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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS APLICADAS COORDENAÇÃO DO CURSO DE DIREITO RICARDO JOSÉ DE CAMARGO BISPO A ESSENCIALIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E O DIREITO DE GREVE RIO BRANCO-ACRE 2020 RICARDO JOSÉ DE CAMARGO BISPO A ESSENCIALIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E O DIREITO DE GREVE Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Acre - UFAC, sob a orientação do Prof. Me. Leonardo Lani de Abreu, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. RIO BRANCO-AC 2020 RICARDO JOSÉ DE CAMARGO BISPO A ESSENCIALIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E O DIREITO DE GREVE Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Acre - UFAC, sob a orientação do Prof. Me. Leonardo Lani de Abreu, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovada em 05 de março de 2020. BANCA EXAMINADORA Prof. Me Leonardo Lani de Abreu – Orientador Universidade Federal do Acre – UFAC Prof. Dr. Francisco Raimundo Alves Neto – Membro da Banca Universidade Federal do Acre – UFAC Esp. Tatiana Karla Almeida Martins – Membro da Banca Advogada – OAB/AC n° 2924 Dedico este trabalho ao meu filho Bernardo José Martins Bispo. RESUMO A Lei n° 7.783/1989 dispõe sobre o exercício do direito de greve. Entretanto, tal legislação apresenta os parâmetros gerais para o exercício legal de um movimento grevista de trabalhadores. Por conta disso, essa legislação seria aplicada, em tese, apenas aos trabalhadores da iniciativa privada. A situação dos agentes públicos e das atividades de caráter essencial desempenhadas por esses servidores seria regulada por lei complementar, conforme disposto no artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal de 1988. Em razão da falta de regulamentação do direito de greve dos servidores estatutários, há divergências doutrinárias quanto à legalidade e a legitimidade do exercício deste direito, inclusive sobre a natureza jurídica do instituto. O objetivo geral do trabalho é responder quais os limites de um movimento grevista para que ele não seja antijurídico ou inócuo. A metodologia utilizada na foi a abordagem jurídico-científica. A pesquisa foi estruturada em três capítulos, que contemplam cada um dos objetivos específicos do tema abordado. No primeiro capítulo, conceituou-se o instituto da greve com foco nos seus aspectos jurídicos, porém também levando em consideração as características e peculiaridades históricas, etimológicas e até culturais. O segundo capítulo do trabalho, além de conceituar e a analisar a doutrina referente aos servidores e serviços públicos, bem como os projetos de lei n° n° 4497/2001 e 375/2018, que buscam regulamentar o exercício do direito de greve pelos servidores públicos, com o objetivo de identificar as peculiaridades do regime celetista em relação ao Estatutário. O terceiro capítulo do trabalho busca identificar e conceituar as limitações impostas ao exercício do direito pelos servidores públicos frente aos princípios administrativos e, ainda, de que forma se dá a greve nos serviços e atividades essenciais, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao efetuar o controle de constitucionalidade no julgamento de mandados de injunção. Conclui-se que, enquanto na iniciativa privada a essencialidade dos serviços é a exceção, de modo que atividade que não estiver no rol do Art. 10 da Lei 7.783/1989 pode interromper a totalidade dos trabalhos, no serviço público todas as atividades são indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Palavras-chave: Greve. História do Direito. Direito Administrativo. Direito Constitucional. ABSTRACT The law 7783/1989 provides for the exercise of the right to strike. However, such legislation presents the general parameters for the legal exercise of a strike movement of workers. As a result, such legislation would in theory be applied only to private sector workers. The situation of public agents and the essential activities performed by these servants would be regulated by complementary law, as provided for in article 37, item VII of the Brazilian Federal Constitution of 1988. Due to the lack of regulation of the right of strike of statutory servants, there are doctrinal differences regarding the legality and legitimacy of the exercise of this right, including the legal nature of the institute. The main objective of the paper is to answer the limits of a strike movement so that it is not anti-juridical or harmless. The research was structured in three chapters, which address each of the specific objectives of the theme. In the first chapter, the strike institute was conceptualized with a focus on its legal aspects, but also taking into account the historical, etymological and even cultural characteristics and peculiarities. The second chapter of the paper, besides conceptualizing and analyzing the doctrine regarding public services, proposes to study the creation of the Single Legal Regime of public servants and its peculiarities, as well as the proposed law n°. n° 4497/2001 and 375/2018, which seeks to regulate the exercise of the right of strike by public servants. The third chapter of the paper seeks to identify and conceptualize the limitations imposed on the exercise of the right by public servants in the face of administrative principles and also how the strike in essential services and activities, according to the understanding of the Supreme Court, when performing control of constitutionality in the judgment of mandamus or court injunction. It is concluded that while in private initiative the essentiality of services is the exception, so that activity that is not in the list of Art. 10 of Law 7.783 / 1989 can interrupt all work, in the public service all activities are indispensable meeting the urgent needs of the community. Key-words: Right to strike. History of law. Administrative law. Constitutional right SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7 2 A GREVE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO .................................. 