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Ficha 03 A Cidade de Roma: onde, como e porquê… Se procurarmos as razões de existir de uma cidade que, reza a lenda, terá sido fundada pelos gémeos Rómulo e Remo, descendentes do troiano Eneias, nos terrenos do Latium na data mítica de 21 de Abril de 753 a.C. (feriado nacional italiano até ao nossos dias), provavelmente poderemos encontrá-las na conformação geográfica do local em que se situa a cidade: O acesso navegável desde o Mar Tirreno e o porto de Óstia através do Rio Tibre, assemelhando a cidade ao clássico assentamento de cidades-estado gregas: próximo do mar, mas a uma distância mínima de segurança, de modo a colocá-la a salvo de incursões de corsários; dotada de porto exclusivo, que igualmente pertencia aos domínios da cidade – em Atenas, o Pireu; aqui, Óstia. Não será por isso incorrecto dizer que sem haver o Tibre, não teria havido Roma. A Ilha Tiberina, que permite atravessar a vau o Rio Tibre, e a partir da qual serão edificadas duas pontes que ainda hoje subsistem ligando as duas margens do Rio. Esta travessia permitia ligar a margem direita da Etruria à margem esquerda do Latium, pondo em contacto um mundo dominado pelos etruscos e uma parte meridional da península itálica que pertencia a uma realidade mais helénica, em virtude das colonizações realizadas nessas paragens: Neapolis, Poseidonia, Thurii, e toda a Ilha da Sicília. Assim, junto ao Tibre, na sua margem esquerda, vão surgir dois mercados – o Forum Boarium (dos bovinos), e o Forum Olitorium (do azeite). O conjunto de colinas romanas, com uma disposição que propiciava a sua defesa, dando origem ao assentamento original no Monte Palatino e sua extensão ao Monte Capitolino (o Capitólio, funcionado como Acrópole da cidade) e às outra três regiões em que Sérvio Túlio divide a cidade (a primeira região é a Palatina, formada pelo Monte Palatino já referido): a região Esquilina, formada pelos Montes Esquilino, Ópio e Císpio, a região Colina, compreendendo os Montes Viminal e Quirinal, e a região Suburbana, formada pelo Monte Célio. Assim se amuralhou a lendária Roma «das sete colinas» (o Capitólio não estava incluído na cerca, e o Monte Aventino só seria incluido na cidade mais tarde, recebendo a ocupação dos plebeus). O facto de as colinas romanas constituirem na época um «santuário» na ampla região em que se inscrevem, no que se refere à malária (ou paludismo) – pois no território de extensas planícies amplamente povoado de pântanos, o mosquito Anofélis ainda no século XVIII da nossa era provocava vítimas na envolvente da capital italiana. Modalidades de Ocupação e Controlo Do Território Os estudos sobre a Roma antiga indicam que a sua história se pode dividir em três períodos essencialmente: 1. A monarquia, desde a fundação lendária da cidade até ao ano 509 a.C. Apesar de se encontrarem vestígios em Roma da residência de seres humanos desde a idade do bronze (cerca de 1.500 a.C.), a cidade só passará a possuir uma população permanente desde o seculo VIII a.C., consistindo da ocupação de dois povos proximamente relacionados: os Latinos e os Sabinos, que no século VII a.C. terão concordado em fundar uma cidade na margem esquerda do Tibre, a cerca de 24 km. da sua foz, e que rapidamente se tornará a mais poderosa povoação de todo o Lácio. No século VII, a dinastia fundada por Rómulo é substituída por uma dinastia de reis etruscos – os Tarquínios -, que a cidade acabará por expulsar em 510 a.C. 2. A república, fundada de acordo com a tradição romana, no ano de 509 a.C.; governada pelo Senado, formado pelos Patrícios (os ricos aristocratas da cidade) e pelos Consules, dois magistrados nomeados anualmente pelo Senado. Os Plebeus, a vasta maioria da população que não tinha acesso ao poder revoltaram-se no século V, forçando o senado a aceitar os seus representantes, os Tribunos, no governo da cidade. Em 493, a cidade estabelece tratados de paz com outras povoações do Lácio, e guerras graduais com etruscos, gauleses, gregos e outros povos itálicos, vão conduzir a um virtual domínio de toda a Itália em 272 a.C., com a conquista da grega Tarentum (a moderna Taranto). 