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2017 Teoria da LiTeraTura i Prof.a Elaine Hoffmann Prof. Tiago Hermano Breunig Copyright © UNIASSELVI 2017 Elaboração: Profa. Elaine Hoffmann Prof. Tiago Hermano Breunig Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 372.64 H699t Hoffmann, Elaine Teoria da literatua I / Elaine Hoffmann; Tiago Hermano Breunig. Indaial : UNIASSELVI, 2017. 232 p. : il. ISBN 978-85-515-0104-7 1.Literatura – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. III apresenTação Caros acadêmicos, a disciplina de Teoria da Literatura I leva-nos a um olhar mais aguçado sobre o material escrito. Quando somos instigados a responder o que é um texto literário, geralmente a primeira resposta que nos vem à mente é a de que a literatura deve demonstrar o belo, deve ser valorizada por suas características estéticas. Essa resposta é verdadeira, mas, como vamos estudar, há ainda muitas outras funções exercidas por essa nobre arte. Neste momento, quando deixamos de ser apenas apreciadores para sermos estudiosos da literatura, cabe-nos descobrir a fórmula da beleza e senti-la ainda mais bela por perceber as sutilezas das quais ela é feita. Desde já, advertimos que analisar a literatura está longe da construção de opiniões comuns, há diferentes perspectivas assumidas por grandes estudiosos da área. Como você irá perceber, a confusão já começa com a pergunta: o que é literatura? As respostas são muitas, talvez nenhuma errônea, mas também nenhuma completa ou definitiva, por isso, temos conceitos e não definições. Quando estudamos a literatura, desmontamos suas peças e procuramos entender como tudo se encaixa, e a dimensão de sua beleza se eleva. Quando fazemos isso nos transportamos a outro mundo. Somos Alice através do espelho! Bem-vindos! Prof.a Elaine Hoffmann Prof. Tiago Hermano Breunig IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 – LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? ........................................................................ 1 TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS ........................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 COMO A LITERATURA ACONTECE .............................................................................................. 3 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 9 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 10 TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA.................................................................................. 11 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 11 2 A ARTE .................................................................................................................................................... 11 3 A CULTURA ........................................................................................................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 16 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 17 TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA ................................................................................. 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19 2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA ............................................................... 19 2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA ...................................................................................................................... 20 2.2 FUNÇÃO COGNITIVA ................................................................................................................... 22 2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA ....................................................................... 23 2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA .............................................................................................................. 26 2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA .................................................................................................................. 27 2.6 FUNÇÃO LÚDICA .......................................................................................................................... 29 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 30 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 31 TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO ......................................................... 35 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 35 2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE ........................................................................................................... 36 3 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO? ................................................................................................ 37 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 40 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 41 TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO .................................................. 43 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 43 2 GÊNERO LÍRICO (POESIA)............................................................................................................... 43 3 GÊNERO NARRATIVO ......................................................................................................................49 4 GÊNERO DRAMÁTICO ..................................................................................................................... 57 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 63 RESUMO DO TÓPICO 5........................................................................................................................ 67 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 69 sumário VIII UNIDADE 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO ..................................... 71 TÓPICO 1 – A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS ................................................................. 73 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 73 2 A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS: CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO ........................................................................................................................ 73 2.1 A APLICABILIDADE DA TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS HOJE ............................. 81 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 87 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 88 TÓPICO 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS ......................................................................................... 89 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 89 2 O GÊNERO DRAMÁTICO E O GÊNERO LÍRICO ....................................................................... 89 3 O TEXTO DRAMÁTICO: ORIGEM E EVOLUÇÃO ..................................................................... 96 3.1 BREVE PANORAMA DO TEATRO AO LONGO DOS TEMPOS ............................................ 96 3.2 OS TIPOS DE TEATRO ................................................................................................................... 105 4 O TEXTO POÉTICO: CARACTERÍSTICAS ................................................................................... 106 4.1 A ESTRUTURA DO POEMA ......................................................................................................... 112 4.2 O VERSO .......................................................................................................................................... 116 4.2.1 A rima ....................................................................................................................................... 118 4.2.2 Metrificação e escansão ......................................................................................................... 120 4.2.3 Poemas: formas fixas e visuais .............................................................................................. 122 4.2.4 Método de análise e interpretação de poemas ................................................................... 130 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 137 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 138 TÓPICO 3 – LITERATURA DE CORDEL ........................................................................................... 139 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 139 2 LITERATURA DE CORDEL ............................................................................................................... 139 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 144 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 145 UNIDADE 3 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO......................................... 147 TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO ........................................................................................................... 