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A cultura As meninas lobo

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A cultura 
 
As meninas-lobo 
 
Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente numerosos, 
descobriram-se em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de 
uma família(?) de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano 
mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de 
humano e seu comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos 
lobos. 
Elas caminhavam de quatro, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para 
os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos. 
Eram incapazes de permanecer em pé. Só se alimentavam de carne crua ou 
podre. Comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e 
lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas, passavam o dia 
acabrunhadas e prostradas numa sombra. Eram ativas e ruidosas durante a noite, 
procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choravam ou riam. 
Kamala viveu oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se (?) 
lentamente. Necessitou de seis anos para aprender a andar e, pouco antes de 
morrer, tinha um vocabulário de apenas cinqüenta palavras. Atitudes afetivas 
foram aparecendo aos poucos. Chorou pela primeira vez por ocasião da morte de 
Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela bem como às outra 
com as quais conviveu. Sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se por gestos, 
inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a 
executar ordens simples”. 
 
 LEYMOND, B. Le development social de l’enfant et del’adolescent. Bruxelles: 
Dessart, 1965. p 12-14. 
 
1. Introdução 
 
O relato desse fato verídico nos leva à discussão a respeito das diferenças 
entre o homem e o animal. As crianças encontradas na Índia não tiveram 
oportunidade de se humanizar enquanto viveram com os lobos, permanecendo, 
portanto, “animais”. Não possuíam nenhuma das características humanas: não 
choravam, não riam e, sobretudo, não falavam. O processo de humanização só foi 
iniciado quando começaram a participar do convívio humano e foram introduzidas 
no mundo do símbolo pela aprendizagem da linguagem. 
Fato semelhante ocorreu nos Estados Unidos com a menina Helen Keller, 
nascida cega, surda e muda. Era como um animal até a idade de sete anos, 
quando seus pais contrataram a professora Anne Sullivan, que, a partir do sentido 
do tato, conseguiu conduzi-la ao mundo humano das significações. 
Esses estranhos casos nos propõem uma questão inicial: Quais são as 
diferenças entre o homem e o animal? 
 
 
2. A atividade animal 
 
Ação instintiva 
 
Os animais que se situam nos níveis mais baixos da escala zoológica de 
desenvolvimento, como, por exemplo, os insetos, têm a ação caracterizada 
sobretudo por reflexos e instintos. A ação instintiva é regida por leis biológicas, 
idênticas na espécie e invariáveis de indivíduo para individuo. A rigidez dá a ilusão 
da perfeição quando o animal, especializado em determinados atos, os executa 
com extrema habilidade. Não há quem não tenha ainda observado com atenção e 
pasmo o “trabalho” paciente da aranha tecendo a teia. 
Mas esses atos não têm história, não se renovam e são os mesmos em 
todos os tempos, salvo as modificações determinadas pela evolução das espécies 
e as decorrentes de mutações genéticas. E mesmo quando há tais modificações, 
elas continuam valendo para todos os indivíduos da espécie e não permitem 
inovações, passando a ser transmitidas hereditariamente. 
Em certas aves chamadas tentilhões, o hábito de fazer ninhos típicos da 
espécie é tão fixo que após cinco gerações em que essas aves eram criadas por 
canários, ainda continuavam a construí-los como antes. 
O psicólogo Paul Guillaume explica que um ato inato não precisa surgir 
desde o início da vida, pois muitas vezes aparece apenas mais tarde, no decorrer 
do desenvolvimento: andorinhas novas, impedidas de voar até certa idade, 
realizam o primeiro vôo sem grande hesitação; gatinhos não esboçam qualquer 
reação diante de um rato, mas após o segundo mês de vida aparecem reações 
típicas da espécie, como perseguição, captura, brincadeira com a presa, ronco, 
matança etc. 
Na verdade, os instintos são “cegos”, ou seja, são uma atividade que ignora 
a finalidade da própria ação. A vespa “fabrica” uma célula onde deposita o ovo 
junto ao qual coloca aranhas para que a larva, ao nascer, encontre alimento 
suficiente. Ora, se retirarmos as aranhas e o ovo, mesmo assim o inseto 
continuará realizando todas as operações, terminando pelo fechamento adequado 
da célula, ainda que vazia. Esse comportamento é “cego” porque não leva em 
conta o sentido principal que deveria determinar a “fabricação” da célula, ou seja, 
a preservação do ovo e da futura larva. 
O ato humano voluntário, em contrapartida, é consciente da finalidade, isto 
é, o ato existe antes como pensamento, como uma possibilidade, e a execução e 
o resultado da escolha dos meios necessários para atingir os fins propostos. 
Quando há interferências externas no processo, os planos também são 
modificados para se adequarem à nova situação. 
 
