao aborto e o divórcio passou a ser feito de forma simples e gratuita. O primeiro governo operário e camponês revolucionário, ainda que em circunstâncias muito difíceis, como foram os anos ter- ríveis da guerra civil, deu passos imensos para combater a situação mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 14 3/15/2012 2:19:49 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 15 de tremenda opressão das mulheres operárias e camponesas sob o czarismo. Mas o processo de burocratização levado adiante por Stalin o interrompeu, e as mulheres foram um dos setores mais atingidos pelo retrocesso da revolução. “A história nos ensina mui- tas coisas sobre a escravidão da mulher pelo homem, sobre a de ambos pelo explorador e sobre os esforços dos trabalhadores que, tentando livrar-se da opressão com o risco da própria vida, na ver- dade não conseguem muito mais que mudar as correntes.”6 Estas são palavras de Leon Trotsky, ditas em 1936, quando vivia no exí- lio. Estava comentando as mudanças na legislação soviética, que li- mitavam o divórcio e proibiam o aborto, impostos pela ditadura de Stalin (que proclamava já haver alcançado “o socialismo”). Houve grandes avanços nos primeiros anos da URSS. E o assim chama- do “fracasso do socialismo” foi o resultado do desastre provocado por uma burocracia repressiva e restauracionista, que traiu a luta pelo socialismo e foi destruindo todas as conquistas daquela revo- lução, incluindo os passos dados no combate contra a “escravidão da mulher”. Depois da queda do Muro de Berlim e da restauração do ca- pitalismo na ex-URSS, China e demais países onde se havia ex- propriado a burguesia, o mundo continuou sendo sacudido inces- santemente por todo tipo de convulsões e lutas revolucionárias. Nada indica que a roda da história (ou melhor, da luta de classes) tenha se estancado. Não voltaram a ocorrer movimentos feminis- tas de massas, mas continuaram caindo os tabus e preconceitos antifeministas. O discurso reacionário das igrejas – em particular a católica – perde força. Setores importantes da opinião pública aceitam e exigem a legalização do aborto. Cada vez está menos encoberta – ainda que não necessariamente menos frequente – a violência contra as mulheres, e os diversos grupos vinculados à de- fesa da diversidade sexual ganham espaço e legitimidade. Incorpo- raram-se novos protagonistas que acompanham os trabalhadores das cidades e os jovens estudantes. Os camponeses pobres e sem 6 Trotsky, Leon. La revolución traicionada, Editorial Crux. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 15 3/15/2012 2:19:49 PM 16 Carmen Carrasco e Mercedes Petit terras, os indígenas, os jovens desempregados das grandes cidades, os imigrantes superexplorados se mobilizam. Recoloca-se o debate sobre o papel da classe operária e sua relação com os demais setores populares e oprimidos. Os setores do reformismo político e os inte- lectuais que os alimentam com os enfoques acadêmicos negam uma vez mais o antagonismo irreconciliável entre os interesses das classes sociais opostas (a velha e insubstituível antinomia burguesia-prole- tariado…) e a inexorável necessidade da revolução. Uma das modas vigentes na América Latina, por exemplo, são os “pós-marxistas”, como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e outros. Defendem a “desconstrução” do conceito marxista de “classe” com o pressuposto de que a classe operária praticamente já não existe ou decresce (ideia que já foi empiricamente refutada até não poder mais), e voltam a colocar no debate as velhas discussões. Reduzindo o marxismo a um obreirismo próprio do século 19 ou, no máximo, do século 20, o desqualificam como insuficiente diante da prolifera- ção de lutas particulares erigidas pelos “novos movimentos sociais” – feministas, ecologistas, diversidade sexual, minorias étnicas, imi- grantes – que conformariam os novos sujeitos políticos e ocupariam o papel de protagonistas que alguma vez (ou nunca) coube à classe operária. Em países onde o movimento indígena e camponês adquiriu grande protagonismo, como na Bolívia ou Peru (ou anos atrás em Chiapas, ao sul do México, com o zapatismo), ao calor de lutas mui- to progressivas contra o capitalismo semicolonial e os debates para superá-lo, se propõem saídas utópicas e policlassistas. São expressões atuais da tradicional polêmica entre reformistas e revolucionários. Frente ao capitalismo imperialista, a realidade sempre volta a devol- ver a razão a estes últimos: o capitalismo não tem conserto, não tem “reforma”, não há outro caminho que o choque das classes em con- fronto. A aposta na solução de fundo dos problemas dos trabalha- dores, dos camponeses, das mulheres ou dos indígenas mostra que não há outra saída a não ser derrotar a classe inimiga – a burguesia – e o imperialismo com a força da classe operária unida à frente de seus aliados, e assim extirpar o poder político e econômico dos pa- mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 16 3/15/2012 2:19:49 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 17 trões e governos que os mantêm. Em outras palavras, a vitória da revolução socialista. As reivindicações indigenistas, por exemplo, desvinculadas de uma saída anticapitalista e socialista, têm pontos em comum com o “socialismo do século 21”, proclamado pelo pre- sidente Hugo Chávez, que defende e pratica uma economia mista capitalista com as multinacionais e setores da burguesia venezue- lana, e mantém a exploração e crescente repressão contra os traba- lhadores e setores populares da Venezuela. Neste livro o debate gira em torno da luta pela libertação fe- minina, com concepções do tipo policlassista daquela época. A discussão continua vigente, inclusive com grupos que se reivin- dicam marxistas e trotskistas. Pode parecer um debate menor, já que não está alimentado hoje em dia por importantes mobiliza- ções de mulheres,como ocorreu nos anos 1960 e 1970. Mas sem dúvida tem importância, porque a libertação da mulher abarca a metade da humanidade, e elas estão presentes em todas as lutas. Alguns grupos dos Estados Unidos e outros países, ou seguidores do dirigente Ernest Mandel, atribuem um protagonismo decisivo e principal a um movimento de libertação feminina para avan- çar em direção ao socialismo. Partem de fatos corretos, já que as mulheres são as maiores vítimas de quase todos os problemas da opressão. Mas chegam a uma conclusão equivocada. Segundo esses grupos, como as mulheres trabalhadoras sofrem opressão por sua classe, sua raça, sua orientação sexual, sua nacionalidade e etnicidade, seus movimentos seriam aqueles que liderariam a libertação da humanidade. A discussão que colocamos há três décadas sobre as características do capitalismo, da exploração e da opressão, sobre os antagonismos de classe e as tarefas para avançar rumo à vitória da revolução socialista continuam sendo uma contribuição a esses debates atuais. Buenos Aires, 30 de setembro de 2009. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 17 3/15/2012 2:19:50 PM mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 18 3/15/2012 2:19:50 PM Apresentação de Carmen Carrasco A segunda metade do século 20 presenciou uma revolução da mulher em todos os terrenos. Sua incorporação à produção cresce de maneira constante: em 2007, um bilhão e duzentos milhões de mulheres trabalhavam em todo o mundo, um aumento de 18,4% em relação à década anterior. Desde 1960 até hoje, as mulheres passaram de 34 a 46% dos assalariados no mundo. Nos Estados Unidos, seis em cada dez mulheres trabalhavam em 2005, o dobro que em 1948, e, no final de 2009, depois de um ano de recessão, as mulheres quase ultrapassam os homens na força de trabalho, pela primeira vez na história. Na Europa, as mulheres passaram de 30% da força de trabalho nos anos 60, para 43% hoje, quase 50% a mais. O mesmo ocorre nos países atrasados: no leste da Ásia há 83 mulheres para cada 100 homens no mercado de trabalho, uma por- centagem mais alta que nos países desenvolvidos. Na China, da‑ gongmei : mulheres jovens de cerca de vinte anos que emigram do campo para trabalhar nas fábricas, sem residência legal nas cida- des, esgotando-se em jornadas eternas, transpirando em pequenos galpões com seus filhos Essa “proletarização” da mulher ou “feminização dos assala- riados” é o traço fundamental da história feminina da segunda mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 19 3/15/2012 2:19:50 PM 20 Carmen Carrasco e Mercedes Petit metade do século 20, a tal ponto que a revista inglesa The Economist considera que na última década “o aumento do emprego da mulher nos países desenvolvidos contribuiu mais para o crescimento do que a China”.7 Em outras palavras, não tão acadêmicas: a incorporação massiva da mulher na produção foi uma das principais fontes dos extraordi- nários lucros capitalistas do último boom, antes da explosão da crise, em 2008. A faixa onde mais cresceu o emprego feminino foi a das mulhe- res entre 25 e 49 anos. Novidade: as mulheres não deixam de traba- lhar para ser mães, ou melhor, são as jovens mães que se incorporam massivamente ao mercado de trabalho. Em um fenômeno paralelo, as mulheres tomaram as escolas por assalto: ao finalizar a Segunda Guerra Mundial, elas eram entre 15 e 30% dos estudantes nos países desenvolvidos.8 Hoje em dia, nos Estados Unidos 140 mulheres ingressam na universidade para cada 100 homens, e na Suécia são 150 para cada 100.9 Essa incorporação massiva da mulher à produção e à escola é pré-condição para sua libertação, mas paga bem caro por isso: há mais mulheres assalariadas e educadas, mais advogadas, médicas e jornalistas, mas há também mais mulheres desempregadas, com tra- balhos precários (na Europa ocupam 80% dos trabalhos em tempo parcial) e com menores salários (em média ganham 27% menos10), enquanto se generaliza a dupla exploração por sua condição de tra- balhadoras e mães. A conclusão é simples: as mulheres são 70% dos pobres do mun- do, mesmo representando quase a metade da força de trabalho. A mais importante consequência social dessa introdução mas- siva da mulher, em especial da mãe jovem (e, na maioria dos casos, solteira), ao mundo dos assalariados, foi a dissolução da família para a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras, convertendo-se num 7 The Economist, “A Guide to Womenomics”, 12 de abril de 2006. 8 Hobsbawm, Eric. Historia del siglo XX, Buenos Aires: Planeta, p. 313. 9 The Economist, “A Guide to Womenomics”, 12 de abril de 2006. 10 http://www.unifem.org/gender_issues/women_poverty_economics/ mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 20 3/15/2012 2:19:50 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 21 luxo só permitido para a burguesia e algumas faixas da classe mé- dia. Assim, o capitalismo cumpriu uma missão histórica: enterrar a família. Basta um dado: nos Estados Unidos, em 2007, 60% das jovens entre 20 e 24 anos são mães solteiras, três vezes mais que em 1980, uma verdadeira revolução nas relações pessoais e familiares, que não se limita aos Estados Unidos, mas que se estende à Europa, onde em muitos países essa cifra é maior, e se reflete na América Latina. Na Argentina, por exemplo, um terço dos lares é chefia- do por uma mulher, cifra que aumentou 50% nos últimos quinze anos, mas nos lares mais pobres chega a 40%. A dissolução da família, sem qualquer alternativa estatal que a substitua – restaurantes, creches, lavanderias coletivas –, em meio à crise da educação e da saúde pública, cria situações sociais alar- mantes: os filhos ficam largados à sua própria sorte; as mães sozi- nhas devem responder pela educação e manutenção dos filhos; au- menta a incidência de gravidez entre as adolescentes, que abortam correndo risco de vida; as crianças ficam sob cuidado dos avós – ou da avó –, e é provável que não se saiba quem é o pai. A degeneração social se traduz no aumento do consumo de drogas e na violência doméstica contra a mulher, enquanto que o tráfico de mulheres passa a ser a terceira atividade mais rentável do mundo, depois do tráfico de drogas e armas. Recordemos as 370 trabalhadoras das “maquilas” mexicanas em Ciudad Juárez, assassinadas nos últimos dez anos. A entrada em massa da mulher na produção e na vida cultural e política veio junto com grandes lutas das mulheres por seus di- reitos, que tiveram seu auge na Europa e Estados Unidos nos anos 1960 e 1970. Se na primeira metade do século passado era impen- sável uma presidente mulher, na segunda metade cerca de quarenta mulheres ocuparam esse cargo. Na maioria dos países ocidentais se conquistou o direito ao divórcio, o pátrio poder compartido, o direito de voto, e em 54 países se conquistou o direito ao aborto, que já existia nos países chamados socialistas. Esta luta continua presente na América Latina, mas já foram feitos avanços, como na mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 21 3/15/2012 2:19:50 PM 22 Carmen Carrasco e Mercedes Petit Cidade do México, onde foi legalizado, e no Uruguai, onde a descri- minalização do aborto foi aprovada pelo parlamento – apesar de a lei ter sido vetada pelo governo de “esquerda” da Frente Ampla de Taba- ré Vázquez. Mas estas conquistas são muito desiguais e abarcam, no fundamental, os países mais desenvolvidos, deixando de fora regiões inteiras do planeta, como a África, com as brutais mutilações de suas mulheres; os países muçulmanos, com suas lapidações e privação de direitos da metade feminina; o sul da Ásia, com milhões de campo- nesas chinesas, ou as mulheres pobres da América Latina. Onde mais se expressa esta mudança revolucionária é na cres- cente participação da mulher na primeira linha das lutas operárias e populares. Neda Soltán, a jovem assassinada durante as manifesta- ções contra a fraude eleitoral no Irã em junho de 2009, personifica a grande rebelião das mulheres iranianas contra o regime teocrático dosaiatolás. Azucena Villaflor, única pessoa enterrada na Praça de Maio, em Buenos Aires, personifica a luta contra a ditadura e o geno- cídio, e representa os milhares de mulheres desaparecidas na Argen- tina. Rachel Corrie, atropelada por um tanque em Gaza, personifica a solidariedade internacional com o povo palestino. Dionísia Díaz, esposa de um dos operários da grande greve bananeira de 1954, foi chamada “a avó da resistência”, em Honduras. As operárias de Ter- rabusi, protagonistas da heroica greve de mais de um mês contra a multinacional Kraft, na Argentina, são o exemplo dos milhões de mulheres assalariadas que lutam por seus direitos. A “feminização” da classe trabalhadora e a dissolução da famí- lia, estes dois fenômenos do final do século 20, marcam a agenda de quem pretende oferecer uma alternativa revolucionária às mulheres. O feminismo antimarxista e muitas correntes feministas de es- querda mantêm a agenda dos anos 60, e consideram seu objetivo abolir a família (abolida, de fato, pelo capitalismo), chamam a cons- trução de um “movimento feminista independente”, e colocam o eixo nas “questões femininas” em geral. O livro que apresentamos hoje é um debate contra essas posições. Apesar de ter sido escrito em 1979, reflete algumas das polêmicas mais candentes do movimento feminista atual. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 22 3/15/2012 2:19:50 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 23 Três décadas depois podemos comprovar que a “proletari- zação” das mulheres as leva a participar de forma cada vez mais massiva da vida política e social, mas seguindo as linhas políticas de classe: levantando suas próprias reivindicações como trabalha- doras – creches, licença-maternidade, igualdade salarial – e como mulheres – aborto livre e gratuito, igualdade de direitos, contra o tráfico de mulheres, contra a violência de gênero, por saúde e educação –, mas não de maneira “independente”, e sim acompa- nhando e/ou sendo vanguarda da luta geral dos trabalhadores e dos setores populares contra o capitalismo imperialista. Por isso, não ocorreram os “movimentos autônomos feministas”, policlas- sistas e permanentes em torno das “questões femininas”. Nossa tarefa fundamental é despertar para a ação os massivos batalhões de mulheres trabalhadoras, jovens, donas de casa, de- sempregadas, para lutar por seus direitos e para convencê-las de que a plena igualdade só virá unindo-se aos trabalhadores e cons- truindo uma alternativa revolucionária para derrubar o sistema capitalista e construir uma sociedade nova. Este livro foi escrito sob a direção de Nahuel Moreno. Distin- tas circunstâncias políticas impediram que fosse publicado naque- le momento, mas, graças aos companheiros da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), hoje podemos saldar uma dívida de trinta anos. Dedico o livro a Amélia Beato e Rita Astásio, dirigentes docen- tes argentinas, que faleceram tragicamente em um acidente de car- ro quando viajavam para apoiar uma greve docente na província de San Juan. A Graciela Flores, destacada dirigente do movimento piqueteiro, que faleceu vítima de uma longa enfermidade, e a Sonia Colman, vendedora ambulante, assassinada pelas balas do “gatilho fácil”. Todas elas, inesquecíveis companheiras. Buenos Aires, 30 de setembro de 2009. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 23 3/15/2012 2:19:50 PM mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 24 3/15/2012 2:19:50 PM Introdução No final dos anos 1960 e início dos 1970 ocorreram impor- tantes mobilizações de mulheres por seus direitos, sobretudo na França, Itália e Estados Unidos. Foram alimentadas pela onda de lutas operárias e estudantis, cujo ápice foi o Maio de 1968 francês, e o crescente repúdio mundial à intervenção do imperialismo ame- ricano no Vietnã. As mobilizações feministas ocorreram com mais profun- didade nos Estados Unidos. O setor de mulheres dirigidas pelo Partido Democrata esteve à frente delas. Uma das reivindicações centrais foi o direito ao aborto livre e gratuito. Havia uma cres- cente participação da mulher em todos os âmbitos da vida social, econômica e política. Este livro foi escrito em 1979 para apresentar um enfoque mar- xista diante dessas lutas e as diversas respostas que foram gerando. Havia surgido uma infinidade de grupos feministas antimarxis- tas que defendiam a unidade de todas as mulheres por cima das classes sociais e das divisões políticas, e que, levadas ao extremo, negavam inclusive a participação dos partidos políticos de esquer- da como tais. Esta pressão objetiva penetrou nas fileiras do mo- vimento trotskista, organizado na Quarta Internacional. Tanto o Socialist Workers Party (SWP) dos Estados Unidos como a cor- rente encabeçada por Ernest Mandel, majoritária no Secretariado mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 25 3/15/2012 2:19:50 PM 26 Carmen Carrasco e Mercedes Petit Unificado (SU) da Quarta Internacional, foram adotando posições centradas na “unidade de todas as mulheres” de todas as classes para formar “movimentos unitários e autônomos”, ignorando as inexorá- veis contradições provocadas pelas classes sociais em luta. Em seu documento “La revolución socialista y la lucha por la li- beración de la mujer”,11 a dirigente do SWP norte-americano, Ma- ry-Alice Waters, apresentou essa nova concepção política. A corrente do trotskismo encabeçada pelo dirigente argentino Nahuel Moreno polemizou com esse feminismo policlassista, e assim surgiu este livro que agora se publica. O debate sobre como respon- der à opressão da mulher e às suas lutas era parte de uma discussão mais geral sobre o papel dos diversos grupos de oprimidos, como as mulheres ou os negros, na luta pela revolução socialista, e sua relação com a classe operária e o partido revolucionário. Também sobre a te- oria da revolução permanente, pilar das concepções de Leon Trotsky, que Nahuel Moreno desenvolvia com a direção do SWP. Em 1979, em seu texto “Atualização do Programa de Transição”, ele dizia: “A nova teoria da revolução permanente da atual direção do SWP é a teoria dos movimentos unitários progressivos dos oprimidos, e não do proletariado e do trotskismo. [Segundo o SWP] todo movimento de oprimidos – se é unitá- rio e abarca o conjunto deles, ainda que sejam de classes distintas – é por si só cada vez mais permanente e leva inevitavelmente, sem diferenciações de classe ou políticas, à revolução socialista nacional e internacional. Esta concepção foi expressa particularmente em relação aos movimentos negro e feminista. Todas as mulheres são oprimidas, assim como todos os negros; se se conse- gue um movimento do conjunto desses setores oprimidos, esta mobilização não se deterá e os levará, através de diferentes etapas, a fazer uma revolução socialista. “Para o SWP, a revolução socialista é uma combinação de distintos movimen- tos multitudinários – sem diferenças de classes – de similar importância: o movimento negro, feminino, operário, juvenil, de velhos, que chegam qua- 11 “La Revolución Socialista y la Lucha por la Liberación de la Mujer”. Colección Polémica Internacional, n° 2, Bogotá, 1979. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 26 3/15/2012 2:19:51 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 27 se pacificamente ao triunfo do socialismo. Se todas as mulheres marcham juntas, significam 50% do país; se ocorre o mesmo com os jovens (70% em alguns países latino-americanos), mais os operários, negros e camponeses, a combinação desses movimentos fará com que a burguesia fique confinada em um pequeno hotel, já que serão os adultos burgueses, homens e brancos os que se oporão à revolução permanente. É a teoria de Bernstein combina- da com a revolução permanente: o movimento é tudo, a classe e os partidos não são nada. Esta teoria cai rapidamente em um humanismo anticlassista, reivindicador da práxis como categoria fundamental, em contraposição à luta de classes como motor da história. […] Nós continuamos defendendo, intransigentemente,a essência, tanto da teoria como das próprias teses es- critas [em 1929] da revolução permanente: só o proletariado, dirigido por um partido trotskista, pode dirigir de forma consequente até o fim a revolu- ção socialista internacional e, portanto, a revolução permanente.”12 Neste livro o leitor poderá perceber a atualidade desse debate relacionado à necessidade de uma alternativa revolucionária para as mulheres trabalhadoras, em polêmica com as posições do femi- nismo burguês ou pequeno-burguês, e com as discussões sobre os diferentes sujeitos sociais e políticos que estão em jogo nas mobili- zações contra o capitalismo imperialista. 12 Moreno, Nahuel. “Actualización del Programa de Transición”, Tesis XX‑ XIX: Actualidad de la teoría de la revolución permanente y de la ley del desarrollo desigual y combinado. Buenos Aires: Antídoto, 1990. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 27 3/15/2012 2:19:51 PM mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 28 3/15/2012 2:19:51 PM CAPÍTULO I O capitalismo, a família e a opressão da mulher O capitalismo e suas “políticas básicas” O documento de Waters, aprovado pelo SU, parte de uma definição totalmente errônea dos objetivos do capitalismo e de suas tendências em relação à família e à opressão da mulher. No texto, ela afirma que “as necessidades sociais e econômicas do capitalismo” impõem a este, como “política básica”, a ma- nutenção do sistema familiar, que é seu “núcleo básico”, e que a opressão da mulher é “indispensável para sua manutenção”.13 Este enfoque é decisivo para toda a concepção de MAW em re- lação aos problemas das mulheres. Para nós é justamente o contrário. A “política básica” da socie- dade capitalista, “ditada por suas necessidades econômicas”, é a de extrair a maior quantidade possível de lucros, explorando e superex- plorando os trabalhadores, sejam eles homens, mulheres ou crian- 13 Waters, Mary-Alice, “La revolución socialista y la lucha por la liberación de la mujer”, em Colección Polémica Internacional, PST‑C. Bogotá, 1979. Todas as citações que se referem a esse documento foram extraídas da mesma publicação. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 29 3/15/2012 2:19:51 PM 30 Carmen Carrasco e Mercedes Petit ças, e inclusive povos inteiros. Este afã condiciona de forma absoluta todas as suas atividades e instituições e, para obter esses lucros, revolu- ciona todas as relações sociais que encontra em seu caminho. No início, a produção capitalista entrou arrasando sistemas arcaicos de produção, desmontando o velho sistema social, ins- taurando repúblicas em lugar de reis e monarquias, destruindo os domínios feudais, enfrentando-se com a Igreja Católica para quebrar seu poder. Ao mesmo tempo, foi formando e consolidan- do algumas instituições, estas sim indispensáveis para impor e manter a dominação capitalista, como o Estado nacional e seu aparato, o Exército. Mediante um colossal desenvolvimento das forças produtivas, inaugurou a era da produção industrial mas- siva, destruiu o regime dos grêmios e dos produtores indepen- dentes, e os substituiu pela centralização, pelo desenvolvimento da ciência e a técnica e pela produção para o mercado mundial. Ao mesmo tempo, o regime capitalista – ao estar baseado na mais ampla produção social e apropriação individual dos meios de pro- dução – colocou em marcha a crescente anarquia da produção e do intercâmbio, assentando as bases das crises periódicas, e refor- çou alguns dos velhos sistemas de produção. O regime capitalista é, desde seu nascimento, profundamente contraditório. Revolucionário, na medida em que arrasa os velhos sistemas de produção e abre as portas para a emancipação de toda a humanidade com a produção industrial massiva; reacionário, na me- dida em que coloca esses enormes avanços a serviço de uma minoria exploradora e contra a ampla maioria dos trabalhadores, ao ponto de ir contra esse desenvolvimento das forças produtivas que impôs. Suas contradições são as que o impedem de levar até as últimas con- sequências suas tendências progressivas, revolucionárias. Isto é par- ticularmente certo no terreno econômico. Por exemplo, é impossível que avance cem por cento sua tendência à centralização da produção ou o controle e ordenamento do mercado, já que para isso deveria su- primir todos os empresários individuais. Por isso, ao mesmo tempo em que destrói as velhas relações sociais e de produção, convive com algumas delas e inclusive as reforça, tratando sempre de extrair o mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 30 3/15/2012 2:19:51 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 31 maior lucro possível. Por exemplo, mantém a propriedade privada da terra quando seria mais útil nacionalizá-la e com isso poupar o rendimento do qual se apossam os latifundiários parasitários e improdutivos. No entanto, é impossível que a burguesia tome essa medida porque, por um lado, está atada por mil laços a esses lati- fundiários e, por outro, se alguém arrasa a propriedade da terra poderá alertar os operários a fazer o mesmo com a propriedade das fábricas. Um setor burguês nascente utilizou a escravidão para sentar as bases do capitalismo no sul dos Estados Unidos. Também ocorrem grandes contradições no terreno das superestruturas, como a manutenção das monarquias ou a sobrevivência da Igreja Católica e outras. Do ponto de vista de sua produção econômica, então, o sistema capitalista não faz questão de princípios na destruição de velhos sistemas, relações, costumes, ou em seu reforço e utilização quan- do por alguma razão está obrigado ou lhe é conveniente mantê-los. Estas contradições produzem divergências e inclusive choques en- tre os diversos setores burgueses e servem, em alguns momentos, de válvula de escape para a sobrevivência de todo o sistema. Vejamos como essa característica do capitalismo influencia as questões da família e da opressão da mulher. Nenhuma das duas nasceu com o capitalismo, mas este as herdou dos regimes anteriores. O surgimento do capitalismo significou, por definição, a con- denação à morte do sistema familiar dos artesãos e camponeses medievais e a incorporação da mulher à produção. Estes são fatos históricos e econômicos inegáveis, mesmo quando o próprio capi- talismo os combine contraditoriamente com seus opostos: man- ter de alguma forma o sistema familiar e retirar as mulheres da produção. E são inegáveis, mesmo quando se tornam muito mais complexos, se analisamos as normas jurídicas e os costumes e ide- ologias que os acompanham. Mas queremos nos referir fundamentalmente ao processo obje- tivo da produção, que em última instância é o determinante. Nesse terreno, os fatos são categóricos: o capitalismo, ao impor a produ- ção industrial massiva, destrói o velho sistema familiar e incorpora mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 31 3/15/2012 2:19:51 PM 32 Carmen Carrasco e Mercedes Petit as mulheres à produção, sentando assim as bases para sua indepen- dência econômica e, portanto, para a eliminação de sua opressão. Como dizia Lenin, “na fábrica alheia, a mulher fica equiparada ao homem; é a igualdade do proletário”.14 Duas tendências contraditórias A opressão da mulher e a existência da família são fatos histó- ricos que se foram transformando ao longo do tempo, cumpriram distintas funções, e suas características variaram entre as diversas classes sociais. O desenvolvimento pleno da família em sua forma patriarcal e como unidade produtiva, cujos resquícios conhecemos hoje, se deu durante o feudalismo. A produção camponesa se baseava no trabalho da parcela por parte de todos os membros da família. Na cidade, artesãos e comerciantes tinham também famílias sólidas e organizadas. Algo parecido ocorria entre os senhores feudais, mas incorporando a hipocrisia reconhecida das esposas e amantes. Para prosperar, o novo sistema econômico capitalista que se gestava dentro da velha sociedade devia dispor de homens livres dos laços individuais com aprodução. Para impor as jornadas de 18 e 20 horas do capitalismo nascente, nas piores condições e por salários de fome, era necessário que esses homens não tivessem forma distinta de subsistir. Era preciso tirar o camponês de sua terra, destruir os laços servis que o unia ao senhor feudal e o impedia de dispor de sua pessoa; era preciso tirar o artesão da corporação, liberá-lo dos códigos e normas de seu grêmio. Isso implicava a destruição da unidade familiar, ao suprimir suas formas de subsistência, e a incorporação de homens, mulheres e crianças à produção. A grande indústria “entra destruin- do todo vínculo de família para o proletariado”.15 14 Lenin, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia, capítulo VII, “El Desarrollo de la Gran Industria”. (Ver extrato em http://www.marxists.org/archive/lenin/ works/subject/women/abstract/99_dcr7.htm) 15 “O emprego da mulher dissolve a família por necessidade, e esta dissolução, mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 32 3/15/2012 2:19:51 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 