149 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 149 2 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO ....................................................................................................................... 150 2.1 GÊNERO ÉPICO .............................................................................................................................. 154 2.1.1 A origem do gênero épico ..................................................................................................... 154 2.1.2 Características do gênero épico ............................................................................................ 156 2.1.3 A trajetória das epopeias ....................................................................................................... 163 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 175 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 176 TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO .............................................................................................. 177 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 177 2 O GÊNERO NARRATIVO .................................................................................................................. 178 2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO .................................................................... 180 2.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS ......................................................................................................... 182 2.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA: ENREDO, PERSONAGEM, TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR ................................................................................................ 186 IX RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................205 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................206 TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE .....209 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................209 2 LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE .........................210 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................216 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................225 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................226 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................227 X 1 UNIDADE 1 LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade, você será capaz de: • analisar criticamente os conceitos de literatura e os meios de onde eles surgem; • compreender algumas noções de arte e cultura e suas implicâncias na construção literária;• identificar as diferentes funções da literatura; • reconhecer as condições de produção dos cânones/clássicos e suas implicações sócio-temporais; • distinguir a estrutura e semântica dos diferentes gêneros literários. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará autoatividades que auxiliarão no seu aprendizado. TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 LITERATURA E SEUS CONCEITOS 1 INTRODUÇÃO “Só se pode chamar ciência ao conjunto de receitas que funcionam sempre. Todo o resto é literatura”. Paul Valéry Conceituar o que é Literatura não é tarefa fácil. Desse termo advêm conceitos que estão implicados por questões sociais e históricas. Tal conceito pode ser bastante amplo e abarca os conhecimentos dos indivíduos sobre vários ramos do saber (matemática, filosofia, história...). Podemos observar que o uso da palavra literatura de forma genérica, abrangendo escritos de várias áreas, ainda é bastante corrente, fala-se em literatura do direito, da medicina, entre outras. A ideia de literatura como uma arte específica, tal como a música, a pintura, a arquitetura etc., historicamente, ainda é recente. Atualmente, incorpora o sentido de fenômeno estético e produção artística. Surge, então, um entendimento da palavra literatura como referente a textos imaginativos e criativos em oposição aos textos de caráter científico. Nesse viés, poderíamos definir literatura como a expressão da criatividade humana. Não há para ela fórmula exata, é fruto da imaginação, ainda que possa ser baseada na realidade. 2 COMO A LITERATURA ACONTECE A grande diferença entre ciência e literatura é que a primeira exige um grau elevado de racionalidade e busca a comprovação dos fenômenos da natureza, do funcionamento do corpo humano ou da sociedade etc. Já a literatura pode basear- se em fenômenos da natureza e da sociedade, abre espaço para a subjetividade, para a criação do impossível dentro dos limites do racional, criando mundos paralelos ao que conhecemos. No excerto a seguir, Alice estava em um dia normal como tantos outros, na chatice da rotina. Por certo, não teríamos motivação para ler sobre uma tarde rotineira da vida real, mas é aí que aparecem os elementos mágicos. Na história, Alice é um ser real ou vê-se como tal, mas que descobre um mundo fantástico, criativo. Numa compreensão de literatura como textos de aspecto imaginativo, este certamente é um texto literário. Baseia-se em aspectos da realidade, mas transcende-os, levando o leitor a conhecer um mundo diferente. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 4 Assim, meditava com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor aquele dia era tal que ela se sentia sonolenta e entorpecida) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de levantar-se e colher as margaridas, quando de repente um coelho branco com olhos rosados passou correndo perto dela. Não havia nada de tão notável nisso; nem Alice achou tão estranho ouvir o Coelho murmurar para si mesmo, “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Estou muito atrasado!” (quando pensou nisso, bem mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter estranhado; porém, naquele momento, tudo lhe pareceu perfeitamente natural). Mas quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, deu uma olhada nele e acelerou o passo, Alice ergueu-se, porque lhe passou pela cabeça que nunca em sua vida tinha visto um coelho de colete e muito menos com relógio dentro do bolso. Então, ardendo de curiosidade, ela correu atrás dele campo afora, chegando justamente a tempo de vê-lo sumir numa grande toca sob a cerca. No instante seguinte, Alice entrou na toca atrás dele, sem ao menos pensar em como é que iria sair dali depois. A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas de repente abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo sequer para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um buraco muito fundo. (CARROL, 2000, p. 19) Há outras correntes que compreendem a literatura como o processo de interação entre obra, autor e receptor/leitor. O que é ou não literário nessa perspectiva se definiria por meio da recepção. Dessa forma, o texto já não diz tudo, nem seu autor é o dono de um sentido para ele, o leitor tem sido considerado peça fundamental no processo de leitura. Assim, o conceito do que é ou não é literário é bastante subjetivo, certo? Como descreve Orlandi (1993, p. 9), “há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos que chamamos de ‘formações imaginárias’”. A esse fenômeno, Marques (2003) chama “leitor imaginário”. Vamos pensar juntos. Se, no ato da escrita, existe na mente do criador um leitor virtual, que interfere na construção do texto, seria este uma espécie também de autor? Barthes (1988, p. 68) menciona que “todo texto é escrito eternamente aqui e agora”. Compreende-se por essa afirmação uma concepção do conceito de literatura como produto da recepção, ou seja, o texto se reconstrói eternamente no processo dialógico. Cada leitura é implicada por processos sociais e históricos que fazem parte da formação de quem escreve e do leitor em questão. TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS 5 Machado de Assis demonstra de maneira clara e consciente em seu trabalho essa relação com o seu interlocutor, estabelecendo com o leitor um diálogo aberto. Observe: “Morri de pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e, todavia, é verdade. Vou expor-lhe sumariamente caso”. NOTA Quanto à citação acima, a mesma foi retirada de e-book kindle e não dispõe de numeração de páginas e editora. Para demonstrar a complexidade da ideia de autoria que foi surgindo, o filósofo Michel Foucault demonstrava-se bastante liberal quanto a questões de apropriação das palavras. Segundo Cascais e Miranda (1992, p. 6), para ele, “a única solução, a única lei sobre a edição, a única lei sobre o livro que gostaria de ver instaurada seria a da proibição de utilizar duas vezes o nome de autor, para que cada livro seja lido por si mesmo”. O autor promovia aulas no Collège