A inteligência concreta 
 
Nos níveis mais altos da escala zoológica, por exemplo, com os mamíferos, 
as ações deixam de ser exclusivamente resultado de reflexos e instintos e 
apresentam uma plasticidade maior, característica dos atos inteligentes. Ao 
contrário da rigidez dos instintos, a resposta ao problema, ou à situação nova para 
os quais não há uma programação biológica, é uma resposta inteligente, e como 
tal é improvisada, pessoal e criativa. 
Experiências interessantes foram realizadas pelo psicólogo gestaltista 
Köhler nas ilhas Canárias, onde instalou uma colônia de chimpanzés. Um dos 
experimentos consiste em colocar o animal faminto numa jaula onde são 
penduradas bananas que o animal não consegue alcançar. O chimpanzé resolve o 
problema quando puxa um caixote e o coloca sob a fruta a fim de pegá-la. 
Segundo Köhler, a solução encontrada pelo chimpanzé não é imediata, mas no 
momento em que o animal tem um insight (discernimento, “iluminação súbita”), 
isto é, quando o macaco tem a visão global do campo e estabelece a relação entre 
o caixote e a fruta. 
Esses dois elementos. o caixote e a banana, antes separados e 
independentes, passam a fazer parte de uma totalidade. É como se o animal 
percebesse uma realidade nova que lhe possibilita uma ação não-planejada pela 
espécie. Portanto, não se trata mais de ação instintiva, de simples reflexo, mas de 
um ato de inteligência. 
A inteligência distingue-se do instinto por sua flexibilidade, já que as 
respostas são diferentes conforme a situação e também por variarem de animal 
para animal. Tanto é que Sultão, um dos chimpanzés mais inteligentes no 
experimento de Köhler, foi o único que fez a proeza de encaixar um bambu em 
outro para alcançar a fruta. 
Trata-se, porém, de um tipo de inteligência concreta, porque depende da 
experiência vivida “aqui e agora” . Mesmo quando o animal repete mais 
rapidamente o teste já aprendido. seu ato não domina o tempo, pois, a cada 
momento em que é executado, esgota - se no seu movimento. 
Em outras palavras, o animal não inventa o instrumento, não o aperfeiçoa, 
nem o conserva para uso posterior. Portanto, o gesto útil não tem seqüência e não 
adquire o significado de uma experiência propriamente dita. Mesmo que alguns 
animais organizem “sociedades” mais complexas e até aprendam formas de 
sobrevivência e as ensinem a suas crias, não há nada que se compare às 
transformações realizadas pelo homem enquanto criador de cultura. 
 
