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Ponto XII - Isaac Shapera e Max Gluckman – Dois Fulgurantes Antropólogos Sul-Africanos • Apesar do grande desenvolvimento da Antropologia Jurídica na África do Sul nestes últimos anos, talvez não seja possível considerar ainda que esta nação tenha legado ao mundo alguma “escola” ou “corrente de ideias abundantes ou específicas” neste campo. Aqui, mais uma vez, creio que o presente fenômeno ocorreu menos pela falta de interesse dos pesquisadores, do que por razões de cunho político. Obviamente, como sabemos, esbarramos no nefasto impacto gerado pelo regime do Apartheid no processo de produção do conhecimento nas universidades daquele país, em que, grosso modo, estudos de natureza antropológica (segundo o rigor epistemológico requerido) pelo menos até onde sabemos, não foram muito encorajados em décadas passadas1. Entretanto, dois notáveis antropólogos surgem neste cenário. Isaac Shapera (1905-2003) e Max Gluckman (1911- 1975). • Falemos um pouco do primeiro. Professor de Antropologia na London School of Economics, o nome de Shapera destaca-se, além do pioneirismo em sua pátria natal, pela sua esplêndida contribuição ao conhecimento do direito das tribos sul-africanas. Não obstante ao fato de uma de suas publicações – A Handbook of Tswana Law and Custom (1938) - ter sido usada sob o pretexto de dominação (muito em razão da riqueza de informações), o trabalho deste autor demonstra que sua preocupação sempre foi eminentemente científica. Prova disso são as outras tantas obras de inestimável valor antropológico, tais como Married Life in an African Tribe (1940), Migrant Labour and Tribal Life (1948) e Government and Politics in Tribal Societies (1956). Com vasta produção literária, o autor deixa inquestionável legado ao desenvolvimento da Antropologia Jurídica, pois seus estudos são abrangentes e abarcam vários aspectos do fenômeno jurídico entre os nativos de Tswana – foco maior de sua observação. Os Tswana investigados eram de origem bantu e viviam no Protetorado de Bechuanaland, à época, sob os auspícios dos ingleses. Dentre todos os seus estudos, é justamente aquele intitulado “A Handbook of Tswana Law and Custom” o que mais subsídios fornece para o conhecimento do direito ágrafo. No capítulo inicial2, como convém, Shapera faz uma 1 O regime do Apartheid é definitivamente sepultado no ano de 1996, quando ocorre a promulgação de uma nova Constituição, agora de caráter democrático, fruto da intensa e perene luta de Nelson Mandela (entre outros) a condenar qualquer forma de tirania causada pela discriminação racial ou social. 2 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.1-34. análise detalhada do funcionamento da organização social das tribos de Tswana, para, logo a seguir, investigar as características, a natureza e as fontes de seu direito. O passo seguinte foi o de categorizar as leis e costumes de Tswana segundo seu teor criminal ou civil. Desde pronto, o autor percebe que as preocupações dos africanos com questões legais parecem ser bem evidentes. Entre os tais, elas começam logo na tenra meninice, quando os pais instruem seus filhos sobre o comportamento adequado e as atitudes a serem evitadas3. Essa inquietação com a observância das regras sociais acompanha os nativos para o resto de suas vidas. A confirmação das regras de comportamento geral vão sendo progressivamente incorporadas no imaginário do indivíduo na medida em que suas obrigações crescem, tornando-se mais evidentes, em especial, conforme ensinou Shapera, nas chamadas “cerimônias de iniciação”4. A percepção da totalidade do sistema de regras instituído pela tradição se completa com a fase adulta, ocasião esta em que o papel do sujeito na sociedade se torna mais claro5. As sanções são aplicadas em razão da violação às regras que velam pela manutenção da estabilidade do grupo social e Shapera não se olvida de descrevê-las. Entre os tswana havia um senso de gradação da pena de acordo com a gravidade do delito praticado. O receio da perda da estima do grupo; a mera possibilidade de ser tratado com desprezo ou, quiçá, de ser ridicularizado por seus pares como ocorre em meio a outras sociedades como os Inuit (os esquimós que vivem no Ártico), por exemplo, funcionava como um efetivo meio de controle social6. Todavia, seguindo na esteira da maioria dos antropólogos, também o estudo das regras de direito civil entre os Tswana não é negligenciado. São analisadas diversas instituições, destacando-se, nesse contexto, o casamento e a propriedade. Shapera percebeu também a existência de um diversificado direito contratual entre aqueles nativos (ainda que os tais ajustes não estivessem na sua forma escrita, como sabemos). Estas formas mais comuns de acordo (tumalanô kgôloganô) eram as seguintes: (a) alienação da propriedade por doação, permuta ou venda; (b) permissão de uso da propriedade; e (c) serviço. As mulheres e crianças, a seu turno, só poderiam contratar com a anuência de seu guardião7. A tendência de estudar profundamente o sistema de obrigações nas sociedades primitivas foi seguida fielmente por Shapera, o qual, sob este aspecto, segue bem de perto os passos de Malinowski (entre outros). 