33 Teoricamente, do ponto de vista de sua economia, não exis- te obstáculo para que o capitalismo incorpore todas as mulheres à produção e socialize todos os trabalhos domésticos. Vejamos um exemplo hipotético. Se em uma fábrica determinada um pa- trão explorasse 50 operários e extraísse como mais-valia mensal 1.000 dólares, seria mais conveniente a ele contratar 50 operárias a mais e, supondo que lhes pagasse o mesmo que aos homens e que tudo se mantivesse igual, extrairia delas outros 1.000 dólares a mais por mês. Já não teria 1.000, mas 2.000 dólares de mais-valia. Com esse excedente, poderia facilmente construir creches, restau- rantes, lavanderias coletivas para que todas as mulheres pudessem trabalhar. E se produzissem massivamente, poderiam acabar sen- do mais econômicas que o custo que teriam no lar, e inclusive do patrão poderia encontrar uma nova fonte de lucro ao explorar tam- bém os operários que trabalhassem na nova indústria de serviços. Supondo que desses 2.000 dólares ele gastasse 500 para os ser- viços, ficaria ainda com 1.500, com os quais não contava antes, e é possível que com a exploração dos novos operários agregasse 200 dólares a mais, obtendo assim 1.700. A tudo isto há que agregar que às mulheres se paga um salário menor que aos homens, o que também se soma ao lucro. Que isto não ocorra de forma generalizada, que o capitalismo não leve até as últimas consequências sua tendência a incorporar as mulheres na produção, enchendo o mundo de restaurantes e cre- ches coletivos, se deve também a razões de tipo econômico: porque é imprescindível a ele manter um exército industrial de reserva, do qual as mulheres são parte importante; pelas limitações que suas contradições impõem ao desenvolvimento das forças produtivas; porque o desenvolvimento técnico que o capitalismo impõe reduz a força humana necessária para produzir o que quer; e porque seria em nossa sociedade, que se baseia na família, traz as consequências mais desmoralizantes para os pais e os filhos.” Engels, Friedrich. The conditions of the working class in England. Consultado em http://www.marxists.org/archive/ marx/works/download/ Engles_Condition_of_the_Working_Class_in_ England.pdf mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 33 3/15/2012 2:19:51 PM 34 Carmen Carrasco e Mercedes Petit uma pressão muito forte para a elevação dos salários. Há períodos de desemprego durante os quais os capitalistas aproveitam para despe- dir primeiro as mulheres; para dissimular o problema, recorrem ao expediente de enviá-las de volta a suas casas, e inclusive, ao aprovei- tá-las nas tarefas domésticas, podem cortar gastos sociais. Em um primeiro momento, até meados do século 19, o trabalho das mulheres e das crianças foi particularmente intenso, já que os capitalistas aproveitavam o fato de que podiam pagar a eles salários mais baixos. Friedrich Engels descreve: “De 419.590 operários do Império Britânico em 1839, 192.887, ou quase a me- tade, tinham menos de 18 anos, e 242.296 eram mulheres, das quais 112.192 com menos de 18 anos. Sobram, então, 80.695 homens com menos de 18 anos e 96.599 homens adultos, ou menos de um quarto do total.”16 As mulheres eram uma porcentagem especialmente alta na in- dústria têxtil. Vemos, então, que o capitalismo “não somente permite o traba- lho da mulher em vasta escala, mas que até mesmo o exige”.17 Talvez se houvesse explorado somente os homens adultos, não teria conse- guido em tão pouco tempo a tremenda acumulação produzida nesse período. Tão catastrófica foi para a família a primeira época do capi- talismo, que Trotsky, referindo-se à destruição das famílias provoca- da pela Primeira Guerra Mundial, dizia que “a guerra destruiu o que se mantinha só por inércia da história”.18 16 Engels, Friedrich. The conditions of the working class in England. 17 “Em oposição ao período manufatureiro, o plano da divisão de trabalho se baseia agora no emprego do trabalho da mulher, das crianças de todas as idades, de operários não qualificados, sempre e quando isso seja possível, em uma palavra, do trabalho barato, ‘cheap labour’, como dizem os ingleses.” Marx, Karl. El Capital, tomo I, capítulo XIII, “Maquinaria y gran industria”. México: Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 415. 18 “A influência profundamente destrutiva da guerra sobre a família é muito conhecida. Para começar, a guerra dissolve automaticamente a família, separando as pessoas por muito tempo ou unindo-as acidentalmente. Essa influência da guerra se agravou com a revolução. Os anos de guerra destruíram tudo aquilo que se mantinha só pela inércia da história. Destruíram o poder do czarismo, mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 34 3/15/2012 2:19:52 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 35 O capitalismo, então, abre as portas da produção fabril às mu- lheres, como faz com tudo o que seja capaz de produzir mais-valia. Ao mesmo tempo, se aproveita de sua opressão para pagar salários mais baixos que os dos homens, para utilizá-las nos piores serviços, para despedi-las com mais facilidade e “jogar sobre seus ombros” o peso do trabalho doméstico. Destrói a família para a maioria, mas às vezes tem que fortalecê-la; introduz a mulher na produção, mas às vezes tem de tirá-la. Também permite a subsistência relativa da família de uma minoria, e mantém sua defesa ideológica. Por exemplo, durante seu primeiro período reforçou a família para a burguesia, pois isso lhe rendia certas vantagens, como garantir a transmissão das propriedades. O protestantismo, religião tipica- mente burguesa, impunha severas normas morais para protegê-la e a convidava a poupar e a fazer fortuna. Apesar de tratar-se de uma moral distinta e progressiva em relação à da Idade Média, pois con- sagrava o “livre arbítrio” ou a liberdade de casar-se, mantinha essa liberdade dentro dos limites da conveniência econômica e, claro, se assentava em uma série de preconceitos opressivos frente à mulher. E como parte dessa mesma realidade, existiam a prostituição, a po- ligamia dos homens e o adultério, oculto e brutalmente castigado caso as mulheres o praticassem. As famílias da camada média da população (comerciantes, empregados independentes que progrediam nas cidades, do cam- ponês médio e rico, do agiota, do profissional liberal), com certa estabilidade econômica, não estavam forçadas a desintegrar-se; não era necessário que todos os seus membros trabalhassem em uma fábrica. Portanto, os vínculos familiares se mantiveram e in- clusive se fortaleceram, conforme esses setores sociais progrediam economicamente. À medida que, nos países desenvolvidos, a produção capita- lista foi racionalizando-se e, como consequência de lutas heroi- cas, o proletariado foi conquistando a redução da jornada de tra- os privilégios de classe, a velha família tradicional. A revolução começou por construir o novo Estado e atingiu assim seu propósito mais simples e urgente”. Trotsky,Leon. “Da velha à nova família”, Pravda, 13 de julho de 1923. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 35 3/15/2012 2:19:52 PM 36 Carmen Carrasco e Mercedes Petit balho, a regulamentação do trabalho das mulheres e das crianças e as leis sociais, foi ocorrendo um processo de “regularização”, de normalização da vida familiar de setores de trabalhadores. Com o surgimento do imperialismo, a exploração dos povos coloniais permitiu à burguesia dos países desenvolvidos ir formando uma pequena-burguesia mais ou menos estável e privilegiada e uma ca- mada de operários privilegiados que, conforme elevavam seu nível de vida, estabilizavam sua família. Mas isto ocorreu à custa de uma exploração brutal nos países atrasados. O capitalismo entrou rompendo os velhos sistemas de produção e os foi substituindo por uma tímida exploração capita- lista que não permitia ocupar e dar bem-estar a todos os que eram expulsos dos atrasados sistemas tradicionais de produção. Portan- to, produziu miséria dolorosa, desemprego crônico e estrutural, superexploração, analfabetismo, níveis alarmantes de prostitui- ção. Este processo continua até hoje, de uma ou outra forma, e traz como consequência a destruição violenta da família camponesa e operária dos países atrasados. Nos países desenvolvidos, a Primeira Guerra Mundial provo- cou incríveis sofrimentos aos trabalhadores e um novo golpe para suas famílias. Logo em seguida veio o triunfo da Revolução Russa, a derrota da revolução alemã e praticamente até o final da Segunda Guerra Mundial a sociedade dos países avançados viveu um longo período de crise e confrontos bélicos, que foi deixando suas marcas na crescente destruição das famílias e na localização das mulheres na sociedade. Concluída a Segunda Guerra Mundial, durante a qual as mulheres se haviam incorporado massivamente à produção enquan- to os homens lutavam na guerra, estes voltaram a seus primitivos postos nas indústrias e expulsaram as mulheres. O início do prolongado boom econômico do pós-guerra pro- porcionou uma crescente estabilidade na renda, um aumento no nível de vida de importantes setores de trabalhadores e da classe média, o que foi acompanhado de uma relativa estabilização da vida familiar. Não obstante, as necessidades da produção fize- ram com que também nessa etapa milhões de mulheres fossem mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 36 3/15/2012 2:19:52 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 37 reintroduzidas no trabalho fabril, ainda que, com a recessão da década de 1970, a burguesia tenha novamente restringido o emprego feminino. De todas as maneiras, durante todo esse período, as mulheres ocuparam os postos de menor hierarquia e menos especializados. Então, no sistema capitalista imperialista vemos que a fa- mília e a localização das mulheres na produção dançam ao compasso das necessidades e possibilidades dos capitalistas, aproveitando sempre o fato de que são oprimidas. Este proces- so está sempre acompanhado, de maneira complexa, com toda uma superestrutura legal que consagra o casal, a desigualdade da mulher, a ilegitimidade dos filhos por fora do matrimônio, ainda que com profundas diferenças de país a país. São conhe- cidas as campanhas no rádio, na televisão, nos jornais e nove- las, que propagam o ideal de família formada pelo casal feliz de esposos que nunca se enganam entre si – ou que, se alguma vez o fazem, voltam arrependidos –, que trabalham duro para man- ter e educar os filhos, que sempre progridem até que se tornam bondosos avós rodeados de netinhos. Também vimos, segundo as distintas conjunturas econômicas, os chamados às mulheres para incorporar-se à produção ou para regressar a suas casas. É evidente que nesse terreno da família e da localização das mulheres existem diferenças profundas de opinião entre os distintos setores da burguesia, que não são outra coisa que um ref lexo das contradições que têm entre si. Há setores burgueses aferrados à concepção de que o papel da mulher está na casa; outros tendem a defender seu trabalho independente; outros são porta-vozes das posições da Igreja. Inevitavelmente toda essa propaganda, essa legislação e as distintas políticas burguesas se combinam de maneira complexa com a situação econômica e a produção, mas o resultado é que só uns poucos privilegiados podem manter, se quiserem, uma vida familiar estável, à custa da exploração mais brutal e da destruição da família dos povos dos países atrasados e dos milhões de operários que são explo- rados em todo o mundo. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 37 3/15/2012 2:19:52 PM 38 Carmen Carrasco e Mercedes Petit A destruição da família e a incorporação da mulher à produção são um processo doloroso Nós afirmamos, categoricamente, que a partir do surgimento do capitalismo tem início um processo, provocado pelas novas relações de produção, de crise e destruição irreversível da família, um pro- cesso que se agudiza com o surgimento do imperialismo. Hoje essa destruição da família é um fato trágico, já que esta não foi substitu- ída por nada superior, nem sequer igual, e por isso sua destruição é fonte de sofrimentos para toda a humanidade, em particular para os trabalhadores. O grande número de homens e mulheres sozinhos, o grande número de divórcios, a subsistência da prostituição, a maior parte dos terríveis problemas individuais do “mundo moderno” es- tão intimamente relacionados com essa situação. Waters diz o contrário. Para ela, existe uma campanha linear e sis- temática em favor da família e da submissão da mulher, e a família não só subsiste, como é fonte de inúmeras desgraças. Dessa absoluta ce- gueira se desprende todo tipo de erros na caracterização e na política. No entanto, é tão evidente esta crise da família no mundo todo, que sua descrição penetra no texto de Waters, ainda que a autora não tire disso qualquer conclusão. Ela mesma diz que o estado de coisas atual que comumente se denomina “crise da fa- mília” se “ref lete nas taxas disparatadas de divórcios, no aumento do número de crianças que fogem e a extensão da violência do- méstica”. Ela inclusive ressalta o aspecto econômico: “O laço eco- nômico que anteriormente mantinha unida a família (…) começa a dissolver-se”, “as funções da unidade familiar na sociedade ca- pitalista avançada se reduziram continuamente”. Em um único parágrafo Waters consegue sintetizar muito bem toda a contradição trágica que os despojos familiares subsis- tentes enfrentam: “Na sociedade de classes a família se torna o único lugar ao qual a maioria das pessoas podem voltar para satisfazer algumas necessidades humanas bási- cas, como amor e companhia. Apesar do pouco que possa a família preencher mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 38 3/15/2012 2:19:52 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 39 essas necessidades, para muitos não há qualquer alternativa real enquan- to exista a propriedade privada. A desintegração da família no capitalismo provoca tanta dor e sofrimento justamente porque ainda não pode aparecer nenhum contexto superior de relações humanas”. Este parágrafo não só é totalmente correto, como dele se des- prende toda uma política, toda uma atitude, que não pode ser ou- tra que a de defender a família operária e camponesa, lutar por proporcionar-lhe melhores condições de vida diante da destruição imposta pelo capitalismo e o imperialismo e que não coloca nada em troca. Mas para Waters é só uma menção superficial, e ela con- tinua em frente com sua cegueira. Em seguida define o sistema familiar dissolvendo essa realida- de complexa e contraditória em uma série de normas que podem ser em sua maior parte corretas num sentido geral, mas que não têm nada a ver com a vida cotidiana. O “sistema familiar” se define porque “transmite” a posse dos bens de uma geração a outra, por- que é “o mecanismo mais barato (…) para a reprodução da força humana de trabalho”, porque “implica a submissão e a dependên- cia econômica da mulher”,“reproduz em seu interior as relações hierárquicas e autoritárias”, “distorce as relações humanas impon- do o marco da obrigação econômica, a dependência pessoal e a repressão sexual”. Este esquema irreal pode ser aplicado a todas as famílias ou a nenhuma. Por exemplo, o operário, os assalariados, que são a ampla maioria da humanidade, não têm bens a transmi- tir, ainda que tenham família; os burgueses transmitem bens aos filhos mesmo quando destroem por completo sua vida familiar. As generalidades de Waters sobre a família, que já são descabi- das em si, chegam ao absurdo quando se referem à crise da família nos países desenvolvidos em relação à situação nos países atrasados. Waters faz uma descrição fantástica da emigração das mulheres camponesas às cidades onde, com as portas abertas, as esperariam as fábricas e as escolas, que não têm nada a ver com os pavorosos problemas que acarreta nos países atrasados a crise dos campos e o crescimento abrupto e descontrolado dos centros urbanos. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 39 3/15/2012 2:19:52 PM 40 Carmen Carrasco e Mercedes Petit As mulheres que vão do campo à cidade não o fazem para liber- tar-se, para romper conscientemente com sua dependência econô- mica, incorporando-se à produção, nem para escapar da opressão de suas famílias ou seus maridos, mas para fugir de uma miséria espantosa. Nas cidades, muitas delas são obrigadas a trabalhar como faxineiras ou tornam-se vendedoras ambulantes ou prostitutas. Pior para as que chegam sozinhas, sem o menor apoio de um marido ou companheiro (ainda que este seja machista), ou de alguns membros de sua família. Estamos certos de que não há mulher camponesa emigrada à cidade que pense, como diz Waters, que esta enfraquece sua “subordinação milenária”, ou que assim escapa da “pressão men- tal” da família rural. Sabemos muito bem que muitas mulheres que estão trabalhando nas cidades não as veem como a tábua de salvação contra sua opressão, mas como uma fonte maior de sofrimento, e sentem falta – ainda que Waters nem imagine – da comunidade fa- miliar camponesa, apesar de sua miséria. Também em relação à incorporação da mulher na produção, a autora faz um esquema parcial e inútil, contrapondo trabalho fora de casa versus família, e fazendo do primeiro um absoluto de bon- dade e, do segundo, um absoluto de maldade. Todos conhecemos uma infinidade de mulheres que vão trabalhar fora de casa pensando que é uma desgraça ter de fazer isso, já que, além de trabalhar oito horas em uma fábrica ou oficina, ou em uma casa de família, devem regressar à sua e fazer todo o trabalho doméstico, sem ter, tampouco, como cuidar dos filhos durante o dia. Nós sabemos que há muitas mulheres que ficarão felizes no dia em que seus maridos receberem um salário melhor para que elas não tenham de trabalhar fora de casa, pelo menos nessas condições. Isso não é uma invenção nossa. Lenin ressaltava que “a incorporação de mulheres e adolescentes à produção é um fenômeno progressivo em sua essência”, mas “indis- cutivelmente, a fábrica capitalista colocou esse setor da população operária em uma situação particularmente penosa”.19 19 “A grande indústria mecanizada, concentrando massas de operários que sempre chegam de distintos extremos do país, não admite em absoluto os resquícios de relações patriarcais e de dependência pessoal, diferenciando-se mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 40 3/15/2012 2:19:52 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 41 O caráter das tarefas de libertação feminina Para fazer um documento político sério sobre o trabalho entre as mulheres, é imprescindível definir o caráter das tarefas de liber- tação feminina. No documento da camarada Waters nos depara- mos com a estranha surpresa de não ser definido com clareza em nenhum lugar de que tipo de tarefas se trata. Mas, pelo que diz e pelo que não diz, Waters considera o fundamental das tarefas das mulheres para sua libertação como transicional, ou seja, como an- ticapitalista-socialista. Já vimos que ela considera a opressão como “traço essencial”, “indispensável” para o capitalismo. Também diz que as demandas das mulheres “atingem os pilares da sociedade de classes”. Se uma demanda por si só consegue fazer isso, então é de transição ao socialismo. Nós defendemos algo completamente distinto: as tarefas de libertação das mulheres como tais são democrático-burguesas, historicamente se colocam com o início do capitalismo e dizem respeito às mulheres de todas as classes. Referindo-se à religião, à opressão das nacionalidades e à “inferioridade jurídica da mu- lher”, Lenin dizia que “todos esses são problemas da revolu- ção democrático-burguesa”, “tudo isso é conteúdo da revolução democrático-burguesa”.20 por uma verdadeira ‘atitude depreciativa em relação ao passado’. E justamente essa ruptura com as tradições caducas foi uma das condições substanciais que criaram a possibilidade e originaram a necessidade de regular a produção e submetê-la ao controle social. Em particular, falando da transformação das condições de vida da população pela fábrica, é preciso advertir que a incorporação de mulheres e adolescentes à produção é um fenômeno progressivo em sua base. De fato, a fábrica capitalista coloca esses setores da população trabalhadora em uma situação particularmente difícil.” Lenin, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia, Cap. VII, “Desarrollo de la gran industria mecanizada”. 20 “Tomemos a religião ou a falta de direitos da mulher ou a opressão e a desigualdade de direitos das nações russas. São todos problemas da revolução democrático-burguesa. Os agentes vulgares da democracia pequeno-burguesa passaram oito meses falando deles; nenhum dos países mais avançados do mundo resolveu até o fim esses problemas no sentido democrático-burguês. Em nosso país, a legislação da Revolução de Outubro os resolveu até o final.” Lenin, mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 41 3/15/2012 2:19:53 PM 42 Carmen Carrasco e Mercedes Petit O capitalismo surge introduzindo massivamente as mulheres na produção, mas aproveitando-se de sua opressão herdada, e com isso provoca uma situação contraditória, pois, por um lado, as mulheres são igualmente exploradas ou mais ainda, mas, por outro, não têm os mesmos direitos dos homens. Esta ruptura do papel tradicional da mulher que ocorria na estrutura econômica entrava em choque com as velhas leis e costumes que consagravam essa desigualdade. Mas as leis e costumes não se adaptam sozinhos ou de forma automática às transformações econômicas e sociais, e demoram mais ainda quan- do as mudanças ocorrem em questões tão conflituosas e complexas como a família e a situação da mulher. Com seus vaivéns, o processo de adaptação entre a nova realida- de da produção e aquilo que está consagrado pelas normas foi ocor- rendo tanto por meio de reformas impostas diretamente pela classe dominante, como pela exigência de grandes lutas das mulheres. As- sim, ao longo do século 20, o respeito cada vez maior pelos direitos democráticos das mulheres foi abrindo caminho. Waters enumera alguns desses direitos conquistados: a educação superior, trabalhar nos negócios e nas profissões liberais, receber e dispor de seus salá- rios, da propriedade, direito ao divórcio, a participar em organiza- ções políticas e direito de voto. As lutas das mulheres na década de 1970 têm uma continuidade com as anteriores em relação ao tipo de problemas que enfrentam. Vejamos o que diz Waters: contra as leis reacionárias; por aborto e anticonceptivos; contra opressivas legislações matrimoniais; insta- lação de creches em número suficiente; contra os fundamentos le- gais da discriminação; contra o sexismo em todas as suas esferas. E insiste: direito de participar em completa igualdade em todas as formas de atividade social, econômica e cultural; educação igual; acesso igual a todos os trabalhos; salário igual para trabalho igual; que a sociedade se encarreguedas tarefas domésticas, do cuidado das crianças, dos idosos e dos doentes. V. I. “En ocasión del cuarto aniversario de la Revolución de Octubre”, publicado no Pravda, em 18 de outubro de 1921. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 42 3/15/2012 2:19:53 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 43 Toda a lista de reivindicações feita por Waters em relação aos paí- ses desenvolvidos, das lutas passadas e presentes das mulheres, são de caráter democrático individual. Em relação aos países atrasados, não é menos categórica em sua descrição dos problemas: as mulheres desses países “lutarão por reivindicações democráticas elementares”. Do ponto de vista teórico, não existe qualquer impedimento para que o capitalismo outorgue plena igualdade jurídica às mulheres, ins- tale creches coletivas para todas as trabalhadoras que necessitem, acei- te o direito ao aborto e ao divórcio. Muitas dessas demandas, como reconhece a própria Waters, foram obtidas total ou parcialmente sem que por causa disso o capitalismo tenha morrido. Fazendo uma analogia, pelo tipo de problemas, poderíamos ver que a socialização da medicina, brindando-a de forma gra- tuita e generalizada por parte do Estado, não significou a morte do Império Britânico, pelo contrário. Na Suécia está praticamente conquistada – até onde a natureza o permite – a igualdade entre os sexos e a mais ampla liberdade sexual, e isso não enfraqueceu o imperialismo sueco. O fato de precisar esse caráter essencialmente democrático das demandas das mulheres não significa depreciar suas lutas. O pro- cesso de libertação das mulheres é profundamente revolucionário, porque afeta todos os costumes e a vida cotidiana, e talvez seja até mais revolucionário a partir do triunfo da revolução socialista, na transição ao socialismo. Waters não pode pôr o nome adequado aos problemas que ela mesma enumera tão cuidadosamente, por- que seria a destruição de todo o seu documento. Simplesmente po- deríamos dizer que aos problemas das mulheres devemos aplicar o que, em geral, o marxismo e o trotskismo dizem sobre os proble- mas democráticos desse tipo. O caráter das lutas das mulheres Apesar de Waters não dar em seu documento uma definição clara do caráter das tarefas de libertação das mulheres, sua concep- mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 43 3/15/2012 2:19:53 PM 44 Carmen Carrasco e Mercedes Petit ção fica bem evidenciada quando afirma reiteradas vezes que todas as lutas das mulheres têm um “caráter objetivamente anticapitalista”. Isto é profundamente incorreto. Como já vimos, a produção capitalista foi a que colocou em marcha o processo de libertação das mulheres, ao incorporá-las em massa à indústria, igualando-as ao homem “na fábrica alheia”, e es- tabelecendo assim as bases de sua independência econômica. Esta é a base de sustentação de todas as lutas das mulheres por seus direitos ao longo do século 20 e é um fenômeno progressivo e revolucionário, porque vai contra a opressão milenar sofrida enquanto sexo pela me- tade da humanidade. Mas o capitalismo é incapaz de levar até o fim suas tendências re- volucionárias, é incapaz de incorporar todas as mulheres à produção, e por isso a solução definitiva do problema das mulheres só virá com o triunfo da revolução socialista. Aparentemente, nesse ponto temos um grande acordo com o documento de Waters. No entanto, não é assim. Nas palavras, con- cordamos com Waters quando afirma que as lutas das mulheres são “parte integrante da revolução socialista”, que são uma “forma de luta contra o capitalismo”, e que são “objetivamente anticapitalis- tas” no sentido de que a solução definitiva e generalizada de suas demandas só pode vir pela destruição do capitalismo e a vitória do socialismo. Mas por trás dessas generalidades há duas concepções opostas: para nós, isso é assim porque o capitalismo coloca as bases objetivas para a independência das mulheres, mas não pode levá-la até o fim e, por isso, essa independência se volta contra ele. Para Waters, pelo contrário, a luta das mulheres vai contra o capitalis- mo, porque a opressão da mulher é um traço essencial, básico e indispensável do capitalismo. Desse erro de definição geral se desprende outro, que tam- bém é muito sério, em relação a cada luta específica das mulheres. Segundo Waters, todas as lutas femininas, concretas, atuais, con- junturais, têm uma “dinâmica anticapitalista objetiva”, ou seja, têm um mecanismo interno e automático que as leva contra o capitalismo e pelo socialismo. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 44 3/15/2012 2:19:53 PM Mulheres trabalhadoras e Marxismo 45 Isso não é correto. Quando definimos como anticapitalista o pro- cesso histórico geral de libertação da mulher, negamos peremptoria- mente que essa definição se aplique naturalmente a toda luta feminista que venha a ocorrer. Uma coisa é o caráter profundamente revolucio- nário, transicional, anticapitalista, de um processo de séculos, como a luta de uma classe, de uma nação, um sexo, uma raça, e outra coisa bem diferente são as expressões políticas e organizativas, as lutas e an- tagonismos que ocorrem todos os dias nesse processo histórico. É um crime dissolver o caráter revolucionário anticapitalis- ta dessas lutas em escala histórica em cada mobilização concreta porque, como tais, estas são muito mais complexas, produto da combinação de muitos fatores, de muitas classes em confronto, de muitos partidos, e em cada momento aparecem em cada país com características determinadas. Para nós, nenhuma luta democrática, e isto inclui a das mulhe- res, vai objetivamente contra o capitalismo (salvo as de libertação nacional e reforma agrária), contra sua essência, que é a exploração do trabalho assalariado por meio da propriedade privada. Em teo- ria, insistimos, a burguesia pode dar creches e restaurantes coleti- vos para todas as mulheres, ou aborto e divórcio, sem eliminar-se a si mesma. Mas, na atual época histórica, o imperialismo não pode solucionar qualquer problema de maneira definitiva e, portanto, lutas democráticas como as das mulheres podem, em determinado momento e em determinadas condições, adquirir uma dinâmica anticapitalista. No entanto, esta não será “objetiva”, inerente a cada luta feminista, como pretende Waters, mas dependerá de seu con- texto, de seu programa e, principalmente, de sua direção. Baixando à terra o que diz Waters, vemos que, segundo ela, todas as mulheres que lutem, por esse simples fato se transformam em lutadoras anticapitalistas consequentes. Em nossa opinião, não podemos fazer tal afirmação irrespon- sável nem sequer em relação à classe trabalhadora, que muito bem sabemos, está dirigida por reformistas e social-democratas, con- trarrevolucionários dispostos a levar toda luta, não a um anticapi- talismo consequente, mas a um beco sem saída. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 45 3/15/2012 2:19:53 PM 46 Carmen Carrasco e Mercedes Petit Se alguém tem dúvida a respeito das mulheres, vejamos um exemplo entre milhares na realidade da luta feminista. Nos Estados Unidos, o NOW (National Organization of Women) é o maior grupo feminista do país e é dirigido pelo Partido Democrata. Durante a campanha eleitoral que elegeu Jimmy Carter em 1976, o NOW fez um acordo com ele para suspender a agitação em favor do aborto, caso Carter aprovasse a Emenda por Direitos Iguais (ERA – Equal Right Ammendment), uma emenda à Constituição para estabelecer a igualdade na aplicação das leis para ambos os sexos. Carter venceu as eleições apoiado por muitas mulheres e, claro, nem se lembrou da ERA. Que Waters explique onde está a “dinâmica anticapitalista objetiva” das lutas pela ERA. mulheres e marxismo_refazendo 138.indd 46 3/15/2012 2:19:53 PM CAPÍTULO II As lutas das mulheres: uma história marcada pelas divisões políticas e de classe A realidade desmente Waters A existência da opressão da mulher provocou inúmeras rea- ções e expressões de rebelião
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