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Spirit, (Oxford University Press, 1997), 69; em português: G. W. F. – Fenomenologia do Espírito, (Brasil: Ed. Vozes, 2011). 60 61 não oferece uma resolução. A violência que preserva a lei e a violência que funda a lei são modalidades que fazem não mais (e ainda assim vão mais além) do que descrever as figurações da moralidade e da lei apresentadas nos escritos filosóficos clássicos do poder político-jurídico. Como? Se a explicação que Benjamin dá à violência “preservadora da lei” refere-se ao aparato que aplica a lei, isto é, às obrigações do estado em preservar a vida, o corpo e a propriedade, e se a violência “fundadora da lei” refere-se ao momento fundamental do poder político-jurídico? No final do ensaio, ambas são desarmadas pela violência divina, a qual, para Benjamin, seria o significante soberano de um Outro (possivelmente justo) modo de existência coletiva, um que está simultaneamente na origem e além da compreensão dos textos modernos da lei e da moralidade. Portanto, é possível afirmar que – justamente por ser soberana – a violência divina excede a lei e a moralidade assim como a leitura do erótico de Bataille excede os funcionamentos positivos da lei em relação à produção econômica e ao patriarcado.19 No pensamento moderno (e este é apenas um dos muitos momentos de distinção) a exterioridade (figurada pelo corpo e pelo território) é presumida nas duas figurações do excesso: o violento e o erótico. No ensaio de Benjamin, o corpo masculino (preso ou violado) é o referente pressuposto – enquanto o corpo da mulher permanece ignorado. No texto de Bataille, o desperdício que caracteriza o erótico (precisamente a crítica ao pensamento utilitarista conduzida pelo autor) não teria qualquer importância caso a irrelevância do objeto do abraço erótico, isto é, o corpo sexual da mulher, não tivesse sido articulado. Nessas duas versões da soberania contra as formas políticas (jurídicas, econômicas e éticas) modernas, o corpo do Schocken, 1978), 277. 19 A citação da abertura é de BATAILLE, Georges – The Accursed Share, Volumes II and III, (New York: Zone Books, 1999), 49; em português: BATAILLE, Georges – A Parte Maldita, (Ed. Autêntica, 2013). a violência, como Derrida vigorosamente (assim como outros antes e depois dele) destacou, entra necessariamente em toda e qualquer descrição do momento jurídico-político. O Corpo Racial = Valor + Excesso “A tarefa da crítica da violência pode ser resumida como a exposição de sua relação com a lei e a justiça. Uma causa, por mais efetiva que seja, torna-se violenta, no exato significado da palavra, somente quando intervém sobre problemas morais. A esfera desses problemas é definida pelos conceitos de lei e de justiça.” - BENJAMIN, Walter – “Crítica da Violência” “A vida erótica De fato não pode ser regulada [réglée]. Deram-lhe regras, mas tais regras somente foram capazes de lhe atribuir um domínio fora das regras. Uma vez que o erotismo foi afastado do casamento, o último passou a assumir principalmente um aspecto material, cuja importância Lévi-Strauss corretamente destacou: as regras que garantem o compartilhamento de mulheres como objetos de cobiça, também asseguraram a compartilhamento de mulheres como força de trabalho.” - BATAILLE, Georges – A Parte Maldita Em “Crítica da Violência”, Walter Benjamin perturba a inércia dialética do corpo quando, numa manobra que desnaturaliza a violência, ele circunscreve a lei entre dois momentos: a “violência preservadora da lei” e a “violência fundadora da lei”.18 Ele 18 A citação de abertura é de BENJAMIN, Walter – Reflections (New York: 62 63 momento global, expõe, sem resolução ou apologia, a violência da subjugação racial/colonial. Nenhum outro momento mostra como o corpo sexual feminino expõe a violência inerente à equação o “outro” – isto é, Corpo Racial = Valor + Excesso – do que a conversa indireta, sobre escravidão, negridade, e violência, entre Saidiya Hartman, Lindon