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TEORIA 
DOS MOVIMENTOS SOCIAIS 
 
 
 
 
 
 
Conselho Editorial EAD 
Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) 
Mara Lúcia Machado 
José Édil de Lima Alves 
Astomiro Romais 
Andrea Eick 
 
 
Obra  organizada  pela  Universidade  Luterana  do 
Brasil.  Informamos que  é de  inteira  responsabilidade 
dos autores a emissão de conceitos. 
A violação dos direitos  autorais  é  crime  estabelecido 
na Lei nº  .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código 
Penal. 
 
 
 
APRESENTAÇÃO 
Os movimentos sociais sempre  foram considerados como uma reação 
de protesto contra opiniões, posições e ações que  se avaliavam como 
injustas.  Assim,  escrever  sobre  os  movimentos  sociais  é  mergulhar 
também  nas  relações  sociais  de  cunho  histórico  que  os  ensejaram,  e 
este é um dos desafios ao estudar‐se o tema. Em uma sociedade globa‐
lizada,  as  interconexões  existentes  entre  atores  globais  e  locais,  na 
trama de relações, são explícitas. Fatos que ocorrem nos Estados Uni‐
dos, como os ataques de 11 de setembro de 2001, acarretam reações em 
escala global cujos reflexos incidem nas esferas pública e privada local, 
em diferentes países, mesmo passados alguns anos. 
Os  jogos de escala  levam‐nos, muitas vezes, a questionar a proporção 
que adquire o “local”. E o “local”, no plano dos movimentos sociais, é 
algo muito  sério. Como  veremos,  as mobilizações  “locais”  em  torno 
das associações de bairro foram estratégicas para a retomada da mobi‐
lização popular, ao  longo dos anos 1970 do  século XX, no Brasil, em 
pleno regime ditatorial. Por outro lado, um movimento nacional, como 
a  Coordenação  Nacional  de  Articulação  das  Comunidades  Negras 
Rurais Quilombolas (CONAQ), mantém sua atuação em escala nacio‐
nal, sem se descuidar das estratégias de luta que são peculiares a cada 
região  do  país  e  às  demandas  de  cada  comunidade  de  quilombolas 
envolvidas no movimento. Esse é um trabalho hercúleo, dadas as dis‐
tinções quanto às  relações políticas “locais” e às demandas da esfera 
federal do Estado Nacional. 
Este  livro  oferece  ao  leitor um plano de  estudo  que  o  levará  a uma 
primeira aproximação com o tema dos movimentos sociais. Trata‐se de 
material que pretende muito mais instigar a busca por respostas, ofere‐
cer ferramentas para uma análise crítica em torno do assunto e indica‐
ções, a  fim de que, no  futuro, o  leitor possa  estabelecer  contato  com 
atores dos próprios movimentos sociais e, quem sabe, interessar‐se em 
aprofundar  seus  estudos.  Assim,  o  material  aqui  apresentado  não 
pretende ser exaustivo ou completo. Muito pelo contrário: desconfiem 
da obra sobre movimentos sociais que se diga completa.  
 
 
6 
As  discussões  em  torno  dos movimentos  sociais  são  discussões  em 
constante  transformação,  seja no plano prático ou no plano analítico. 
Dentre  os  autores  que  têm produzido  teoria  acerca dos movimentos 
sociais,  destacamos  a  professora  Maria  da  Glória  Gohn,  referência 
constante neste e em qualquer trabalho relativo aos movimentos soci‐
ais. O trabalho da professora merece destaque não só pelo detalhismo 
teórico, mas  também pelo  rico  trabalho de pesquisa empírica com os 
movimentos sociais, em especial na cidade de São Paulo. 
Pedimos  aos  leitores  que  encarem  este  pequeno  manual  como  um 
apanhado sobre o  tema, com dicas para  leitura e  filmes que  ilustram 
pontos  importantes do  tema estudado em cada capítulo. Fizemos um 
certo  esforço para utilizar  referências bibliográficas  e  tecer  sugestões 
de vídeos e textos disponíveis na internet, o que possibilitará ao leitor 
pesquisar sem se deslocar de seu local de estudo. Também trouxemos 
aqui sugestões de filmes atuais produzidos e dirigidos por pessoas de 
forte apelo popular no meio artístico. Gostaríamos de dizer que isso foi 
feito  em  consideração  ao  leitor,  no  sentido de  apresentar  opções  co‐
merciais  de  dicas  culturais  que  imaginei  serem  de  fácil  acesso  nos 
lugares onde apenas o curso a distância tem oportunidade de chegar. 
O livro se encontra dividido em duas partes. Na primeira, discorremos 
sobre o referencial teórico de análise acerca dos movimentos sociais ao 
longo  da  história.  Por  fim,  abordamos  como  os  novos movimentos 
sociais  têm‐se  organizado  em  torno de  suas  reivindicações,  apresen‐
tando ao  leitor os movimentos ambientalista,  feminista, as  lutas pelo 
reconhecimento  e  as  lutas pela  conquista do  espaço. Esperamos  que 
essa sistematização forneça ao  leitor meios para se situar criticamente 
no campo  teórico dos movimentos  sociais e desperte nele o  interesse 
em buscar mais informações do que as apresentadas neste manual. 
 
SOBRE O AUTOR 
Cíntia Beatriz Müller 
Cíntia Beatriz Müller possui graduação em Direito pela Universidade Lutera‐
na  do  Brasil  (1997),  mestrado  em  Antropologia  Social  pela  Universidade 
Federal do Rio Grande do Sul (2000) e doutorado em Antropologia Social pela 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006). Tem experiência na área 
de Antropologia, com ênfase em Antropologia do Direito, atuando principal‐
mente  nos  seguintes  temas:  grupos  étnicos,  remanescentes  de  quilombos, 
antropologia do direito, antropologia e direitos étnicos. É professora de antro‐
pologia e sociologia política na Universidade Federal da Grande Dourados no 
Mato Grosso do Sul. 
 
 
SUMÁRIO 
1 MOVIMENTOS SOCIAIS: INTRODUÇÃO ............................................................. 13 
1.1 Os movimentos sociais como movimentos revolucionários ......................... 13 
1.2 Os movimentos sociais na América Latina ................................................ 16 
( . ) Ponto Final ............................................................................................. 20 
Indicações Culturais ..................................................................................... 20 
Atividades .................................................................................................... 21 
2 TEORIA DOS MOVIMENTOS: O PARADIGMA MARXISTA ............................... sse 24 
2.1 Contribuições das teorias marxistas ......................................................... 24 
2.2 Algumas ideias de Lenin e a importância desse ideário para a análise sobre 
os movimentos sociais .................................................................................. 26 
2.3 Contribuições de Gramsci para a análise dos movimentos sociais .............. 28 
2.4 Os pós-marxistas ..................................................................................... 29 
(.) Ponto Final ............................................................................................... 30 
Indicações culturais ..................................................................................... 31 
Atividades .................................................................................................... 31 
3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIOLÓGICA 
ESTADUNIDENSE .............................................................................................. 33 
3.1 A “Escola de Chicago” na sociologia estadunidense ................................. 33 
(-) Ponto Final ............................................................................................... 38 
Indicações culturais ..................................................................................... 38 
Atividades .................................................................................................... 39 
 
 
10 
4 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA EUROPA PÓS-ANOS 60 ........................... 41 
4.1 Parâmetros gerais dos NMS ..................................................................... 41 
(.) Ponto final ............................................................................................... 46 
Indicações culturais .....................................................................................47 
Atividades .................................................................................................... 47 
5 MOVIMENTOS SOCIAIS: AS REDES DE ORGANIZAÇÕES E A CONSTRUÇÃO SOCIAL 
DA IDENTIDADE ................................................................................................ 50 
5.1 O conceito de rede na antropologia dos Estados Unidos e na britânica ....... 50 
5.2 A globalização e a reconfiguração dos Estados Nacionais ......................... 51 
5.3 Atores sociais em busca de uma identidade .............................................. 54 
(.) Ponto final ............................................................................................... 56 
Indicações culturais ..................................................................................... 56 
Atividades .................................................................................................... 57 
6 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: LUTA POR RECONHECIMENTO ......................... 60 
6.1 A luta pelo reconhecimento impulsionada pela construção social da 
identidade .................................................................................................... 60 
6.2 A construção social da diferença no Brasil: o racismo à brasileira ............. 62 
(.) Ponto final ............................................................................................... 67 
Indicações culturais ..................................................................................... 68 
Atividades .................................................................................................... 69 
7 MOVIMENTOS SOCIAIS: MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL ........................... 71 
7.1 O movimento feminista no Brasil .............................................................. 71 
(.) Ponto final ............................................................................................... 75 
Indicações culturais ..................................................................................... 76 
Atividades .................................................................................................... 77 
8 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: O SOCIOAMBIENTALISMO ............................... 79 
8.1 O movimento ambientalista e a Ecologia .................................................. 79 
(.) Ponto final ............................................................................................... 83 
 
11 
Indicações culturais ..................................................................................... 84 
Atividades .................................................................................................... 85 
9 MOV. SOCIAIS E A LUTA PELO ESPAÇO: A INTERAÇÃO RURAL E URBANA ......... 88 
9.1 As raízes históricas da desigualdade no meio rural ................................... 88 
9.2 O processo de urbanização das cidades: o urbano e o rural se encontram .. 94 
(.) Ponto final ............................................................................................... 97 
Indicações culturais ..................................................................................... 97 
Atividades .................................................................................................... 98 
REFERÊNCIAS NUMERADAS ............................................................................ 101 
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 104 
GABARITO ...................................................................................................... 108 
 
 
 
1 MOVIMENTOS SOCIAIS: INTRODUÇÃO 
Cíntia Beatriz Müller 
O objetivo deste capítulo é, além de oferecer subsídios históricos que 
possam  contextualizar o  leitor nos  fatores que  levaram  ao  início das 
mobilizações populares desde o século XVI até o século XVIII, apresen‐
tar ao leitor de que forma a Teoria dos Movimentos Sociais foi incorpo‐
rada  às  análises  latino‐americanas  sobre  o  fenômeno  e  como,  ainda 
hoje, as  teorias sobre os Novos Movimentos Sociais oferecem oportu‐
nidades para a construção de novas concepções teóricas. 
1.1 Os movimentos sociais como movimentos 
revolucionários 
Nos séculos XVI e XVII, a Europa vivenciou o advento do regime de 
economia capitalista. Esse período  foi marcado pelo  renascimento do 
comércio  em  sua  escala mundial, pelo  crescimento das  cidades, pela 
expulsão dos camponeses do meio rural, pela queda do absolutismo e 
pelo  fortalecimento  da  burguesia  e  o  início  do  desenvolvimento  da 
indústria.1 Particularmente, no que diz respeito ao processo de indus‐
trialização que ocorreu na Europa, tendo em vista o grande exército de 
reserva de mão de  obra  oriundo do  êxodo  rural paupérrimo  que  se 
aglomerava nas cidades emergentes, a troca de mercadorias propiciou 
o acúmulo de  capital necessário para alavancar uma  industrialização 
incipiente2. O fortalecimento do papel do comerciante que intermedia‐
va  a  troca de mercadorias  tirou da mão do  artesão  o monopólio da 
venda do produto que se  fortaleceu à medida que o mercado expan‐
dia‐se. 
 