3. O Império, começando com o sobrinho-neto de Júlio César, Octávio, ou Octaviano (mais tarde conhecido como Augusto), que com a vitória militar sobre Marco António vai instituir o sistema do Principado, o “governo pelo primeiro cidadão” (o princeps) em que uma verdadeira monarquia surgia disfarçada de república. Continuadora e difusora da cultura clássica helenística – papel em que sucede ao Império do macedónio Alexandre Magno – a cidade de Roma conformou definitivamente a cultura ocidental como hoje a conhecemos. As concretizações imateriais como a linguística, a administração, as ciências e o sistema jurídico, entre outras, são acompanhadas de operações sobre o mundo físico que igualmente se vão reflectir de um modo permanente nas formas como as sociedades humanas ocidentais povoarão e explorarão o território. Se o mundo grego, que como já vimos se encontrava pulverizado por incontáveis cidades-estado, formou um predomínio em torno do mediterrânico assentando sobre as rotas marítimas e o comércio, incidindo a sua acção sobre as faixas costeiras e cidades portuárias, não constituindo por isso um império territorial, já no mundo romano se vai desenvolver uma rede de ocupação do território penetrando bem fundo nos espaços conquistados. Povo agrário por natureza, assim também o império a que dará origem assentará na exploração optimizada dos espaços rústicos que gere. A título de exemplo, e para nos referirmos a regiões que bem conhecemos, será interessante verificar que a província romana em que o actual território continental da nação portuguesa se inscreveria (a Lusitânia) possuía a sua capital - Emerita Augusta (a actual cidade espanhola de Mérida) - no extremo mais oriental (e mais continental…) dos seus domínios, e por isso no ponto mais distante do mar. Os grandes pólos da acção romana em Portugal são núcleos ligados à terra: Ebora Liberalitas Iulia (Évora), Pax Iulia (Beja), e mesmo a norte a grande cidade romana era Bracara Augusta (Braga). Alguns dos principais portos eram mesmo portos fluviais, destinados a promover a circulação de produtos em entrepostos mais profundamente inseridos nos territórios colonizados: Scallabis (Santarém), acessível pelo Tagus (Tejo), Salacia (Alcácer do Sal), acessível pelo Kalipous (Sado) ou Myrtilis (Mértola), acessível pelo Anas (Guadiana). Também será curioso verificar que durante os vários séculos de predominância romana, nunca o estado foi possuidor de (nem sentiu necessidade de o ser) uma marinha mercante. Quando tinha necessidade de serviços transitários, contratava com armadores particulares… Roma procede à colonização dos territórios conquistados, um pouco à maneira das realizações das cidades-estado gregas, mas numa dimensão totalmente distinta: a vastidão das regiões ocupadas, a sua dispersão que alcançará o deserto do Sahara no norte de África (Ifríquia), a Ásia e a Caledonia (Escócia), o número de colonizadores envolvidos, o tipo de terrenos ocupados (as terras interiores, ao invés dos gregos que limitavam a sua actuação às faixas litorais e portos fluviais), e sobretudo as modalidades de ocupação, vão constituir uma acção inugural de Ordenamento Territorial a grande escala. Realizavam-se centuriações sobre os territórios conquistados, em que a unidade de base era a centuria quadrata medindo 710 x 710 m. (ou 20 x 20 actus), e por isso com a área aproximada de 50 ha. (ou 200 jugueri, plural da unidade juguera) considerada uma medida óptima para o proprietário com seu vilicus (o capataz da propriedade rústica) e escravos realizarem a lavoura. Recordemos que nas centuriações romanas, cf. ALARCÃO, Jorge de. Sobre a Economia Rural do Alentejo na Época Romana. Universidade de Coimbra, 1976, às estradas ortogonais com 8 pés delargura que limitavam as centúrias se dava o nome de limites linearii; de cinco em cinco, uma dessas estradas tornava-se mais larga, com 12 pés; a esta chamava-se limites quintarii. As centuriações realizavam-se na envolvente das povoações, existentes ou fundadas. Quando as povoações já existiam, era vulgar normalizar a estrutura da propriedade, realizando cadastrações do terreno, com registo e rectificação do parcelário rural. Quando as povoações correspondiam a uma fundação, sendo mais fácil instalar a grelha recticulada, era costume baptizá-las como Colonias, e eram habitualmente povoadas por veteranos do exército romano. O procedimento da fundação decorria em três passos fundamentais, num ritual de origem etrusca: A inauguratio (a consulta da vontade dos deuses, antes de fundar a cidade), a limitation (demarcação do perímetro da cidade, bem como dos seus limites internos) e a consacratio (o sacrifício celebrado na cidade recém fundada). A centuriação era realizada com recurso a pessoal técnico especializado – os