Barrett e Fred Moten.20 Não importa se é uma coincidência 20 Eu não acompanho o movimento que leva a negridade em direção à e para dentro de uma investigação sobre os fundamentos da questão “original” sobre o ser. Iniciando e permanecendo com a historicidade/temporalidade, Nahum Chandler expõe um campo de reflexões que a negridade (Africana e do Negro) reconfigura precisamente porque apresenta questões sobre a existência em si enquanto problema. Ver CHANDLER, Nahum – “Of Exorbitance: The Problem of the Negro as a Problem for Thought”, Criticism 50, nº 3 (2008): 345 – 410. Além disso, o esforço deste texto também ecoa e, esperançosamente, contribuí com a investigação de Hortense Spillers sobre a psicanálise e seu objeto. Ver SPILLERS, Hortense – “‘All the Things You Could Be By Now, If Sigmund Freud’s Wife Was Your Mother’: Psychoanalysis and Race”, boundary 2 23, nº 3 (1996). Entretanto, talvez meu argumento ecoe com sua análise sobre a violência racial através da distinção entre o corpo e a pele, na qual a última torna-se o ponto de partida ético. “Esse corpo”, ela escreve, “pelo menos do ponto de vista da comunidade aprisionada [captive community], destaca um espaço privado e particular em cujo ponto de convergência juntam-se destinos biológicos, sexuais, sociais, culturais, linguísticos, ritualísticos e psicológicos. Essa profunda intimidade de detalhes interligados é, no entanto, perturbada por significados e usos externamente impostos: (1) o corpo aprisionado torna-se fonte de uma irresistível e destrutiva sensualidade; (2) ao mesmo tempo – numa contradição espantosa –, o corpo aprisionado é reduzido a uma coisa, tornando-se ser [being] para quem o capturou; (3) na ausência de uma posição de sujeito, as sexualidades aprisionadas fornecem uma expressão biológica e física da “alteridade” [“otherness”]; (4) enquanto categoria da “alteridade” homen repetidamente significa o (soberano) que não participa da cena da regulação ou da cena da representação e tampouco entra nos palcos ontoepistemológicos, isto é, a interioridade (liberdade) e exterioridade (neccessidade), em que tais dimensões são atualizadas. Justamente por compreenderem “a soberania” no corpo masculino – o sujeito ou objeto da violência reguladora ou divina articulado por Benjamin e o único sujeito do desejo sexual, regulado e desregulado, articulado por Bataille –, os dois críticos inauguram a possibilidade de explorar o corpo feminino enquanto referente de desejos não-regulados e não-representáveis. Mais precisamente, eu pergunto: o que seria possível encontrar se o corpo sexual feminino guiasse a leitura do tripé – Colonialismo, Capitalismo e Patriarcado – no qual operam as estruturas globais ético-jurídicas e seus instrumentos, como, por exemplo o programa de direitos humanos? Note bem que escolhi não abordar o sexual como categoria social (a forma pela qual este funciona como o referente em textos sobre os corpos negros e femininos) porque ocasionaria uma abordagem limitada de uma matriz muito mais complexa: isto é, o aparato de poder em que o corpo sexual é consistentemente articulado apenas para ser rejeitado como um lugar [site] possível para se produzirem análises sobre a existência política. No entanto, mobilizarei o rejeitado corpo sexual feminino repetidamente neste artigo porque dentro do conhecimento moderno o mesmo ainda é o significante mais prolífico do excesso. Quer dizer, este é o determinante de valor – ou, na versão do materialismo histórico, o sine qua non de um determinante de valor mais lucrativo, a saber, negros e outros trabalhadores escravizados – que não tem lugar nas autonarrativas ético-políticas das arquiteturas jurídico-econômicas coloniais e nacionais (pós-coloniais). Nas próximas páginas, eu rastreio o não- representável corpo sexual feminino enquanto uma figuração do excesso porque este, tanto no momento nacional quanto no 64 65 Embora ela possa ser avistada em textos sobre a pós-colônia, ela os adentra