 
 
 
 
14 
Comércio medieval 
 
Em  termos de técnica de produção,  identificamos a  transição do arte‐
sanato para a manufatura e o sistema fabril. O sistema fabril emerge da 
demanda  pelo  aumento  de  produção,  impossível  de  ser  suprido  no 
sistema de manufatura, e pelo aperfeiçoamento da  tecnologia de pro‐
dução. Pereira3 afirma que, com isso, a produção doméstica e o artesa‐
nato tornaram‐se cada vez mais rarefeitos. O incremento do comércio, 
impulsionado pelas Cruzadas, foi correlato ao crescimento das cidades 
ou burgos. Segundo o mesmo autor,  tal  local era  fundamental para a 
realização dos atos de comércio e a circulação de mercadoria, o que o 
transformou em local privilegiado para receber a mão de obra oriunda 
do  campo. Ainda  em  Pereira  tem‐se  que,  notadamente,  este  foi  um 
período de grandes conflitos, no qual os  servos  revoltavam‐se contra 
seus antigos senhores feudais, entre eles, a própria Igreja. Essas revol‐
tas davam‐se pela expulsão dos camponeses do campo, uma vez que a 
necessidade de produção e do comércio de alimentos levou os senho‐
res a realizarem cercamentos a esses burgos, e pela busca da liberdade, 
já que a condição de servos impunha uma série de restrições à liberda‐
de pessoal dos camponeses. 
Nos séculos seguintes, XVIII e XIX, é que ocorre, de  fato, a chamada 
Revolução Industrial européia (Inglaterra – XVIII e Alemanha – XIX)4. 
Essa  forma de  “revolução”  concentrou o  capital na burguesia,  classe 
emergente  liberal que  surgiu  com o  fortalecimento das  cidades  e do 
comércio, o que colocou o proletariado em extrema relação de depen‐
dência. Os  trabalhadores eram submetidos a “moradias superlotadas, 
escuras e  insalubres,  jornadas de  trabalho de até dezesseis horas diá‐
rias, condições alarmantes de  trabalho, crianças  fora da escola,  traba‐
lhando longos períodos, em péssimas condições”5. 
Com base nessas  condições pouco humanas de  trabalho,  iniciou‐se a 
reação dos  trabalhadores, num primeiro momento quebrando máqui‐
 
15 
nas,  realizando  protestos  pela  diminuição  da  jornada  de  trabalho  e 
aumento salarial e organizando sindicatos. Logo depois, eclodindo nos 
protestos  violentos  dos  quais  podemos  citar  o  de  1871,  chamado  a 
Comuna de Paris, que durou 72 dias. Essas posições antagônicas entre 
a classe proletária e a classe burguesa (outrora aliadas para a derruba‐
da do absolutismo durante a Revolução Francesa)6  fizeram emergir o 
socialismo que pregava a  transformação social em benefício dos mais 
pobres, no caso, o proletariado. 
Comuna de Paris 
 
Do ponto de vista clássico das teorias de análise dos movimentos soci‐
ais, a  correlação  entre o método de ação dos movimentos  e as ações 
radicais  de  violência  advinhada  realidade  das  revoluções.  Tanto  as 
revoluções europeias  (como a Francesa e a Russa) ou os movimentos 
pela  independência  na  América  (Estados  Unidos)  são  exemplos  de 
mobilizações sociais nos quais ocorreram batalhas, ações de guerrilha, 
atos violentos de depredação de bens particulares e públicos, e longos 
períodos de luta. 
Um dos mais  representativos  teóricos dos movimentos  sociais, Alain 
Touraine,  fornece‐nos  o  contexto  básico  sobre  o  tema:  “Entendo,  em 
princípio,  por movimentos  sociais  a  ação  conflitante  de  agentes  das 
classes  sociais  lutando  pelo  controle do  sistema  histórico”7. Destaca‐
mos, no conceito desse autor, a ênfase dada às noções de conflito, clas‐
ses sociais e controle do sistema histórico. Touraine pode ser conside‐
rado um pós‐marxista  (como veremos no  capítulo  seguinte)  e,  como 
tal, sua construção teórica baseia‐se na ênfase no conflito como a ideia 
de luta, de movimento de oposição coletiva a uma forma de opressão 
instaurada. Além disso, o conceito de classe social é importante para o 
autor, uma vez que esse conceito é o motor de transformação histórica 
da sociedade. A coletividade organizada investe, nos moldes clássicos, 
 
 
16 
pela tomada do controle. Assim, faz parte do projeto do grupo colocar 
suas concepções no lugar daquelas pré‐existentes.  
De  acordo  com  Touraine8,  há movimentos  coletivos  de  resistência  à 
opressão, e de outra monta, os que exercem pressão para a dissemina‐
ção  de  visões de  classe  sobre  o  sistema.  Essa  distinção  é  estratégica 
para  identificarmos se o movimento social  incide sobre o sistema en‐
quanto instituição ou enquanto organização. As análises clássicas lan‐
çam seu olhar sobre os movimentos sociais que incidem sobre o siste‐
ma institucional, isto, pois, de acordo com as ideias clássicas advindas 
do marxismo – parte do projeto dos movimentos sociais é a conquista 
dos aparelhos do Estado enquanto instituição. Isto só é possível após a 
mobilização coletiva eficaz, ou seja, “a transformação do conflito social 
em luta contra o poder estabelecido”9.  
Dessa  forma,  o  autor  enfatiza  a  necessidade  de  que  ações  isoladas 
sejam traduzidas em formas de ação coletivas, ou seja, que o mote de 
mobilização e os argumentos de reivindicação sejam compartilhados. 
1.2 Os movimentos sociais na América Latina 
A corrente de pensamento marxista teve grande repercussão no cená‐
rio  latino‐americano  até  os  anos  70 do  século XX.  Problemas  sociais 
desencadeados  pela  concepção  de  desenvolvimento,  dependência  e 
modernização,  propagados  na  época,  forneceram  as  bases  para  uma 
oposição consubstanciada na transformação social que se opunha a tais 
modelos. A América Latina desse período sofria com a ditadura militar 
em vários países, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. No âmbito 
desses governos, a política desenvolvimentista acarretou a modificação 
abrupta da forma de vida, principalmente de povos tradicionais (como 
grupos  indígenas)  e da população do  campo. O grande  êxodo  rural, 
que ocorreu na época, marcou o monopólio da terra nas mãos de pou‐
cos e o inchaço desproporcional da periferia das grandes cidades. 
Cortadores de cana‐de‐açúcar no interior do Brasil 
 
 
17 
O modelo  de modernização  que  abria  as  portas  ao  investimento  do 
capital estrangeiro no país retribuía com a oferta de mão de obra bara‐
ta  e  sem  especialização  e  capital monetário oriundo de  empréstimos 
tomados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Com isso, o caráter 
de dependência econômica dos países da América Latina em  relação 
ao  capital  estrangeiro  e  às  novas  tecnologias  importadas do  exterior 
fazia com que a camada dominante da sociedade nacional, notadamen‐
te aquela que se originou no bojo de uma sociedade escravista, perpe‐
tuasse sua forma de governar e sua dominação sobre as classes subal‐
ternas. O modelo de modernização implementado nos anos 50 e 60 no 
continente era eminentemente europeu, ou seja,  tomava por base um 
capitalismo histórico maduro  concebido por países que,  ao  longo do 
colonialismo, desempenharam o papel de metrópoles10. 
Dessa forma, a América Latina era constantemente vista como atrasa‐
da. No entanto essa contradição era inerente ao modelo de moderniza‐
ção eleito que mantinha os laços de dominação consolidados ao longo 
do regime colonial. Notadamente Fernando Henrique Cardoso, citado 
por Gohn, ao desenvolver uma  teorização sobre a dependência “cha‐
mou atenção para as especificidades da América Latina, argumentan‐
do que nela o desenvolvimento deveria ser visto no contexto da dinâ‐
mica  global  da  economia”11.  Essa  nova  teorização  sobre  a  América 
latina abriu margem para uma análise crítica sobre os modelos teóricos 
majoritários e fomentou novas abordagens sobre o modelo de moder‐
nização. 
Scherer‐Warren12 explicita que, nesse período, os estudiosos da Teoria 
Social Latino‐Americana, de  inspiração  francamente marxista,  tomam 
consciência de que, na América Latina, a  formação de grupos  com o 
caráter de  classes  sociais,  tal  qual  a  conotação  europeia do  conceito, 
dificilmente  seriam  formados  a partir da  experiência histórica  latina, 
de uma realidade pós‐colonial. Isso se deu em função das especificida‐
des históricas do continente  latino‐americano, em especial, cuja estru‐
tura social originou‐se de uma situação colonial em que povos autóc‐
tones  foram dizimados e colocados em  franca situação de dominação 
ao longo de séculos. Assim sendo, o Estado assume um caráter estraté‐
gico  frente  aos movimentos  sociais,  pois  é  o  governo  que  define  os 
parâmetros e os rumos políticos de cada país, possuindo, por isso, sua 
sociedade política, potencial de transformação. 
Gohn13,  contudo, destaca que não existe um “paradigma  teórico pro‐
priamente  dito”  sobre  os movimentos  sociais  latino‐americanos. No 
Brasil,  como  em  todo o mundo, o modelo  clássico  inicial que visava 
formular uma referência explicativa e um projeto de ação para os mo‐
 