agrimensori ou gromatici – com um instrumento chamado groma, com o qual se traçava a grelha de caminhos secundários paralelos ou perpendiculares entre sí que encerravam os lotes da centuriatio, num quadriculado que faz lembrar a paisagem rural onde decorre o jogo de xadrez de “Alice através do espelho” de Lewis Carroll. Procedendo com preocupações de ordem ambiental e ecológica, os eixos da quadrícula – cardines e decumani – limitavam-se a ocupar a área considerada óptima para o número de habitantes da colónia que iriam abastecer. Ainda que o cardus costumasse orientar-se no sentido N – S, tal não era obrigatório, uma vez que com frequência a grelha era rodada conforme as circunstâncias topográficas do local; assim, quando realizada junto à margem de um rio ou no litoral marítimo, é usual dispôr os decumani paralelamente à frente da água. Assim também, era habitual dispô-los ao longo de cotas semelhantes em situações declivosas, dispondo os cardines no sentido de maior inclinação da pendente. Numa situação ideal, a orientação da centuriação deveria corresponder à orientação dos quarteirões urbanos, de tal forma que o cardus maximus e o decumanus maximus que conduzem às portas principais da cidade se prolonguem sem inflexão, propagando-se ao território agrícola envolvente. No cruzamento de ambos os eixos, no coração da cidade, localiza-se o forum, correspondente às funções da ágora grega: vasta praça central, local do mercado e da vida cívica e política da povoação. Uma cópia em bronze da planta da nova cidade – a forma urbis - é enviada para a capital da província e outra é expedida para Roma. O Tabuleiro de Xadrez no Campo de “Alice Através do Espelho” de Lewis Carroll (ilustração de John Tennyell) A divisão administrativa do território possibilita por outro lado criar em alguns pontos do Império a noção de pátria, dado que zonas como a Lusitânia antes da tomada por Roma não constituiam uma realidade una e inteligível para os seus habitantes, não sendo mais que um conjunto de tribos e aldeias com poucos contactos entre sí e com o mundo exterior. Com a estrutura administrativa romana, o lusitano ganha a consciência de pertencer a uma realidade provincial concreta, cuja composiçãos e limites ele minimamente consegue representar, e a um mundo exterior mais vasto que os limites do seu olhar. Por outro lado as necessidades da cidade, nova ou já existente, vão ser supridas com a realização de vastas obras de infraestrutura: aquedutos para abastecimento das numerosas fontes públicas da cidade, dos banhos públicos ou privados e da rede de águas de consumo das ricas domus urbanas, com átrio e peristilo. Emerita Augusta. Centuriação. Como em toda a Europa Ocidental se respira a Pax Romana, também os mares devem estar seguros, pelo que o litoral é povodao de faróis que permitem realizar uma navegação mais segura. Nos limites do império (os limes), executa-se uma muralha (o vallum) e um fosso (fossatum) por detrás dos quais passa uma estrada, que permitirá que as legiões romanas acorram prontamente aos cenários de combate. Ao longo do limes, assentam torres de observação, quartéis e acampamentos de regimentos a distâncias certas. Alguns dos acampamentos darão origem a cidades actuais: Castra Regina (Regensburg), Vindobona (Viena), Ara Ubiorum (Colónia). Entre nós, avançam actualmente estudos sobre as centuriações romanas no território nacional, as principais das quais existem em torno de Évora, Beja e Luz de Tavira (Algarve), que se acham mais adiantadas no tocante a Mérida. O quadro é completado com a magnífica rede de estradas romanas, boa parte das quais vão permanecer em uso até ao século XIX d.C. A estrada repousa sobre um enrocamento de pedras batidas (rudus) coberto com saibro cada vez mais fino e revestido por um piso de pedras chatas poligonais (gremium). O curso das estradas principais é acompanhado de estações para paragem e dormida (mansiones) intervaladas de estações secundárias para muda de cavalos (mutationes). Cada mansione dista da seguinte um dia de viagem. Esta estrutura é claramente visível na estrada romana que desce de Mediolanum (Milão) para Mutina (Modena) e Forum Popili (Forlí), num traçado que é hoje rigorosamente copiado pela autoestrada que liga o Norte de Itália a Rimini, no mar Adriático. Na cidade, estabelecem-se larguras mínimas de vias, horários para circulação de carros (na Roma de Júlio César, certas partes da cidade são vedadas ao tráfego durante o dia, e com