3 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.36. 4 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.36. 5 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.36. 6 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.36. 7 SHAPERA, Isaac. A Handbook of Tswuana Law and Custom, p.236-239. • Max Gluckman, por sua vez, assim como seu compatriota Isaac Shapera, foi um notório antropólogo sul-africano de origem judaica. Foi aluno de Evans-Pritchard e Radcliff- Brown, todavia, é difícil rastrear todo o lastro de influências deixado por seus mentores na construção de suas concepções teóricas, tendo-se em vista seu ecletismo. Na Universidade de Manchester, onde se tornou o precursor e fundador da “Escola de Antropologia de Manchester”8, consolidou a uma bem-sucedida carreira. Aliás, a solidez de suas convicções políticas não tardaria a levá-lo para longe de sua terra natal: a funesta vigência do Apartheid lhe constituía uma afronta da qual não estaria disposto a tolerar. Por isso mesmo, a despeito do que ocorreu com Malinowski, não haveria problema algum em considerar Gluckman personagem importante da Antropologia Britânica, mesmo porque, sua próspera trajetória acadêmica foi construída na Inglaterra. Como ativista político, atuou corajosamente contra o sistema colonialista e a segregação racial durante a primeira metade do século XX. Seguiu na esteira do pensamento de Radcliffe-Brown (seu antigo professor) e Isaac Shapera (seu compatriota)9, apesar de ter abordado com maior profundidade que estes, aquelas temáticas importantes como o modo de solução de controvérsias nas sociedades primitivas a partir de um caso concreto, conjugando em suas análises a importância de fatores de ordem política no processo de identificação dos significados trazidos com os rituais, símbolos ou as próprias formas de organização a formar uma teia complexa e ordenada. Pois bem, é justamente aí que seu pensamento se reveste de originalidade, reservando-lhe importante papel teórico. Nesse sentido, aproximava-se por inspiração acadêmica do método utilizado por americanos como Karl Llewellyn e Adamson Hoebel (que estudaram conjuntamente os modos de solução de controvérsias adotados pelos Cheyenne), e deste último em específico, de quem era amigo particular e dizia abertamente que “concordava em quase todos os pontos”10. Ao cuidar de estudar o Direito entre os Barotse (um povo composto por vinte e cinco tribos que vive no território da Zâmbia), Max Gluckman, como faria o próprio Sir Henry Maine, não hesitou em fundamentar suas observações tomando como ponto de partidaas instituições 8 Esta corrente de pensamento surgida na Inglaterra utilizou-se como campo de pesquisas os territórios na África que tradicionalmente estiveram sob o domínio britânico e que agora se encontravam às portas da independência política. Gluckman foi, certamente, o maior expoente da chamada ‘Escola de Manchester’. As investigações centravam-se nos conflitos instaurados entre as pessoas, os arranjos adotados para sua solução e a insatisfação particular do indivíduo com a ordem jurídica estabelecida e consolidada no seio do grupo. Nesse sentido, Gluckman e seus discípulos estavam um passo à frente dos americanos Llewellyn e Hoebel. 9 Veja a esse respeito COCKS, Paul. Max Gluckman and the Critique of Segregation in South African Anthropology, 1921-1940. Journal of South Africa Studies, vol.27, nº.4, December 2001 [739-756]. 10 GLUCKMAN, Max. Rituals, of Rebellion in South Africa, p.XIX. jurídicas africanas agora em franca comparação ao Direito Inglês11. Analisaram-se, assim, questões relacionadas ao poder político local (Direito Constitucional), apesar de que seu foco foi direcionado posteriormente a busca de uma melhor compreensão de matérias relacionadas ao Direito Privado, dentre as quais se destacam em sua obra obrigações e contratos, móveis e imóveis, direito das pessoas e responsabilidade civil. O conjunto da obra Gluckman é extenso, porém, para os anais da Antropologia Jurídica, sobressaem-se, fundamentalmente, três obras: “Costume e Conflito na África” (1956), “Rituais de Rebelião no Sudoeste Africano” (1954) e “As Ideias na Jurisprudência Barotse” (1965). 11 Conforme ele mesmo admite. Confira a esse respeito GLUCKMAN, Max. Rituals, of Rebellion in South Africa, p.XIX.
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