 
18 
vimentos  sociais  foi  o modelo  teórico marxista,  ressaltando‐se  a  in‐
fluência de Gramscia. O  exaurimento desse paradigma  teórico  levou 
suas  referências  a  serem  substituídas  pela  abordagem  proposta  pela 
Teoria dos Novos Movimentos Sociais. Em termos gerais, Gohn sugere 
elementos  que  devem  ser  considerados  na  formulação  de  um  para‐
digma  teórico  sobre  os movimentos  sociais  latino‐americanos,  entre 
eles14: 
1) a diversidade dos movimentos sociais quanto à sua constituição, 
composição e organização; 
2) a  proliferação de movimentos  populares  que  lutam  por  direitos 
sociais básicos; 
3) a  participação  de  organizações  religiosas  no  aparelhamento  dos 
movimentos sociais; 
4) a  forte participação de movimentos que  colocam em evidência a 
discriminação  étnica,  promovida  contra  indígenas  e  afro‐
americanos; 
5) a posição de antagonismo em relação ao Estado; 
6) as novas lutas sociais pleiteiam a inclusão e não mais a integração 
social; 
7) a  formulação  de  projetos  políticos  comuns  entre  movimentos 
sociais e partidos políticos; 
8) na América Latina, o papel dos intelectuais frente aos movimentos 
sociais é bastante importante. Eles têm funcionado como interme‐
diários  entre o movimento  social  e  agências governamentais  e  a 
própria mídia. 
No período de democratização da América Latina, outro conceito que 
tomou  fôlego  foi o de esfera pública. Esse conceito, em efervescência 
teórica no  início do  século XXI,  engloba  tanto  a perspectiva de uma 
esfera de interação burocrática, legal, que permita a relação entre gru‐
pos e movimentos sociais, como uma dimensão de autonomia cultural 
frente à produção de bens de consumo em massa15. Uma das principais 
influências na construção do conceito foi a de Habermas, que entendiaa Ativista político  italiano que divulgou suas  ideias políticas ao  longo do século XX, participou de ações 
vinculadas ao movimento comunista e permaneceu preso, quando, então, sistematizou parte de sua obra. 
Sua prisão deu‐se por sua atuação política em defesa de ações revolucionárias e em oposição ao regime 
que se consolidava na Itália naquele momento, capitaneado por Benedicto Mussolini e que desembocou no 
fascismo que colocou a Itália ao lado da Alemanha da 2ª Guerra Mundial. 
 
19 
a esfera pública como uma dimensão dialógica e comunicativa, entre 
atores  da  sociedade  civil,  Estado  e  sistema  político.  Para Habermas, 
citado por Avritzer e Costa16, a formação da opinião e a vontade coleti‐
va,  que  legitimam  os  processos  políticos,  acabavam  por  compor  um 
processo  de mediação  entre  o  sistema  político  e  o mundo  da  vida. 
Nessa relação, a sociedade civil torna‐se refém de um papel ambíguo, 
pois tanto é responsável pela criação de “microesferas públicas” quan‐
to é ela que seleciona as questões que serão alvo de crivo nesses mes‐
mos espaços. 
Se a esfera pública, assim como a cidadania, é algo que emerge com os 
Estados‐Nacionaisb17,  podemos  afirmar  que  as  transformações  pelas 
quais passam tais Estados também interferem e sofrem consequências 
advindas de ações da própria esfera pública. De  forma ampla, o con‐
ceito de esfera pública tem sido empregado ao  longo de pesquisas de 
opinião pública, ao estilo da Escola de Frankfurt, no qual o público é 
encarado como entidade atomizada e passiva, acrítico e valorado sob a 
óptica do consumidor. Por outro  lado, no que diz  respeito ao campo 
político,  não  se  teria  consolidado um  campo de  ação  racional,  argu‐
mentativo  e  dialógico,  dentro  do  contexto  habermaziano,  de  fazer 
político na América Latina. 
Dagnino, citado por Avritzer e Costa18, aponta para a  infeliz “coinci‐
dência”  entre  o  processo  de  democratização  na América  Latina  e  a 
consolidação de governos de postura neoliberal na região. Ao mesmo 
tempo,  iniciativas  e  reivindicações por maior participação  e  transpa‐
rência das ações de governo têm emergido na América Latina enquan‐
to novos personagens políticos buscam reconhecimento de sua identi‐
dade  política  no  âmbito  da  sociedade  civil  dos  Estados‐Nacionaisb. 
Diante  dessas  novas  configurações,  Avritzer  e  Costa19  formulam  a 
seguinte concepção de esfera pública: 
Malgrado a metáfora espacial que sugere, equivocadamente, a existência 
de  uma  localização  específica  na  topografia  social,  a  esfera  pública  diz 
respeito mais propriamente a um contexto de relações difuso no qual se 
concretizam  e  se  condensam  intercâmbios  comunicativos  gerados  em 
diferentes  campos  da  vida  social.  Tal  contexto  comunicativo  constitui 
uma  arena  privilegiada  para  a  observação  da  maneira  como  as 
transformações sociais se processam, o poder político se reconfigura e os 
novos atores sociais conquistam relevância na política contemporânea. 
                                                                  
b O processo de emergência dos Estados‐Nacionais diz respeito à história política deles, a partir da qual 
esses Estados surgiram das antigas formações, como os impérios e as colônias. 
 
 
20 
Dessa forma, os autores enfatizam que, mesmo com uma denominação 
que remete à dimensão de um local, como se a esfera pública fosse algo 
material que se localiza em um dado espaço, o sentido do termo refere‐
se ao conjunto de relações. Tais relações sucedem‐se na sociedade de 
forma ampla entre dados atores que compartilham um tipo de comu‐
nicação específica (como expressões e linguagens) e acaba por compor 
um  contexto  em  que  as  transformações  sociais  tornam‐se  possíveis, 
pois  as  ideias passam  a  ser  compartilhadas  e,  assim, provocam mu‐
danças sociais. 
( . ) Ponto Final 
Neste capítulo, buscou‐se reforçar a perspectiva de que a mobilização 
social é fruto de condições históricas cuja configuração de poder criou 
uma massa subalterna. Além disso, destacamos que o contexto históri‐
co europeu difere do latino‐americano e que, apesar da importação de 
modelos teóricos, notadamente europeus para a análise das mobiliza‐
ções sociais que ocorreram na América Latina, ainda nos encontramos 
a procura de um modelo explicativo dos movimentos sociais na Amé‐
rica Latina. Assim, destacamos neste capítulo introdutório as possibili‐
dades teóricas na análise dos movimentos sociais na América Latina e 
a importância do conceito de esfera pública como campo de interação 
entre sociedade civil, instituições políticas e Estado. 
Indicações Culturais 
ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. Livro de 
suspense  lançado na Itália em 1980, que relata a  investigação de uma 
série de mortes misteriosas que ocorrem em uma abadia medieval no 
século XIV. É um excelente  livro que descreve a  relação que a  Igreja 
Católica possuía  com  a  construção do  saber na baixa  Idade Média  e 
oferece dados tangenciais sobre o empobrecimento dos camponeses e 
sua migração para os burgos, assim como oferece algumas representa‐
ções sobre o feminino que condizem com a época. 
VICTOR HUGO. Os miseráveis. 8.  ed. São Paulo: Hemus, 2002. Livro 
escrito em 1862, descreve como os pobres da cidade eram tratados pelo 
aparelho de  repressão do Estado  e  como o  empobrecimento  em que 
viviam os  aldeões os  levava a  cometer pequenos  furtos. É uma obra 
belíssima  sobre a  solidariedade humana e  sobre  como a norma  legal 
pode ser distorcida e situacionalmente utilizada para fins de vingança 
privada. 
 
21 
A CASA dos  espíritos. Direção: Billie August. Produção: Bernd Eichin‐
ger. Estados Unidos: Miramax Films, 1993. (150 min). Este filme conta 
a  história da  Família Trueba  e,  por meio dela,  a  história política do 
Chile dos  anos de  1930  a  1970  com  o deslocamento da  estrutura de 
poder agrária para as cidades. Em meio à modernização do aparelho 
de Estado, um golpe coloca os militares no poder na década de 1970 e 
interrompe o governo do presidente Salvador Allende.  
O  QUE  é  isso  companheiro?  Direção:  Bruno  Barreto.  Produção:  Lucy 
Barreto e Luiz Carlos Barreto. Brasil: Miramax Films, 1997. (105 min). 
O  filme  descreve  o  contexto  político  brasileiro  após  a  instituição  do 
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968c. Ele apresenta a ação 
de militantes  que  planejam  sequestrar  o  embaixador  estadunidense 
para  trocá‐lo por  companheiros  presos  e  torturados.  Produzido  com 
base em fatos reais, o filme oferece informações sobre a situação políti‐
ca da  época  no Brasil  e  a  tensão  entre  o  sistema  político  e  parte da 
sociedade civil. 
Atividades 
1) Assinale a alternativa que responde à sentença a seguir. Revolução 
que  teve  início na  Inglaterra e  levou ao crescimento das cidades, 
consequência  do  cercamento  dos  campos  e  do  empobrecimento 
dos camponeses, à aceleração de investimentos no sistema fabril e 
à crise do Absolutismo europeu foi a: 
a) Revolução Comunista 
b) Revolução Industrial 
c) Revolução Francesa 
d) Comuna de Paris 
2) Assinale a alternativa correta de acordo com a afirmativa a seguir. 
O modelo desenvolvimentista  implantado na América Latina en‐
tre os anos de 50 e 70: 
a) Foi exportado, exclusivamente, para os Estados Unidos 
b) Era embasado na busca por  investimento estrangeiro, princi‐
palmente em empréstimos  tomados do Fundo Monetário  In‐
                                                                  
c Para ver o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, acesse: 
<http://www.acervoditadura.rs.gov.br/legislacao_6.htm>. 
 