 
3. A atividade humana 
 
A linguagem 
 
O homem é um ser que fala. A palavra se encontra no limiar do universo 
humano, pois caracteriza fundamentalmente o homem e o distingue do animal. 
Se criássemos juntos um bebê humano e um macaquinho,não veríamos 
muitas diferenças nas reações de cada um nos primeiros contatos com o mundo e 
as pessoas. O desenvolvimento da percepção, da preensão dos objetos, do jogo 
com os adultos é feito de forma similar, até que em dado momento, por volta dos 
dezoito meses, o progresso do bebê humano torna impossível prosseguirmos na 
comparação com o macaco, devido à capacidade que o homem tem de 
ultrapassar os limites da vida animal ao entrar no mundo do símbolo. 
Poderíamos dizer, porém, que os animais também têm linguagem. Mas a 
natureza dessa comunicação não se compara à revolução que a linguagem 
humana provoca na relação do homem com o mundo. 
É interessante o estudo da “linguagem” das abelhas, que dançando 
“comunicam” às outras onde acharam pólen. Ninguém pode negar que o cachorro 
expressa a emoção por sons que nos permitem identificar medo, dor, prazer. 
Quando abana o rabo ou rosna arreganhando os dentes, o cão nos diz coisas; e 
quando pronunciamos a expressão “Vamos passear”, ele nos aguarda 
alegremente junto à porta. 
No exemplo das abelhas, estamos diante da linguagem programada 
biologicamente, idêntica na espécie. No segundo exemplo, o do cachorro, a 
manifestação não se separa da experiência vivida; ao contrário, se esgota nela 
mesma, e o animal não faz uso dos “gestos vocais” independentemente da 
situação na qual surgem. Quanto a entender o que o dono diz, isso se deve ao 
adestramento, e os resultados são sempre medíocres, porque mecânicos, rígidos, 
geralmente obtidos mediante aprendizagem por reflexo condicionado. 
A diferença entre a linguagem humana e a do animal está no fato de que 
este não conhece o símbolo, mas somente o índice. O índice está relacionado de 
forma única com a coisa a que se refere. Por exemplo, as frases com que 
adestramos o cachorro devem ser sempre as mesmas, pois são índices, isto é, 
indicam alguma coisa muito específica. 
Por outro lado, o símbolo é universal, convencional, versátil e flexível. 
Consideremos a palavra cruz. Além de ser uma convenção de certa forma 
arbitrária (é assim em português; o inglês diz cross, e o francês croix). Mas a 
palavra cruz não tem um sentido unívoco, na medida em que faz lembrar um 
instrumento usado para executar os condenados à morte; pode representar o 
cristianismo; referir-se à morte (ver seção de necrologia dos jornais); se usada de 
cabeça para baixo, adquire outro significado para certos roqueiros: pode significar 
apenas uma encruzilhada de caminhos; ou um enfeite, e assim por diante, com 
múltiplas, infindáveis e inimagináveis significações. 
Assim, a linguagem animal visa a adaptação à situação concreta, enquanto 
a linguagem humana intervém como uma forma abstrata que distancia o homem 
da experiência vivida, tornando-o capaz de reorganizá-la numa outra totalidade e 
lhe dar novo sentido. É pela palavra que somos capazes de nos situar no tempo, 
lembrando o que ocorreu no passado e antecipando o futuro pelo pensamento. 
Enquanto o animal vive sempre no presente, as dimensões humanas se ampliam 
para além de cada momento. 
É por isso que podemos dizer que, mesmo quando o animal consegue 
resolver problemas, sua inteligência é ainda concreta. Já o homem, pelo poder do 
símbolo, tem inteligência abstrata. 
Se a linguagem, por meio da representação simbólica e abstrata, permite o 
distanciamento do homem em relação ao mundo, também é o que possibilitará 
seu retorno ao mundo para transformá-lo. Portanto, se não tem oportunidade de 
desenvolver e enriquecer a linguagem, o homem toma-se incapaz de 
compreender e agir sobre o mundo que o cerca. 
Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com 
Fabiano, protagonista de Vidas secas. A pobreza de vocabulário da personagem 
prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetida, e a intuição 
que tem da situação não é suficiente para ajudá-la a reagir de outro modo. 
Exemplo semelhante está no livro 1984, do inglês George Orwell, cuja 
história se passa num mundo do futuro dominado pelo poder totalitário, no qual 
uma das tentativas de esmagamento da oposição crítica consiste na simplificação 
do vocabulário realizada pela “novilíngua”. Toda gama de sinônimos é reduzida 
cada vez mais: pobreza no falar, pobreza no pensar, impotência no agir. 
Se a palavra, que distingue o homem de todos os seres vivos, se encontra 
enfraquecida na possibilidade de expressão, é o próprio homem que se 
desumaniza. 
 
