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TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. APRESENTAÇÃO Os movimentos sociais sempre foram considerados como uma reação de protesto contra opiniões, posições e ações que se avaliavam como injustas. Assim, escrever sobre os movimentos sociais é mergulhar também nas relações sociais de cunho histórico que os ensejaram, e este é um dos desafios ao estudar‐se o tema. Em uma sociedade globa‐ lizada, as interconexões existentes entre atores globais e locais, na trama de relações, são explícitas. Fatos que ocorrem nos Estados Uni‐ dos, como os ataques de 11 de setembro de 2001, acarretam reações em escala global cujos reflexos incidem nas esferas pública e privada local, em diferentes países, mesmo passados alguns anos. Os jogos de escala levam‐nos, muitas vezes, a questionar a proporção que adquire o “local”. E o “local”, no plano dos movimentos sociais, é algo muito sério. Como veremos, as mobilizações “locais” em torno das associações de bairro foram estratégicas para a retomada da mobi‐ lização popular, ao longo dos anos 1970 do século XX, no Brasil, em pleno regime ditatorial. Por outro lado, um movimento nacional, como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), mantém sua atuação em escala nacio‐ nal, sem se descuidar das estratégias de luta que são peculiares a cada região do país e às demandas de cada comunidade de quilombolas envolvidas no movimento. Esse é um trabalho hercúleo, dadas as dis‐ tinções quanto às relações políticas “locais” e às demandas da esfera federal do Estado Nacional. Este livro oferece ao leitor um plano de estudo que o levará a uma primeira aproximação com o tema dos movimentos sociais. Trata‐se de material que pretende muito mais instigar a busca por respostas, ofere‐ cer ferramentas para uma análise crítica em torno do assunto e indica‐ ções, a fim de que, no futuro, o leitor possa estabelecer contato com atores dos próprios movimentos sociais e, quem sabe, interessar‐se em aprofundar seus estudos. Assim, o material aqui apresentado não pretende ser exaustivo ou completo. Muito pelo contrário: desconfiem da obra sobre movimentos sociais que se diga completa. 6 As discussões em torno dos movimentos sociais são discussões em constante transformação, seja no plano prático ou no plano analítico. Dentre os autores que têm produzido teoria acerca dos movimentos sociais, destacamos a professora Maria da Glória Gohn, referência constante neste e em qualquer trabalho relativo aos movimentos soci‐ ais. O trabalho da professora merece destaque não só pelo detalhismo teórico, mas também pelo rico trabalho de pesquisa empírica com os movimentos sociais, em especial na cidade de São Paulo. Pedimos aos leitores que encarem este pequeno manual como um apanhado sobre o tema, com dicas para leitura e filmes que ilustram pontos importantes do tema estudado em cada capítulo. Fizemos um certo esforço para utilizar referências bibliográficas e tecer sugestões de vídeos e textos disponíveis na internet, o que possibilitará ao leitor pesquisar sem se deslocar de seu local de estudo. Também trouxemos aqui sugestões de filmes atuais produzidos e dirigidos por pessoas de forte apelo popular no meio artístico. Gostaríamos de dizer que isso foi feito em consideração ao leitor, no sentido de apresentar opções co‐ merciais de dicas culturais que imaginei serem de fácil acesso nos lugares onde apenas o curso a distância tem oportunidade de chegar. O livro se encontra dividido em duas partes. Na primeira, discorremos sobre o referencial teórico de análise acerca dos movimentos sociais ao longo da história. Por fim, abordamos como os novos movimentos sociais têm‐se organizado em torno de suas reivindicações, apresen‐ tando ao leitor os movimentos ambientalista, feminista, as lutas pelo reconhecimento e as lutas pela conquista do espaço. Esperamos que essa sistematização forneça ao leitor meios para se situar criticamente no campo teórico dos movimentos sociais e desperte nele o interesse em buscar mais informações do que as apresentadas neste manual. SOBRE O AUTOR Cíntia Beatriz Müller Cíntia Beatriz Müller possui graduação em Direito pela Universidade Lutera‐ na do Brasil (1997), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia do Direito, atuando principal‐ mente nos seguintes temas: grupos étnicos, remanescentes de quilombos, antropologia do direito, antropologia e direitos étnicos. É professora de antro‐ pologia e sociologia política na Universidade Federal da Grande Dourados no Mato Grosso do Sul. SUMÁRIO 1 MOVIMENTOS SOCIAIS: INTRODUÇÃO ............................................................. 13 1.1 Os movimentos sociais como movimentos revolucionários ......................... 13 1.2 Os movimentos sociais na América Latina ................................................ 16 ( . ) Ponto Final ............................................................................................. 20 Indicações Culturais ..................................................................................... 20 Atividades .................................................................................................... 21 2 TEORIA DOS MOVIMENTOS: O PARADIGMA MARXISTA ............................... sse 24 2.1 Contribuições das teorias marxistas ......................................................... 24 2.2 Algumas ideias de Lenin e a importância desse ideário para a análise sobre os movimentos sociais .................................................................................. 26 2.3 Contribuições de Gramsci para a análise dos movimentos sociais .............. 28 2.4 Os pós-marxistas ..................................................................................... 29 (.) Ponto Final ............................................................................................... 30 Indicações culturais ..................................................................................... 31 Atividades .................................................................................................... 31 3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIOLÓGICA ESTADUNIDENSE .............................................................................................. 33 3.1 A “Escola de Chicago” na sociologia estadunidense ................................. 33 (-) Ponto Final ............................................................................................... 38 Indicações culturais ..................................................................................... 38 Atividades .................................................................................................... 39 10 4 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA EUROPA PÓS-ANOS 60 ........................... 41 4.1 Parâmetros gerais dos NMS ..................................................................... 41 (.) Ponto final ............................................................................................... 46 Indicações culturais .....................................................................................47 Atividades .................................................................................................... 47 5 MOVIMENTOS SOCIAIS: AS REDES DE ORGANIZAÇÕES E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IDENTIDADE ................................................................................................ 50 5.1 O conceito de rede na antropologia dos Estados Unidos e na britânica ....... 50 5.2 A globalização e a reconfiguração dos Estados Nacionais ......................... 51 5.3 Atores sociais em busca de uma identidade .............................................. 54 (.) Ponto final ............................................................................................... 56 Indicações culturais ..................................................................................... 56 Atividades .................................................................................................... 57 6 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: LUTA POR RECONHECIMENTO ......................... 60 6.1 A luta pelo reconhecimento impulsionada pela construção social da identidade .................................................................................................... 60 6.2 A construção social da diferença no Brasil: o racismo à brasileira ............. 62 (.) Ponto final ............................................................................................... 67 Indicações culturais ..................................................................................... 68 Atividades .................................................................................................... 69 7 MOVIMENTOS SOCIAIS: MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL ........................... 71 7.1 O movimento feminista no Brasil .............................................................. 71 (.) Ponto final ............................................................................................... 75 Indicações culturais ..................................................................................... 76 Atividades .................................................................................................... 77 8 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: O SOCIOAMBIENTALISMO ............................... 