 
22 
ternacional, acarretando o êxodo rural e o crescimento desor‐
denado das cidades 
c) Tinha como características principais: a venda de estatais para 
grupos estrangeiros e a privatização de partede serviços pú‐
blicos 
d) Foi  consequência  do  impacto  pós‐Segunda Guerra Mundial 
sobre as indústrias europeia e japonesa 
3) Sobre os movimentos  sociais na América Latina, podemos dizer 
que: 
a) Nos anos 70, esses movimentos foram analisados sob o ponto 
de vista teórico do paradigma marxista 
b) A estrutura organizacional deles depende, unicamente, de re‐
cursos financeiros do Estado 
c) Não são compostos por grupos étnicos minoritários, como in‐
dígenas, uma vez que eles  têm  todos os seus direitos respei‐
tados pelo Estado e pela sociedade civil 
d) Emergiram  a  partir da  harmonia  que  se  consolidou  entre  a 
classe proletária e a burguesa 
4) Podemos dizer que a esfera pública é o espaço em que se estabele‐
cem relações entre: 
a) A classe burguesa, a aristocracia e, apenas, os camponeses 
b) A aristocracia e o proletariado 
c) O Estado, a sociedade civil e as instituições políticas 
d) O Banco Mundial e as empresas privadas 
5) A emergência dos Estados‐Nacionais trouxe como consequência: 
a) A consolidação de uma estrutura empresarial que poderia sa‐
car empréstimos no exterior 
b) O surgimento da esfera pública, na qual a opinião pública e a 
vontade coletiva acabam por mediar a relação entre o mundo 
da vida e o sistema político 
 
23 
c) O antagonismo de classes entre Estado e empresários da ex‐
portação 
d) A transformação das colônias em metrópoles durante o mer‐
cantilismo 
 
 
 
2 TEORIA DOS MOVIMENTOS: O PARADIGMA MARXISTA 
Cíntia Beatriz Müller 
A  partir  do  paradigma marxista,  analisamos  os movimentos  sociais 
como  catalisadores  de  processos  voltados  para  a  transformação  das 
condições sociais. Trata‐se de enfatizar a análise dos movimentos soci‐
ais sob a perspectiva da  luta, do conflito, da disputa que modifica as 
condições de vida das pessoas envolvidas no movimento e na socieda‐
de, em geral, e rompe com a alienação. De forma alguma, o paradigma 
marxista de análise dos movimentos sociais centra sua atenção sob as 
revoluções ou sob as  lutas operárias. Embora esse tipo de abordagem 
empreendida  pelos movimentos  sociais  evidencie  as  relações  de  su‐
bordinação e de dominação, cuja visibilidade é maior em situações de 
capitalismo tradicional, a abordagem centrada no paradigma marxista 
não se reduz a isso. 
De  acordo  com  Gohn1,  o  paradigma  marxista  clássico  possui  duas 
correntes distintas: uma baseada em abordagem que parte da produ‐
ção intelectual do jovem Marx e outra que encontra lastro nos escritos 
do Marx “maduro”. Esta última corrente apropria‐se dos conceitos de 
“formação social, forças produtivas, relações de produção, superestru‐
tura, ideologia, determinação em última instância, mais‐valia”2, e colo‐
ca  em  evidência  uma  análise  calcada  em  premissas  eminentemente 
econômicas. Valoriza, assim, o papel da classe operária por sua posição 
frente ao processo de produção, o que a transformaria, a grosso modo, 
em grupo privilegiado como agente histórico capaz de operar ações de 
transformação social 
2.1 Contribuições das teorias marxistas 
Ao abordar os movimentos sociais, as teorias marxistas não abandona‐
ram de todo o conceito de classes sociais que acaba por situar os atores 
envolvidos  no  contexto dos movimentos  frente  à  estrutura  social. A 
classe social, e os elementos que a compõem, acaba por definir parâme‐
tros acerca da consciência social do ator envolvido no movimento de 
 
25 
luta por conquistas da própria classe. Tomando o trabalho de Marx de 
forma ampla, podemos afirmar que os movimentos sociais não foram 
alvo  de  suas  preocupações  teóricas3.  Porém,  esse  filósofo  construiu 
categorias essenciais que potencializaram a análise sobre o tema. 
Karl Marx (1818‐1883) – Filósofo alemão 
 
Karl Marx nasceu na cidade de Trier (Trèves, pró‐
ximo da fronteira com a França), na Prússia. Estu‐
dou  Direito  (1837‐1841)  nas  universidades  de 
Bonn e Berlim, quando  travou conhecimento com 
a  filosofia de Hegel. Defendeu sua  tese de douto‐
rado em 1841 e passou a trabalhar na Gazeta Rena‐
na, como redator‐chefe, em 1842. Por razões políti‐
cas, viveu na Bélgica até 1848 e retornou para a Alemanha, onde ficou 
até 1849. Exilou‐se, então, definitivamente em Londres, onde morreu 
em 1883. Sua obra costuma ser dividida em duas fases: a da juventude 
– Manuscritos  econômicos  e  filosóficos  (1844), Miséria  da  Filosofia  (1847), 
sendo   que A Ideologia alemã (1848) e Manifesto comunista (1848) foram 
escritos em co‐autoria com F. Engels – e a da fase madura – O 18 Bru‐
mário  de  Luís  Bonaparte  (1852),  Esboços  dos  fundamentos  da  Crítica  da 
Economia política (1857/58), Para a Crítica da Economia política (1859) e O 
capital (1867 e 1894 em edição póstuma)4. 
Para Gohn5, uma importante categoria cunhada pelo autor é a de prá‐
xis social. Práxis social é, para Marx, a capacidade que as classes sociais 
trabalhadoras e os grupos dominados possuem de transformar a soci‐
edade por meio de  atividades  teóricas, políticas  e produtivas. Ainda 
segundo Gohn, a práxis teórica ofereceria recursos capazes de acelerar 
projetos  de  transformação  social;  ao  passo  que  a  práxis  produtiva, 
consubstanciada no locus ocupado pelo proletário, forneceria os recur‐
sos críticos que potencializariam a síntese transformadora da socieda‐
de, a partir da própria consciência social acerca da dominação, imple‐
mentada  pelos  detentores  do monopólio  dos meios  de  produção. A 
práxis política viria à  tona  embasada no  entrecruzamento das práxis 
teórica  e  produtiva.  Essa  conexão  entre  intelectualidade  e  processos 
sociais de transformação das condições de vida da classe trabalhadora, 
matéria‐prima da práxis política, é uma das contribuições de Marx em 
relação à análise dos movimentos sociais.  
Outra importante categoria de análise dos movimentos sociais forjada 
por Marx é a de solidariedade: “A solidariedade citada por Marx refere‐
se a uma relação social, com os mesmos interesses e deveria estar vol‐
 
 
26 
tada  para  um  dado  objetivo:  a  emancipação  dos  trabalhadores”6. A 
solidariedade, no  sentido marxista, apresenta uma dupla  função: por 
um lado é fator de coesão do grupo, ou seja, aponta uma dimensão de 
comprometimento entre aqueles que compartilham uma mesma  ideo‐
logia  e,  por  outro,  agrega  pessoas  que  compartilham  de  um  projeto 
emancipatório.  Para  consolidar  essa  solidariedade,  é  especialmente 
significativo  compartir  experiências  de  vida  e  de  classe,  pois,  dessa 
forma, as pessoas compartilhariam de um mesmo grau de consciência 
social acerca dos processos de dominação histórica do seu cotidiano. 
2.2 Algumas ideias de Lenin e a importância desse 
ideário para a análise sobre os movimentos sociais 
Vladimir Ilitch Lenin, advogado por formação, foi um líder revolucio‐
nário que esteve à frente de todas as fases da Revolução Russa de 1917. 
As ideias desse líder tiveram influências não apenas no contexto revo‐
lucionário soviético, mas em âmbito internacional. Tal repercussão não 
ocorreu por acaso. Com o caráter clandestino das atividades políticas 
revolucionárias na Rússia, ao longo do reinado do czar Alexandre II, os 
mentores  da  práxis  intelectual  obrigavam‐se  a  publicar,  no  exterior, 
todo o material a ser distribuído na Rússia. Também no exterior aca‐
bavam por traçar estratégias de organização do movimento revolucio‐
nário,  sem  contar  que,  inúmeras  vezes,  lideranças  revolucionárias 
precisavam permanecer abrigadas no exterior, tendo em vista o clima 
de perseguição política que imperava ao final do período czarista. 
Lenin durante a Revolução Russa em 1917 
 
Para Lenin7, o povo, composto aqui pela maioria em um conjunto de 
classes, deveria ocupar  seu  lugar  ao  centro das decisões políticas no 
Estado socialista‐revolucionário. Era decisivo que  fossem constituídas 
condições  concretas  paraa  participação  da  maioria  nas  decisões  e 
negócios públicos. Para  isso,  seria  estratégico  que  tanto  o  regime de 
Estado quanto o poder político propiciassem condições de participação 
 
27 
da maioria nas arenas de decisão. Essa participação, contudo, implica‐
va a necessidade de que essa maioria fosse capaz de conduzir a estru‐
tura de Estado. O monopólio do exercício do poder político pela classe 
burguesa, porém, implicava que os interesses desse contingente, com‐
posto por classes subordinadas, não fossem atendidos. 
A participação da maioria nos negócios de Estado é  importante para 
Lenin tendo em vista sua concepção de que “o Estado é o produto e a 
manifestação do fato que as contradições de classes são inconciliáveis. 
O Estado surgiu aí no momento e na medida em que, objetivamente, as 
contradições de classes não podiam ser conciliadas”8. 
A única forma de transformar o Estado, a transformação revolucioná‐
ria, seria, segundo Gohn, a conciliação da maioria, ou a participação de 
uma maioria nas decisões dos negócios públicos. Para Lenin, o modelo 
de  Estado  que  comporta  as  demandas  do  proletário,  enquanto  ele 
estiver subordinado aos interesses capitalistas, é o da república demo‐
crática. Porém o ideal socialista é o de que a classe proletária assuma o 
controle  completo de  sua  vida  social  e política  e, por decorrência,  o 
controle do governo do Estado Nacional. 
A organização da maioria, ou de massa, para torná‐la apta ao exercício 
do governo, de acordo com Lenin, possuía  sutilezas que a distinguia 
das organizações de  classe. Por  isso,  existem dois  tipos de organiza‐
ções, ambas essenciais à práxis social: a organização política e a orga‐
nização de operários para a  luta9. Seguindo o  raciocínio de Lenin, as 
organizações  de  operários  possuiriam  caráter  profissional,  amplo  e 
pouco  “conspiratório”,  ao passo que  as organizações de  caráter  emi‐
nentemente político deveriam  reunir pessoas voltadas para  esse  fim, 
de ação política. Em seu interior, não existiram distinções entre operá‐
rios  e  intelectuais,  sendo  essas  distinções  organizadas  de  forma  não 
muito extensa. A principal função da organização política, notadamen‐
te  do  Partido,  de  acordo  com  Lenin,  seria  a  de  organizar  a maioria 
envolvida no movimento social10, ou seja, a de desenvolver seu papel 
de vanguarda, de estar à frente dos acontecimentos.  
Embora Lenin não  tenha produzido  textos  específicos dedicados  aos 
movimentos  sociais,  em  seu  tempo  ele  foi  um  intelectual  envolvido 
com a luta das organizações de classes, notadamente os sindicatos. Os 
sindicatos deveriam assumir uma função pedagógica, sendo um possí‐
vel centro irradiador da ideologia socialista. Serviriam, assim, de estru‐
tura capaz de suportar uma preparação para a maioria, o povo, em seu 
momento de  tomada do poder11. Nesse  sentido, Lenin aponta para o 
caráter pedagógico possível dos movimentos sociais de vários níveis, 
como  atualmente  tem  sido  a  tônica  dos movimentos  de  luta  pelos 
 