de France e nunca se importou que as mesmas fossem gravadas, o que é condizente com o seu pensamento de não apropriação das ideias. Ironicamente, logo após a sua morte, e contradizendo seus princípios, as aulas outrora gravadas foram publicadas sob seu nome, o que certamente garante a elas um valor simbólico dado pelo renome do filósofo. Ao mesmo tempo em que, nessa perspectiva da recepção, seria o leitor quem definiria as melhores obras literárias, está ele também sujeito às leis de mercado, às grifes de que fala Bourdieu em “A Produção da Crença”. A definição do que é ou não literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e, conforme Zappone e Wielewicki (2014), está implicada nas coerções das instituições e do mercado. Assim, a literatura é definida por uma comunidade (professores universitários, críticos literários, mercado editorial, escola) que determina os critérios para se reconhecer o texto como literário. As autoras ainda alertam que instituições como a escola, as universidades e a crítica especializada, além de formarem uma comunidade que define critérios para reconhecer o texto como literário, definem também as leituras possíveis para os textos literários, ou seja, formam uma comunidade interpretativa. É a partir das instituições escolares e acadêmicas que, de maneira geral, adquirimos uma consciência sobre quais obras são consideradas literatura e quais não o são. São as instituições que nos inculcam noções sobre o que considerar literatura e o que considerar boa ou má literatura. O interessante é que a própria literatura pode demonstraressa relação das instituições com a palavra escrita. Exemplo disso está no excerto de um conto intitulado “Um Encontro”, de James Joyce, publicado pela primeira vez em 1914: UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 6 Certo dia, o padre Butler nos examinava sobre quatro páginas de história romana e o desajeitado Leo Dillon foi surpreendido com um exemplar do The Halpenny Marvel. — Esta página ou esta outra? Agora, Dillon, vamos! O dia mal... Vamos! Mal amanhecera o dia... Estudou isto? Que tem aí no bolso? Nossos corações dispararam quando Leo Dillon entregou-lhe o folhetim e nós todos assumimos um ar inocente. Padre Butler virou as páginas, franzindo o cenho. — Que porcaria é esta? — perguntou ele. — O Chefe Apache! É isto que você lê ao invés de estudar história romana? Que eu não encontre mais esta maldita droga no colégio. O indivíduo que escreveu isto, suponho, é um desses pobres-diabos que escrevem para ter com que pagar sua bebida. Surpreende-me que um menino como você, educado, leia tais tolices. Compreenderia se se tratasse de... de alunos da Escola Nacional (JOYCE, 2003, p. 18). No excerto acima fica claro que, para o padre há textos que são considerados literatura e outros que não o são. Ao entendermos a literatura como “formações imaginárias”, Orlandi (1993) observa que é necessário compreender que estamos em um terreno movediço, visto que, bem como observa Barthes (1988), o texto é escrito sempre aqui e agora. Junto aos conceitos que podemos depreender acerca do que é literatura, observamos, também, vários pré-conceitos que estão imbricados pelos costumes sociais e temporais. Afinal, como observamos no excerto do conto de James Joyce, há textos que historicamente e dentro de um espaço determinado não são considerados. Julgando-se, nesse exemplo, não só a obra quanto o seu escritor e leitor. Como observa Hoffmann (2014), muitas vezes, o único conceito capaz de distinguir um clássico da literatura de outras obras é a efemeridade. Considera- se, nesse aspecto, o clássico como a literatura aceita e propagada por “classes/ instituições”, sejam elas as escolas, sejam as academias, que fazem valer o nome de alguns autores e obras ao longo do tempo. Nesse aspecto, Pierre Bourdieu (2004) aponta que a literatura, bem como outros bens de consumo, adquire uma grife, um conceito ou moda que são suscetíveis conforme o tempo e os anseios do mercado. Daí as obras que vendem milhares de exemplares (muita gente lendo a mesma coisa), o que gera um capital tanto financeiro para as editoras quanto um capital social, que serve de espaço para a discussão entre membros detentores das mesmas leituras, mas são substituídas constantemente por outras novas obras. Porém, é complicado pensar que, por si só, os denominados clássicos estão além das leis de consumo. Eles continuam porque existem instituições que mantêm o seu status ao longo dos tempos, na condição de textos de estudo obrigatório. Seu consumo não se dá em quantidade tão grande quando as obras que chamamos best-sellers, mas é permanente. “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, e “A Mão e a Luva”, de Machado de Assis, hoje são considerados grandes ícones da literatura, mas surgiram como folhetins de entretenimento cotidiano e numa linguagem sempre preocupada em interagir com o seu leitor. Esses, geralmente membros de uma elite burguesa, portanto difundiam valores de acordo com esse público. TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS 7 Nessa perspectiva, compreende-se que a definição entre o que é ou não literatura entra e sai de moda conforme a estação, ou seja, é efêmero, afinal torna- se difícil estabelecer critérios imutáveis aplicados a todas as obras. Já as obras tidas como clássicas, podemos compará-las ao “pretinho básico”, visto que a permanência de sua elegância está garantida ao longo dos tempos pelos críticos e pelas instituições. Compreendemos aqui que a literatura como arte é capaz de levar o homem a vivenciar experiências e emoções, aquela capaz de emocionar ou mesmo provocar o seu leitor, ou seja, deverá existir uma identificação entre a obra e o seu leitor. Quando isso não acontece entre a obra literária e os seus críticos, possivelmente ela será desclassificada, como observamos no excerto de James Joyce, anteriormente citado. Assim, a definição de literatura passa pelo crivo: é arte para quem? Dessa forma, o escritor deve estabelecer um diálogo estético e crítico com a realidade, mas deve também ser um criador de mundos imaginários, trazendo à tona os sonhos e frustrações das pessoas do seu tempo, levando-as a uma produção de sentidos do texto das formas mais diversas, indo além das linhas, do dito explícito, fazendo conexões entre arte e realidade. Para encerrar este tópico, podemos concluir que a literatura como arte é um clássico, ou seja, aquela que permanece na memória com o passar do tempo. No entanto, Ítalo Calvino (2002, p. 10) aborda que “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nesse viés, podemos apontar ainda que aquilo que é literatura pode ser um consenso, mas também cada um de nós pode ter aquelas obras que consideramos literatura de forma individual, à revelia do senso comum. Como vimos, há certa dificuldade em distinguir a literatura de conceitos valorativos. NOTA Mimetizando-se tem sentido de: adaptando-se à mente como se sempre estivesse ali. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 8 A literatura faz parte do produto geral do trabalho humano, isto é, da cultura. E a cultura de um povo são suas realizações, em diversos sentidos, como as ciências e as artes. É um conjunto socialmente herdado, que de certo modo determina a vida do indivíduo (SAMUEL,1985, p. 7). São as relações humanas que formam nossa cultura, é através do contato com o outro que nos transformamos naquilo que somos, na maneira como agimos, como construímos nossas crenças, definimos características de linguagem, modo de vestir etc. Consideramos que todas as criações humanas que visam expressar o mundo de modo sensível, através de recursos das artes plásticas, da linguística, da sonoridade, todas essas formas de exprimir emoções e percepções são arte. É pela arte que expressamos a nossa cultura. Por isso, estudar e compreender a arte e a cultura é um exercício de autocompreensão. 