79 8.1 O movimento ambientalista e a Ecologia .................................................. 79 (.) Ponto final ............................................................................................... 83 11 Indicações culturais ..................................................................................... 84 Atividades .................................................................................................... 85 9 MOV. SOCIAIS E A LUTA PELO ESPAÇO: A INTERAÇÃO RURAL E URBANA ......... 88 9.1 As raízes históricas da desigualdade no meio rural ................................... 88 9.2 O processo de urbanização das cidades: o urbano e o rural se encontram .. 94 (.) Ponto final ............................................................................................... 97 Indicações culturais ..................................................................................... 97 Atividades .................................................................................................... 98 REFERÊNCIAS NUMERADAS ............................................................................ 101 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 104 GABARITO ...................................................................................................... 108 1 MOVIMENTOS SOCIAIS: INTRODUÇÃO Cíntia Beatriz Müller O objetivo deste capítulo é, além de oferecer subsídios históricos que possam contextualizar o leitor nos fatores que levaram ao início das mobilizações populares desde o século XVI até o século XVIII, apresen‐ tar ao leitor de que forma a Teoria dos Movimentos Sociais foi incorpo‐ rada às análises latino‐americanas sobre o fenômeno e como, ainda hoje, as teorias sobre os Novos Movimentos Sociais oferecem oportu‐ nidades para a construção de novas concepções teóricas. 1.1 Os movimentos sociais como movimentos revolucionários Nos séculos XVI e XVII, a Europa vivenciou o advento do regime de economia capitalista. Esse período foi marcado pelo renascimento do comércio em sua escala mundial, pelo crescimento das cidades, pela expulsão dos camponeses do meio rural, pela queda do absolutismo e pelo fortalecimento da burguesia e o início do desenvolvimento da indústria.1 Particularmente, no que diz respeito ao processo de indus‐ trialização que ocorreu na Europa, tendo em vista o grande exército de reserva de mão de obra oriundo do êxodo rural paupérrimo que se aglomerava nas cidades emergentes, a troca de mercadorias propiciou o acúmulo de capital necessário para alavancar uma industrialização incipiente2. O fortalecimento do papel do comerciante que intermedia‐ va a troca de mercadorias tirou da mão do artesão o monopólio da venda do produto que se fortaleceu à medida que o mercado expan‐ dia‐se. 14 Comércio medieval Em termos de técnica de produção, identificamos a transição do arte‐ sanato para a manufatura e o sistema fabril. O sistema fabril emerge da demanda pelo aumento de produção, impossível de ser suprido no sistema de manufatura, e pelo aperfeiçoamento da tecnologia de pro‐ dução. Pereira3 afirma que, com isso, a produção doméstica e o artesa‐ nato tornaram‐se cada vez mais rarefeitos. O incremento do comércio, impulsionado pelas Cruzadas, foi correlato ao crescimento das cidades ou burgos. Segundo o mesmo autor, tal local era fundamental para a realização dos atos de comércio e a circulação de mercadoria, o que o transformou em local privilegiado para receber a mão de obra oriunda do campo. Ainda em Pereira tem‐se que, notadamente, este foi um período de grandes conflitos, no qual os servos revoltavam‐se contra seus antigos senhores feudais, entre eles, a própria Igreja. Essas revol‐ tas davam‐se pela expulsão dos camponeses do campo, uma vez que a necessidade de produção e do comércio de alimentos levou os senho‐ res a realizarem cercamentos a esses burgos, e pela busca da liberdade, já que a condição de servos impunha uma série de restrições à liberda‐ de pessoal dos camponeses. Nos séculos seguintes, XVIII e XIX, é que ocorre, de fato, a chamada Revolução Industrial européia (Inglaterra – XVIII e Alemanha – XIX)4. Essa forma de “revolução” concentrou o capital na burguesia, classe emergente liberal que surgiu com o fortalecimento das cidades e do comércio, o que colocou o proletariado em extrema relação de depen‐ dência. Os trabalhadores eram submetidos a “moradias superlotadas, escuras e insalubres, jornadas de trabalho de até dezesseis horas diá‐ rias, condições alarmantes de trabalho, crianças fora da escola, traba‐ lhando longos períodos, em péssimas condições”5. Com base nessas condições pouco humanas de trabalho, iniciou‐se a reação dos trabalhadores, num primeiro momento quebrando máqui‐ 15 nas, realizando protestos pela diminuição da jornada de trabalho e aumento salarial e organizando sindicatos. Logo depois, eclodindo nos protestos violentos dos quais podemos citar o de 1871, chamado a Comuna de Paris, que durou 72 dias. Essas posições antagônicas entre a classe proletária e a classe burguesa (outrora aliadas para a derruba‐ da do absolutismo durante a Revolução Francesa)6 fizeram emergir o socialismo que pregava a transformação social em benefício dos mais pobres, no caso, o proletariado. Comuna de Paris Do ponto de vista clássico das teorias de análise dos movimentos soci‐ ais, a correlação entre o método de ação dos movimentos e as ações radicais de violência advinhada realidade das revoluções. Tanto as revoluções europeias (como a Francesa e a Russa) ou os movimentos pela independência na América (Estados Unidos) são exemplos de mobilizações sociais nos quais ocorreram batalhas, ações de guerrilha, atos violentos de depredação de bens particulares e públicos, e longos períodos de luta. Um dos mais representativos teóricos dos movimentos sociais, Alain Touraine, fornece‐nos o contexto básico sobre o tema: “Entendo, em princípio, por movimentos sociais a ação conflitante de agentes das classes sociais lutando pelo controle do sistema histórico”7. Destaca‐ mos, no conceito desse autor, a ênfase dada às noções de conflito, clas‐ ses sociais e controle do sistema histórico. Touraine pode ser conside‐ rado um pós‐marxista (como veremos no capítulo seguinte) e, como tal, sua construção teórica baseia‐se na ênfase no conflito como a ideia de luta, de movimento de oposição coletiva a uma forma de opressão instaurada. Além disso, o conceito de classe social é importante para o autor, uma vez que esse conceito é o motor de transformação histórica da sociedade. A coletividade organizada investe, nos moldes clássicos, 16 pela tomada do controle. Assim, faz parte do projeto do grupo colocar suas concepções no lugar daquelas pré‐existentes. De acordo com Touraine8, há movimentos coletivos de resistência à opressão, e de outra monta, os que exercem pressão para a dissemina‐ ção de visões de classe sobre o sistema. Essa distinção é estratégica para identificarmos se o movimento social incide sobre o sistema en‐ quanto instituição ou enquanto organização. As análises clássicas lan‐ çam seu olhar sobre os movimentos sociais que incidem sobre o siste‐ ma institucional, isto, pois, de acordo com as ideias clássicas advindas do marxismo – parte do projeto dos movimentos sociais é a conquista dos aparelhos do Estado enquanto instituição. Isto só é possível após a mobilização coletiva eficaz, ou seja, “a transformação do conflito social em luta contra o poder estabelecido”9. Dessa forma, o autor enfatiza a necessidade de que ações isoladas sejam traduzidas em formas de ação coletivas, ou seja, que o mote de mobilização e os argumentos de reivindicação sejam compartilhados. 1.2 Os movimentos sociais na América Latina A corrente de pensamento marxista teve grande repercussão no cená‐ rio latino‐americano até os anos 70 do século XX. Problemas sociais desencadeados pela concepção de desenvolvimento, dependência e modernização, propagados na época, forneceram as bases para uma oposição consubstanciada na transformação social que se opunha a tais modelos. A América Latina desse período sofria com a ditadura militar em vários países, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. No âmbito desses governos, a política desenvolvimentista acarretou a modificação abrupta da forma de vida, principalmente de povos tradicionais (como grupos indígenas) e da população do campo. O grande êxodo rural, que ocorreu na época, marcou o monopólio da terra nas mãos de pou‐ cos e o inchaço desproporcional da periferia das grandes cidades. Cortadores de cana‐de‐açúcar no interior do Brasil 17 O modelo de modernização que abria as portas ao investimento do capital estrangeiro no país retribuía com a oferta de mão de obra bara‐ ta e sem especialização e capital monetário oriundo de empréstimos tomados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Com isso, o caráter de dependência econômica dos países da América Latina em relação ao capital estrangeiro e às novas tecnologias importadas do exterior fazia com que a camada dominante da sociedade nacional, notadamen‐ te aquela que se originou no bojo de uma sociedade escravista, perpe‐ tuasse sua forma de governar e sua dominação sobre as classes subal‐ ternas. O modelo de modernização implementado nos anos 50 e 60 no continente era eminentemente europeu, ou seja, tomava por base um capitalismo histórico maduro concebido por países que, ao longo do