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Futuro de uma ilusão Recortes ● Pois tal situação não é nova, ela tem um modelo infantil; é, na realidade, apenas a continuação daquela anterior, pois o indivíduo já se encontrou assim desamparado: quando pequeno, perante o pai e a mãe, que ele tinha razões para temer, sobretudo o pai, cuja proteção, porém, também estava seguro de ter, ante os perigos que então conhecia. De modo que era natural igualar as duas situações. ● Mas permanece o desamparo do ser humano, e, com isso, o anseio pelo pai, e os deuses. Esses conservam sua tripla tarefa: afastar os terrores da natureza, conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhes são impostos pela vida civilizada que partilham. ● Se eles próprios fizeram o destino, temos de considerar inescrutável sua deliberação; o povo mais talentoso da Antiguidade vislumbrou que existe a Moira [destino, fatalidade] acima dos deuses, e que os próprios deuses têm seus destinos. ● Assim é criado um acervo de concepções, nascido da necessidade de fazer suportável o desvalimento humano, e construído com o material das lembranças da infância do indivíduo e da raça humana. ● Eis o que ele diz, em seu conjunto: a vida neste mundo serve a um propósito mais elevado, que certamente não é fácil de descobrir, mas que sig- nifica, não há dúvida, um aperfeiçoamento da natureza humana. O objeto dessa elevação e exaltação deve ser o elemento espiritual do homem, a alma, que ao longo do tempo se separou de maneira tão lenta e relutante do seu corpo. ● A própria morte não é aniquilação, retorno à inorgânica ausência de vida, mas sim o começo de uma nova espécie de existência que se acha no caminho para um desenvolvimento superior ● O povo que primeiramente realizou essa concentração dos atributos divinos teve bastante orgulho desse progresso. Ele pôs à mostra o pai que desde sempre se ocultara, como um núcleo, em cada figura divina. Isso foi, no fundo, um retorno aos começos históricos da ideia de Deus. Agora que Deus era único, as relações com ele podiam reaver a intimidade e intensidade dos laços infantis com o pai. Mas, se fez tanto pelo pai, esse povo também quis ser recompensado, quis ser o único filho amado, o Povo Eleito - o futuro de uma ilusão 1 Leo Wild Leonardo G. Wild ● E é pertinente afirmar que a cultura proporciona ao indivíduo essas concepções, pois ele já as encontra, elas lhe são trazidas prontas, ele não seria capaz de chegar a elas por si só. Ele entra de posse na herança de muitas gerações, dela se apropria como da tabuada, da geometria etc. ● O homem primitivo não tem mesmo escolha, não tem outro modo de pensar. É natural, é como que inato, para ele, projetar no mundo seu ser, enxergar todos os eventos que observa como manifestações de seres que, no fundo, são semelhantes a ele próprio. Este é seu único método de compreensão. ● De modo que não contradigo sua observação descritiva, é mesmo natural, para o ser humano, personificar tudo o que quer compreender, para depois controlá-lo — o domínio psíquico como preparação para o físico —, mas eu acrescento o motivo e a gênese dessa peculiaridade do pensamento humano. ● Ele tem estreitas relações com as posteriores religiões de deuses, os animais totêmicos se tornam os animais sagrados dos deuses. As primeiras e também mais profundas restrições morais - as proibições de assassinato e de incesto surgem no âmbito do totemismo ● Quando o indivíduo em crescimento percebe que está destinado a permanecer uma criança, que nunca pode prescindir da proteção contra superiores poderes desconhecidos, empresta a esses poderes os traços da figura paterna, cria os deuses que passa a temer, que procura cativar e aos quais, no entanto, confia sua proteção. ● as ideias religiosas são ensinamentos, enunciados sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que dizem algo que a pessoa não descobriu por si e que exigem a crença. ● Vamos tentar usar o mesmo critério nos ensinamentos religiosos. Quando perguntamos em que se fundamenta sua reivindicação de que as pessoas acreditem neles, recebemos três respostas que, curiosamente, não se harmonizam muito bem entre si. Primeiro, são dignos de fé porque nossos ancestrais já acreditavam neles; em segundo lugar, possuímos provas que nos foram transmitidas dessa mesma época pré-histórica; por último, é simplesmente proibido questionar essa comprovação. Antes esse atrevimento era punido com as mais severas penas, e ainda hoje a sociedade não gosta de vê-lo renovado. ● Assim, chegamos ao curioso resultado de que precisamente as manifestações de nosso patrimônio cultural que poderiam ter o maior significado para nós, que têm o papel de nos esclarecer os enigmas do universo e nos reconciliar com os sofrimentos da vida — precisamente elas têm as mais frágeis comprovações. ● Desde então, incontáveis indivíduos se atormentaram com as mesmas dúvidas, que quiseram suprimir porque se acreditavam na obrigação de crer; muitos intelectos brilhantes su- cumbiram nesse conflito, muitos caracteres sofreram danos devido aos com- promissos nos quais buscavam uma saída 2 ● A isso relaciona-se a atividade dos espíritas, que estão con- vencidos da sobrevivência da alma individual e querem demonstrar de maneira indiscutível a veracidade desse ponto da doutrina religiosa. Mas infelizmente não conseguem refutar o argumento de que as aparições e manifestações dos seus