 
28 
direitos humanos no Brasil, por exemplo. Essa função de disseminação 
de ideias caberia à vanguarda: “o papel da vanguarda do proletariado, 
que consiste em instruir, ilustrar, educar, atrair para uma vida nova as 
camadas e as massas mais atrasadas da classe operária e do campesi‐
nato”12. Obviamente,  como  paradigma  de  ação  para  os movimentos 
sociais  modernos,  essa  noção  deve  ser  atualizada,  mas  a  categoria 
vanguarda pode ser ainda operacional entre nós. 
2.3 Contribuições de Gramsci para a análise dos 
movimentos sociais 
Gramsci, teórico marxista italiano, nascido em 1891 na Sardenha, inici‐
ou seus estudos em 1903, no ginásio (hoje ensino fundamental – 5ª a 8ª 
séries), de onde teve de sair para buscar sustento ao longo dos anos de 
1904 a 190813. Devido a uma queda que sofreu aos quatro anos de ida‐
de, Gramsci era corcunda e sofria com essa deformidade física, sendo‐
lhe penoso desenvolver atividades laborais que envolvessem o uso da 
força  física. Entrou na  faculdade de Turim em 191014. Os Cadernos do 
cárcere,  conjunto de  textos  escritos pelo  autor  enquanto  esteve preso 
entre os anos de 1926 e 1937, são compostos por trinta e três cadernos, 
dos quais vinte  e nove  foram publicados pela primeira vez na  Itália 
entre os anos de 1948 e 1951. As ideias de Gramsci não representaram 
uma continuidade das ideias divulgadas por Lenin, porém  trouxeram 
uma  séria  contribuição  no  que  se  refere  à matéria  dos movimentos 
sociais com a ideia de hegemonia e o papel dos movimentos populares 
na transformação de espaços políticos. 
Gramsci, como teórico, desenvolveu uma noção mais ampla de Estado 
do  que  o  fez  Lenin.  Segundo Coutinho15,  para Gramsci  a  sociedade 
civil  seria um  importante campo de disseminação de  ideias políticas, 
espaço  social  em  que  a  participação  política  e  o  reconhecimento  de 
grupos e massas era possível. A “sociedade civil” formaria uma cama‐
da com potencial crítico capaz de opor‐se à opressão da   estrutura de 
Estado. É no âmbito da sociedade civil que se situam as organizações 
privadas. De acordo com Portelli16, sociedade civil, para Gramsci, é um 
conjunto  extenso  “e  sua  vocação  para  dirigir  todo  o  bloco  histórico 
implica uma adaptação de seu conteúdo, segundo as categorias sociais 
que atinge”. A sociedade civil estaria permeada de ideologia da classe 
dirigente. Esse  fato acabaria por  influenciar seus diferentes campos e 
concepções de mundo da sociedade civil ao passo que, como “direção 
ideológica”,  ela  estaria estruturada  em organizações que difundem a 
mesma  ideologia e os  instrumentos que difundem essa  ideologia, por 
exemplo, o sistema escolar. No âmbito da sociedade civil, é que se dão 
os embates pela hegemonia. 
 
29 
Gramsci  apresenta um  conceito de  hegemonia muito próximo  ao de 
Lenin e reforça a tese de que o papel da direção intelectual e ideológi‐
ca, ou seja, a existência de um grupo dirigente, é fundamental frente à 
base de classe. Para ele, o Estado está para além de uma simples socie‐
dade de organização política, mas  é decisivamente  influenciado pela 
sociedade civil. Daí a importância da incidência de intelectuais sobre a 
classe base na sociedade civil, para, por meio da transformação de seu 
sistema  ideológico,  transformar  a  própria  estrutura  política  e,  por 
consequência, o Estado. A hegemonia assim seria o conjunto de ideias 
e concepção de mundo formado a partir de valores da classe burguesa, 
cuja capilaridade estende‐se por toda a sociedade civil. A consolidação 
de  tais  ideias ocorreria em decorrência da atuação de um grupo  inte‐
lectual, uma vanguarda  conforme Lenin,  e da  correlação  ente outros 
grupos aliados17. 
Segundo Portelli18, “A hegemonia gramsciana é a primazia da socieda‐
de civil sobre a sociedade política”. Ainda segundo o mesmo autor, a 
luta para Gramsci não era pelo controle da sociedade política, como o 
era para Lenin, mas pelo controle da sociedade civil. A conquista do 
aparelho estatal apenas seria uma  forma de apropriar‐se do mecanis‐
mo de dominação estatal. Essa concepção opõe‐se à ideia de ditadura, 
uma vez que a conquista do Estado aconteceria pelas bases do conven‐
cimento e da apropriação ideológica da sociedade civil – assumir uma 
postura dominante − que, ao inverter seus valores hegemônicos, pode‐
ria vir a conquistar o aparelho de Estado – aqui em caráter dirigente. 
Em relação aos movimentos sociais, há duas perspectivas importantes 
na construção teórica gramsciana: a revalorização da noção de Estado e 
o conceito de hegemonia. De acordo com Gohn19, Gramsci foi o grande 
responsável por  tornar o Estado uma atraente arena para a  luta pela 
transformação  social, não apenas um mecanismo de dominação, mas 
um local que merecia ser redemocratizado e gerido de forma participa‐tiva, embasado nas forças organizadas da sociedade civil. Com o con‐
ceito de hegemonia, passou‐se a apreciar o conjunto de valores consi‐
derados  como  legítimo  no  interior  das  coletividades  por  oposição  à 
ideologia da  classe  burguesa. Assim, proporcionou‐se uma possibili‐
dade teórica para a transformação da ideologia nas classes formadoras 
da  sociedade  civil  que,  gradualmente,  poderiam mudar  a  sociedade 
política e as estruturas de Estado. 
2.4 Os pós-marxistas 
Podemos  citar,  entre  os  pós‐marxistas,  Theodor  Adorno  (Frankfurt, 
Alemanha  1903  –  Suíça,  1969), Hannah Arendt  (Hanover, Alemanha 
 
 
30 
1906 – Nova Iorque, EUA 1975),  Jürguen Habermas  (Düsseldorf, Ale‐
manha),  Ernesto  Laclau  (Buenos Aires, Argentina)  e Alain  Touraine 
(Paris, França)20. A principal crítica desse grupo dirige‐se à perspectiva 
reducionista do marxismo ao privilegiar uma classe específica como a 
propulsora de mudanças sociais, pressupondo que ela seria universal. 
Além disso, questionam, de forma ampla, o caráter antidemocrático do 
marxismo, defendendo a  tese de uma “democracia  radical” com pre‐
ponderância  em  valores  como  a dignidade  humana,  a  liberdade  e  o 
comunitarismo21.  Vários  dos  temas  abordados  por  esses  pensadores 
traduziram‐se em base  teórica para a ação de grupos  sociais e movi‐
mentos sociais. Em Hannah Arendt22, por exemplo, suas análises sobre 
o  totalitarismo  colocaram  a  dignidade  humana  como  um  valor  que 
deve preponderar nas relações sociais. 
Gohn23 coloca em evidência, nesse campo, em relação específica com os 
movimentos  sociais, Manuel Castells,  Jordi  Borja  e  Jean  Lojkine. De 
forma ampla, pois discutiremos Manuel Castells no âmbito do movi‐
mento ambientalista, o grupo preocupa‐se com os movimentos sociais, 
sua estrutura e o objetivo de sua incidência em um contexto de globa‐
lização,  de  um  capitalismo  transnacional,  da  emergência  de  novas 
identidades e a desconstrução do Estado‐Nação. Esses autores colocam 
o movimento social como parte da sociedade civil que incide de forma 
decisiva  sobre  as  organizações  políticas.  Outros  pensadores  que  se 
filiam à corrente neomarxista são os historiadores E. P. Thompson, Eric 
Hobsbawm e George Rude. É notável nesses autores a  forma como a 
construção  textual  do  livro  18  Brumário,  por  exemplo,  influenciou  a 
maneira como se tem escrito textos de análise de conjuntura e as impli‐
cações deles com a superestrutura. Além disso, noções como ideologia 
e hegemonia (assim, como contra‐hegemonia) podem ser identificadas 
em seus textos como instrumentos teóricos de análise e de diálogo com 
o campo teórico. 
(.) Ponto Final 
Os pensadores marxistas não conceberam uma teoria específica acerca 
dos movimentos sociais. Porém, ao se preocuparem em conferir visibi‐
lidade à exploração de classe, acabaram por forjar um referencial teóri‐
co  importante  como  estoque  analítico  dos  movimentos  de  massas. 
Como veremos adiante,  esses  conceitos  serão  retomados  e aprimora‐
dos por filósofos e pensadores que realmente estavam empenhados na 
elaboração de uma teoria acerca dos movimentos sociais. 
 