colonialismo, desempenharam o papel de metrópoles10. Dessa forma, a América Latina era constantemente vista como atrasa‐ da. No entanto essa contradição era inerente ao modelo de moderniza‐ ção eleito que mantinha os laços de dominação consolidados ao longo do regime colonial. Notadamente Fernando Henrique Cardoso, citado por Gohn, ao desenvolver uma teorização sobre a dependência “cha‐ mou atenção para as especificidades da América Latina, argumentan‐ do que nela o desenvolvimento deveria ser visto no contexto da dinâ‐ mica global da economia”11. Essa nova teorização sobre a América latina abriu margem para uma análise crítica sobre os modelos teóricos majoritários e fomentou novas abordagens sobre o modelo de moder‐ nização. Scherer‐Warren12 explicita que, nesse período, os estudiosos da Teoria Social Latino‐Americana, de inspiração francamente marxista, tomam consciência de que, na América Latina, a formação de grupos com o caráter de classes sociais, tal qual a conotação europeia do conceito, dificilmente seriam formados a partir da experiência histórica latina, de uma realidade pós‐colonial. Isso se deu em função das especificida‐ des históricas do continente latino‐americano, em especial, cuja estru‐ tura social originou‐se de uma situação colonial em que povos autóc‐ tones foram dizimados e colocados em franca situação de dominação ao longo de séculos. Assim sendo, o Estado assume um caráter estraté‐ gico frente aos movimentos sociais, pois é o governo que define os parâmetros e os rumos políticos de cada país, possuindo, por isso, sua sociedade política, potencial de transformação. Gohn13, contudo, destaca que não existe um “paradigma teórico pro‐ priamente dito” sobre os movimentos sociais latino‐americanos. No Brasil, como em todo o mundo, o modelo clássico inicial que visava formular uma referência explicativa e um projeto de ação para os mo‐ 18 vimentos sociais foi o modelo teórico marxista, ressaltando‐se a in‐ fluência de Gramscia. O exaurimento desse paradigma teórico levou suas referências a serem substituídas pela abordagem proposta pela Teoria dos Novos Movimentos Sociais. Em termos gerais, Gohn sugere elementos que devem ser considerados na formulação de um para‐ digma teórico sobre os movimentos sociais latino‐americanos, entre eles14: 1) a diversidade dos movimentos sociais quanto à sua constituição, composição e organização; 2) a proliferação de movimentos populares que lutam por direitos sociais básicos; 3) a participação de organizações religiosas no aparelhamento dos movimentos sociais; 4) a forte participação de movimentos que colocam em evidência a discriminação étnica, promovida contra indígenas e afro‐ americanos; 5) a posição de antagonismo em relação ao Estado; 6) as novas lutas sociais pleiteiam a inclusão e não mais a integração social; 7) a formulação de projetos políticos comuns entre movimentos sociais e partidos políticos; 8) na América Latina, o papel dos intelectuais frente aos movimentos sociais é bastante importante. Eles têm funcionado como interme‐ diários entre o movimento social e agências governamentais e a própria mídia. No período de democratização da América Latina, outro conceito que tomou fôlego foi o de esfera pública. Esse conceito, em efervescência teórica no início do século XXI, engloba tanto a perspectiva de uma esfera de interação burocrática, legal, que permita a relação entre gru‐ pos e movimentos sociais, como uma dimensão de autonomia cultural frente à produção de bens de consumo em massa15. Uma das principais influências na construção do conceito foi a de Habermas, que entendiaa Ativista político italiano que divulgou suas ideias políticas ao longo do século XX, participou de ações vinculadas ao movimento comunista e permaneceu preso, quando, então, sistematizou parte de sua obra. Sua prisão deu‐se por sua atuação política em defesa de ações revolucionárias e em oposição ao regime que se consolidava na Itália naquele momento, capitaneado por Benedicto Mussolini e que desembocou no fascismo que colocou a Itália ao lado da Alemanha da 2ª Guerra Mundial. 19 a esfera pública como uma dimensão dialógica e comunicativa, entre atores da sociedade civil, Estado e sistema político. Para Habermas, citado por Avritzer e Costa16, a formação da opinião e a vontade coleti‐ va, que legitimam os processos políticos, acabavam por compor um processo de mediação entre o sistema político e o mundo da vida. Nessa relação, a sociedade civil torna‐se refém de um papel ambíguo, pois tanto é responsável pela criação de “microesferas públicas” quan‐ to é ela que seleciona as questões que serão alvo de crivo nesses mes‐ mos espaços. Se a esfera pública, assim como a cidadania, é algo que emerge com os Estados‐Nacionaisb17, podemos afirmar que as transformações pelas quais passam tais Estados também interferem e sofrem consequências advindas de ações da própria esfera pública. De forma ampla, o con‐ ceito de esfera pública tem sido empregado ao longo de pesquisas de opinião pública, ao estilo da Escola de Frankfurt, no qual o público é encarado como entidade atomizada e passiva, acrítico e valorado sob a óptica do consumidor. Por outro lado, no que diz respeito ao campo político, não se teria consolidado um campo de ação racional, argu‐ mentativo e dialógico, dentro do contexto habermaziano, de fazer político na América Latina. Dagnino, citado por Avritzer e Costa18, aponta para a infeliz “coinci‐ dência” entre o processo de democratização na América Latina e a consolidação de governos de postura neoliberal na região. Ao mesmo tempo, iniciativas e reivindicações por maior participação e transpa‐ rência das ações de governo têm emergido na América Latina enquan‐ to novos personagens políticos buscam reconhecimento de sua identi‐ dade política no âmbito da sociedade civil dos Estados‐Nacionaisb. Diante dessas novas configurações, Avritzer e Costa19 formulam a seguinte concepção de esfera pública: Malgrado a metáfora espacial que sugere, equivocadamente, a existência de uma localização específica na topografia social, a esfera pública diz respeito mais propriamente a um contexto de relações difuso no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes campos da vida social. Tal contexto comunicativo constitui uma arena privilegiada para a observação da maneira como as transformações sociais se processam, o poder político se reconfigura e os novos atores sociais conquistam relevância na política contemporânea. b O processo de emergência dos Estados‐Nacionais diz respeito à história política deles, a partir da qual esses Estados surgiram das antigas formações, como os impérios e as colônias. 20 Dessa forma, os autores enfatizam que, mesmo com uma denominação que remete à dimensão de um local, como se a esfera pública fosse algo material que se localiza em um dado espaço, o sentido do termo refere‐ se ao conjunto de relações. Tais relações sucedem‐se na sociedade de forma ampla entre dados atores que compartilham um tipo de comu‐ nicação específica (como expressões e linguagens) e acaba por compor um contexto em que as transformações sociais tornam‐se possíveis, pois as ideias passam a ser compartilhadas e, assim, provocam mu‐ danças sociais. ( . ) Ponto Final Neste capítulo, buscou‐se reforçar a perspectiva de que a mobilização social é fruto de condições históricas cuja configuração de poder criou uma massa subalterna. Além disso, destacamos que o contexto históri‐ co europeu difere do latino‐americano e que, apesar da importação de modelos teóricos, notadamente europeus para a análise das mobiliza‐ ções sociais que ocorreram na América Latina, ainda nos encontramos a procura de um modelo explicativo dos movimentos sociais na Amé‐ rica Latina. Assim, destacamos neste capítulo introdutório as possibili‐ dades teóricas na análise dos movimentos sociais na América Latina e a importância do conceito de esfera pública como campo de interação entre sociedade civil, instituições políticas e Estado. Indicações Culturais ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. Livro de suspense lançado na Itália em 1980, que relata a investigação de uma série de mortes misteriosas que ocorrem em uma abadia medieval no século XIV. É um excelente livro que descreve a relação que a Igreja Católica possuía com a construção do saber na baixa Idade Média e oferece dados tangenciais sobre o empobrecimento dos camponeses e sua migração para os burgos, assim como oferece algumas representa‐ ções sobre o feminino que condizem com a época. VICTOR HUGO. Os miseráveis. 8. ed. São Paulo: Hemus, 2002. Livro escrito em 1862, descreve como os pobres da cidade eram tratados pelo aparelho de repressão do Estado e como o empobrecimento em que viviam os aldeões os levava a cometer pequenos furtos. É uma obra belíssima sobre a solidariedade humana e sobre como a norma legal pode ser distorcida e situacionalmente utilizada para fins de vingança privada. 