12 2.1 ETIMOLOGIA E GENEALOGIA DA GREVE ........................................................ 13 2.2 CRIME, CASTIGO E RECONHECIMENTO ......................................................... 16 2.3 DEMOCRACIA, DITADURA E “NOVA REPÚBLICA”........................................... 24 3 REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES E SERVIÇOS PÚBLICOS .................... 28 3.1 AGENTES PÚBLICOS E O REGIME ESTATUTÁRIO ......................................... 29 3.2 SERVIÇOS PÚBLICOS E OS SEUS PRINCÍPIOS .............................................. 33 3.3 PROJETOS DE LEI SOBRE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ........................ 35 4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E OS SERVIÇOS ESSENCIAIS .. 39 4.1 CONTROLE DIFUSO E O MANDADO DE INJUNÇÃO ........................................ 41 4.2 OMISSÃO LEGISLATIVA E QUESTÕES DOUTRINÁRIAS ................................. 42 4.3 JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ................................ 50 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 56 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 59 7 1 INTRODUÇÃO Desde a nova ordem constitucional inaugurada em 1988, diversas questões sociais pendentesdo regime da ditadura civil-militar vigente nas duas décadas anteriores ficaram carentes de regulamentação legislativa sob égide da atual Carta Magna. Uma dessas problemáticas ainda presentes na década de 10 do século XXI é o direito de greve dos servidores públicos. Nesta seara, a Lei Ordinária n° 7.783, de 28 de junho de 1989, dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais e regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Entretanto, tal legislação apresenta os parâmetros gerais para o exercício legal de um movimento grevista de trabalhadores. Por conta disso, a lei supracitada seria aplicada, em tese, apenas aos trabalhadores da iniciativa privada. A situação dos agentes públicos e das atividades de caráter essencial desempenhadas por esses servidores seria regulada por lei específica, conforme disposto na Constituição. Reivindicando melhores salários e condições de trabalho, bem como temendo a retirada ou mitigação de direitos, com as reformas trabalhistas e da previdência, intensificam-se os movimentos grevistas em praticamente todas as classes nas primeiras décadas do século XXI. A crise nas instituições e a constante desvalorização dos sindicatos perante setores da mídia reverbera na opinião pública e, por vezes, banaliza os movimentos grevistas. Não obstante, o Judiciário é constantemente provocado a se manifestar sobre questões referentes ao exercício legal do direito de greve, como a possibilidade de corte do ponto dos servidores e a legalidade da paralisação de categorias policiais civis. Além disso, lastreado pela subsidiariedade da Lei Geral de Greve aplicada aos agentes públicos1, movimentos que não se enquadram nos serviços essenciais defendem a paralisação total das atividades. Entretanto, enquanto na iniciativa privada a essencialidade dos serviços é a exceção, de modo que atividade que não estiver no rol do Art. 10 da Lei 7.783/1989 1 Na ausência de lei complementar ao art. 37, inciso VII da Constituição Federal de 1988, referente ao Direito de Greve dos Servidores Públicos e quais seriam os serviços ou atividades essenciais, aplicam- se os Arts. 10 e 11 da Lei 7.783/1989. 8 pode interromper a totalidade dos trabalhos, no serviço público todas as atividades são indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Neste paradigma, surgem alguns dilemas: quais os limites de um movimento grevista para que ele não seja antijurídico ou inócuo, por não causar o impacto relevante para as mudanças ou manutenções pleiteadas? Com ou sem legislação específica sobre a matéria, os juristas e as instituições do poder Judiciário são constantemente instigados e convocados a promover a pacificação dessas questões sociais. Diante disso, enquanto permanece o vácuo legislativo, como o ordenamento jurídico trata questões referentes aos serviços públicos essenciais e a paralisação total dos trabalhos em decorrência de um movimento grevista? A pesquisa usa como principais referências a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e as doutrinas de História do Direito, Direito Administrativo e Constitucional sobre o direito de greve, com ênfase nas obras de Miron (2017), Siqueira (2017), Di Pietro (2014), Novelino (2014), Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2018). Também foram utilizados como referências a Lei nº 7.783/1989; e os textos dos projetos de Lei n° 4497/2001, na Câmara dos Deputados, e 375/2018, no Senado Federal, que tramitam no Congresso Nacional a respeito do tema, e a jurisprudência do STF. A pesquisa foi estruturada em três capítulos, que contemplam cada um dos objetivos específicos do tema abordado. A metodologia utilizada na pesquisa foi a abordagem jurídico-científica, que usa como base em eventos históricos e sociais, se chega a uma conclusão necessária, em virtude da correta aplicação de regras lógicas. Caracteriza-se pelo emprego de cadeias de raciocínio. Sobre essa metodologia, Maria Guadalupe Piragibe Fonseca (2009) leciona que, em face das contradições acentuadas da sociedade contemporânea, mais do que nunca a pesquisa no campo do Direito se torna não só importante como necessária. As conclusões da pesquisa jurídica, principalmente da empírica, podem servir de guia eficaz para a tomada de decisões dos órgãos públicos, na medida em que as práticas sociais correntes são confrontadas com as instituições jurídicas vigentes. No primeiro capítulo, conceituou-se o instituto da greve com foco nos seus aspectos