31 
Indicações culturais 
REDS.  Direção  e  produção:  Warren  Beatty.  Estados  Unidos:  Para‐
mount Pictures, 1981. (181 min.). Esse filme conta a história do jornalis‐
ta norte‐americano  John Reed  e mostra o quanto  a Revolução Russa 
impactou, também, o cenário político internacional. 
DOUTOR  Jivago. Direção: David Lean. Produção: David Lean e Carlo 
Ponti. Estados Unidos: MGM,  1965.  (201 min.). A  importância desse 
filme  está  na  forma  como  destaca  a mudança  estrutural  da  Rússia 
imperial em direção a um Estado comunista. Trata‐se de um romance 
que deixa explícito os valores sociais em choque e o quanto a adequa‐
ção das pessoas aos padrões morais da época era exigida, tanto por um 
quanto pelo outro  regime,  tanto pela estrutura  social  czarista quanto 
pelo projeto do Estado comunista. 
Atividades 
1) No que diz respeito à Teoria Marxista, de forma ampla podemos 
dizer: 
a) Não  fornece  recursos  analíticos  que  permitam  avaliar  os 
movimentos sociais contemporâneos 
b) Presta‐se apenas para analisar movimentos sociais de natu‐
reza sindical 
c) Teve seus referenciais analíticos atualizados de forma críti‐
ca por teóricos contemporâneos 
d) É  recurso  teórico datado que não  serve para  análises mo‐
dernas sobre os movimentos sociais 
2) Quais  dos  conceitos  a  seguir  perpassam  e  desempenham  papel 
central nas correntes marxistas clássicas? 
a) Classe social, vanguarda e sociedade civil 
b) Ideologia, sociedade civil e Estado Nacional 
c) Classe social, ideologia e alienação 
d) Hegemonia, alienação e classe social 
3) “Vanguarda” para Lenin: 
 
 
32 
a) diz respeito a um grupo de pessoas capazes de conduzir a 
classe proletária na tomada de consciência sobre sua aliena‐
ção social e da  importância de seu papel  frente à  transfor‐
mação do Estado Nacional 
b) não foi abordada por este autor 
c) valoriza uma camada de intelectuais que não deve interagir 
com a base de classe, e, sim, partir para ações isoladas 
d) é um grupo que  se origina da  classe burguesa e, por  isso, 
aperfeiçoa sua dominação frente à classe média 
4) Sobre o  conceito de  sociedade  civil, descrito por Gramsci, pode‐
mos dizer que: 
a) foi um conceito teórico formulado, na verdade, por K. Marx 
b) ela não  existe para Gramsci. Trata‐se de grupo pouco  im‐
portante e que desempenha um papel  insignificante na so‐
ciedade como um todo 
c) sociedade civil e sociedade política são termos sinônimos 
d) a  transformação dos valores hegemônicos na sociedade ci‐
vil,  com base nos valores  sociais que povoam o  cotidiano 
das classes populares, pode  tornar‐se o motor de  transfor‐
mação do Estado levando, assim, o povo a uma democracia 
social 
5) Um dos valores preponderantes nas análises dos pós‐marxistas é: 
a) o totalitarismo 
b) a dignidade humana 
c) o fortalecimento do Estado‐Nação 
d) a classe proletária como universal e homogênea em todo o 
mundo 
 
 
3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIOLÓGICA ESTADUNIDENSE 
Cíntia Beatriz Müller 
O objetivo deste capítulo é apresentar ao leitor as principais contribui‐
ções teóricas de pesquisadores estadunidenses para a análise dos mo‐
vimentos sociais – a Escola de Chicago – e a forma como até hoje influ‐
encia a análise dos movimentos sociais. 
Em linhas gerais, a escola estadunidense de Sociologia, que deu início 
à teorização sobre os movimentos sociais, recebeu influência da socio‐
logia clássica europeia. Para nossos estudos, iremos focalizar as contri‐
buições da Escola de Chicago, o caráter tributário dela, em relação ao 
paradigma do conflito de Simmel, a contribuição de Herbert Blumer e 
as etapas do processo de formação dos movimentos sociais. 
3.1 A “Escola de Chicago” na sociologia estadunidense 
A Universidade de Chicago foi fundada em 1895a. Nessa universidade 
foi criado o primeiro Departamento de Sociologia e a primeira revista 
de Sociologia dos Estados Unidos, a American Journal of Sociology, cujo 
primeiro diretor foi Albion Small. Uma das principais preocupações de 
pesquisa desse Departamento de Sociologia era com a compreensão e a 
intervenção em problemas sociais oriundos do acelerado processo de 
urbanização  pelo  qual  vinham  passando  as  cidades  americanas.  O 
primeiro  foco  foi  lançado  sobre  a  pobreza  e  a  imigração  entendidas 
como  problemas  sociais. Alunos  oriundos  desse  centro  de  pesquisa 
passaram  a  dirigir  outros  departamentos  de  sociologia  nos  Estados 
Unidos, notadamente na Columbia University e em Washington. 
Howard  Becker1,  pesquisador  formado  pela  “Escola  de  Chicago”, 
proferiu  conferência no Museu Nacional do Rio de  Janeiro  em  1990. 
Essa  conferência, na Revista Mana,  conforme  referência ao  finaldeste 
                                                                  
a Na mesma época, era fundada a Escola Americana de Antropologia, com a linha da Antropologia 
Cultural. Franz Boas foi um dos fundadores dessa escola, cujo pensamento influenciou diferentes centros 
de pesquisas nos Estados Unidos. (CASTRO, 2004). 
 
 
34 
livro, esclareceu, naquela oportunidade, qual o significado da expres‐
são “escola” para o contexto da Universidade de Chicago na primeira 
metade  do  século  passado.  Becker  destaca  que  existem  pelo menos 
duas concepções possíveis para o emprego da expressão “escola”: uma 
referindo‐se à escola de pensamento e a outra à  escola de atividade. Uma 
Escola de Pensamento é composta por pessoas. Nesse caso, pesquisa‐
dores e estudantes, que compartem uma mesma linha de pensamento, 
dividem conceitos e filiações teóricas em comum. Acredito que temos 
como exemplo de uma escola de pensamento, os núcleos de pesquisa 
que se reúnem em torno de um orientador específico, com o qual pas‐
sam  a  compartilhar  conceitos  e  referenciais  teóricos.  Esses  núcleos 
podem  ser  enquadrados na  classificação de  “escola de pensamento”.  
Já uma Escola de Atividade agrega pessoas que não partilham, neces‐
sariamente, a mesma filiação teórica, mas trabalham  juntas, desenvol‐
vem pesquisas que  se  complementam, discutem  sobre elas e buscam 
desenvolver  atividades  em  um  mesmo  espaço  acadêmico  comum. 
Howard Becker leva a crer que a Escola de Chicago estaria muito mais 
próxima da definição de “escola de atividade”, pois, em seu início, as 
pessoas não compartilhavam de um referencial  teórico comum ou da 
maioria das ideias predominantes no Departamento de Sociologia, mas 
a disposição de enfrentar questões consideradas problemas culturais. 
Uma das principais  influências  teóricas da Escola de Chicago  foi do 
sociólogo alemão Georg Simmel  (1858‐1918) com quem Robert Parkb, 
outro proeminente professor da universidade de Chicago, estudou em 
Heidelberg, na Alemanha. Georg Simmel, por sua vez, foi diretamente 
influenciado pela filosofia de E. Kant, F. Nitzsche e Goethe. Duas mar‐
cas  da  Sociologia  simmeliana  repercutiram  fortemente  na  Escola  de 
Chicago: a dimensão da proeminência do indivíduo sobre a “massa” e 
a do conflito social. Para Simmel, o indivíduo poderia possuir inúme‐
ras qualidades individuais, mas, paradoxalmente, quanto mais qualifi‐
cado esse indivíduo tornava‐se menor a possibilidade de que viesse a 
figurar uma unidade com outros indivíduos2. 
Assim conforme explica o autor3: 
a necessidade de prestar tributo às grandes massas – e sobretudo a necessidade de 
se  expor  continuamente  a  elas  –  arruína  facilmente  o  caráter:  ela  rebaixa  o 
indivíduo,  retirando‐o  da  posição  elevada  por  suas  formação  e  levando‐o  a  um 
ponto no qual ele pode adequar a qualquer um. 
 
                                                                  
b Ao tempo de Park, de acordo com Becker (1996) o departamento já reunia os cursos de sociologia e 
antropologia na Universidade de Chicago, o que fez com sua influência se estendesse, também, ao campo 
da antropologia. 
 
35 
Para Simmel, a “massa” não expressa o somatório de características de 
cada um que compõe o grupo, mas das partes em comum que unem as 
pessoas. Assim, nas análises de fenômenos de “massa”, seria possível 
identificar características individuais especiais nas pessoas que a com‐
põem e que não são, necessariamente, compartilhadas pelo grupo ou 
que se quer são percebidas e valorizadas pela “massa”. Por outro lado, 
há a dimensão do conflito, extremamente importante para a Teoria de 
Simmel. O conflito estabelece‐se, basicamente, nas relações entre indi‐
víduo  e  sociedade, uma  vez  que,  embora  a  sociedade  só  exista  com 
base em  indivíduos, ela também se contrapõe ao  indivíduo “com exi‐
gências e atitudes como se fosse um partido estranho”4. Nessa tensão, 
instala‐se o conflito.  Segundo Simmel5, a divergência entre indivíduo e 
sociedade alcança  seu ponto alto no momento em que “a  sociedade” 
busca  transformar cada  indivíduo em um simples membro da unida‐
de. A reação do  indivíduo é a da rebelião contra o papel socialmente 
construído com uma constante luta entre “a parte” – o indivíduo – e “o 
todo” – a sociedade. Essa noção da preponderância do papel do  indi‐
víduo sobre o da “massa” e a dimensão do conflito e da rebelião serão 
importantes para compreendermos a Escola de Chicago.  
No  que  tange  ao método de pesquisa,  a  escola  seguia diretrizes um 
tanto  ecléticas,  misturando  técnicas  qualitativas  e  quantitativas  de 
coleta  de  dados,  também  por  forte  influência  de  Robert  Park:  “se 
achasse que era possível mensurar alguma coisa, ótimo, se não  fosse, 
ótimo  também”,  conforme  comenta  Becker6.  Existia,  de  certa  forma, 
correlação entre a dimensão material dos problemas sociais e explica‐
ções teóricas. Por exemplo, a busca da compreensão de por que a cri‐
minalidade  concentrava‐se  em  determinados  pontos  da  cidade  em 
detrimento de outros, ou a própria delinquência juvenil como elemen‐
tos para a  elaboração da noção de “região moral” – “área da  cidade 
onde uma população se separa das demais”7. Por outro lado, os alunos 
de Park  também desenvolveram pesquisas qualitativas bastante pró‐
ximas da Etnografia e da Psicologia Social. Um dos maiores expoentes 
das  pesquisas  relacionadas  à  Psicologia  Social  foi  o  filósofo George 
Herbert Mead (ex‐aluno de Robert Park), cujo aluno mais influente foi 
Herbert Blumer, considerado como um dos principais teóricos sobre os 
movimentos sociais no âmbito da Teoria Clássica Estadunidense.8 
Herbert Blumer e sua contribuição para a análise dos movimentos 
sociais 
Herbert Blumer, além de  jogador profissional de  futebol, que passou 
um  ano  no  Brasil  nos  anos  de  1930,  excelente  teórico  da  Psicologia 
Social, veio a fazer parte do corpo docente do Departamento de Socio‐
 
