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articulado no princípio da história natural, quanto introduzia a Vida como causa eficiente e final das coisas vivas. Posteriormente, no século XIX, depois que Darwin (1809-1882) divulgou suas descrições da Natureza viva – em que a diferenciação irrompe como resultado do princípio racional, uma causa eficiente, que opera no tempo através da força, ou seja, o princípio da seleção natural, ou como resultado da luta pela sobrevivência –, a ciência da vida passaria a conduzir um programa do conhecimento da existência humana, isto é, a antropologia do século XIX, ou a ciência 42 43 Ao acompanhar as mais recentes reações da Europa em relação à “crise dos refugiados”, vemos como a diferença cultural descreve o mundo contemporâneo atolado no medo e na incerteza: a identidade Étnica cria esta situação através dos enunciados que nomeiam o “Outro” ameaçador, isto é, os que buscam refúgio na Europa por causa das guerras no Oriente Médio, da instabilidade política no Leste e no Norte da África e dos conflitos estimulados pela exploração dos recursos naturais no Oeste da África. No Brasil, enquanto isso, este cenário é manifestado pelos que derrubaram o governo da presidenta Dilma Rousseff e pelo governo atual que está destruindo todos os ganhos sociais dos últimos cem anos e, em particular, daqueles que só recentemente tiveram seus direitos reconhecidos com base em sua identidade (de gênero, sexual, racial e religiosa) social. Em ambos os casos, a diferença cultural sustenta um discurso moral cujo pilar é o princípio da separabilidade. Esse princípio considera o social um todo composto de partes formalmente independentes. Cada uma dessas partes, por sua vez, constitui tanto uma forma social quanto unidades geográfica e historicamente separadas que, como tal, ocupam posições diferentes perante a noção ética da humanidade – identificada com as particularidades das coletividades branco-europeias. Por isso, a intenção poética negra feminista segue a trilha aberta por perguntas como: E se, em vez de o Mundo Ordenado, imageássemos cada coisa existente (humano e mais-que-humano) como expressões singulares de cada um dos outros existentes e também do tudo implicado em que/como elas existem, ao invés de como formas separadas que se relacionam através da mediação de forças? E se, em vez de procurar por modelos na física de partículas capazes de produzir análises mais científicas e críticas do social, nos concentrássemos em suas descobertas mais perturbadoras – por exemplo, a não-localidade (como princípio epistemológico) e a virtualidade (como descritor ontológico) – O Mundo Implicado por exemplo, uma distinção entre o modo de operação do poder jurídico-político que se assemelha aos acontecimentos envolvendo corpos maiores – tal como expresso nas leis do movimento de Newton – e o que ele chama de microfísica do poder, que atua primordialmente através da linguagem, do discurso e das instituições.3 A segunda perspectiva descreve o poder/conhecimento como o produtor dos seus próprios sujeitos e objetos e, ao atuar no nível do desejo – assim como os experimentos da mecânica quântica, que inspiraram o princípio da incerteza de Heisenberg –, mostra como o aparato determina os atributos das partículas em observação. Durante séculos, como esses exemplos indicam, avanços na física pós-clássica – isto é, a relatividade e a mecânica quântica – foram cruciais para o desenvolvimento de abordagens teóricas e metodológicas no estudo das questões econômicas, jurídicas, éticas e políticas que tanto produziram quanto reafirmaram as diferenças humanas.4 Infelizmente, no entanto, tais avanços ainda não inspiraram imagens da diferença sem separabilidade, seja a diferença espaçotemporal, como nas coletividades culturais (Boas), ou a diferença formal, como no sujeito discursivamente produzido (Foucault). Previsivelmente, eles aprofundaram ainda mais a ideia de cultura e os conteúdos mentais referidos pela mesma como expressões de uma separação fundamental entre grupos humanos em relação à nacionalidade, etnicidade e identidade (de gênero, sexual e racial) social. 3 Ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel – Discipline and Punish, (Nova York: Vintage Books, 1977); em português: FOUCAULT, Michel – Vigiar e punir – Nascimento da prisão, 40a. ed. Trad. Raquel Ramalhete, (Petrópolis: Vozes, 2012). 4 Os Novos Materialistas também baseiam-se nas descobertas da física de partículas. Ver COOLE, Diana e FROST, Samantha – New Materialisms: Ontology, Agency, Politics, (Durham: Duke University Press, 2010). 44 45 palavras, às coisas tal como são acessíveis aos sentidos no espaçotempo. A não-localidade expõe uma realidade mais complexa na qual tudo possui uma existência atual [actual] (espaçotempo) e virtual (não-local). Sendo assim, por que então não pensar a existência humana da mesma maneira? Por que não presumir que além de suas condições físicas (corporais e geográficas) de existência, em sua constituição fundamental, no nível subatômico, os humanos existam emaranhados com todas as coisas (animadas e inanimadas) do universo? Por que não considerar a diferença humana – justamente o que antropólogos e sociólogos dos séculos XIX e XX selecionaram como descritor humano fundamental – enquanto efeito, tanto das condições do espaçotempo quanto de um programa do conhecimento modelado a partir da física newtoniana (a antropologia do século XIX) e einsteiniana (o conhecimento social científico do século XX), no qual a separabilidade é um princípio ontológico privilegiado? Sem a separabilidade, a diferença entre grupos humanos e entre entidades humanas e não humanas possui poder explicativo e significado ético muito limitados. Afinal, como a não-localidade presume, além das superfícies em que a noção dominante da diferença é inscrita, tudo no universo coexiste tal como Leibniz (1646- 1716) descreve, isto é, enquanto expressão singular de todas as coisas no universo. Sem a separabilidade, é impossível reduzir o conhecer e o pensar à determinação, tanto na distinção cartesiana entre mente/corpo (na qual o segundo tem o poder de determinar) quanto na redução formal kantiana do conhecimento a um tipo de causalidade eficiente. Sem a separabilidade, a sequencialidade (o pilar ontoepistemológico de Hegel) não é capaz de explicar os diversos modos de existência humana no mundo, já que a autodeterminação possui uma área muito limitada (o espaçotempo) de operação. Quando a não- localidade orienta nosso imagear do universo, a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolúvel, mas a como descritores poéticos, isto é, indicadores da impossibilidade de se compreender a existência com as ferramentas do pensamento que sempre reproduzem a separabilidade e seus pilares, a saber, a determinabilidade e a sequencialidade? Os capítulos que compõem A Divida Impagável vislumbram o que torna-se acessível à imaginação, o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação. Quando em vez da ordem do Sujeito, o pensamento atende à infinidade que A Coisa tanto abriga e oferece. Aqui, as falhas da física de partículas (quântica) oferecem a possibilidade de pensar fora dos limites da física de corpos (clássica). Por exemplo, o princípio da não-localidade sustenta um modo de pensamento que não reproduz as bases metodológicas e ontológicas do sujeito moderno, isto é, a temporalidade linear e a separação espacial. Justamente porque rompe essas articulações do tempo e do espaço, a não-localidade nos permite imaginar a socialidade de tal maneira que contemplar a diferença não pressupõe separabilidade, determinabilidade e sequencialidade, os três pilares ontológicos que sustentam o pensamento moderno. No universo não-local, o deslocamento (movimento no espaço) e a relação (conexão entre coisas espacialmente separadas) não descrevem o que acontece porque as partículas implicadas [entangled]