espíritos são apenas produtos de sua própria atividade psíquica. ● Isso quer dizer que as doutrinas religiosas se subtraem às exigências da razão, que estão acima da razão. Deve-se sentir interiorm ● Se a verdade das doutrinas religiosas depender de uma vivência interior que ateste essa verdade, o que fazer das muitas pessoas que não têm essa rara vivência? ● Como já sabemos, a terrível impressão deixada pelo desamparo da cri- ança despertou a necessidade de proteção — proteção através do amor —, fornecida pelo pai; e a compreensão de que esse desamparo continua por toda a vida motivou o ● Medi- ante a benévola ação da Providência divina, a angústia ante os perigos da vida é atenuada; o estabelecimento de uma ordem moral universal assegura o cumprimento da exigência de justiça, que tão frequentemente deixou de ser cumprida no interior da cultura humana; a continuação da existência terrena numa vida futura fornece a moldura especial e temporal em que devem se con- sumar essas realizações de desejos. ● Se afirmo que todas essas coisas são ilusões, tenho que delimitar o sentido da palavra. ... O que destacamos como essencial no delírio é a contradição com a realidade; a ilusão não tem de ser necessariamente falsa, isto é, irreal- izável ou contrária à realidade. ... Desse modo, chamamos uma crença de ilusão quando em sua motivação prevalece a realização de desejo, e nisso não consideramos seus laços com a realidade, as- sim como a própria ilusão dispensa a comprovação ● A acusação de“subterfúgio” é pertinente nesse caso. Ignorância é ig- norância; dela não provém nenhum direito a crer em algo. Nenhuma pessoa razoável se comporta de maneira tão leviana em outros assuntos, nem se dá por satisfeita com justificativas tão pobres para seus juízos, suas posições; apenas nas coisas ma ● Tudo o que afirmei sobre o valor de verdade das religiões prescinde da psicanálise, já foi dito por outros muito antes que ela existisse. ● É evidente que a religião prestou grande serviço à cultura humana, contribuiu muito para domar os instintos associais, embora não o bastante. Por muitos milênios ela dominou a sociedade humana, teve tempo para mostrar do que é capaz. Se tivesse conseguido tornar feliz a maioria dos homens, consolá-los, conciliá-los com a vida, torná-los portadores da cultura, ninguém pensaria em buscar uma mudança nas condições exist- entes. E o que vemos, em vez disso? ● É duvidoso que na época do domínio inconteste das doutrinas religiosas os seres humanos fossem, em geral, mais felizes do que hoje; mais morais eles certamente não eram. Sempre souberam como banalizar os preceitos reli- giosos, fazendo assim malograr seus propósitos. 3 ● Em todas as épocas, a imoralidade não encontrou menos apoio na re- ligião do que a moralidade. Se não são melhores as realizações da religião no que toca à felicidade dos homens, à aptidão destes para a cultura e a seu con- trole moral, cabe então perguntar se não superestimamos sua necessidade para a humanidade e se agimos sabiamente ao nela basear nossas exigências culturais. ● Se a cultura instituiu o mandamento de não assassinar o próximo que odiamos, que está em nosso caminho ou cujos bens cobiçamos, evidentemente isso se deu no interesse da convivência humana, que, caso contrário, seria impraticável ● A insegurança na vida, perigo igual para to- dos, junta os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo o assassinato e se reserva o direito de assassinar comunalmente aquele que desrespeita a proibição. Temos aí, então, justiça e castigo. ● Como é uma tarefa delicada separar o que o próprio Deus exige do que vem da autoridade de um parlamento com plenos poderes ou de um alto magistrado, seria uma vantagem indiscutível deixar Deus de fora e honestamente reconhecer a origem puramente humana de todas as instituições e normas culturais. Com sua pretendida santidade, também de- sapareceria a rigidez e a imutabilidade desses mandamentos e leis. Os homens poderiam compreender que estes são criados não tanto para dominá-los, mas para servir a seus interesses; adotariam uma atitude mais amistosa para com eles, visariam seu melhoramento, em vez de sua abolição. Este seria um im- portante progresso no caminho que leva à reconciliação com as pressões da cultura. ● A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo de Édipo, da relação com o pai. Segundo essa concepção, é de supor que o afastamento da religião deverá suceder com a mesma fatal inexorabilidade de um processo de crescimento, e que justamente agora nos encontramos no meio dessa fase de desenvolvimento ● O reconhecimento do valor histórico de certas doutrinas religiosas aumenta o nosso respeito por elas, mas não invalida nossa proposta de excluí- las como motivação para os preceitos culturais. Pelo contrário ● Mas acho que você dá mais peso à outra contradição de que me acusa. Os homens são pouco acessíveis a motivos racionais, são inteiramente governados por seus desejos instintuais. Por que deveríamos, então, retirar-lhes uma satisfação instintual, substituindo-a por motivos racionais? ● Mas acho que você dá mais peso à outra contradição de que me acusa. Os homens são pouco acessíveis a motivos racionais, são inteiramente governados por seus desejos instintuais. Por que deveríamos, então, retirar-lhes uma satisfação instintual, substituindo-a por motivos racionais 4
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