jurídicos, porém também levando em consideração as características e peculiaridades históricas, etimológicas e até culturais. Sendo assim, a greve, entendida como a suspensão temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação 9 pessoal de serviços, atualmente é reconhecida como um direito social fundamental, assegurado pela Constituição de 1988 aos trabalhadores da iniciativa privada e aos servidores públicos. Entretanto, durante a pesquisa optou-se por não discutir diretamente as questões referentes aos militares e servidores civis da área de Segurança Pública, pois o entendimento majoritário é de que essas categorias sequer têm direito à greve2, ainda que o assunto seja referenciado de forma tangencial no primeiro capítulo. Além disso, apesar da titularidade para iniciar um movimento grevista seja do sindicato de uma categoria, não serão aprofundadas questões de direito coletivo do trabalho, optando-se por utilizar uma abordagem multidisciplinar que envolve Direito, História, Filosofia, Cinema e Literatura. Assim, a partir do aprofundamento do instituto, é possível constatar que, ainda que seja um direito fundamental ao demais servidores, o direito de greve não é absoluto e seu exercício deve respeitar os preceitos que norteiam o ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Portanto, as limitações ao direito de greve dos servidores públicos civis devem seguir os princípios administrativos, tais quais como a supremacia do interesse público sobre o privado, a indisponibilidade e continuidade dos serviços públicos. Isso porque na relação estatutária não há tensão entre o capital e trabalho, como ocorre no campo das atividades econômicas, em que o movimento grevista coloca em risco os interesses do capital. No serviço público, há uma contradição direta entre os interesses dos servidores e o interesse dos indivíduos que dependem da prestação do serviço público, ou seja, conflito de interesses públicos. Todavia, a não prestação do serviço público, em caso de uma greve ilegal, enseja a paralisação do pagamento da contraprestação, representada, in casu, pela remuneração devida aos agentes, sob pena de se configurar enriquecimento sem causa, em detrimento do dinheiro público. Em razão da falta de regulamentação do direito de greve dos servidores estatutários, há divergências doutrinárias quanto à legalidade e a legitimidade do exercício deste direito, inclusive sobre a natureza jurídica do instituto. 2 Desde 2009, diversas decisões de ministros do STF consideraram ilegais as greves de policiais militares, civis e federais, sob o argumento de que representam risco para a segurança pública e para a manutenção da ordem. Em 2017, no julgamento do ARE-654432, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública. 10 Sobre isso, Di Pietro (2014) conceitua que: [...] a proibição de greve nos serviços públicos; essa vedação, que antes se entendia absoluta, está consideravelmente abrandada, pois a atual Constituição, no artigo 37, inciso VII, determina que o direito de greve será exercido “nos termos e nos limites definidos em leiespecífica”; o STF, na ausência de “lei específica”, decidiu pela aplicação da Lei nº7. 783/89 (cf. item 13.4.5); também em outros países já se procura conciliar o direito de greve com a necessidade do serviço público. Na França, por exemplo, proíbe-se a greve rotativa que, afetando por escalas os diversos elementos de um serviço, perturba o seu funcionamento; além disso, impõe-se aos sindicatos a obrigatoriedade de uma declaração prévia à autoridade, no mínimo cinco dias antes da data prevista para o seu início; (p. 71-72). Ainda nas obras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o desenvolvimento da pesquisa jurídica também pretende abordar temas de direito administrativo referente aos servidores e serviços públicos. Neste ponto, cabe destacar que antes da criação do Regime Jurídico Único (RJU) dos servidores públicos, a grande maioria dos agentes públicos era contratada sob o regime celetista, portanto estariam contemplados pela Lei Geral de Greve, já que tanto empregados públicos quanto privados eram regulados pela Consolidação de Leis do trabalho (CLT). Por isso, o segundo capítulo do trabalho, além de conceituar e a analisar a doutrina referente aos serviços públicos e os seus princípios, propõe-se a estudar a criação do RJU e as suas peculiaridades, bem como os projetos de lei que buscam regulamentar o exercício do direito de greve pelos servidores públicos. Por enquanto, devido à falta de lei complementar ao artigo 37, inciso VII, da constituição de 1988, o tema fora objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Mandados de Injunção, dos quais foram analisados os de nº 670, 708 e 712, em que restou determinado que deveria ser aplicada aos servidores públicos, de forma provisória, a lei nº 7.783/89, com as devidas adaptações ao funcionalismo público, enquanto não fosse editada lei específica. Outro precedente importante foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº 693.456, em 2016, em que ficou decidido que a Administração Pública deve realizar os descontos de salários dos dias parados em razão de greve de servidor, exceto quando o movimento grevista tiver sido motivado por conduta ilícita do Poder Público, como, por exemplo, atraso de salários. Diante disso, o terceiro capítulo do trabalho busca identificar e conceituar as questões doutrinárias e constitucionais sobre a greve, limitações impostas ao 11 exercício do direito pelos servidores públicos frente aos princípios administrativos e, ainda, de que forma se dá a greve nos serviços e atividades essenciais, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao efetuar o controle de constitucionalidade. 