 
36 
logia da Universidade de Chicago em um grupo que sucedeu Robert 
Park9. De acordo com Gohn10, Blumer construiu sua  teoria dos movi‐
mentos  sociais  com  base na  insatisfação  que  o  indivíduo  tem  com  a 
própria  vida  e  na  esperança  de mudá‐la,  de  transformá‐la.  Blumer 
dividiu  os movimentos  sociais  em  três  grupos:  genéricos,  específicos  e 
expressivos. De certa  forma, ao buscarmos compreender como Blumer 
constrói sua classificação dos movimentos sociais, devemos ter presen‐
te a teoria simmeliana da qual ele era um tributário. 
Os Movimentos Genéricos  seriam aqueles organizados no  sentido de 
provocar mudanças nos valores  individuais. Essas  transformações de 
valores  podem  ser  chamadas  de  “tendências  culturais”,  conforme 
Gohn11.  Trata‐se  de  um  processo  de  transformação  que  passa  pela 
dimensão  do  indivíduo  e  de  como  ele  encara  a  si mesmo,  fazendo 
emergir novos valores e  considerações acerca de  seus direitos  civis e 
políticos. Assim, os movimentos sociais de caráter genérico operariam 
em  uma  dimensão  individual  que  não  deixaria  de  ser  psicológica, 
sendo verdadeiros  indicadores de novas  tendências, mesmo que des‐
providos de uma  organização mais  sistemática  ou de  objetivos mais 
específicos. Um dos exemplos é o da emancipação das mulheres, com 
um  caráter pouco específico, porém  congruente  com a  fase  inicial da 
mobilização quando a ação dos grupos era propriamente pouco orga‐
nizada. 
As mulheres sufragistas da década de 30 
 
 
Gohn12  também apresenta que os movimentos  chamados por Blumer 
de Movimentos  Expressivos  são  os  constituídos  por  aqueles  grupos 
que não se encontram necessariamente comprometidos com objetivos 
de mudança ou transformação social. Esses grupos encontram‐se com‐
 
37 
prometidos com a disseminação de ideias que permeiam toda a socie‐
dade (exemplos seriam osmovimentos religiosos e aqueles vinculados 
à moda), mas podem ser capazes de ditar “tendências”, ou seja, influ‐
enciar sem que, com isso, assumam um papel de transformar os objeti‐
vos de cunho social de outros movimentos. 
Já os Movimentos Específicos,  segundo os  estudos de Gohn13,  repre‐
sentariam um momento seguinte ao genérico, quando as insatisfações 
e demandas  já  estariam  consolidadas. Nessa  fase do movimento,  há 
um sentido de  identidade de grupo constituído de forma que as  lide‐
ranças e os membros deles teriam capacidade de reconhecer os símbo‐
los e sinais que especificariam os membros do grupo. 
Para Blumer citado por Gohn14, os movimentos sociais desenvolvem‐se 
em um processo com cinco fases ou estágios: 
a) AGITAÇÃO: neste momento, novas demandas, impulsos e neces‐
sidades são identificados. É nesse momento que o movimento co‐
meça a traçar seus objetivos e direções. O agitador tem um papel 
estratégico e positivo, sendo ele o responsável por conduzir e ini‐
ciar o processo de transformação social que enseja o movimento. 
b) EXCITAÇÃO  OU  DESENVOLVIMENTO  DO  ESPIRIT  DE 
CORPS: este estágio diz respeito ao sentimento de coesão e solida‐
riedade  do  grupo  que  é  formado  e  compartilhado  por meio  do 
processo de  formação do grupo. Gohn  elenca  três  estratégias de 
formação dos “espírito de corpo” do grupo: “relação do grupo a 
grupo de uma mesma categoria”; “relacionamentos informais de‐
senvolvidos em associação”; e, “as cerimônias  formais em que se 
cristalizam certos comportamentos”. 
c) DESENVOLVIMENTO DE UMA MORAL:  trata‐se da consolida‐
ção de símbolos por  intermédio dos quais valores são expostos e 
reafirmados.  São,  por  exemplo,  símbolos  como  bandeiras,  insíg‐
nias, textos, ou seja, o conjunto de ideias que organiza os objetivos 
fundantes  do  grupo  e  os  princípios  compartilhados  por  seus 
membros. 
d) DESENVOLVIMENTO DE UMA  IDEOLOGIA: a  ideologia confi‐
gura a forma como o grupo vê certas questões, como avalia o pro‐
blema  e  formula  sua  resolução.  É  espelhada  pelo  conjunto  de 
crenças do grupo, que encontra eco tanto em lendas e mitos quan‐
to no conjunto de textos que reflete suas ideias. 
 
 
38 
e) DEFINIÇÃO  DE  OPERAÇÕES  TÁTICAS:  este  último  estágio  é 
aquele que estabelece ações pelas quais o grupo  irá movimentar‐
se. As táticas podem ser de adesão, manutenção (dos adeptos) e de 
especificação dos objetivos. 
É importante destacar que Gohn traz ao seu texto comentários sobre a 
produção teórica de Herbert Blumer a partir de textos originais: Collec‐
tive Bahavior  (1939) e Social Movements  (1951), ou seja,  textos que ocu‐
pam um lugar dentro do contexto de produção da Escola de Chicago e 
da teorização estadunidense. É importante termos presente que, como 
destaca Becker15, Blumer veio ao Brasil na década de 30 e, em conse‐
quência disso, muitos  brasileiros  foram  estudar nos Estados Unidos. 
Há, portanto, repercussão de suas ideias no campo da Sociologia brasi‐
leira ainda nos anos 2000,  inclusive, no que diz respeito às etapas do 
processo de formação dos movimentos sociais. Por exemplo, o manual 
de Sociologia Geral, de Lakatos e Marconi16 define os seguintes estágios 
dos movimentos  sociais,  que  lembra muito  a  divisão  de  etapas  de 
Blumer, o que demonstra a atualidade desse tipo de esquema de análi‐
se: Agitação  (inquietação ou  intranquilidade); Excitação  (excitamento 
ou desenvolvimento do espirit de corps); Formalização (desenvolvimen‐
to da moral e da ideologia ou planejamento). 
(-) Ponto Final 
Neste capítulo, procuramos destacar o significado da Escola de Chica‐
go na formulação de teorias clássicas da Sociologia estadunidense bem 
como sua formação e influência teórica por parte do sociólogo alemão 
Georg Simmel. Além disso, apresentamos ao leitor como os teóricos ali 
formados  formularam  explicações  sobre  os movimentos  sociais.  Por 
fim, expusemos a teoria de Herbert Blumer que formulou uma tipolo‐
gia de classificação dos movimentos sociais e identificou os estágios de 
desenvolvimentos dos mesmos. 
Indicações culturais 
FREITAS, Wagner Cinelli. Espaço urbano e criminalidade: Lições da esco‐
la de Chicago. São Paulo: Método, 2004. Neste livro, bastante recente, o 
leitor encontra mais informações sobre a Escola de Chicago, sobre seus 
estudos urbanos relacionados à criminalidade e à organização espacial 
da cidade. O autor apresenta, ao final de seu livro, um estudo aplicado 
às cidades brasileiras a partir da teoria desenvolvida por Robert Park e 
Ernet Burguess. Embora trate do tema da criminalidade, o livro é rica 
fonte de informações sobre a Escola de Chicago como local de produ‐
ção teórica. 
 
39 
MAGNANI, José Guilherme Cantor. A antropologia urbana e os desa‐
fios da metrópole. Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 1, abr. 2003. Dispo‐
nível em: 
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103‐
20702003000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 jul. 2008. Neste 
artigo, o leitor encontra orientações sobre a realização de trabalho de 
campo no âmbito dos contextos urbanos, que podem auxiliar na elabo‐
ração de futuras pesquisas sobre o tema dos movimentos sociais urba‐
nos. Nesse texto, o autor destaca o ineditismo dos trabalhos de campo 
da Escola de Chicago no âmbito da própria tradição antropológica. 
Atividades 
1) Marque a resposta que completa o cabeçalho do exercício. A Esco‐
la de Chicago, quando se sua criação, sofreu influência do: 
a) forte processo de interiorização da população estadunidense 
no início do século XX 
b) acelerado fenômeno de urbanização pelo qual passou a cida‐
de de Chicago que  também recebeu grande número de  imi‐
grantes 
c) pensamento filosófico francês do final do século XIX 
d) pensamento latino‐americano acerca dos movimentos sociais 
2) H. Becker diferencia “escola de pensamento” de “escola de ativi‐
dades”. Para esse autor, uma “escola de atividades” é aquela: 
a) em que os pesquisadores devem compartilhar a mesma base 
teórica e conceitual 
b) em  que  todos  tomam  um mesmo  referencial  teórico  como 
ponto de partida de suas análises 
c) em que os pesquisadores compartilham um mesmo universo 
de pesquisa, que elaboram estudos que se complementam e 
que acabam por colaborar mutuamente ao longo de seus es‐
tudos 
d) em  que  todos praticam  apenas  técnicas de  coleta de dados 
qualitativas  e  etnográficas  deixando  de  lado  investigações 
cujos dados possam ser aferidos quantitativamente 
 