O trabalho 
 
Seria pouco concluir daí que a diferença entre homem e animal estaria no 
fato de o homem ser um animal que pensa e fala. De fato, a linguagem humana 
permite a melhor ação transformadora do homem sobre o mundo, e com isso 
completamos a distinção: o homem é um ser que trabalha e produz o mundo e a si 
mesmo. 
O animal não produz a sua existência, mas apenas a conserva agindo 
instintivamente ou, quando se trata de animais de maior complexidade orgânica 
“resolvendo” problemas de maneira inteligente. Esses atos visam a defesa, a 
procura de alimentos e de abrigo, e não devemos pensar que o castor ao construir 
o dique, e o joão-de-barro, a sua casinha, estejam “trabalhando”. Se o trabalho é a 
ação transformadora da realidade, na verdade o animal não trabalha, mesmo 
quando cria resultados materiais com essa atividade, pois sua ação não é 
deliberada, intencional. 
O trabalho humano é a ação dirigida por finalidades conscientes, a resposta 
aos desafios da natureza na luta pela sobrevivência Ao reproduzir técnicas que 
outros homens já usaram e ao inventar outras novas, a ação humana se torna 
fonte de idéias e ao mesmo tempo uma experiência propriamente dita. 
O trabalho, ao mesmo tempo que transforma a natureza, adaptando-a às 
necessidades humanas, altera o próprio homem, desenvolvendo suas faculdades. 
Isso significa que, pelo trabalho, o homem se autoproduz. Enquanto animal 
permanece sempre o mesmo na sua essência, já que repete os gestos comuns à 
espécie, o homem muda as maneiras pelas quais age sobre o mundo, 
estabelecendo relações também mutáveis, que por sua vez alteram sua maneira 
de perceber, de pensar e de sentir. 
Por ser um trabalho relacional, o trabalho, além de desenvolver habilidades, 
permite que a convivência não só facilite a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos 
instrumentos, mas também enriqueça a afetividade resultante do relacionamento 
humano: experimentando emoções de expectativa, desejo, prazer, medo, inveja, o 
homem aprende a conhecer a natureza, as pessoas e a si mesmo. 
O trabalho é a atividade humana por excelência, pela qual o homem 
intervém na natureza e em si mesmo. O trabalho é condição de transcendência e, 
portanto, é expressão da liberdade. 
O trabalho, para atingir esse nível superior de condição de liberdade, não 
depende apenas da vontade de cada um. Ao contrário, inserido no contexto social 
que o torna possível, muitas vezes é condição de alienacão e de desumanização, 
sobretudo nos sistemas onde as divisões sociais privilegiam alguns e submetem a 
maioria a um trabalho imposto, rotineiro e nada criativo. Em vez de contribuir para 
a realização do homem, esse trabalho destrói sua liberdade. 
 
4. Cultura e humanização 
 
As diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, pois, 
enquanto o animal permanece mergulhado na natureza, o homem é capaz de 
transformá-la, tornando possível a cultura. O mundo resultante da ação humana é 
um mundo que não podemos chamar de natural, pois se encontra transformado 
pelo homem. 
A palavra cultura também tem vários significados, tais como o de cultura da 
terra ou cultura de um homem letrado. Em antropologia, cultura significa tudo o 
que homem produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as 
instituições, os valores materiais e espirituais. Se o contato que o homem tem com 
o mundo é intermediado pelo símbolo, a culturaé o conjunto de símbolos 
elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita 
possibilidade de simbolizar, as culturas dos povos são múltiplas e variadas. 
A cultura é, portanto, um processo de autoliberação progressiva do homem, 
o que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de projeto, que se faz à 
medida que transcende, que ultrapassa a própria experiência. 
Quando o filósofo contemporâneo Gusdorf diz que “o homem não é o que é, 
mas é o que não é”, não está fazendo um jogo de palavras. Ele quer dizer que o 
homem não se define por um modelo que o antecede, por uma essência que o 
caracteriza, nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Ele se define pelo 
lançar-se no futuro, antecipando, por meio de um projeto, a sua ação consciente 
sobre o mundo. 
Não há caminho feito, mas a fazer, não há modelo de conduta, mas um 
processo contínuo de estabelecimento de valores. Nada mais se apresenta como 
absolutamente certo e inquestionável. 
É evidente que essa condição de certa forma fragiliza o homem, pois ele 
perde a segurança característica da vida animal, em harmonia com a natureza. 
Ao mesmo tempo, o que parece ser sua fragilidade é justamente a 
característica humana mais perfeita e mais nobre: a capacidade do homem de 
produzir sua própria história. 
 