21 A CASA dos espíritos. Direção: Billie August. Produção: Bernd Eichin‐ ger. Estados Unidos: Miramax Films, 1993. (150 min). Este filme conta a história da Família Trueba e, por meio dela, a história política do Chile dos anos de 1930 a 1970 com o deslocamento da estrutura de poder agrária para as cidades. Em meio à modernização do aparelho de Estado, um golpe coloca os militares no poder na década de 1970 e interrompe o governo do presidente Salvador Allende. O QUE é isso companheiro? Direção: Bruno Barreto. Produção: Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto. Brasil: Miramax Films, 1997. (105 min). O filme descreve o contexto político brasileiro após a instituição do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968c. Ele apresenta a ação de militantes que planejam sequestrar o embaixador estadunidense para trocá‐lo por companheiros presos e torturados. Produzido com base em fatos reais, o filme oferece informações sobre a situação políti‐ ca da época no Brasil e a tensão entre o sistema político e parte da sociedade civil. Atividades 1) Assinale a alternativa que responde à sentença a seguir. Revolução que teve início na Inglaterra e levou ao crescimento das cidades, consequência do cercamento dos campos e do empobrecimento dos camponeses, à aceleração de investimentos no sistema fabril e à crise do Absolutismo europeu foi a: a) Revolução Comunista b) Revolução Industrial c) Revolução Francesa d) Comuna de Paris 2) Assinale a alternativa correta de acordo com a afirmativa a seguir. O modelo desenvolvimentista implantado na América Latina en‐ tre os anos de 50 e 70: a) Foi exportado, exclusivamente, para os Estados Unidos b) Era embasado na busca por investimento estrangeiro, princi‐ palmente em empréstimos tomados do Fundo Monetário In‐ c Para ver o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, acesse: <http://www.acervoditadura.rs.gov.br/legislacao_6.htm>. 22 ternacional, acarretando o êxodo rural e o crescimento desor‐ denado das cidades c) Tinha como características principais: a venda de estatais para grupos estrangeiros e a privatização de partede serviços pú‐ blicos d) Foi consequência do impacto pós‐Segunda Guerra Mundial sobre as indústrias europeia e japonesa 3) Sobre os movimentos sociais na América Latina, podemos dizer que: a) Nos anos 70, esses movimentos foram analisados sob o ponto de vista teórico do paradigma marxista b) A estrutura organizacional deles depende, unicamente, de re‐ cursos financeiros do Estado c) Não são compostos por grupos étnicos minoritários, como in‐ dígenas, uma vez que eles têm todos os seus direitos respei‐ tados pelo Estado e pela sociedade civil d) Emergiram a partir da harmonia que se consolidou entre a classe proletária e a burguesa 4) Podemos dizer que a esfera pública é o espaço em que se estabele‐ cem relações entre: a) A classe burguesa, a aristocracia e, apenas, os camponeses b) A aristocracia e o proletariado c) O Estado, a sociedade civil e as instituições políticas d) O Banco Mundial e as empresas privadas 5) A emergência dos Estados‐Nacionais trouxe como consequência: a) A consolidação de uma estrutura empresarial que poderia sa‐ car empréstimos no exterior b) O surgimento da esfera pública, na qual a opinião pública e a vontade coletiva acabam por mediar a relação entre o mundo da vida e o sistema político 23 c) O antagonismo de classes entre Estado e empresários da ex‐ portação d) A transformação das colônias em metrópoles durante o mer‐ cantilismo 2 TEORIA DOS MOVIMENTOS: O PARADIGMA MARXISTA Cíntia Beatriz Müller A partir do paradigma marxista, analisamos os movimentos sociais como catalisadores de processos voltados para a transformação das condições sociais. Trata‐se de enfatizar a análise dos movimentos soci‐ ais sob a perspectiva da luta, do conflito, da disputa que modifica as condições de vida das pessoas envolvidas no movimento e na socieda‐ de, em geral, e rompe com a alienação. De forma alguma, o paradigma marxista de análise dos movimentos sociais centra sua atenção sob as revoluções ou sob as lutas operárias. Embora esse tipo de abordagem empreendida pelos movimentos sociais evidencie as relações de su‐ bordinação e de dominação, cuja visibilidade é maior em situações de capitalismo tradicional, a abordagem centrada no paradigma marxista não se reduz a isso. De acordo com Gohn1, o paradigma marxista clássico possui duas correntes distintas: uma baseada em abordagem que parte da produ‐ ção intelectual do jovem Marx e outra que encontra lastro nos escritos do Marx “maduro”. Esta última corrente apropria‐se dos conceitos de “formação social, forças produtivas, relações de produção, superestru‐ tura, ideologia, determinação em última instância, mais‐valia”2, e colo‐ ca em evidência uma análise calcada em premissas eminentemente econômicas. Valoriza, assim, o papel da classe operária por sua posição frente ao processo de produção, o que a transformaria, a grosso modo, em grupo privilegiado como agente histórico capaz de operar ações de transformação social 2.1 Contribuições das teorias marxistas Ao abordar os movimentos sociais, as teorias marxistas não abandona‐ ram de todo o conceito de classes sociais que acaba por situar os atores envolvidos no contexto dos movimentos frente à estrutura social. A classe social, e os elementos que a compõem, acaba por definir parâme‐ tros acerca da consciência social do ator envolvido no movimento de 25 luta por conquistas da própria classe. Tomando o trabalho de Marx de forma ampla, podemos afirmar que os movimentos sociais não foram alvo de suas preocupações teóricas3. Porém, esse filósofo construiu categorias essenciais que potencializaram a análise sobre o tema. Karl Marx (1818‐1883) – Filósofo alemão Karl Marx nasceu na cidade de Trier (Trèves, pró‐ ximo da fronteira com a França), na Prússia. Estu‐ dou Direito (1837‐1841) nas universidades de Bonn e Berlim, quando travou conhecimento com a filosofia de Hegel. Defendeu sua tese de douto‐ rado em 1841 e passou a trabalhar na Gazeta Rena‐ na, como redator‐chefe, em 1842. Por razões políti‐ cas, viveu na Bélgica até 1848 e retornou para a Alemanha, onde ficou até 1849. Exilou‐se, então, definitivamente em Londres, onde morreu em 1883. Sua obra costuma ser dividida em duas fases: a da juventude – Manuscritos econômicos e filosóficos (1844), Miséria da Filosofia (1847), sendo que A Ideologia alemã (1848) e Manifesto comunista (1848) foram escritos em co‐autoria com F. Engels – e a da fase madura – O 18 Bru‐ mário de Luís Bonaparte (1852), Esboços dos fundamentos da Crítica da Economia política (1857/58), Para a Crítica da Economia política (1859) e O capital (1867 e 1894 em edição póstuma)4. Para Gohn5, uma importante categoria cunhada pelo autor é a de prá‐ xis social. Práxis social é, para Marx, a capacidade que as classes sociais trabalhadoras e os grupos dominados possuem de transformar a soci‐ edade por meio de atividades teóricas, políticas e produtivas. Ainda segundo Gohn, a práxis teórica ofereceria recursos capazes de acelerar projetos de transformação social; ao passo que a práxis produtiva, consubstanciada no locus ocupado pelo proletário, forneceria os recur‐ sos críticos que potencializariam a síntese transformadora da socieda‐ de, a partir da própria consciência social acerca da dominação, imple‐ mentada pelos detentores do monopólio dos meios de produção. A práxis política viria à tona embasada no entrecruzamento das práxis teórica e produtiva. Essa conexão entre intelectualidade e processos sociais de transformação das condições de vida da classe trabalhadora, matéria‐prima da práxis política, é uma das contribuições de Marx em relação à análise dos movimentos sociais. Outra importante categoria de análise dos movimentos sociais forjada por Marx é a de solidariedade: “A solidariedade citada por Marx refere‐ se a uma relação social, com os mesmos interesses e deveria estar vol‐ 26 tada para um dado objetivo: a emancipação dos trabalhadores”6. A solidariedade, no sentido marxista, apresenta uma dupla função: por um lado é fator de coesão do grupo, ou seja, aponta uma dimensão de comprometimento entre aqueles que compartilham uma mesma ideo‐ logia e, por outro, agrega pessoas que compartilham de um projeto emancipatório. Para consolidar essa solidariedade, é especialmente significativo compartir experiências de vida e de classe, pois, dessa forma, as pessoas compartilhariam de um mesmo grau de consciência social acerca dos processos de dominação histórica do seu cotidiano. 2.2 Algumas ideias de Lenin e a importância desse ideário para a análise sobre os movimentos sociais Vladimir Ilitch Lenin, advogado por formação, foi um líder revolucio‐ nário que esteve à frente de todas as fases da Revolução Russa de 1917. As ideias desse líder tiveram influências não apenas no contexto revo‐ lucionário soviético, mas em âmbito internacional. Tal repercussão não ocorreu por acaso. Com o caráter clandestino das atividades políticas revolucionárias na Rússia, ao longo do reinado do czar Alexandre II, os mentores da práxis intelectual obrigavam‐se a publicar, no exterior, todo o material a ser distribuído na Rússia. Também no exterior aca‐ bavam por traçar estratégias de organização do movimento revolucio‐ nário, sem contar que, inúmeras vezes, lideranças revolucionárias precisavam permanecer abrigadas no exterior, tendo em vista o clima de perseguição política que imperava ao final do período czarista. Lenin durante a Revolução Russa em 1917 Para Lenin7, o povo, composto aqui pela maioria em um conjunto de classes, deveria ocupar seu lugar ao centro das decisões políticas no Estado socialista‐revolucionário. Era decisivo que fossem constituídas condições concretas paraa participação da maioria nas decisões e negócios públicos. Para isso, seria estratégico que tanto o regime de Estado quanto o poder político propiciassem condições de participação 27 da maioria nas arenas de decisão. Essa