 
 
40 
3) A teoria de George Simmel influenciou a Escola de Chicago: 
a) em suas concepções de “massa” e indivíduo e na valorização 
do conflito como tensão que se origina da relação do indiví‐
duo com as forças sociais 
b) quanto ao conceito de classe social e sociedade civil 
c) tendo Simmel, que foi professor de H. Blummer e o orientou 
em suas pesquisas nos Estados Unidos 
d) de forma superficial, com a tese de que tiveram pouca reper‐
cussão no desenvolvimento teórico em Chicago 
4) Os  movimentos  sociais  considerados  “genéricos”  por  Herbert 
Blumer são capazes de potencializar  transformações sociais. Essa 
mudança de valores pode ser chamada de: 
a) tendências radicais 
b) tendências culturais 
c) Escola de Chicago 
d) estudos urbanos 
5) Herbert Blumer especifica cinco estágios no processo de desenvol‐
vimento dos movimentos sociais. Essas fases são interdependentes 
e denominadas, respectivamente: 
a) desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimento de uma 
moral; desenvolvimento de uma ideologia; formulação de tá‐
ticas; agitação 
b) desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimento de uma 
moral; agitação; desenvolvimento de uma  ideologia;  formu‐
lação de táticas 
c) desenvolvimento do espírit de corps; agitação; desenvolvimen‐
to de uma moral; desenvolvimento de uma ideologia; formu‐
lação de táticas 
d) agitação; desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimen‐
to de uma moral;desenvolvimento de uma ideologia; formu‐
lação de táticas 
 
 
4 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA EUROPA PÓS-ANOS 60 
Cíntia Beatriz Müller 
Os novos movimentos sociais (NMS) marcaram a Europa após os anos 
de  1960  e  demonstraram  a  insuficiência  teórica  dos  referenciais  de 
análise marxistas  clássicos  e norte‐americanos para  explicar  suficien‐
temente os novos acontecimentos. Alain Touraine dedicou‐se a estudos 
sociológicos sobre a  realidade de vida de  trabalhadores e estudantes, 
foi  influenciado  pelos  eventos  de  1968,  uma  série  de  protestos  nos 
quais os estudantes tomaram a frente em suas reivindicações. Para esse 
autor, o principal conceito a ser apreendido no estudo dos movimentos 
sociais é o de ação, em oposição a um sistema dominante constituído. 
Já Melucci, priorizou a construção de suas análises a partir de estudos 
realizados em sindicatos e formas de participação política. Trata‐se de 
um pensador criativo que buscou em suas análises explicitar relações 
de desigualdade naturalizadas na  sociedade a partir de  suas análises 
empíricas. 
4.1 Parâmetros gerais dos NMS 
Maria  da  Glória  Gohn1  aponta,  com  bastante  perspicácia,  algumas 
características dos NMS: 
1) A  RETOMADA  DA  CULTURA  COMO  UM  CONCEITO  CEN‐
TRAL. Cultura é uma palavra polissêmica, ou seja, tem múltiplos 
significados. Ela pode fazer referência tanto ao cultivo de plantas, 
quanto ao grau intelectual de determinada pessoa ou, o que é mais 
corrente entre nós, ao conjunto de símbolos capaz de transmitir in‐
formações, capaz de potencializar a comunicação entre as pessoas. 
No âmbito dos movimentos sociais, o significado da palavra “cul‐
tura” aproxima‐se da “ideologia”, sem que esta última esteja, ne‐
cessariamente, atrelada a uma perspectiva de classe como na Teo‐
ria Marxista. 
 
 
42 
2) SUPERAÇÃO  DO  PARADIGMA  DE  ANÁLISE  MARXISTA 
CLÁSSICO.  A  perspectiva  teórica marxista  clássica  leva  a  uma 
análise macrossocial que, de certa  forma, homogeneíza a diversi‐
dade que compõe os movimentos sociais. Além disso, a ênfase na 
análise economicista das disputas torna invisível o campo da polí‐
tica e da cultura, por exemplo, e anula o poder criativo do indiví‐
duo,  ou  o    ator  social,  que permanece  refém da macroestrutura 
econômica. 
3) SUPRESSÃO DO GRUPO DE VANGUARDA. Os NMS marcam a 
emergência de atores difusos e que  se organizam de  forma não‐
hierarquizada. “A nova abordagem elimina a centralidade de um 
sujeito específico, predeterminado, e vê os participantes das ações 
coletivas como atores sociais”2. Portanto, a construção dos eixos de 
atuação dos NMS é feita em diálogo e não mais baseada em uma 
perspectiva  iluminista,  na  qual  uma  parcela  do movimento  era 
capaz de ditar tendências de atuação ao grupo. A liderança passa 
a desempenhar um papel mais fluido, volátil, que se estabelece ao 
longo da atuação em vez de um corpo técnico consolidado. 
4) VALORIZAÇÃO DO CAMPO  POLÍTICO. A  política,  nos NMS, 
assume um caráter de  suma  importância, pois deixa de ser vista 
como algo distanciado do ator, próprio do Estado. A perspectiva 
da política, agora, assume  sua condição de prática cotidiana que 
envolve  a  todos. A política passa  a  ser  analisada  como vetor de 
forças que perpassa  toda a sociedade civil e não apenas os negó‐
cios de Estado. 
5) ÊNFASE NA ANÁLISE DA AÇÃO E DA  IDENTIDADE COLE‐
TIVA AFIRMADA. A valorização  recai sobre a  identidade que o 
grupo  luta em afirmar e não mais em algo externo que é  social‐
mente  imposto a  ele. É  justamente a  luta pelo  reconhecimento  e 
pela afirmação das identidades que marca a coesão social do gru‐
po, define seus limites (de inclusão e exclusão) e aponta o rumo de 
sua ação coletiva. O olhar do pesquisador volta‐se para o conjunto 
de  ações  implementado no processo de  construção dessa  identi‐
dade, para assim, apreender seu significado e os sentimentos que 
evoca. 
O  conjunto de  características  elencadas por Gohn demonstra que  al‐
gumas  categorias  analíticas  continuam  sendo  empregadas:  ideologia, 
sociedade civil, lutas sociais e solidariedade. Na verdade, a análise dos 
NMS propõe o deslocamento do olhar da macroestrutura para a mi‐
croestrutura, ou seja, resgata o valor do cotidiano, das ações individu‐
ais  e  das  vontades  que movem  o  sujeito  no  interior  do  grupo.  Essa 
 
43 
nova perspectiva, na verdade,  toma alguns  referenciais de análise da 
corrente  estadunidense.  Os  interacionistas  simbólicos,  notadamente 
Erving Goffman, demonstravam interesse na forma de construção das 
identidades individuais. 
Passaremos  a  analisar  o  referencial  de  dois  teóricos  emblemáticos 
Alain Touraine  e Alberto Melucci. Ambos  abordam o  fenômeno dos 
NMS a partir de perspectivas distintas, mas complementares. 
Alain Touraine: o ator retorna à cena 
Alain Tourainea (1925‐ ) é um pesquisador que, ainda hoje, encontra‐se 
elaborando suas ideias de forma crítica. Filiado à tradição teórica fran‐
cesa,  retomou  conceitos  e  ideias  de  outros  pensadores  dessa  escola 
sociológica,  como Sartre, ao  trabalhar a noção de projeto3. A aborda‐
gem  empregada  por  Touraine  em  sua  análise  sobre  os movimentos 
sociais é denominada acionalista, pois: “o axioma aí implícito enfatiza 
o  comportamento  social, ou  seja, a  conduta dos  indivíduos  e grupos 
em termos de conflito ou de integração”4. Um dos méritos que Tourai‐
ne foi o de trazer o sujeito, denominado ator, como elemento dinâmico 
da história, verdadeiro agente de transformação social. 
Touraine5 parte em sua análise que retoma o protagonismo do ator, da 
constatação de que a sociedade enriquece‐se com a diversidade e que 
as decisões políticas e econômicas escapam cada vez mais do controle 
absoluto dos Estados nacionais. A racionalidade que deveria reger as 
ações sociais perde  terreno para o desenraizamento e a  instabilidade. 
As sociedades modernas passam a ser vistas como espaço de expressão 
da  liberdade da  criatividade humana. Para o autor,  sociedade “é um 
conjunto  de  regras,  de  costumes  e  de  privilégios  contra  os  quais  os 
esforços criadores,  individuais e coletivos,  têm de continuar a  lutar”6. 
A ênfase aqui é dada à  liberdade, pois é ela que confere ao  sujeito a 
possibilidade de  livrar‐se dos “princípios  transcendentes” e dos valo‐
res  comunitários. O  protagonismo  do  sujeito,  como  agente  transfor‐
mador da História, desloca a atenção das ações do Estado como tal.  
O  sujeito é alguém criativo e não pode mais  ser definido por  termos 
históricos, pois é capaz de escolher sua própria lógica organizativa e os 
processos nos quais se quer engajar, em suma é o agente que constrói a 
história.  História,  para  Touraine,  significa  “o  conjunto  de  modelos 
culturais, cognitivos, econômicos, éticos, pelos quais uma coletividade 
constrói suas relações”7. Touraine continua, explicando que a história, 
                                                                  
a Para saber mais sobre a Democracia na América Latina, acesse: 
<http://www.dhnet.org.br/tecidosocial/anteriores/ts101/entrev_alain_touraine.htm>. 
 
 
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assim, é um conjunto de orientações culturais, cujos valores são seleci‐
onados  e  impostos  pelo  grupo  dirigente  à  população.  O  conflito,  a 
ação,  acontece  no momento  em  que  grupos  subordinados  passam  a 
lutar pelo controle e pela autonomia de sua própria historicidade (con‐
junto de modelos culturais) para livrar‐se do conjunto de valores esta‐
belecidos  pelo  grupo dirigente. O  autor destaca  que  não  se  trata de 
classes sociais em disputa. Nesse caso, a disputa é pela autonomia na 
construção de  sua própria historicidade, na qual o modelo cultural é 
transformado em sistema de relações sociais assimétricas, de domina‐
ção e de exercício de poder. 
Para Touraine, existem quatro espécies de condutas coletivas:

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