12 2 A GREVE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO No futuro distópico apresentado pelo filme Robocop (1987), durante uma greve dos policiais da cidade de Detroit3 após altos índices de criminalidade e de morte de policiais, bem como a decisão de Estado terceirizar a administração dos serviços de segurança pública para uma grande corporação de tecnologia, a solução encontrada pelo poder público foi a substituição dos servidores por policiais androides: incapazes de sentir dor, cansaço ou de reivindicar melhores salários e condições de trabalho. Nas palavras da personagem que representa CEO da empresa: Mudanças tributárias tornaram a economia ideal para o crescimento corporativo. Mas os serviços públicos, neste caso, a força policial, sofreram. Acho que é hora de darmos alguma coisa em troca. [...] Precisamos de um policial 24 horas por dia. Um ‘tira’ que não precise comer ou dormir. Um ‘tira’ com poder de fogo superior, e com os reflexos para usá-lo. (ROBOCOP, 1987). Durante a película, o presidente da empresa discursa no telejornal, onde destaca: “Todo policial, quando se integra à força, sabe que há riscos inerentes ao seu trabalho. Pergunte a qualquer policial e ele lhe dirá: ‘Se não aguenta a pressão, é melhor desistir’4”. (ROBOCOP, 1987). Em seguida, destaca o chefe de um departamento de polícia: “Não quero mais ouvir conversas sobre greve! Não somos encanadores, somos policiais. E policiais não fazem greve!” (ROBOCOP, 1987). A situação das forças policiais no ordenamento jurídico brasileiro, no tocante ao direito de greve, apresenta-se pior do que a apresentada na obra cinematográfica, pois está consolidado que esses servidores sequer têm esse direito. Sobre isso, votou o ministro do Supremo Federal, Alexandre de Moraes, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 654432, (COSTA, 2017): Não é possível que braço armado do Estado queira fazer greve. Ninguém obriga alguém a entrar no serviço público. Ninguém obriga a ficar. É o braço armado do Estado. E o Estado não faz greve. O Estado em greve é um Estado anárquico. A Constituição não permite. (negritei) 3 A maior cidade do Estado de Michigan, referência na indústria automobilística dos EUA. 4 No áudio original: “If you can't stand the heat, get out of the kitchen”, expressão idiomática em Inglês que ao ‘pé da letra’ significa: “Se você não aguenta a o calor, ‘cai fora’ da cozinha”. 13 No mesmo julgamento5, Moraes também votou que: No confronto entre o direito de greve e o direito da sociedade à ordem pública e da paz social, deve prevalecer o interesse público e social em relação ao interesse individual de determinada categoria. E essa prevalência do interesse público e social sobre o direito individual de uma categoria de servidores públicos exclui a possibilidade do exercício do direito de greve, que é plenamente incompatível com a interpretação do texto constitucional. (negritei). Os demais agentes públicos civis e os empregados das empresas privadas ainda têm o direito de greve resguardado pela Constituição. Entretanto, este instituto percorreu um longo caminho até conquistar o patamar de direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1 ETIMOLOGIA E GENEALOGIA DA GREVE De acordo com Siqueira (2017, p. 13), as greves representam uma chave de compreensão para a história dos direitos sociais no Brasil, pois quase sempre estão ligadas a questões e demandas jurídicas. Se existe uma greve, existe a história de um direito. Usualmente, elas são lutas pelo reconhecimento, na lei, de um direito ou pelo cumprimento de um direito existente em lei. Contudo, há de se destacar que o direito nasce por meio de anseios sociais, de acordo com momentos, históricos. Desta forma, também defende Siqueira (2017, p. 26) que o direito nasce dessa equação social e histórica e só posteriormente é reconhecido pelos sistemas oficiais, o que o autor chama de “um sentimento de juridicidade”. Quanto às origens, alguns autores consideram que a primeira referência histórica do movimento paredista se deu ainda no século XII, a.C., no Antigo Egito, durante o reinado de Ramsés III (1194 a 1163 a.C), onde ocorreu o movimento dos “pernas cruzadas”. Nesse episódio, os manifestantes se recusaram a trabalhar nas construções do túmulo de um faraó, cruzando as pernas, em protesto, pois não haviam recebido o que lhes havia sido prometido. Outros autores, porém, remontam a história da greve ao êxodo em massa dos hebreus ao abandonarem o Egito. Em Roma, no Baixo Império, ocorreram 5 STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (ARE): 654432 GO, Relator: Min. Edson Fachin. Relator p/ Acórdão: Min. Alexandre de Moraes. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Data de Julgamento: 05/04/2017, DJe-114 DIVULG 08-06-2018 PUBLIC 11-06-2018. 14 paralisações de trabalhadores no serviço público, em atividades essenciais, que foram imediatamente reprimidas por lei Entretanto, para Leite (2014) e Siqueira (2019), classificar como greve os movimentos anteriores à Revolução Industrial e aos Direitos Trabalhistas é um grande anacronismo. Tendo em vistaque os movimentos paredistas ocorridos antes da Revolução Industrial não poderiam ainda ser considerados como greve propriamente dita, mas apenas a origem precoce dos movimentos coletivos dos trabalhadores, pois naquela época ainda não havia estruturas de relações de trabalho, apenas um sistema social escravista e servil. Nesse sentido, leciona Amauri Mascaro Nascimento: Com a Revolução Industrial, as greves ganharam intensidade. Em Lyon, em 1831, surgiu a primeira grande greve na França, contra os fabricantes que se recusavam a atribuir ao salário uma força obrigatória jurídica, mas simplesmente moral. Ainda na França apareceram greve de solidarité (Rue Transnonain), greves de protestatiton contre un texte législatif e greves gerais, muitas de fundo político, insufladas pela difusão das ideias socialistas. (NASCIMENTO, 2001, p. 890). Somente após a Revolução Industrial houve a massificação do trabalho assalariado. Dessa forma, Melo (2017) entende que o marco inicial da história da greve são os movimentos sindicais dos ingleses. No Brasil, o termo “greve” é uma francesia, pois tem origem na palavra francesa grève, cujo significado é areal, cascalho. Há relatos de que antes da canalização do Rio Sena em Paris, devido às enchentes, pedras e gravetos eram depositados em uma praça, que ficou conhecida como place de grève, hoje denominada de Place de l'Hôtel de Ville. A place de grève ficou conhecida como o local onde os operários se reuniam quando estavam insatisfeitos com as condições de trabalho ou na hipótese de paralisação do serviço. Era também o local onde os empregadores iam para buscar mão de obra. Assim, quando o operário não comparecia ao trabalho, era informado ao empregador que aquele estava em Grève. Com isso o termo greve passou a ser utilizado como sinônimo de paralisação do trabalho. O termo francês é utilizado no Brasil e em Portugal, porém, Itália, Alemanha e os países de Língua Inglesa têm uma palavra diferente para descrever esse 15 fenômeno greve. O que significa, a partir da semântica do termo utilizado, que cada país tem uma forma diferente de entender tal instituto jurídico. Como exemplos de palavras que nasceram com um significado diverso, mas que a partir do final do século XVIII passaram a ser associadas aos movimentos de trabalhadores em busca de melhorias de sua qualidade de vida ou por motivos políticos, destacam-se as palavras “huelga”, em Espanhol, que tem origem no verbo “holgar”, que em Português seria “folgar”; e “Sciopero”, em Italiano, quem tem origem na expressão latina “ex” (fora) e o verbo “operare” (trabalhar), ex-operare, que em português seria “fora do trabalho”. No mesmo sentido, como correspondentes à palavra greve, em Alemão se usa “streiken” e em Inglês “Strike”, que também podem significar “derrubar, quebrar, atacar, golpear etc”, palavras que passaram a ter essa conotação de greve a partir do Ludismo, um movimento de trabalhadores ingleses do ramo de fiação e tecelagem, ativo no início do século XIX, nos primórdios da Revolução Industrial, e que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto. Sendo assim, Siqueira (2019) defende que cada país constrói a sua história sobre o direito de greve e as suas peculiaridades. Por conta disso, seria inadequado generalizar a história da greve no mundo todo, porque cada país teve a sua tradição. O que não significa que não houve influências, cópias ou tentativas de cópias, mas que cada país tem sua tradição sobre a greve. No século XIX, no Brasil, antes de se utilizar a palavra greve, utilizava-se a palavra “parede”, que inclusive era utilizada também pelos estudantes contra os professores ou gestores das instituições de ensino, quando formavam uma parede e impediam a entrada, semelhante aos movimentos do “empates” no Acre na década de 1980, quando os seringueiros ficavam em frente às árvores para evitar o avanço das máquinas. Apesar da primeira legislação brasileira sobre a greve surgir no primeiro Código Penal da República, em 1890, o conceito já é encontrado em dicionários que circulavam no país antes disso. Siqueira (2017) cita a obra de Faria (1868), que reproduz o termo: “Parêde: Ajustarem os estudantes a não entrarem na aula a ouvirem a lição, ou para outro acto de insubordinação” (sic) e a obra de Figueiredo (1899), que tem os dois conceitos de greve: “Conluio de operários, ou de funcionários, que se recusam trabalhar, enquanto lhes não atendem certas reclamações” e. “Parêde: fazêr greve: associar-se com outrem para certos fins” (sic). 16 Destaca-se que no dicionário de Figueiredo (1899), obra o autor conceitua que conluio era uma: “machinação, combinação entre duas ou mais pessoas, para prejudicar outrem” (sic). Portanto, a greve seria uma ação coletiva para prejudicar alguém enquanto suas reivindicações não fossem atendidas. Já Coelho (1890) descreve a greve como uma: “resolução que uma corporação de indivíduos da mesma classe toma, eximindo-se ao trabalho, enquanto não lhes satisfazem a sua pretenção” (sic). Nesse mesmo sentido é a descrição de Grave e Coelho Neto (1920): “conluio legal de pessôas que se ligam para fazer cessar o trabalho e que se recusam a trabalhar emquanto lhes não atendem certas reclamações” (sic) [negritei]. Diante disso, Siqueira (2017, p. 30), desta que: Se, por outro lado, todos os autores relacionavam greve com deliberações, demandas dos trabalhadores que movem suas ações, seu desejo de não trabalhar, é interessante destacar que, sendo todas as obras consultadas contemporâneas entre si, existia pouca concordância sobre a legalidade e legitimidade da ação grevista. Desse modo, observa-se que a tensão sobre a legalidade da greve era presente também nos meios acadêmicos. Dizer se a greve era uma ação legal ou não era apenas uma tarefa não exclusiva dos juristas. O debate espalhava-se por diversos ramos da sociedade. Daí a necessidade de uma constante ampliação das fontes de história do direito para trazer à tona não apenas as concordâncias, como, especialmente, as tensões, os enfrentamentos sociais, políticos e jurídicos de uma época. Diante disso, conclui-se que, até a década de 1930, a greve era descrita como “um conluio legal”, por mais paradoxal que isso possa parecer, pois era interpretada como uma ação para prejudicar alguém, porém dentro da lei. Com a criminalização dos movimentos no Estado Novo os dicionários passam a retirar novamente a palavra “legal”. 