participação, contudo, implica‐ va a necessidade de que essa maioria fosse capaz de conduzir a estru‐ tura de Estado. O monopólio do exercício do poder político pela classe burguesa, porém, implicava que os interesses desse contingente, com‐ posto por classes subordinadas, não fossem atendidos. A participação da maioria nos negócios de Estado é importante para Lenin tendo em vista sua concepção de que “o Estado é o produto e a manifestação do fato que as contradições de classes são inconciliáveis. O Estado surgiu aí no momento e na medida em que, objetivamente, as contradições de classes não podiam ser conciliadas”8. A única forma de transformar o Estado, a transformação revolucioná‐ ria, seria, segundo Gohn, a conciliação da maioria, ou a participação de uma maioria nas decisões dos negócios públicos. Para Lenin, o modelo de Estado que comporta as demandas do proletário, enquanto ele estiver subordinado aos interesses capitalistas, é o da república demo‐ crática. Porém o ideal socialista é o de que a classe proletária assuma o controle completo de sua vida social e política e, por decorrência, o controle do governo do Estado Nacional. A organização da maioria, ou de massa, para torná‐la apta ao exercício do governo, de acordo com Lenin, possuía sutilezas que a distinguia das organizações de classe. Por isso, existem dois tipos de organiza‐ ções, ambas essenciais à práxis social: a organização política e a orga‐ nização de operários para a luta9. Seguindo o raciocínio de Lenin, as organizações de operários possuiriam caráter profissional, amplo e pouco “conspiratório”, ao passo que as organizações de caráter emi‐ nentemente político deveriam reunir pessoas voltadas para esse fim, de ação política. Em seu interior, não existiram distinções entre operá‐ rios e intelectuais, sendo essas distinções organizadas de forma não muito extensa. A principal função da organização política, notadamen‐ te do Partido, de acordo com Lenin, seria a de organizar a maioria envolvida no movimento social10, ou seja, a de desenvolver seu papel de vanguarda, de estar à frente dos acontecimentos. Embora Lenin não tenha produzido textos específicos dedicados aos movimentos sociais, em seu tempo ele foi um intelectual envolvido com a luta das organizações de classes, notadamente os sindicatos. Os sindicatos deveriam assumir uma função pedagógica, sendo um possí‐ vel centro irradiador da ideologia socialista. Serviriam, assim, de estru‐ tura capaz de suportar uma preparação para a maioria, o povo, em seu momento de tomada do poder11. Nesse sentido, Lenin aponta para o caráter pedagógico possível dos movimentos sociais de vários níveis, como atualmente tem sido a tônica dos movimentos de luta pelos 28 direitos humanos no Brasil, por exemplo. Essa função de disseminação de ideias caberia à vanguarda: “o papel da vanguarda do proletariado, que consiste em instruir, ilustrar, educar, atrair para uma vida nova as camadas e as massas mais atrasadas da classe operária e do campesi‐ nato”12. Obviamente, como paradigma de ação para os movimentos sociais modernos, essa noção deve ser atualizada, mas a categoria vanguarda pode ser ainda operacional entre nós. 2.3 Contribuições de Gramsci para a análise dos movimentos sociais Gramsci, teórico marxista italiano, nascido em 1891 na Sardenha, inici‐ ou seus estudos em 1903, no ginásio (hoje ensino fundamental – 5ª a 8ª séries), de onde teve de sair para buscar sustento ao longo dos anos de 1904 a 190813. Devido a uma queda que sofreu aos quatro anos de ida‐ de, Gramsci era corcunda e sofria com essa deformidade física, sendo‐ lhe penoso desenvolver atividades laborais que envolvessem o uso da força física. Entrou na faculdade de Turim em 191014. Os Cadernos do cárcere, conjunto de textos escritos pelo autor enquanto esteve preso entre os anos de 1926 e 1937, são compostos por trinta e três cadernos, dos quais vinte e nove foram publicados pela primeira vez na Itália entre os anos de 1948 e 1951. As ideias de Gramsci não representaram uma continuidade das ideias divulgadas por Lenin, porém trouxeram uma séria contribuição no que se refere à matéria dos movimentos sociais com a ideia de hegemonia e o papel dos movimentos populares na transformação de espaços políticos. Gramsci, como teórico, desenvolveu uma noção mais ampla de Estado do que o fez Lenin. Segundo Coutinho15, para Gramsci a sociedade civil seria um importante campo de disseminação de ideias políticas, espaço social em que a participação política e o reconhecimento de grupos e massas era possível. A “sociedade civil” formaria uma cama‐ da com potencial crítico capaz de opor‐se à opressão da estrutura de Estado. É no âmbito da sociedade civil que se situam as organizações privadas. De acordo com Portelli16, sociedade civil, para Gramsci, é um conjunto extenso “e sua vocação para dirigir todo o bloco histórico implica uma adaptação de seu conteúdo, segundo as categorias sociais que atinge”. A sociedade civil estaria permeada de ideologia da classe dirigente. Esse fato acabaria por influenciar seus diferentes campos e concepções de mundo da sociedade civil ao passo que, como “direção ideológica”, ela estaria estruturada em organizações que difundem a mesma ideologia e os instrumentos que difundem essa ideologia, por exemplo, o sistema escolar. No âmbito da sociedade civil, é que se dão os embates pela hegemonia. 29 Gramsci apresenta um conceito de hegemonia muito próximo ao de Lenin e reforça a tese de que o papel da direção intelectual e ideológi‐ ca, ou seja, a existência de um grupo dirigente, é fundamental frente à base de classe. Para ele, o Estado está para além de uma simples socie‐ dade de organização política, mas é decisivamente influenciado pela sociedade civil. Daí a importância da incidência de intelectuais sobre a classe base na sociedade civil, para, por meio da transformação de seu sistema ideológico, transformar a própria estrutura política e, por consequência, o Estado. A hegemonia assim seria o conjunto de ideias e concepção de mundo formado a partir de valores da classe burguesa, cuja capilaridade estende‐se por toda a sociedade civil. A consolidação de tais ideias ocorreria em decorrência da atuação de um grupo inte‐ lectual, uma vanguarda conforme Lenin, e da correlação ente outros grupos aliados17. Segundo Portelli18, “A hegemonia gramsciana é a primazia da socieda‐ de civil sobre a sociedade política”. Ainda segundo o mesmo autor, a luta para Gramsci não era pelo controle da sociedade política, como o era para Lenin, mas pelo controle da sociedade civil. A conquista do aparelho estatal apenas seria uma forma de apropriar‐se do mecanis‐ mo de dominação estatal. Essa concepção opõe‐se à ideia de ditadura, uma vez que a conquista do Estado aconteceria pelas bases do conven‐ cimento e da apropriação ideológica da sociedade civil – assumir uma postura dominante − que, ao inverter seus valores hegemônicos, pode‐ ria vir a conquistar o aparelho de Estado – aqui em caráter dirigente. Em relação aos movimentos sociais, há duas perspectivas importantes na construção teórica gramsciana: a revalorização da noção de Estado e o conceito de hegemonia. De acordo com Gohn19, Gramsci foi o grande responsável por tornar o Estado uma atraente arena para a luta pela transformação social, não apenas um mecanismo de dominação, mas um local que merecia ser redemocratizado e gerido de forma participa‐tiva, embasado nas forças organizadas da sociedade civil. Com o con‐ ceito de hegemonia, passou‐se a apreciar o conjunto de valores consi‐ derados como legítimo no interior das coletividades por oposição à ideologia da classe burguesa. Assim, proporcionou‐se uma possibili‐ dade teórica para a transformação da ideologia nas classes formadoras da sociedade civil que, gradualmente, poderiam mudar a sociedade política e as estruturas de Estado. 2.4 Os pós-marxistas Podemos citar, entre os pós‐marxistas, Theodor Adorno (Frankfurt, Alemanha 1903 – Suíça, 1969), Hannah Arendt (Hanover, Alemanha 30 1906 – Nova Iorque, EUA 1975), Jürguen Habermas (Düsseldorf, Ale‐ manha), Ernesto Laclau (Buenos Aires, Argentina) e Alain Touraine (Paris, França)20. A principal crítica desse grupo dirige‐se à perspectiva reducionista do marxismo ao privilegiar uma classe específica como a propulsora de mudanças sociais, pressupondo que ela seria universal. Além disso, questionam, de forma ampla, o caráter antidemocrático do marxismo, defendendo a tese de uma “democracia radical” com pre‐ ponderância em valores como a dignidade humana, a liberdade e o comunitarismo21. Vários dos temas abordados por esses pensadores traduziram‐se em base teórica para a ação de grupos sociais e movi‐ mentos sociais. Em Hannah Arendt22, por exemplo, suas análises sobre o totalitarismo colocaram a dignidade humana como um valor que deve preponderar nas relações sociais. Gohn23 coloca em evidência, nesse campo, em relação específica com os movimentos sociais, Manuel Castells, Jordi Borja e Jean Lojkine. De forma ampla, pois discutiremos Manuel Castells no âmbito do movi‐ mento ambientalista, o grupo preocupa‐se com os movimentos sociais, sua estrutura e o objetivo de sua incidência em um contexto de globa‐ lização, de um capitalismo transnacional, da emergência de novas identidades e a desconstrução do Estado‐Nação. Esses autores colocam o movimento social como parte da sociedade civil que incide de forma decisiva sobre as organizações políticas. Outros pensadores que se filiam à corrente neomarxista são os historiadores E. P. Thompson, Eric Hobsbawm e George Rude. É notável nesses autores a forma como a construção textual do livro 18 Brumário, por exemplo, influenciou a maneira como se tem escrito textos de análise de conjuntura e as impli‐ cações deles com a superestrutura. Além disso, noções como ideologia e hegemonia (assim, como contra‐hegemonia) podem ser identificadas em seus textos como instrumentos teóricos de análise e de diálogo com o campo teórico. (.) Ponto Final Os pensadores marxistas não conceberam uma teoria específica acerca dos movimentos sociais. Porém, ao se preocuparem em conferir visibi‐ lidade à exploração de classe, acabaram por forjar um referencial teóri‐ co importante como estoque analítico dos movimentos de massas. Como veremos adiante, esses conceitos serão retomados e aprimora‐ dos por filósofos e pensadores que realmente estavam empenhados na elaboração de uma teoria acerca dos movimentos sociais. 