Adriano, todo o centro da capital é reservado à circulação pedonal), cérceas para os edifícios, número de pisos e valores para os corpos “em balanço”. Habitação Dispersa nos Espaços Rurais: as Villae Romanas Categorizando o solo rústico em: Ager – a terra mais fértil e retalhada, próxima das cidades e assentos de lavoura, onde se pratica uma agricultura mais intensiva e irrigada, para o que vai igualmente contribuir a importante obra de execução de açudes e barragens, que entre nós teve publicação em Quintela, A. de C., «Aproveitamentos Hidráulicos romanos a sul do Tejo: contribuição para a sua inventariação e caracterização». Lisboa, 1986. Saltus – os espaços onde se pratica uma agricultura extensiva, com predominância para as culturas arvenses. Silva – os bosques e terrenos incultos. Assim, e complementando as modalidades de habitat concentradas em assentamentos populacionais mais ou menos vastos, vão surgir villae (assentos de lavoura que de certo modo antecedem o monte alentejano) e villulae (que poderíamos traduzir como casais, ou assentos de dimensão menor). Os romanos vão difundir e universalizar culturas e modos de produção ao longo do Império, ainda que com algumas variantes conforme a latitude dos territórios. A oliveira, a vinha e novos tipos de cereais são levados para novas paragens, contribuindo para a produção de excedentes que serão conduzidos para os regimentos legionários assim como para a cidade de Roma, cuja população durante largos períodos de tempo era alimentada a título gratuito pelo poder central. Em consequência do período longo de pacificação e prosperidade nos espaços do mundo Romano, tornou-se possível praticar a agricultura e implantar habitat disperso nas províncias do Império. Sendo claro que o mundo romano assentava num império essencialmente agrário, todas as tarefas associadas à agricultura eram vistas com particular agrado. A indústria, o comércio e o próprio trabalho não eram encarados como tarefas prestigiantes, numa atitude de preconceito que, como tantos outros hábitos criados pela civilização clássica irá perdurar até ao século XIX da era cristã. O honestior romano, patrício ou nobre, poderá desempenhar cargos públicos mas não é remunerado. Os magistrados, prefeitos, senadores e consules trabalham em prole do bem público, e apenas sãobeneficiados pelo prestígio e influência que as suas posições lhes outorgam. A indústria e o trabalho são desempenhados pelos humiliores, as camadas mais baixas da sociedade, plebeus ou escravos libertos, que se dedicam a essas actividades degradantes. Não surpreende por isso que a agricultura seja a principal actividade lucrativa a que um patrício se pode dedicar. As reservas financeiras da classe alta são canalizadas para a compra de terras, e a bucólica vida no campo, palco para uma existência de «otium cum dignitate» (ócio com dignidade), leva a que os nobres romanos construam faustosas villae nas suas propriedades no campo, ricamente pintadas de frescos, pavimentadas a mosaico e mobiladas com conforto. Estas estruturas disseminadas pelo campo reproduzem-se um pouco por todo o império, e como o seu papel é particularmente representativo da riqueza e poder do proprietário, não é absolutamente necessário que a sua posse se traduza numa actividade lucrativo, do ponto de vista produtivo. Mosaico dos Cavalos (fragmento) Villa Torre de Palma, Monforte Se no território que hoje é Portugal, encontramos Villae sobretudo no Alentejo (Villa de São Cucufate junto à Vidigueira, Villa da Torre de Palma em Monforte, Villa de Santa Vitória do Ameixial), na península itálica estes conjuntos arquitectóni cos ocorrem com uma riqueza inultrapassável, tal como asVilla de Plínio, ou a VillaAdriana, do grande imperador ibérico. Situada nas proximidades da vila de Tibure (Tivoli), realizando a recuperação de um palácio republicano existente, mas executando uma obra de ampliação imensa, o Imperador Adriano, que passa a maior parte do seu consulado viajando pelo império, reproduz na sua propriedade espaços arquitectónicos que havia visitado e amado dentro das fronteiras do mundo romano; assim, existe um “Stoa Poikile” (o “Pórtico Pintado” de Atenas, onde a escola estóica de filosofia se reunia), um “Pritaneu” e um conjunto encaixado num estreito vale em que é figurado um Rio Nilo (alto e baixo), incluindo a vila de Canopo, estância de luxo no seu delta, bem como um Mar Mediterrâneo.
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