2.2 CRIME, CASTIGO E RECONHECIMENTO Conforme discorre Miron (2017, p. 16), as constituições de 1824, 1891 e 1934 não previam o instituto da greve, sendo esta considerada apenas como fato social tolerado pelo Estado. Como dito alhures, pouco tempo depois da Proclamação da República (1889), ainda no governo provisório, foi publicado o Código Penal, prevendo o instituto da greve como crime e punindo o infrator com pena de detenção em seus artigos 205 e 206. Paralelamente, aconteceu no Rio de Janeiro uma reivindicação que praticamente parou a cidade, que foi a greve dos cocheiros e carroceiros. Cabe aqui 17 um destaque para o qual era importante essa categoria até o início do século XX, pois além do transporte de pessoas e cargas, o que causou um impacto semelhante à greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018, os cocheiros e carroceiros faziam a coleta de lixo na cidade. No Rio de Janeiro em 1890, a urbanização não era como acontece hoje, com uma série de prédios, a população vivia em quintas, sítios, casas grandes etc. A função do carroceiro era justamente entrar na casa das pessoas e recolher o lixo, porém, quando eles entraram em greve questionando alguns artigos do código penal, principalmente o que criminalizava a greve, a prefeitura tenta anular o movimento contratando pessoas que substituiriam os carroceiros. Entretanto, o efeito não foi o esperado, pois a populaçãose recusava a aceitar estranhos entrando em suas residências para coletar o lixo. Então foi uma greve de muito sucesso, que fez com que o governo alterasse o código penal de 1890, tornando crime apenas a greve violenta. Em razão disso, o Decreto nº 1162/1890 alterou os referidos dispositivos, criminalizando somente a greve violenta. Segue redação do decreto 1162/1890: O Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brazil, considerando que a redacção dos arts. 205 e 206 do Codigo Criminal pode na execução dar logar a duvidas e interpretações erroneas e para estabelecer a clareza indispensavel, sobretudo nas leis penaes, decreta: Art. 1.º Os arts. 205 e 206 do Codigo Penal e seus paragraphos ficam assim redigidos: Art. 205. Desviar operarios e trabalhadores dos estabelecimentos em que forem empregados, por meio de ameaças e constrangimento: Penas – de prisão cellular por um a tres mezes e de multa de 200$ a 500$000. Art. 206. Causar ou provocar cessação ou suspensão de trabalho por meio de ameaças ou violencias, para impôr aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de serviço ou salario: Penas – prizão cellular por um a trez mezes (BRASIL, 1890). De acordo com Siqueira (2019), essa alteração é fundamental para entender o direito de greve na Primeira República (1889-1930). Desta forma, a partir de 12 e novembro de 1890, a greve pacífica passa a não ser considera um crime no Brasil, o que fez com que doutrinadores e jurisprudência da época e até mesmo algumas empresas, quando se manifestam sobre a greve, descrevam a greve como um direito. A greve pacífica não foi tipificada como crime. A luta dos trabalhadores, por canais não oficiais, promoveu uma alteração no direito positivo. Além disso, a Constituição, a doutrina e a jurisprudência majoritária concordavam que a greve sem violência era um direito do trabalhador. Essa interpretação é pacífica até 1935, com a instituição do Estado Novo. Contudo, o 18 reconhecimento de um direito pela doutrina e pelos tribunais não significa que automaticamente ele será respeitado por todos. Sendo assim, apesar de ter a sua natureza jurídica pacificada reconhecendo- a como direito e não como crime, o exercício da greve nunca foi algo considerado pacífico na História, pois: “No primeiro grito de greve a polícia era convocada e usualmente, mesmo a greve sendo legal, tinha violência empregada contra os trabalhadores, sub a justificativa de estarem garantindo a ordem e protegendo o patrimônio” (SIQUEIRA, 2019). Desde a Primeira República, pleiteia-se a regulamentação do Direito de Greve, enquanto isso, grandes movimentos operários paravam o país. As principais greves operárias ocorridas no Brasil durante a Primeira República tiveram como motivos a luta pelo aumento salarial, melhores condições de trabalho, melhores condições de vida (alimentação, moradia), por uma legislação previdenciária, direitos trabalhistas e sindicais. Segundo Carvalho (2019), no ano de 1907 existiam aproximadamente 150 mil operários. A grande maioria estava distribuída nas indústrias, mas existiam trabalhadores das ferrovias (ferroviários), trabalhadores da construção civil (serventes, pedreiros, carpinteiros), os portuários e outras profissões, como padeiros, sapateiros, trabalhadores dos comércios, entre outros. Grande parte das indústrias se concentrava na capital federal, a cidade do Rio de Janeiro, mas, a partir da década de 1920, a cidade de São Paulo assumiu o posto de maior detentora de indústrias no Brasil. Em meados de 1910, a maior parcela da população brasileira vivia no campo – os trabalhadores urbanos eram uma minoria em relação à população brasileira. O operariado brasileiro era formado principalmente por imigrantes estrangeiros (italianos, portugueses) e por uma parcela pobre da sociedade brasileira. Na Europa, na década de 1910, fervilhavam manifestações socialistas, comunistas e anarquistas, pois o operariado europeu reivindicava seus direitos perante a sociedade e os empregadores. Tanto que no ano de 1917 aconteceu a Revolução Socialista na Rússia. Devemos compreender a formação da classe operária brasileira dentro desse contexto histórico. Com a vinda de milhares de imigrantes europeus para o Brasil, vieram, juntamente com eles, as teorias sociais que fervilhavam entre a sociedade europeia. 