9 Neste tópico, você aprendeu que: • A princípio, o termo literatura abarca o conteúdo das mais variadas áreas: direito, astronomia, medicina etc. Com o passar do tempo surge o conceito de literatura como expressão artística da oralidade e da escrita. • A literatura distingue-se da ciência, apesar de que, como ela, pode basear- se em fenômenos naturais ou sociais, transcende os limites da realidade/ racionalidade, acrescentando criativamente à ficção e à fantasia. • Algumas correntes consideram a literatura como o processo interativo entre autor, texto e leitor, compreendendo que o sentido não está pronto no texto imóvel, mas constrói-se dialogicamente. • Compreender o leitor como construtor de sentidos remete-nos à teoria da morte do autor, defendida por Roland Barthes, já que os sentidos do texto, nessa perspectiva, estariam sendo construídos sempre e continuamente pelo ato da leitura. • O conceito do que é literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e qualquer tentativa de consenso tende a ser frustrada. • Os conceitos que aprendemos sobre literatura normalmente são construídos por instituições acadêmicas e críticos da área. Porém, existe um conflito entre o que se considera boa literatura pelas instituições e o que se considera boa literatura sob a ótica do consumidor dos produtos editoriais contemporâneos, especialmente os best-sellers. RESUMO DO TÓPICO 1 10 1 Leia o texto a seguir: Sabemos que o reino das palavras é farto. Elas brotam de nossopensamento de maneira natural, não temos a preocupação de elaborar o que dizemos ou até mesmo escrevemos. As palavras, contudo, podem ultrapassar seus limites de significação. Podendo, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a realidade. O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza para que produzam um efeito que vá além da sua significação objetiva, procurando aproximá-las do imaginário (DANTAS, 2017). Com base nesse texto, podemos afirmar que: a) ( ) A literatura é pautada sempre na realidade. b) ( ) No texto literário, o sentido – a interpretação construída –, diferentemente dos textos não literários, é subjetiva, conta com a imaginação do escritor e leitor. c) ( ) O texto literário afasta-se da realidade, não busca nela inspiração, pois assim seria tomado por simplório. d) ( ) O texto literário geralmente tem caráter objetivo e sai do pensamento do seu criador de forma espontânea, sem uma preocupação com a forma de sua elaboração. AUTOATIVIDADE 11 TÓPICO 2 NOÇÕES DE ARTE E CULTURA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Podemos entender cultura como o cultivo da mente humana e as práticas que dela advêm. Estas estão ligadas à sociedade em que se insere e sua história. O termo culturas, no plural, refere-se ao fato de que em diferentes espaços os indivíduos desenvolvem culturas singulares, o que as distingue das demais. Dessa forma, a identidade de cada indivíduo se desenvolve em relação à cultura a que está exposto e às suas experiências particulares. A literatura, bem como outras artes, está implicada pela cultura e esta é capaz de criar mundos, no plural. Ao falar de arte não há como dissociá-la da cultura na qual ela nasce. Porém, a cultura não é estática, visto que, com o tempo mudam-se os valores, os costumes, a maneira que cada sociedade tem de ver o mundo e de organizar a vida. Assim também a arte há de renovar-se constantemente e, apesar de nascida dentro de cultura específica, que por sua vez dialoga com outras culturas, é produto do pensamento do artista, que tem uma identidade própria, tornando cada obra de arte singular. A arte representa a sociedade e a cultura, expressa maneiras de contemplar o mundo, mas o recria de acordo com a forma de expressar de seu criador. A arte, antes de tudo, está ligada à estética, à contemplação, mas muitas vezes mostra-se crítica, subversiva e desafiadora, trazendo-nos o desafio nem sempre tranquilo de ver e pensar além. 2 A ARTE "A ciência descreve as coisas como são; a arte como são sentidas, como se sente que são". Fernando Pessoa A palavra arte deriva do latim ars ou artis, que significa maneira de ser ou de agir, habilidade. Na cultura greco-romana possuía o sentido de ofício. Nesse aspecto, a arte está ligada ao fazer, construir manualmente. A ela também se atribui o sentido de conhecimento, visão ou contemplação. Nesse sentido, não se coloca como arte apenas o aspecto exterior, mas um sentido próprio de visão da realidade. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 12 Compreende-se, assim, a arte como o espaço de fazer, de conceber o conhecimento e produzir uma visão possível, mas não única. Valores estéticos, criação e atividades humanas estão implicados em determinados períodos históricos, diferentes culturas sociais ou mesmo interpretações individuais. Se, por um lado pode parecer difícil dar uma explicação incontestável sobre o que é arte, por outro, se nos pedem para dar exemplos de artistas ou obras artísticas, certamente lembraremos alguns itens que de maneira geral compreendem-se como tal: o romance Dom Quixote de Cervantes, as pinturas Mona Lisa de Leonardo da Vinci ou Abaporu de Tarsila do Amaral etc. Explicar o porquê essas obras são arte é mais complexo. Podemos entender por arte manifestações da atividade humana que nos trazem sentimentos de admiração, reflexão da realidade etc. Podemos dizer, ainda, que a interpretação da arte consiste no entendimento do que é belo, do que nos faz ver novas perspectivas da realidade. Nesse aspecto, perceber a arte seria mais interessante que a definir. No entanto, a própria arte e seus artistas podem trazer desafios a esse entendimento e aí voltamos à pergunta: Isso é arte?! Jorge Coli (1995) exemplifica um desses desafios ao mencionar Marcel Duchamp, que leva à exposição um mictório igual a tantos outros, sem nenhuma mudança estética, levando apenas sua assinatura. Seria essa uma crítica à arte que aceita como tal quaisquer criações existentes sob a assinatura de um artista já consagrado? FIGURA 1 - MICTÓRIO FONTE: Marcel Duchamp (1917) TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA 13 O artista faz o mesmo com outros objetos do cotidiano, como rodas de bicicleta ou garrafas, incitando o público a pensar que um objeto é artístico simplesmente porque deslocado de seu ambiente cotidiano para um espaço destinado às obras de arte e aceito como tal. O que poderia ser compreendido como uma crítica daquilo que se considera cultura ou um questionamento de valores continua exposto como arte. Sob esse viés, podemos interpretar que a atitude dos “detentores da dita alta cultura” estariam tão submissos quanto os consumidores comuns de determinada marca de roupa ou calçado, atribuindo-lhes um valor agregado pelo seu nome? Algo que já não se pode mais ser questionado? Por outro lado, tal objeto, convertido em peça de museu, torna-se peça de contemplação e provoca sentimentos específicos. Estaria aí seu estatuto de arte? Ou antiarte, que ganha outros adeptos? Assim como a valorização de textos, pinturas, músicas etc., dá-se pelas condições de recepção da arte, existem as condições culturais, estéticas específicas de um dado espaço institucional ou social etc. Dessa forma, não conseguimos aqui definir um conceito unânime do que vem a ser arte. Se Mona Lisa é uma arte maior que Duchamp ou não. Estes são conceitos movediços e cada um tem seu espaço próprio. Adorno (1997) explica que a arte em si não tem utilidade, logo não se pode comparar com um utensílio. Ela não pode ter uma finalidade, pois é já uma finalidade em si mesma. Só objetos são definidos não pelo que são, mas para o que servem. A arte seria o espaço da liberdade, não visa a nada além de si mesma. O autor ressalta, ainda, que o valor de comércio de dada arte não tem relação com o valor estético, visto que o valor de uma obra de arte é inestimável. Tampouco saber se um artista ganha muito dinheiro corresponde ao valor de sua arte e sim a um valor de mercado. Sobre isso, Pierre Bourdieu, em “A Produção da Crença” (2004), menciona que a arte tem um capital simbólico, ou seja, o valor que se atribui em termos de cultura ao detentor de uma obra; um valor social, que permite ao possuidor e consumidor de determinadas obras circular em determinados meios sociais, e o capital material, medido em dinheiro, vale mais que aquele que possui trabalhos mais valorizados pela crítica, sendo que os nomes dos autores ou obras funcionam mesmo como uma grife. Daí possamos talvez inferir que o exemplo do mictório de Marcel Duchamp foi retirado da sua condição de objeto e não tem mais serventia, resta-lhe o papel de arte, acentuado pela assinatura (marca) do artista. Parece-nos bastante complexa essa discussão, não? Mas temos até aqui uma boa reflexão a fazer. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 14 3 A CULTURA A cultura é a própria identidade nascida na história, que ao mesmo tempo nos singulariza e nos torna eternos. É índice e reconhecimento da diversidade. Campomori A palavra cultura surge no século XV com o entendimento de cultivo da terra, daí o fato de hoje usarmos palavras como agricultura, floricultura, suinocultura etc. No século XVI, cultura passa a referir-se também ao cultivo da mente humana, afirmando-se que somente alguns indivíduos, classes ou grupos sociais têm mentes e maneiras cultivadas e que somente alguns possuem nível elevado decultura e civilização. Já a palavra culturas, no plural, refere-se a diferentes modos de vida, valores e significados compartilhados por grupos distintos. A cultura está intrinsecamente ligada à comunicação humana, ao uso de linguagens, visto que o homem vive em comunidade e é preciso que exista uma língua e uma cultura semelhantes para que possam interagir. As diferentes linguagens é que distinguem uma sociedade das demais. É através da linguagem que o homem consegue acumular os conhecimentos e transmiti-los às próximas gerações. Essa linguagem, por sua vez, está em constante mutação, porque está relacionada com as atividades sociais e se adéqua às necessidades que vão surgindo. Está ligada à forma de enxergar o mundo, de encarar as dificuldades e as alegrias. A cultura é que determina os hábitos particulares de um povo. Nesse sentido, não há, como muitas vezes ouvimos, povo sem cultura. O que há são culturas mais ou menos valorizadas em determinados espaços sociais. É através da literatura como elemento cultural que se desfaz a ideologia de homem como objeto, instrumento para funcionalidades práticas, para dar espaço ao homem como momento do espírito humano, como ser cultural. É a percepção do homem por si mesmo. A literatura trabalha para o desenvolvimento de conceitos interiores, do espírito humano, para os estímulos artísticos. É através do conhecimento da literatura e de outras artes que compreendemos tanto a nossa cultura quanto nos tornamos mais sensíveis às culturas alheias. Por meio da literatura compreendemos a visão de sociedade de outras épocas e de outros povos. É por meio da literatura que nos detemos por mais tempo a contemplar uma obra e a pensar nas culturas nela descritas ou expostas. A literatura é uma das artes capazes de mostrar e estudar a cultura de um povo, ou mesmo a construção de dadas culturas. Mesmo que talvez o conceito mais comum sobre literatura esteja ligado à arte por ela mesma, também encontramos várias outras funções da literatura. Sobre isso, trataremos no próximo tópico. TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA 15 DICAS SUGESTÃO DE FILME: O SORRISO de Mona Lisa. Direção de Mike Newell. Produção de Revolution Studios e Columbia Pictures. 2003. O filme é protagonizado por Julia Roberts, no papel de Katherine Watson, uma professora de História da Arte muito empolgada por conseguir uma vaga para lecionar em Wellesley. Porém, logo percebe o tamanho do desafio que teria de enfrentar. Na primeira aula, ao fazer uma introdução da história da arte, conforme foi passando slides com obras, suas alunas sabiam o nome de todas elas, de quando datavam e já tinham até as suas interpretações. O que deixa a protagonista meio sem chão. Isso porque tinham lido todo o livro destinado à disciplina, talvez justamente para pôr a nova professora numa saia justa. Daí por diante, Katherine muda a estratégia e desafia suas alunas a interpretar outras obras de arte, que não aquelas previstas no livro didático, instiga as estudantes a construírem seus entendimentos. A arte que se estuda institucionalmente costuma ser arte conforme os critérios de quem? Mas aí entra em jogo o papel da direção da escola que questiona os métodos da professora por priorizar o ensino de obras “clássicas”. Além do conceito de arte, o filme abrange também questões culturais, especialmente sobre a vida e o papel social das mulheres nos anos 50. O que esperar delas? É um drama que vale a pena você conhecer e que certamente conseguirá fazer um link com o que estamos estudando sobre arte e cultura. 16 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A arte é amplamente entendida como representação estética, singular da realidade e da criatividade humana. Está ligada a períodos históricos e às sociedades em que se insere, mas é produto do fazer/da atividade humana e como tal cada obra será singular, produto de uma mente individual. Não conseguimos ter uma definição fechada do que vem a ser arte, de maneira que se torna mais fácil identificá-la do que a definir. • Como vimos com o exemplo de Marcel Duchamp, corre-se o risco de o produto confundir-se com a assinatura de um artista consagrado, de forma a identificar quaisquer objetos como arte. É dessa forma que o conceito de arte se confunde com o conceito de grife/marca. • Por cultura compreendemos o fazer humano, suas práticas em relação à sociedade em que se insere. Diferentes culturas representam diferentes realidades e formas de ver o mundo, e a arte é a expressão da cultura, porém reconstruída sob a ótica particular do artista. 17 1 O conceito de arte está ligado ao trabalho humano que provoca admiração, seja por sua beleza ou criatividade. Há uma corrente que defende que, apesar de ser fruto do trabalho humano, a arte tem uma finalidade em si mesma enquanto objeto artístico e, portanto, não pode comparar-se a um utensílio. Não há uma definição conclusiva sobre o que é arte, logo a mesma está sujeita às condições de aceitação da crítica e do público. Observamos que, às vezes, o nome do artista ganha renome e logo tudo que venha da ação dele acaba sendo considerado arte, ou seja, acontece com a arte o mesmo que acontece com quaisquer produtos de consumo em massa: a marca do sabão em pó, da calça jeans, do tênis etc. Dessa forma, muitas vezes, o nome do artista ou o espaço em que se localiza determinado objeto simplesmente acaba por defini-lo como arte, mas essa é uma questão que gera muita discussão. Sobre isso, assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para cada uma das alternativas a seguir. ( ) Qualquer objeto deslocado do seu espaço original para um espaço artístico torna-se arte e ninguém discute isso. ( ) Segundo o que estudamos, a arte, assim como a roupa ou outros produtos, estão sujeitos a ter no nome do seu autor um efeito de marca, grife. ( ) Para Adorno (1988), a arte em si não tem utilidade, logo não se pode comparar com um utensílio. ( ) Geralmente um objeto é determinado como arte por um grupo de pessoas que o aceitam como tal, mas não é possível dar um conceito fechado sobre o que é ou não é arte. A sequência correta é: a) ( ) V,V,V,V b) ( ) F,F,F,F c) ( ) F,V,F,V d) ( ) F,V,V,V AUTOATIVIDADE 18 19 TÓPICO 3 AS FUNÇÕES DA LITERATURA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Assim como a arte pode ter um conceito mais comum, que está ligado ao belo, à apreciação, essa é, também, uma das definições mais recorrentes de literatura, sendo que, nesse viés, a literatura não teria outro compromisso além do estético. Essa é a primeira função da literatura, a estética. Seria assim a contemplação do belo. No entanto, a literatura também pode ser pragmática; atende a anseios ideológicos de determinados grupos; atua como forma de protesto à política e à sociedade; informa, de maneira particular, ativando sentimentos e sensações; funciona como catarse, de forma a purificar o espírito do autor e do leitor. São essas as funções da literatura e, de acordo com o descrito acima, são nomeadas como: função cognitiva, político-social, pragmática, catártica e lúdica. Veremos com mais detalhes cada uma delas a seguir. 2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA Assim como outras formas de arte, a literatura tem o intuito de mobilizar sentimentos e sensações através da palavra, não se trata apenas de usá-la como meio de comunicação, embora também o faça. Enquanto outros textos têm uma finalidade talvez mais objetiva, a arte literária permite transpor o mundo do nosso cotidiano sem dele se perder, permitindo-se à subjetividade dos textos de caráter conotativo, ou seja, que adquirem uma interpretação polissêmica. Apesar disso, a literatura está ligada à sociedade que representa, afinal, os escritores são cidadãos de um meio social específico. Dessa forma, é comum ouvirmos que o artista recria a realidade, tornando-a mais interessante e, por vezes, mágica ou mística. O que vamos observar a seguir é que a literatura não tem uma finalidade específica,porém não é ingênua, nem vaga, não acontece simplesmente ao acaso, ela exerce várias funções em relação ao público leitor que vai desde a contemplação da beleza à emotividade e à mobilização política e social. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 20 NOTA Conotativo: que tem sentido figurado, diferente daquele dicionarizado, quando uma palavra ou expressão adquire novos sentidos. Polissêmica: que pode ter diferentes sentidos conforme o contexto e os sujeitos envolvidos (nesse caso, escritor/leitor/sociedade). 2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA Podemos afirmar que esta talvez seja a mais representativa das funções da literatura, visto que se encontra mesmo no cerne daquilo que a maioria dos conceitos aponta sobre o que vem a ser arte e literatura. Como identificamos neste material, ao falar sobre a literatura e seus conceitos, ela tem o sentido de fenômeno estético e produção artística. É o fazer estético, criativo, que difere o texto literário do científico, jornalístico etc. Não é apenas o tema que toca o leitor, mas principalmente a maneira como ele é retratado, a maneira como ele interpela o seu público, os sentimentos e emoções que desperta. Não se trata apenas de dizer, mas principalmente a maneira como é dito. A capacidade de apreciar o belo, o bonito e as sensações que sentimos em contato com a obra literária se relacionam ao emprego adequado da metrificação, do ritmo, da rima, das figuras de linguagem, da articulação de personagens, estruturação do enredo etc. Olavo Bilac, poeta brasileiro que muito se esmerou em utilizar técnicas perfeitas na produção de sua literatura, expressa seu ideal de escritor no poema Profissão de fé, comparando o trabalho do poeta à produção de uma joia. Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor. Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena como em prata firme Corre o cinzel. Torce, aprimora, alteia, lima A frase: e, enfim, TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 21 No verso de ouro engasta a rima Como um rubi. Quero que a estrofe cristalina Dobrada ao jeito Do ourives saia da oficina Sem defeito: Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir, Deusa serena, Serena Forma! Nota-se a preocupação estética tanto pelas palavras do poeta quanto pela apresentação das rimas e da estrutura do poema em questão. Vinícius de Moraes escreveu sonetos, sempre se preocupando com as características formais. O soneto, por natureza, deve sempre ser composto por duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos), se não for assim, não será um soneto. Além disso, o escritor traz a seus poemas melodia, rima e métrica perfeita. O que nos leva a compreender: existe uma preocupação com a forma, prevista pela função estética. Você pode notar que aqui fazemos a escanção de cada verso do poema (divisão em sílabas poéticas), de maneira que se observa mesmo uma preocupação matemática do poeta ao fazer cada verso com o mesmo número de sílabas. Soneto de Fidelidade De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to An/tes/ e /com/ tal /ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to De/le /se en/can/te /mais/ meu/ pen/sa/men/to Que/ro/ vi/vê/-lo em/ ca/da/ vão/ mo/men/to E em/ seu/ lou/vor/ hei/ de es/pa/lhar/ meu/ can/to E/ rir/ meu/ ri/so e/ de/rra/mar/ meu/ pran/to Ao/ seu/ pe/sar/ ou/ seu/ con/ten/ta/men/to E as/sim/ quan/do/ mais/ tar/de/ me/ pro/cu/re Quem/ sa/be a/ mor/te, an/gús/tia/ de/ quem/ vi/ve Quem/ sa/be a/ so/li/dão/, fim/ de/ quem/ a/ma Eu/ pos/sa/ me/ di/zer/ do a/mor (que/ ti/ve): Que/ não/ se/ja i/mor/tal,/ pos/to /que é/ cha/ma Mas/ que/ se/ja in/fi/ni/to en/quan/to/ du/re Vinícius de Moraes UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 22 Veja que as rimas são as mesmas em cada verso das duas primeiras estrofes e se intercalam na penúltima e última estrofe. Quanto à métrica, temos um soneto decassílabo, ou seja, todos os versos têm dez sílabas poéticas, que não são contadas como na divisão de sílabas de palavras para outros fins. As sílabas poéticas fazem-se de acordo com a sonoridade, de maneira que, por vezes, a sílaba final de uma palavra aglutina-se à inicial de outra, geralmente isso acontece quando há encontro de vogais. Isso pode parecer um pouco complexo agora, mas não se preocupe, as regras de metrificação serão estudadas na segunda unidade deste material. Nesse momento, as trouxemos com o intuito de exemplificar o seu uso como uma das regras estruturais com vistas à estética literária. Apesar de a preocupação estética estar no cerne da produção literária, os textos podem ter funções práticas, como informar e fazer perceber o conhecimento. É o que veremos a seguir ao tratar da função cognitiva. 2.2 FUNÇÃO COGNITIVA Entende-se por função cognitiva aquela em que o escritor descreve a percepção do conhecimento de maneira particular, a forma pessoal como visualiza o mundo ao seu redor é o espaço em que razão e emoção se fundem. Leia o poema a seguir e observe que, além das características do gênero poesia, como o ritmo e sonoridade, a informação transmitida faz parte do cotidiano, porém o texto literário está impregnado da emoção, da percepção pessoal de uma dada realidade. O poema informa uma realidade a partir do ponto de vista do eu lírico. O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Manuel Bandeira Analisemos agora uma reportagem que trata do mesmo tema: TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 23 Homem cata comida no lixo perto de local de reunião da Rio+20 Ele contou que recolhe restos de carne crua para alimentar a família. Sem trabalho, ele mora nas ruas do Rio de Janeiro há oito anos. Um homem foi visto catando comida no lixo em frente ao prédio onde ocorria uma reunião sobre segurança alimentar da Rio+20. O flagrante foi feito bem em frente ao Centro de Convenções Sul América, a Cidade Nova, no Centro do Rio de Janeiro, durante uma reportagem para o Globo Rural, nesta sexta-feira (22). Como mostrou o RJTV, Luciano da Silva, de 26 anos, contou que há oito anos mora nas ruas e depende dos restos de comida para sobreviver. O que ele cata no lixo serve de alimento para toda a família. Como não trabalha, ele diz que costuma pegar no lixo pedaços de carne crua e de comida pronta. O flagrante foi feito no dia em que o documento final da Rio+20 foi divulgado. Entre os temas tratados está justamente a erradicação da pobreza. FONTE: HOMEM CATA COMIDA NO LIXO PERTO DE LOCAL DE REUNIÃO DA RIO+20. Rio de Janeiro, 22 jun. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/rio20/noticia/2012/06/ homem-cata-comida-no-lixo-perto-de-local-de-reuniao-da-rio20.html>. Acesso em: 23 abr. 2017. Nesse último texto, o tema é bastante semelhante ao do poema de Manuel Bandeira, porém é escrito de maneira impessoal, tem caráter comunicativo e não explora aspectos emotivos. Poderíamos ainda dizer, segundo algumas definições de literatura, que essa característica de sobriedade e imparcialidade diante da informação categoriza esse segundo texto como não literário. Tanto o poema quanto a reportagem têm caráter informativo, porém o primeiro imprime uma marca pessoal e podemos até dizer que, além disso, caminha para uma crítica social. Este aspecto, aliás, é trabalhado pela função político-social ou engajada, sobre a qual trataremos a seguir. 2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA Compreende-se como aquela que trata de problemáticas características de determinado contexto espaçotemporal. Conforme Paviani (2003, p. 85), “a arte em sua suprema determinação é um passado. No momento atual cabe antecedência à reflexão”. Ou seja, nessa perspectiva, a arte como função social deve prevalecer à perspectiva de existência da arte pela arte.Segundo ele, Hegel afirmava que “A ciência da arte é muito mais necessária em nossa época do que em outras nas quais a arte chegava por si mesma a obter inteira satisfação” (PAVIANI, 2003, p. 85). Contemporaneamente, a arte e a literatura adquirem o espaço de discussão político-social, retrata as carências da sociedade atual. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 24 O poema O bicho, que usamos para tratar da função cognitiva, ao mesmo tempo que explicita uma realidade de maneira pessoal, traz uma crítica social a respeito das desigualdades sociais, de forma que, além da função cognitiva, traz também a função de literatura engajada. Um autor brasileiro de bastante destaque nesse aspecto é Ferreira Gullar, definido por Costa (2017, p. 58) como escritor que tem “autenticidade temática pelo engajamento político-social; na verdade, um letal ‘punhal de fina lâmina’ quando ativista verbal, o que lhe garante lugar de destaque na poesia brasileira”. Leia o poema a seguir e observe nele a função de que estamos falando. Não há vagas O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira. Ferreira Gullar TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 25 IMPORTANT E As obras costumam ter direitos autorais até 70 anos após a morte de seu autor. Ferreira Gullar faleceu em 2016. Porém, segundo Ana Beatriz Nunes Barbosa (2017), “há usos que são permitidos, MESMO NO CASO DE OBRA PROTEGIDA. Seriam estes casos os das chamadas limitações ao direito autoral: [...] • A citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra. • A reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Observação da autora deste material: Esse critério também é utilizado em outras obras que constam neste estudo, onde poemas são citadas na íntegra para fins de entendimento e análise, mas não obras completas dos autores. É muito importante saber distinguir o que é a utilização necessária para fins de estudo do simples plágio (cópia, sem o resguardo da autoria). Este último constitui crime. Publicado em 1963, o poema acima retrata problemas sociais e econômicos do país que, por ironia, continuam muitíssimo atuais, como o custo de vida, o desemprego, a falta de espaço e importância para a poesia, como o autor demonstra através da metalinguagem do poema referindo-se a ele mesmo. Afinal, nesse contexto, o poema “não fede nem cheira”. Podemos compreender a palavra poema como a beleza da vida e, num contexto social em que falta às pessoas o básico para sua subsistência e o seu tempo é ocupado com a mera sobrevivência, não há espaço para interpretar o belo ou se ocupar da arte. Outros autores, como Castro Alves, já apresentavam uma poesia engajada em Navio Negreiro, por exemplo. Veja o trecho a seguir: E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra, 26 UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." Castro Alves, também conhecido como o poeta dos escravos, retrata nesse poema a dor dos negros durante as viagens marítimas, e vai brincando entre essa dor (chora, de raiva delira, enlouquece) e elementos “lúdicos” (como a dança, a risada, a canção...). Uma combinação sarcástica e cruel, retratando uma realidade em que alguns seres humanos são torturados e têm suas vidas anuladas em prol do conforto alheio. Da maneira como está configurado, faz uma crítica feroz a essa realidade e esse jogo entre a dor e o riso que nos mostra a loucura de tal situação. O mesmo poema foi musicado por Caetano Veloso e Maria Bethânia e enaltece, além do problema representado pela poesia, toda a sua rima e melodia. Vale a pena conferir. Ao falar a respeito de literatura engajada, é nítido que o conceito de arte como expressão do belo não se desfaz da função estética, mas agrega nova função relacionada à crítica, ou seja, a literatura adquire caráter prático. Sobre isso, vamos tratar ao abordar a função pragmática da literatura. 