31 Indicações culturais REDS. Direção e produção: Warren Beatty. Estados Unidos: Para‐ mount Pictures, 1981. (181 min.). Esse filme conta a história do jornalis‐ ta norte‐americano John Reed e mostra o quanto a Revolução Russa impactou, também, o cenário político internacional. DOUTOR Jivago. Direção: David Lean. Produção: David Lean e Carlo Ponti. Estados Unidos: MGM, 1965. (201 min.). A importância desse filme está na forma como destaca a mudança estrutural da Rússia imperial em direção a um Estado comunista. Trata‐se de um romance que deixa explícito os valores sociais em choque e o quanto a adequa‐ ção das pessoas aos padrões morais da época era exigida, tanto por um quanto pelo outro regime, tanto pela estrutura social czarista quanto pelo projeto do Estado comunista. Atividades 1) No que diz respeito à Teoria Marxista, de forma ampla podemos dizer: a) Não fornece recursos analíticos que permitam avaliar os movimentos sociais contemporâneos b) Presta‐se apenas para analisar movimentos sociais de natu‐ reza sindical c) Teve seus referenciais analíticos atualizados de forma críti‐ ca por teóricos contemporâneos d) É recurso teórico datado que não serve para análises mo‐ dernas sobre os movimentos sociais 2) Quais dos conceitos a seguir perpassam e desempenham papel central nas correntes marxistas clássicas? a) Classe social, vanguarda e sociedade civil b) Ideologia, sociedade civil e Estado Nacional c) Classe social, ideologia e alienação d) Hegemonia, alienação e classe social 3) “Vanguarda” para Lenin: 32 a) diz respeito a um grupo de pessoas capazes de conduzir a classe proletária na tomada de consciência sobre sua aliena‐ ção social e da importância de seu papel frente à transfor‐ mação do Estado Nacional b) não foi abordada por este autor c) valoriza uma camada de intelectuais que não deve interagir com a base de classe, e, sim, partir para ações isoladas d) é um grupo que se origina da classe burguesa e, por isso, aperfeiçoa sua dominação frente à classe média 4) Sobre o conceito de sociedade civil, descrito por Gramsci, pode‐ mos dizer que: a) foi um conceito teórico formulado, na verdade, por K. Marx b) ela não existe para Gramsci. Trata‐se de grupo pouco im‐ portante e que desempenha um papel insignificante na so‐ ciedade como um todo c) sociedade civil e sociedade política são termos sinônimos d) a transformação dos valores hegemônicos na sociedade ci‐ vil, com base nos valores sociais que povoam o cotidiano das classes populares, pode tornar‐se o motor de transfor‐ mação do Estado levando, assim, o povo a uma democracia social 5) Um dos valores preponderantes nas análises dos pós‐marxistas é: a) o totalitarismo b) a dignidade humana c) o fortalecimento do Estado‐Nação d) a classe proletária como universal e homogênea em todo o mundo 3 MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIOLÓGICA ESTADUNIDENSE Cíntia Beatriz Müller O objetivo deste capítulo é apresentar ao leitor as principais contribui‐ ções teóricas de pesquisadores estadunidenses para a análise dos mo‐ vimentos sociais – a Escola de Chicago – e a forma como até hoje influ‐ encia a análise dos movimentos sociais. Em linhas gerais, a escola estadunidense de Sociologia, que deu início à teorização sobre os movimentos sociais, recebeu influência da socio‐ logia clássica europeia. Para nossos estudos, iremos focalizar as contri‐ buições da Escola de Chicago, o caráter tributário dela, em relação ao paradigma do conflito de Simmel, a contribuição de Herbert Blumer e as etapas do processo de formação dos movimentos sociais. 3.1 A “Escola de Chicago” na sociologia estadunidense A Universidade de Chicago foi fundada em 1895a. Nessa universidade foi criado o primeiro Departamento de Sociologia e a primeira revista de Sociologia dos Estados Unidos, a American Journal of Sociology, cujo primeiro diretor foi Albion Small. Uma das principais preocupações de pesquisa desse Departamento de Sociologia era com a compreensão e a intervenção em problemas sociais oriundos do acelerado processo de urbanização pelo qual vinham passando as cidades americanas. O primeiro foco foi lançado sobre a pobreza e a imigração entendidas como problemas sociais. Alunos oriundos desse centro de pesquisa passaram a dirigir outros departamentos de sociologia nos Estados Unidos, notadamente na Columbia University e em Washington. Howard Becker1, pesquisador formado pela “Escola de Chicago”, proferiu conferência no Museu Nacional do Rio de Janeiro em 1990. Essa conferência, na Revista Mana, conforme referência ao finaldeste a Na mesma época, era fundada a Escola Americana de Antropologia, com a linha da Antropologia Cultural. Franz Boas foi um dos fundadores dessa escola, cujo pensamento influenciou diferentes centros de pesquisas nos Estados Unidos. (CASTRO, 2004). 34 livro, esclareceu, naquela oportunidade, qual o significado da expres‐ são “escola” para o contexto da Universidade de Chicago na primeira metade do século passado. Becker destaca que existem pelo menos duas concepções possíveis para o emprego da expressão “escola”: uma referindo‐se à escola de pensamento e a outra à escola de atividade. Uma Escola de Pensamento é composta por pessoas. Nesse caso, pesquisa‐ dores e estudantes, que compartem uma mesma linha de pensamento, dividem conceitos e filiações teóricas em comum. Acredito que temos como exemplo de uma escola de pensamento, os núcleos de pesquisa que se reúnem em torno de um orientador específico, com o qual pas‐ sam a compartilhar conceitos e referenciais teóricos. Esses núcleos podem ser enquadrados na classificação de “escola de pensamento”. Já uma Escola de Atividade agrega pessoas que não partilham, neces‐ sariamente, a mesma filiação teórica, mas trabalham juntas, desenvol‐ vem pesquisas que se complementam, discutem sobre elas e buscam desenvolver atividades em um mesmo espaço acadêmico comum. Howard Becker leva a crer que a Escola de Chicago estaria muito mais próxima da definição de “escola de atividade”, pois, em seu início, as pessoas não compartilhavam de um referencial teórico comum ou da maioria das ideias predominantes no Departamento de Sociologia, mas a disposição de enfrentar questões consideradas problemas culturais. Uma das principais influências teóricas da Escola de Chicago foi do sociólogo alemão Georg Simmel (1858‐1918) com quem Robert Parkb, outro proeminente professor da universidade de Chicago, estudou em Heidelberg, na Alemanha. Georg Simmel, por sua vez, foi diretamente influenciado pela filosofia de E. Kant, F. Nitzsche e Goethe. Duas mar‐ cas da Sociologia simmeliana repercutiram fortemente na Escola de Chicago: a dimensão da proeminência do indivíduo sobre a “massa” e a do conflito social. Para Simmel, o indivíduo poderia possuir inúme‐ ras qualidades individuais, mas, paradoxalmente, quanto mais qualifi‐ cado esse indivíduo tornava‐se menor a possibilidade de que viesse a figurar uma unidade com outros indivíduos2. Assim conforme explica o autor3: a necessidade de prestar tributo às grandes massas – e sobretudo a necessidade de se expor continuamente a elas – arruína facilmente o caráter: ela rebaixa o indivíduo, retirando‐o da posição elevada por suas formação e levando‐o a um ponto no qual ele pode adequar a qualquer um. b Ao tempo de Park, de acordo com Becker (1996) o departamento já reunia os cursos de sociologia e antropologia na Universidade de Chicago, o que fez com sua influência se estendesse, também, ao campo da antropologia. 