19 Essas teorias foram fundamentais para os operários brasileiros iniciarem uma efetiva consciência de classe e, consequentemente, uma conscientização política. Os primeiros contatos do operariado brasileiro com o socialismo e principalmente com o anarquismo, levaram o proletariado, no começo do século XX, a lutar, reivindicar e se manifestar por direitos trabalhistas e sindicais, por melhores condições de trabalho e melhores salários. Os reflexos das reivindicações operárias foram sucessivas greves. Em 1905, os trabalhadores dos portos de Santos e do Rio de Janeiro paralisaram suas atividades; e no ano de 1906 foi a vez dos ferroviários decretarem greve. Todas essas greves tinham o apoio de trabalhadores de outros setores produtivos. No ano de 1907, o governo brasileiro aprovou uma lei que expulsaria do país todo imigrante estrangeiro que aderisse às greves – uma forma de retaliar e evitar a ocorrência de outras greves. Porém, a lei não surtiu efeito prático, pois no ano de 1907 ocorreu a primeira greve geral de trabalhadores. A principal paralisação operária foi a greve geral de 1917, iniciada em São Paulo, após a morte de um jovem trabalhador pela polícia. A greve se generalizou por todo o país e ocorreram na capital paulista vários conflitos e tiroteios por vários dias. Dessa greve participaram os operários da indústria têxtil e alimentícia, os ferroviários e os gráficos. Durante a greve geral de 1917, os operários lutavam por melhores salários, jornada de trabalho de oito horas, direito a férias, fim do trabalho infantil, proibição do trabalho noturno para as mulheres, aposentadoria e assistência médica. Tal cenário político e social fez com que o Direito de Greve passasse por modificações. Sobre isso, Siqueira (2017, p. 42-43) destaca: A Constituição, a doutrina e a jurisprudência majoritária concordavam que a greve pacífica era um direito do trabalhador. Interessante verificar que tal entendimento também era comungado pelos trabalhadores e pelos empregadores. [...] O cenário jurídico era bem claro: fazer um discurso jurídico contrário ao direito de greve não parecia estar de acordo com o sistema legal. Ocorre que o direito de greve costumeiramente era um direito que incomodava o Poder Executivo – quase sempre composto pelos empresários ou cafeicultores do período.80 A greve compreendia um direito que era criminalizado pelo Estado. E este buscava recursos jurídicos – alegação de violências, de danos, de outros tipos penais – para combater a greve. A problematização em geral que se pode fazer – a partir de uma teoria crítica do direito – é que o reconhecimento de qualquer direito tem custo. Algumas vezes, custos econômicos, outras vezes, custos políticos, sociais... Não se estava disposto a pagar os custos que o reconhecimento do direito de greve traria. 20 Vale lembrar, ainda, que em 1921, quando Epitácio Pessoa ocupava o cargo de presidente do país, o decreto no 4.269, que regulava a repressão ao “anarquismo”, aumentou a pena para a greve violenta (art. 204 do Código Penal), que passou de 1 a 3 meses de prisão para de 3 meses a 1 ano. A pena máxima virou a pena mínima. O decreto, que permitia ao governo “ordenar o fechamento, por tempo determinado, de associações, siyndicatos e sociedades civis quando incorram por actos nocivos ao bem publico”, estabelecia-se como uma grande ameaça à liberdade de se associar e, durante a década de 30, seria uma das grandes críticas feitas ao governo republicano pelos defensores da Revolução de 1930. Nesse contexto,destaca-se que no ano de 1930 foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, com o objetivo de concretizar o projeto do governo Vargas de interferir diretamente no conflito entre capital e trabalho. Devido à dinâmica econômica do Brasil até esse momento, as questões referentes ao Direito do Trabalho eram tratadas pelo Ministério da Agricultura, que não possuía a devida atenção pelo governo. Ocorre que os avanços foram poucos no que tange a proteção de direitos trabalhistas. Além disso, a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 38/32) proibiu o exercício do direito de greve pelos trabalhadores. Essa proibição repercutiu de maneira negativa e a tensão social se intensificou: A Lei de Segurança Nacional, lei no 38, de 4 de abril de 1935, é apelidada de Lei Monstro. O projeto de lei, desde janeiro do mesmo ano, já vinha recebendo críticas de vários grupos sociais, bem como da imprensa.145 Atribuía-se à lei a acusação de ser, por exemplo, uma imposição do capitalismo estrangeiro. No dia 23 de janeiro de 1935, a polícia de Belo Horizonte impediu uma manifestação dos trabalhadores da cidade contra a referida lei.147 Em 29 de janeiro houve discursos de deputados, na Câmara Federal, contra o projeto de lei, e, no dia 30, trabalhadores do estado de São Paulo iniciaram uma greve contra a aprovação do projeto. No dia 1° de fevereiro, o Correio de São Paulo noticiava o protesto de operários e ferroviários contra a nova lei. [...] Na imprensa da época, são diversas as manifestações contra a lei. É possível perceber que a Lei de Segurança Nacional, de certa forma, já era vista como o início de uma ditadura, uma cessão de direitos e uma violência contra a sociedade. O jornal A Noite anunciou, em 2 de fevereiro de 1935, uma greve da imprensa do estado do Paraná contra a Lei de Segurança Nacional. O mesmo jornal, no dia 7, anunciou manifestações no Rio Grande do Sul contra a lei: “Por essa lei monstruosa a democracia constitucional brasileira passará a viver sofrendo a agonia dos direitos políticos e individuais e o Brasil terá um governo ditatorial.” (SIQUEIRA, 2017, p. 65-66). O debate sobre a regulação da greve crescia, e restrições começaram a ser criadas na lei para o exercício desse direito. O governo Vargas promoveria uma grande expansão legislativa, e o direito de greve seria um dos mais presentes em todo esse processo. 