2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA Também conhecida como utilitária, passa pelo viés de uma literatura que busca outro fim além da estética, busca um fim não artístico, não sendo valorizada por si mesma apenas, mas pela sua finalidade. Analisa-se aqui a capacidade que a arte tem de pregar uma ideologia. Observamos isso desde o período romântico, em que a obra Iracema, de José de Alencar, tem um pano de fundo histórico, a começar pelo próprio título, que é um anagrama da palavra América. O romance conta ao mesmo tempo a história de amor entre Iracema e o europeu Martim. Dessa união nasce Moacir, que, filho de índia e europeu, representa a formação da identidade nacional. Outros aspectos, como a valorização da natureza e celebração das características brasileiras, elementos típicos do período romântico, são ideologias inculcadas pela obra. Esta representa ainda a chegada do branco como a quebra de harmonia existente nas comunidades indígenas, representada pelos conflitos causados pela presença de Martim. No modernismo observamos também algumas ideologias trazidas pela arte. Prega-se a ideologia de uma cultura nova, a ruptura com o que é estrangeiro para dar espaço a elementos nacionais, à valorização da cultura brasileira. Essa ruptura, porém, não se dá completamente. TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 27 Passamos a descrever o nacional, mas após “devorar” os conceitos europeus, especialmente das artes de vanguarda, daí o conceito de antropofagismo. “Devora-se o outro”, deglute-se, “vomita-se”, restando dele apenas a forma, mas trazendo a valorização dos temas nacionais, ideologia pregada pela arte. Marcou esse período a frase de Oswald de Andrade: “Tupi or not tupi, that is the question”. Cultivar ou não o nacional. Porém, a brincadeira de substituir o tupi pelo verbo to be (ser) joga justamente com essa questão de construir uma ideologia nacional, mas sobre uma concepção artística europeia. Trouxemos aqui apenas exemplos de quando essa função lúdica ocorre, porém acontece em quaisquer textos ou obras de arte que busquem inculcar no público determinada ideologia. Retomando o termo “vomitar”, compreendemos que esse ato equivale a uma “limpeza do organismo”, uma forma de pôr para fora o que está a incomodar. Em sentido semelhante surge a função catártica da literatura, que se refere não a detritos humanos, mas à expurgação (purificação) de sentimentos e emoções através da literatura. 2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA Conforme o Dicionário Priberam (2017), a palavra catarse foi utilizada por Aristóteles como a purificação sentida pelos espectadoresdurante e após uma representação dramática. Também apresenta os sentidos de libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão. Quando a literatura provoca esses efeitos, ela estará exercendo a função catártica. Alguns escritores sentem a catarse durante a escrita, bem como o leitor ou espectador de uma determinada obra escrita ou cinematográfica pode ter esse sentimento de catarse/purificação emocional, sentindo alívio de suas tensões e frustrações, identificando-se com determinado personagem e suas ações. Giacon (s.d., p. 6) observa que “nas peças teatrais e no cinema essa função atinge seu grau máximo pelo uso de visão e audição, contudo nos textos literários é necessário que o escritor faça o leitor percorrer um caminho tortuoso até o conflito para atingir o máximo do grau catártico de uma obra”. Um conto, por exemplo, de maneira geral é composto pela apresentação do enredo, conflito, busca pela solução desse conflito, clímax e desfecho. O clímax é o ponto alto do conto, momento de maior tensão, quando ficamos numa grande expectativa para saber o desfecho. Se compararmos a uma telenovela, esse seria justamente o ponto em que acaba o capítulo e tem-se de esperar pelo próximo capítulo, no dia seguinte. O desfecho é quando o conflito se resolve, “a justiça é feita”. O clímax é o momento de maior tensão para a personagem e também para o espectador ou leitor, já no desfecho ocorre o alívio, a descarga de toda tensão. 28 UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? A Cartomante, de Machado de Assis, conta a história do casal Vilela e Rita e seu amigo, Camilo. Rita e Camilo são amantes e este receia que Vilela tenha descoberto o caso porque o chamou à sua casa para uma conversa. O caminho de Camilo até a residência do casal é de extrema tensão, o leitor acompanha o drama psicológico do personagem durante todo o percurso. O clímax se dá no momento em que Vilela recebe Camilo e o leva até uma sala, onde se dá o desfecho da situação. O clímax cria o ápice de tensão, que é liberada com o desfecho trágico do conto. A função catártica também pode ser identificada quando o autor descarrega no texto os sentimentos guardados, talvez em busca de alívio. É o que se pode perceber em Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos. Versos Íntimos Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de sua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! Augusto dos Anjos NOTA quimera = esperança Escarro = Matéria viscosa expelida pela boca depois dos esforços da expectoração. Chaga = pancada ou ferida Afaga = acaricia Escarra = O ato de expelir pela boca matéria viscosa. TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 29 É possível interpretar que no poema o autor coloca todo o seu rancor, sua decepção e descrença em relação ao mundo e às pessoas e, possivelmente, o desejo de uma contrapartida, como forma de vingança representada pelos dois últimos versos. A função catártica aparece de forma bastante nítida no poema. Assim como a literatura provoca no leitor momentos onde há certo “descarrego de emoções”, exercendo seu caráter catártico, pode também ter uma função lúdica, quando se apresenta como uma forma de jogo, de prazer e entretenimento, como ocorre com a função lúdica. 2.6 FUNÇÃO LÚDICA Conforme Giacon (s.d.), o autor escreve por prazer, seja como forma de trabalho, seja como forma de passatempo. Há uma ligação entre escritor e leitor, visto que o segundo também encontra o prazer na fruição da leitura, ou seja, ainda que a interação de ambos com o texto não aconteça simultaneamente, ocorre entre eles um pacto. Essa função da literatura fica bastante explícita em alguns textos de Machado de Assis, quando este estabelece um diálogo aberto com seu leitor, chamando-o à reflexão sobre o texto. Temos a seguir um excerto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que exemplifica bem o caso. Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja e não esteja aí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. NOTA O exemplar do livro utilizado para a citação acima está em e-book Kindle e, por esse motivo, não possui data de publicação e numeração de páginas. Este é um exemplo nítido de autor que literalmente dialoga com o leitor como se ele estivesse à sua frente, supondo o que pensa e prevendo suas reações. Em outros textos, Machado convida seu leitor a ser um leitor ruminante, ou seja, rumina suas leituras, reflete a respeito delas. As funções da literatura que abordamos são as mais recorrentes nos materiais de Teoria literária, no entanto, alguns autores podem trazer também outras funções ou, ainda, diferentes nomenclaturas. 