5. A comunidade dos homens 
 
Retomando o que foi dito até agora: o homem é um ser que fala; é um ser 
que trabalha e, por meio do trabalho, transforma a natureza e a si mesmo. 
Nada disso, porém, será completo se não enfatizarmos que a ação humana 
é uma ação coletiva. O trabalho é executado como tarefa social, e a palavra toma 
sentido pelo diálogo. 
Nem mesmo o ermitão pode ser considerado verdadeiramente solitário, pois 
nele a ausência do outro é apenas camuflada, e sua escolha de se afastar faz 
permanecer a cada momento, em cada ato seu, a negação e, portanto, a 
consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo 
colocados contra os da sociedade, se situam também a partir dela. A recusa de se 
comunicar é ainda um modo de comunicação... 
O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, 
de modo que, ao nascer, a criança encontra o mundo de valores já dados, onde 
ela vai se situar. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de 
sentar, andar, correr, brincar, o tom da voz nas conversas, as relações familiares, 
tudo enfim se acha codificado. Até na emoção, que pareceria uma manifestação 
espontânea, o homem fica à mercê de regras que dirigem de certa forma a sua 
expressão. Podemos observar como a nossa sociedade, preocupada com a visão 
estereotipada da masculinidade, vê com complacência o choro feminino e o 
recrimina no homem. 
O próprio corpo humano nunca é apresentado como mera anatomia, de tal 
forma que não existe propriamente o “nu natural”: todo homem já se percebe 
envolto em panos, e, portanto, em interdições, pelas quais é levado a ocultar sua 
nudez em nome de valores (sexuais. amorosos, estéticos) que lhe são ensinados. 
E mesmo quando se desnuda, o faz também a partir de valores, pois transgride os 
estabelecidos ou propõe outros novos. 
Todas as diferenças existentes no comportamento modelado em sociedade 
resultam da maneira pela qual os homens organizam as relações entre si, que 
possibilitam o estabelecimento das regras de conduta e dos valores que nortearão 
a construção da vida social, econômica e política. 
Considerando isso, como fica a individualidade diante da herança social? Há 
o risco de o indivíduo perder sua liberdade e autenticidade. É o que Heidegger, 
filósofo alemão contemporâneo, chama de “mundo do man” (man equivale em 
português ao pronome reflexivo se ou ao impessoal a gente). Veste-se, come-se, 
pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a 
maioria o faz. Os sistemas de controle da sociedade aprisionam o indivíduo numa 
rede aparentemente sem saída. 
Entretanto, assim como a massificação pode ser decorrente da aceitação 
sem crítica dos valores impostos pelo grupo social, também é verdade que a vida 
autêntica só pode ocorrer na sociedade e a partir dela. Aí reside justamente o 
paradoxo de nossa existência social, pois, como vimos, o processo de 
humanização se faz pelas relações entre os homens, e é dos impasses e 
confrontos dessas relações que a consciência de si emerge lentamente. O homem 
move-se, então, continuamente entre a contradição e sua resolução. 
Cabe ao homem a preocupação constante de manter viva a dialética, a 
contradição fecunda de pólos que se opõem mas não se separam, pela qual, ao 
mesmo tempo em que o homem é um ser social, também é uma pessoa, isto é, 
tem uma individualidade que o distingue dos demais. 
Portanto, a sociedade é a condição da alienação e da liberdade, é a 
condição para o homem se perder, mas também de se encontrar. O sociólogo 
norte-americano Peter Berger usa a expressão êxtase (ékstasis, em grego 
significa “estar fora”, “sair de si”) para explicar o ato possível de o homem “se 
manter do lado de fora ou dar um passo para fora das rotinas normais da 
sociedade”, o que permite o distanciamento e alheamento em relação ao próprio 
mundo em que se vive. 
A função de “estranhamento” é fundamental para o homem desencadear as 
forças criativas, e se manifesta de múltiplas formas: quando paramos para refletir 
na vida diária, quando o filósofo se admira com o que parece óbvio, quando o 
artista lança um olhar novo sobre a sensibilidade já embaçada pelo costume, 
quando o cientista descobre uma nova hipótese. 
O “sair de si” é remédio para o preconceito, o dogmatismo, as convicções 
inabaláveis e, portanto, paralisantes. É a condição para que, ao retornar de sua 
“viagem”, o homem se torne melhor. 
 
 
Texto complementar: O homem e o animal 
 
O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra 
existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação 
dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. Mesmo que a 
recognição seja possível, a identificação está limitada ao que foi predeterminado 
de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como 
permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber 
sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal 
responde ao nome e não tem um eu, está fechado em si mesmo e, no entanto. 
abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, nenhuma idéia a 
transcende. (...) 
A transformação das pessoas em animais como castigo é um tema 
constante dos contos infantis de todas as nações. Estar encantado no corpo de 
um animal equivale a uma condenação. Para as crianças e os diferentes povos, a 
idéia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensível e familiar. 
Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, 
considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no 
olhar do tigre dá testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa 
transformação. Todo animal recorda uma desgraça infinita ocorrida em tempos 
primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas. 
(Th. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge 
Zahar, 1985.p. 230-231.) 
 
 
ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia de e PIRES MARTINS, Maria Helena. Filosofando: 
introdução à filosofia. 3ª edição revista. SP: Moderna, 2003.

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