35 Para Simmel, a “massa” não expressa o somatório de características de cada um que compõe o grupo, mas das partes em comum que unem as pessoas. Assim, nas análises de fenômenos de “massa”, seria possível identificar características individuais especiais nas pessoas que a com‐ põem e que não são, necessariamente, compartilhadas pelo grupo ou que se quer são percebidas e valorizadas pela “massa”. Por outro lado, há a dimensão do conflito, extremamente importante para a Teoria de Simmel. O conflito estabelece‐se, basicamente, nas relações entre indi‐ víduo e sociedade, uma vez que, embora a sociedade só exista com base em indivíduos, ela também se contrapõe ao indivíduo “com exi‐ gências e atitudes como se fosse um partido estranho”4. Nessa tensão, instala‐se o conflito. Segundo Simmel5, a divergência entre indivíduo e sociedade alcança seu ponto alto no momento em que “a sociedade” busca transformar cada indivíduo em um simples membro da unida‐ de. A reação do indivíduo é a da rebelião contra o papel socialmente construído com uma constante luta entre “a parte” – o indivíduo – e “o todo” – a sociedade. Essa noção da preponderância do papel do indi‐ víduo sobre o da “massa” e a dimensão do conflito e da rebelião serão importantes para compreendermos a Escola de Chicago. No que tange ao método de pesquisa, a escola seguia diretrizes um tanto ecléticas, misturando técnicas qualitativas e quantitativas de coleta de dados, também por forte influência de Robert Park: “se achasse que era possível mensurar alguma coisa, ótimo, se não fosse, ótimo também”, conforme comenta Becker6. Existia, de certa forma, correlação entre a dimensão material dos problemas sociais e explica‐ ções teóricas. Por exemplo, a busca da compreensão de por que a cri‐ minalidade concentrava‐se em determinados pontos da cidade em detrimento de outros, ou a própria delinquência juvenil como elemen‐ tos para a elaboração da noção de “região moral” – “área da cidade onde uma população se separa das demais”7. Por outro lado, os alunos de Park também desenvolveram pesquisas qualitativas bastante pró‐ ximas da Etnografia e da Psicologia Social. Um dos maiores expoentes das pesquisas relacionadas à Psicologia Social foi o filósofo George Herbert Mead (ex‐aluno de Robert Park), cujo aluno mais influente foi Herbert Blumer, considerado como um dos principais teóricos sobre os movimentos sociais no âmbito da Teoria Clássica Estadunidense.8 Herbert Blumer e sua contribuição para a análise dos movimentos sociais Herbert Blumer, além de jogador profissional de futebol, que passou um ano no Brasil nos anos de 1930, excelente teórico da Psicologia Social, veio a fazer parte do corpo docente do Departamento de Socio‐ 36 logia da Universidade de Chicago em um grupo que sucedeu Robert Park9. De acordo com Gohn10, Blumer construiu sua teoria dos movi‐ mentos sociais com base na insatisfação que o indivíduo tem com a própria vida e na esperança de mudá‐la, de transformá‐la. Blumer dividiu os movimentos sociais em três grupos: genéricos, específicos e expressivos. De certa forma, ao buscarmos compreender como Blumer constrói sua classificação dos movimentos sociais, devemos ter presen‐ te a teoria simmeliana da qual ele era um tributário. Os Movimentos Genéricos seriam aqueles organizados no sentido de provocar mudanças nos valores individuais. Essas transformações de valores podem ser chamadas de “tendências culturais”, conforme Gohn11. Trata‐se de um processo de transformação que passa pela dimensão do indivíduo e de como ele encara a si mesmo, fazendo emergir novos valores e considerações acerca de seus direitos civis e políticos. Assim, os movimentos sociais de caráter genérico operariam em uma dimensão individual que não deixaria de ser psicológica, sendo verdadeiros indicadores de novas tendências, mesmo que des‐ providos de uma organização mais sistemática ou de objetivos mais específicos. Um dos exemplos é o da emancipação das mulheres, com um caráter pouco específico, porém congruente com a fase inicial da mobilização quando a ação dos grupos era propriamente pouco orga‐ nizada. As mulheres sufragistas da década de 30 Gohn12 também apresenta que os movimentos chamados por Blumer de Movimentos Expressivos são os constituídos por aqueles grupos que não se encontram necessariamente comprometidos com objetivos de mudança ou transformação social. Esses grupos encontram‐se com‐ 37 prometidos com a disseminação de ideias que permeiam toda a socie‐ dade (exemplos seriam osmovimentos religiosos e aqueles vinculados à moda), mas podem ser capazes de ditar “tendências”, ou seja, influ‐ enciar sem que, com isso, assumam um papel de transformar os objeti‐ vos de cunho social de outros movimentos. Já os Movimentos Específicos, segundo os estudos de Gohn13, repre‐ sentariam um momento seguinte ao genérico, quando as insatisfações e demandas já estariam consolidadas. Nessa fase do movimento, há um sentido de identidade de grupo constituído de forma que as lide‐ ranças e os membros deles teriam capacidade de reconhecer os símbo‐ los e sinais que especificariam os membros do grupo. Para Blumer citado por Gohn14, os movimentos sociais desenvolvem‐se em um processo com cinco fases ou estágios: a) AGITAÇÃO: neste momento, novas demandas, impulsos e neces‐ sidades são identificados. É nesse momento que o movimento co‐ meça a traçar seus objetivos e direções. O agitador tem um papel estratégico e positivo, sendo ele o responsável por conduzir e ini‐ ciar o processo de transformação social que enseja o movimento. b) EXCITAÇÃO OU DESENVOLVIMENTO DO ESPIRIT DE CORPS: este estágio diz respeito ao sentimento de coesão e solida‐ riedade do grupo que é formado e compartilhado por meio do processo de formação do grupo. Gohn elenca três estratégias de formação dos “espírito de corpo” do grupo: “relação do grupo a grupo de uma mesma categoria”; “relacionamentos informais de‐ senvolvidos em associação”; e, “as cerimônias formais em que se cristalizam certos comportamentos”. c) DESENVOLVIMENTO DE UMA MORAL: trata‐se da consolida‐ ção de símbolos por intermédio dos quais valores são expostos e reafirmados. São, por exemplo, símbolos como bandeiras, insíg‐ nias, textos, ou seja, o conjunto de ideias que organiza os objetivos fundantes do grupo e os princípios compartilhados por seus membros. d) DESENVOLVIMENTO DE UMA IDEOLOGIA: a ideologia confi‐ gura a forma como o grupo vê certas questões, como avalia o pro‐ blema e formula sua resolução. É espelhada pelo conjunto de crenças do grupo, que encontra eco tanto em lendas e mitos quan‐ to no conjunto de textos que reflete suas ideias. 38 e) DEFINIÇÃO DE OPERAÇÕES TÁTICAS: este último estágio é aquele que estabelece ações pelas quais o grupo irá movimentar‐ se. As táticas podem ser de adesão, manutenção (dos adeptos) e de especificação dos objetivos. É importante destacar que Gohn traz ao seu texto comentários sobre a produção teórica de Herbert Blumer a partir de textos originais: Collec‐ tive Bahavior (1939) e Social Movements (1951), ou seja, textos que ocu‐ pam um lugar dentro do contexto de produção da Escola de Chicago e da teorização estadunidense. É importante termos presente que, como destaca Becker15, Blumer veio ao Brasil na década de 30 e, em conse‐ quência disso, muitos brasileiros foram estudar nos Estados Unidos. Há, portanto, repercussão de suas ideias no campo da Sociologia brasi‐ leira ainda nos anos 2000, inclusive, no que diz respeito às etapas do processo de formação dos movimentos sociais. Por exemplo, o manual de Sociologia Geral, de Lakatos e Marconi16 define os seguintes estágios dos movimentos sociais, que lembra muito a divisão de etapas de Blumer, o que demonstra a atualidade desse tipo de esquema de análi‐ se: Agitação (inquietação ou intranquilidade); Excitação (excitamento ou desenvolvimento do espirit de corps); Formalização (desenvolvimen‐ to da moral e da ideologia ou planejamento). (-) Ponto Final Neste capítulo, procuramos destacar o significado da Escola de Chica‐ go na formulação de teorias clássicas da Sociologia estadunidense bem como sua formação e influência teórica por parte do sociólogo alemão Georg Simmel. Além disso, apresentamos ao leitor como os teóricos ali formados formularam explicações sobre os movimentos sociais. Por fim, expusemos a teoria de Herbert Blumer que formulou uma tipolo‐ gia de classificação dos movimentos sociais e identificou os estágios de desenvolvimentos dos mesmos. Indicações culturais FREITAS, Wagner Cinelli. Espaço urbano e criminalidade: Lições da esco‐ la de Chicago. São Paulo: Método, 2004. Neste livro, bastante recente, o leitor encontra mais informações sobre a Escola de Chicago, sobre seus estudos urbanos relacionados à criminalidade e à organização espacial da cidade. O autor apresenta, ao final de seu livro, um estudo aplicado às cidades brasileiras a partir da teoria desenvolvida por Robert Park e Ernet Burguess. Embora trate do tema da criminalidade, o livro é rica fonte de informações sobre a Escola de Chicago como local de produ‐ ção teórica. 39 MAGNANI, José Guilherme Cantor. A antropologia urbana e os desa‐ fios da metrópole. Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 1, abr. 2003. Dispo‐ nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103‐ 20702003000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 jul. 2008. Neste artigo, o leitor encontra orientações sobre a realização de trabalho de campo no âmbito dos contextos urbanos, que podem auxiliar na elabo‐ ração de futuras pesquisas sobre o tema dos movimentos sociais urba‐ nos. Nesse texto, o autor destaca o ineditismo dos trabalhos de campo da Escola de Chicago no âmbito da própria tradição antropológica. Atividades 1) Marque a resposta que completa o cabeçalho do exercício. A Esco‐ la de Chicago, quando se sua criação, sofreu influência do: a) forte processo de interiorização da população estadunidense no início do século XX b) acelerado fenômeno de urbanização pelo qual passou a cida‐ de de Chicago que também recebeu grande número de imi‐ grantes c) pensamento filosófico francês do final do século XIX d) pensamento latino‐americano acerca dos movimentos sociais 2) H. Becker diferencia “escola de pensamento” de “escola de ativi‐ dades”. Para esse autor, uma “escola de atividades” é aquela: a) em que os pesquisadores devem compartilhar a mesma base teórica e conceitual b) em que todos tomam um mesmo referencial teórico como ponto de partida de suas análises c) em que os pesquisadores compartilham um mesmo universo de pesquisa, que elaboram estudos que se complementam e que acabam por colaborar mutuamente ao longo de seus es‐ tudos d) em que todos praticam apenas técnicas de coleta de dados qualitativas e etnográficas deixando de lado investigações cujos dados possam ser aferidos quantitativamente 40 3) A teoria de George Simmel influenciou a Escola de Chicago: a) em suas concepções de “massa” e indivíduo e na valorização do conflito como tensão que se origina da relação do indiví‐ duo com as forças sociais b) quanto ao conceito de classe social e sociedade civil c) tendo Simmel, que foi professor de H. Blummer e o orientou em suas pesquisas nos Estados Unidos d) de forma superficial, com a tese de que tiveram pouca reper‐ cussão no desenvolvimento teórico em Chicago 4) Os movimentos sociais considerados “genéricos” por Herbert Blumer são capazes de potencializar transformações sociais. Essa mudança de valores pode ser chamada de: a) tendências radicais b) tendências culturais c) Escola de Chicago d) estudos urbanos 5) Herbert Blumer especifica cinco estágios no processo de desenvol‐ vimento dos movimentos sociais. Essas fases são interdependentes e denominadas, respectivamente: a) desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimento de uma moral; desenvolvimento de uma ideologia; formulação de tá‐ ticas; agitação b) desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimento de uma moral; agitação; desenvolvimento de uma ideologia; formu‐ lação de táticas c) desenvolvimento do espírit de corps; agitação; desenvolvimen‐ to de uma moral; desenvolvimento de uma ideologia; formu‐ lação de táticas d) agitação; desenvolvimento do espírit de corps; desenvolvimen‐ to de uma moral;desenvolvimento de uma ideologia; formu‐ lação de táticas 4 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA EUROPA PÓS-ANOS 60 Cíntia Beatriz Müller Os novos movimentos sociais (NMS) marcaram a Europa após os anos de 1960 e demonstraram a insuficiência teórica dos referenciais de análise marxistas clássicos e norte‐americanos para explicar suficien‐ temente os novos acontecimentos. Alain Touraine dedicou‐se a estudos sociológicos sobre a realidade de vida de trabalhadores e estudantes, foi influenciado pelos eventos de 1968, uma série de protestos nos quais os estudantes tomaram a frente em suas reivindicações. Para esse autor, o principal conceito a ser apreendido no estudo dos movimentos sociais é o de ação, em oposição a um sistema dominante constituído. Já Melucci, priorizou a construção de suas análises a partir de estudos realizados em sindicatos e formas de participação política. Trata‐se de um pensador criativo que buscou em suas análises explicitar relações de desigualdade naturalizadas na sociedade a partir de suas análises empíricas. 4.1 Parâmetros gerais dos NMS Maria da Glória Gohn1 aponta, com bastante perspicácia, algumas características dos NMS: 1) A RETOMADA DA CULTURA COMO UM CONCEITO CEN‐ TRAL. Cultura é uma palavra polissêmica, ou seja, tem múltiplos significados. Ela pode fazer referência tanto ao cultivo de plantas, quanto ao grau intelectual de determinada pessoa ou, o que é mais corrente entre nós, ao conjunto de símbolos capaz de transmitir in‐ formações, capaz de potencializar a comunicação entre as pessoas. No âmbito dos movimentos sociais, o significado da palavra “cul‐ tura” aproxima‐se da “ideologia”, sem que esta última esteja, ne‐ cessariamente, atrelada a uma perspectiva de classe como na Teo‐ ria Marxista. 42 2) SUPERAÇÃO DO PARADIGMA DE ANÁLISE MARXISTA CLÁSSICO. A perspectiva teórica marxista clássica leva a uma análise macrossocial que, de certa forma, homogeneíza a diversi‐ dade que compõe os movimentos sociais. Além disso, a ênfase na análise economicista das disputas torna invisível o campo da polí‐ tica e da cultura, por exemplo, e anula o poder criativo do indiví‐ duo, ou o ator social, que permanece refém da macroestrutura econômica. 3) SUPRESSÃO DO GRUPO DE VANGUARDA. Os NMS marcam a emergência de atores difusos e que se organizam de forma não‐ hierarquizada. “A nova abordagem elimina a centralidade de um sujeito específico, predeterminado, e vê os participantes das ações coletivas como atores sociais”2. Portanto, a construção dos eixos de atuação dos NMS é feita em diálogo e não mais baseada em uma perspectiva iluminista, na qual uma parcela do movimento era capaz de ditar tendências de atuação ao grupo. A liderança passa a desempenhar um papel mais fluido, volátil, que se estabelece ao longo da atuação em vez de um corpo técnico consolidado. 4) VALORIZAÇÃO DO CAMPO POLÍTICO. A política, nos NMS, assume um caráter de suma importância, pois deixa de ser vista como algo distanciado do ator, próprio do Estado. A perspectiva da política, agora, assume sua condição de prática cotidiana que envolve a todos. A política passa a ser analisada como vetor de forças que perpassa toda a sociedade civil e não apenas os negó‐ cios de Estado. 5) ÊNFASE NA ANÁLISE DA AÇÃO E DA IDENTIDADE COLE‐ TIVA AFIRMADA. A valorização recai sobre a identidade que o grupo luta em afirmar e não mais em algo externo que é social‐ mente imposto a ele. É justamente a luta pelo reconhecimento e pela afirmação das identidades que marca a coesão social do gru‐ po, define seus limites (de inclusão e exclusão) e aponta o rumo de sua ação coletiva. O olhar do pesquisador volta‐se para o conjunto de ações implementado no processo de construção dessa identi‐ dade, para assim, apreender seu significado e os sentimentos que evoca. O conjunto de características elencadas por Gohn demonstra que al‐ gumas categorias analíticas continuam sendo empregadas: ideologia, sociedade civil, lutas sociais e solidariedade. Na verdade, a análise dos NMS propõe o deslocamento do olhar da macroestrutura para a mi‐ croestrutura, ou seja, resgata o valor do cotidiano, das ações individu‐ ais e das vontades que movem o sujeito no interior do grupo. Essa 43 nova perspectiva, na verdade, toma alguns referenciais de análise da corrente estadunidense. Os interacionistas simbólicos, notadamente Erving Goffman, demonstravam interesse na forma de construção das identidades individuais. Passaremos a analisar o referencial de dois teóricos emblemáticos Alain Touraine e Alberto Melucci. Ambos abordam o fenômeno dos NMS a partir de perspectivas distintas, mas complementares. Alain Touraine: o ator retorna à cena Alain Tourainea (1925‐ ) é um pesquisador que, ainda hoje, encontra‐se elaborando suas ideias de forma crítica. Filiado à tradição teórica fran‐ cesa, retomou conceitos e ideias de outros pensadores dessa escola sociológica, como Sartre, ao trabalhar a noção de projeto3. A aborda‐ gem empregada por Touraine em sua análise sobre os movimentos sociais é denominada acionalista, pois: “o axioma aí implícito enfatiza o comportamento social, ou seja, a conduta dos indivíduos e grupos em termos de conflito ou de integração”4. Um dos méritos que Tourai‐ ne foi o de trazer o sujeito, denominado ator, como elemento dinâmico da história, verdadeiro agente de transformação social. Touraine5 parte em sua análise que retoma o protagonismo do ator, da constatação de que a sociedade enriquece‐se com a diversidade e que as decisões políticas e econômicas escapam cada vez mais do controle absoluto dos Estados nacionais. A racionalidade que deveria reger as ações sociais perde terreno para o desenraizamento e a instabilidade. As sociedades modernas passam a ser vistas como espaço de expressão da liberdade da criatividade humana. Para o autor, sociedade “é um conjunto de regras, de costumes e de privilégios contra os quais os esforços criadores, individuais e coletivos, têm de continuar a lutar”6. A ênfase aqui é dada à liberdade, pois é ela que confere ao sujeito a possibilidade de livrar‐se dos “princípios transcendentes” e dos valo‐ res comunitários. O protagonismo do sujeito, como agente transfor‐ mador da História, desloca a atenção das ações do Estado como tal. O sujeito é alguém criativo e não pode mais ser definido por termos históricos, pois é capaz de escolher sua própria lógica organizativa e os processos nos quais se quer engajar, em suma é o agente que constrói a história. História, para Touraine, significa “o conjunto de modelos culturais, cognitivos, econômicos, éticos, pelos quais uma coletividade constrói suas relações”7. Touraine continua, explicando que a história, a Para saber mais sobre a Democracia na América Latina, acesse: <http://www.dhnet.org.br/tecidosocial/anteriores/ts101/entrev_alain_touraine.htm>. 44 assim, é um conjunto de orientações culturais, cujos valores são seleci‐ onados e impostos pelo grupo dirigente à população. O conflito, a ação, acontece no momento em que grupos subordinados passam a lutar pelo controle e pela autonomia de sua própria historicidade (con‐ junto de modelos culturais) para livrar‐se do conjunto de valores esta‐ belecidos pelo grupo dirigente. O autor destaca que não se trata de classes sociais em disputa. Nesse caso, a disputa é pela autonomia na construção de sua própria historicidade, na qual o modelo cultural é transformado em sistema de relações sociais assimétricas, de domina‐ ção e de exercício de poder. Para Touraine, existem quatro espécies de condutas coletivas:
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