30 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A literatura exerce distintas funções. Retomamos a seguir cada uma delas de forma breve. o Função estética: é a responsável pelo mais recorrente dos conceitos de arte, que é a representação do belo, daquilo que é digno de contemplação, está ligada aos aspectos formais considerados ideais a cada gênero. o Função cognitiva: descreve o conhecimento de forma particular, fundindo razão e emoção. Tem caráter informativo, mas apresenta uma visão particular sobre um fato ou situação, apelando para a emotividade. o Função político-social ou engajada: preocupa-se com as problemáticas políticas e sociais, assumindo uma posição crítica e, por vezes, até militante. o Função pragmática: compreende que a literatura não é apenas produto da estética, mas deve ser utilitária. Vai além da arte e, por vezes, pode servir a ideologias específicas. o Função catártica: tem a capacidade de provocar no autor e no leitor a libertação de sentimentos ou emoções reprimidas, causando um efeito de purificação. o Função lúdica: Geralmente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. O prazer do autor no ato da escrita é visível ao leitor. 31 1 A literatura é conhecida como a arte da palavra e, como tal, funciona como instrumento de comunicação e interação social. Há uma concepção de que o papel primordial da literatura é estético, porém observamos que ela vai além da mera contemplação e assume outras funções, como o lazer e o entretenimento, informação, reflexão, conhecimento, cultura, ou ainda, traz questionamentos políticos e denúncia de fatos sociais. Com base nesse contexto, relacione as colunas de forma a indicar as características adequadas a cada função da literatura. I- Função estética II- Função cognitiva III- Função político-social ou engajada IV- Função pragmática V- Função catártica VI- Função lúdica ( ) Comumente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. São textos em que o prazer do autor no ato da escrita é perceptível. ( ) Provoca no leitor o sentimento de libertação de uma emoção ou sentimento reprimido, causando a purificação, alívio das tensões. ( ) A literatura, de acordo com essa função, tem um caráter utilitário. Deve ir além da arte e, por vezes, pode mesmo trabalhar a favor de determinadas ideologias. ( ) Trata de problemáticas de determinado contexto social, ou seja, traz uma discussão sobre fatos políticos e sociais. ( ) Descreve o conhecimento de forma particular, pessoal, fundindo razão e emoção, ou seja, temcaráter informativo, mas apresenta uma visão emotiva e particular. ( ) Está no fundamento daquilo que se considera arte e tem o sentido de fenômeno do belo e da produção artística. As características de cada função da linguagem são apontadas corretamente na seguinte ordem: a) ( ) VI, V, IV, III, II, I b) ( ) V, VI, IV, III, II, I c) ( ) I, II, III, IV, V, VI d) ( ) VI, I, V, II, IV, III AUTOATIVIDADE 32 2 Leia os poemas seguir e responda qual função da literatura está mais presente em cada um deles. POEMA 1 Psicologia de um vencido Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! Augusto dos Anjos a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica POEMA 2 Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Oswald de Andrade 33 a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica POEMA 3 “Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram. Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio. Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes, aos apagados fogos de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se os sete fantasmas das águas assassinadas por mão do homem, dono do planeta”. Carlos Drummond de Andrade a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica 34 35 TÓPICO 4 O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Para falarmos sobre cânone, primeiramente é necessário que você compreenda o significado dessa palavra. O cânone literário é entendido como um conjunto de autores e obras considerados exemplos de literatura ideal. Para que uma obra seja considerada um cânone é necessário que alguém a eleja como tal. Por que na escola estudamos determinadas obras e outras não? Você já deve ter observado que para cada período/escola literária estudada no Ensino Médio, por exemplo, há algumas obras que são referência. Nelas encontramos as características específicas da escola literária em questão. Ao falarmos sobre os conceitos de literatura, no início desta unidade, também pincelamos um pouquinho sobre a questão dos clássicos. Essa palavra tem sentido semelhante a cânone, visto que se refere a obras que se impõem como modelos de uma escola literária. Neste estudo, tomaremos as palavras clássico e cânone como sinônimos. Os clássicos são tomados como referência para o ensino nas instituições escolares e acadêmicas. Porém, para que existam as obras denominadas clássicas, deve haver uma organização para tal. É o que veremos a seguir. UNI A palavra clássico vem de classe, justamente por se referir aos livros lidos nas salas de aula. O Dicionário Priberam (2017) define clássico como: 1. Que é de estilo impecável. 2. Próprio para servir nas aulas. 3. Que de há muito é habitual; inveterado no uso. 36 UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE Uma história da literatura, de maneira geral, está preocupada em relacionar história e literatura. Textos que fogem aos padrões estabelecidos, muito provavelmente não se destacarão ou até mesmo serão ignorados no processo de canonização. Há estudiosos que comentam que em todas as épocas temos não uma história da literatura, mas uma delas apenas representa o ápice que é canonizado. Contemporaneamente, muitos analistas da literatura opõem-se a essa maneira de se estabelecer o cânone, pois está fundamentada numa visão universalizante, na qual os valores das obras são definidos conforme a ideologia das classes dominantes, não contemplando a diversidade humana. Há aqueles que defendem que a categoria de uma obra literária não deve ser resultado das condições históricas ou sociais. Nessa concepção, a classificação das obras deveria funcionar de acordo com a recepção, de como elas tocam o leitor e adquirem fama suficiente para ficarem na memória. Essa concepção parece interessante, mas sem regras específicas torna-se bem mais complexo estabelecer um cânone que sirva de referência para o estudo da literatura. Nesse momento, você deve estar pensando que talvez muitas das obras estudadas na escola como clássicas diziam pouco a você, a linguagem parecia distante e, por isso, não provocavam o interesse para a leitura. Seria mais honesto canonizar as obras que alcançassem fama entre o público leitor? Considerando essa possibilidade, o cânone estaria desligado das instituições? Não se trata de considerar que apenas os críticos estariam capacitados a qualificar as boas obras, pois mesmo entre eles não há consenso. Márcia de Abreu (2006) comenta que escritores populares costumam provocar o desprezo da crítica. Cita como exemplo Jorge Amado, visto que parte da crítica o considera um “autor com deficiências”. Porém, certamente você conhece algumas obras desse autor. Se não as leu, já ouviu falar de Tieta; Gabriela, Cravo e Canela; entre outras. Essas obras tiveram também adaptações para a TV e contaram com grande público de leitores e espectadores, tanto no Brasil quanto no exterior. Seria implicância? Não, apenas não há unanimidade. Abreu (2006) exemplifica comentando as opiniões de dois especialistas em literatura da Unicamp, atuantes no Departamento de Teoria Literária com mestrado e doutorado na área, logo, têm boa formação a esse respeito. O primeiro, Paulo Franchetti, opina que as obras de Jorge Amado são “murais coloridos e animados, mas sem profundidade”. Marisa Lajolo, porém, apresenta uma visão bastante aprovadora sobre os textos de Amado e comenta ainda que graças a ele o nosso povo aprendeu a ler literatura brasileira. A autora aponta a produção de Jorge Amado como importante para a cultura nacional e esse seria o motivo que o levou a ser conhecido em todo o mundo. Para ela, Jorge Amado seria merecedor de um Nobel de Literatura. TÓPICO 4 | O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO 37 3 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO? A despeito disso, Calvino (2002, p. 10), em “Por que ler os clássicos?”, traz vários conceitos sobre o que seria um clássico, dentre eles destacamos o seguinte: “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nessa perspectiva podemos considerar impossível uma definição universalizante de cânones literários, de maneira que cada um de nós pode ter nossos clássicos individuais que podem coincidir com outras opiniões ou não. Segundo o autor, “O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você mesmo em relação e talvez em contraste com ele” (CALVINO, 2002, p. 13). Assim, podemos dizer que o trabalho da escola em fazer-nos conhecer uma lista de livros canonizados seria inútil? Você deve estar se perguntando: por que então fui obrigado a estudar tantas obras, cujo contexto e linguagem me são tão distantes? Bom, antes de tudo, é preciso considerar que essas obras carregam consigo as marcas de uma sociedade distinta da atual, com valores e costumes diferentes, logo, no mínimo, nos ajudará a compreender a sociedade
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