21 Já no Estado Novo, a Constituição de 1937 instituiu a criação da Justiça do Trabalho e foi a primeira constituição a prever o instituto da greve. O regramento constitucional considerava a greve e o lockout como recursos antissociais, incompatíveis com os interesses da produção nacional. A Justiça do Trabalho foi instituída pelo Decreto-Lei 1.237/39, norma que também previa rígidas punições aos trabalhadores que participassem de movimentos grevistas, como, por exemplo, pena de suspensão, demissão por justa causa e até mesmo detenção. Inclusive, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelecia em sua redação original a greve como uma prática delituosa. Vide redação original dos artigos 723 e 724: Art. 723. Os empregados que, coletivamente e sem prévia autorização do tribunal competente, abandonarem o serviço, ou desobedecerem a qualquer decisão proferida em dissídio, incorrerão nas seguintes penalidades: a) suspensão do emprego até seis meses, ou dispensa do mesmo; b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiverem; c) suspensão, pelo prazo de dois anos a cinco anos, do direito de serem eleitos para cargo de representação profissional. Art. 724. Quando a suspensão do serviço ou a desobediência às decisões dos tribunais do Trabalho for ordenada por associação profissional, sindical ou não, de empregados ou de empregadores, a pena será: a) se a ordem for ato de assembléia, cancelamento do registo da associação, alem da multa de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros), aplicada em dobro, em se tratando de serviço público; b) se a instigação ou ordem for ato exclusivo dos administradores, perda do cargo, sem prejuizo da pena cominada no artigo seguinte. (BRASIL, 1943). Na mesma esteira, o Código Penal de 1940, em seu texto original, previa como delito a paralisação do trabalho, caso houvesse perturbação da ordem pública ou se contrariasse os interesses públicos. Paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem Artigo 200, participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou contra coisa. Pena-detenção, de 1 mês a 1 ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo Único – Para que se considere coletivo o abandono de trabalho é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados. Paralisação de trabalho de interesse coletivo Artigo 201, Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo. Pena – detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa. (BRASIL, 1940). De acordo com Siqueira (2017, p. 79), a criação da justiça obreira seria a justificativa do governo para criminalizar as greves: Um dos mais influentes intelectuais e políticos durante o governo Vargas, Francisco Luis da Silva Campos, escreve sobre a greve na exposição de motivos da parte especial do Código Penal de 1940. Ministro da Justiça, 22 Campos justificava a necessidade de atualizar o texto penal, de maneira a contemplar “novas figuras delituosas com que os progressos industriais e técnicos enriqueceram o elenco dos fatos puníveis”. Nos crimes contra a organização do trabalho estão os dispositivos que criminalizam a greve. [...] Para Campos, a ideia liberal de um Código que só intervém “quando a livre ação de uns seja lesiva do direito de outros e a consequente não criminalização e penalização da greve e de todos os meios incruentos e pacíficos na luta entre o proletariado e o capitalismo” não eram admitidas pela Constituição de 1937. O novo texto proclamou a legitimidade da intervenção do Estado no domínio econômico para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento do interesse da Nação [...] atentatória, ou não, da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, é ilícita e está sujeita a sanções repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal. Durante todo o Estado Novo, que durou até 1945, foi pacífico na doutrina e jurisprudência que a greve era um movimento antijurídico, conduto, os movimentos pacíficos e parciais de interrupção do trabalho em busca de melhorias nas condições não era considerado greve. Em alusão ao conceito de Sergio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, Siqueira (2019) destaca que, na mentalidade e dinâmica da ditadura do Estado Novo, o brasileiro era um povo cordial e pacífico, então o crime de greve tinha um alvo específico: “os estrangeiros, que contaminavam o país com o Comunismo”. O escritor Jorge Amado publicou em 1954 a trilogia de romances ‘Os subterrâneos da liberdade’, caracterizada por uma forte crítica à ditadura do Estado Novo (1937-45), do ponto de vista de um integrante do Partido Comunista Brasileiro. O primeiro volume, “Os Ásperos Tempos”, narra a instauração do regime ditatorial do Estado Novo. O segundo, “Agonia da Noite”, tem foco na greve dos estivadores do porto de Santos. Por fim, “A Luz no Túnel” é centrado na caça aos militantes comunistas pela polícia de Getúlio, que torturava e matava. Em um trecho de “Agonia da Noite”, escreveu Amado: O navio alemão encostava no cais, junto ao armazém onde se encontrava depositado o café. Da cidade vinham curiosos espiar o movimento no porto. A vida continuava normalmente, navios eram carregados e descarregados. Apenas a turma de estivadores convocadapara o trabalho no navio alemão não aparecera. Outra turma estava em vias de ser chamada em seu lugar. Os jornais dessa manhã nada diziam da reunião da véspera. Apenas publicavam uma informação da polícia política local, dizendo que a sede do sindicato havia sido ocupada e clausurada devido a ameaças de agitação por parte de elementos extremistas. Mas a notícia da decisão dos estivadores se espalhara por toda a cidade, chegara já a São Paulo, de onde partiam para Santos reforços policiais, 23 carros cheios de investigadores. Barros, agora delegado de Ordem Política e Social, mantinha largas conversações telefônicas com a polícia santista. Dera ordens definitivas: se até à noite os estivadores não iniciassem o carregamento do navio, as primeiras prisões deviam ser efetuadas. — É preciso mostrar a essa canalha que não estamos mais num regime liberal! Agora é o Estado Novo, é obedecer ou levar porrada. Não aja com meias-medidas. É preciso cortar a cabeça dos comunistas de uma vez. E eu vou cortá-la. Tenho carta branca, não tenha medo de nada. Se for preciso atirar, atire. Vou lhe mandar mais gente. Amanhã o café tem que estar sendo carregado, amanhã, no máximo. Se for necessário, eu mesmo darei um pulo aí. Também o Ruivo descera nessa manhã para Santos, no primeiro ônibus. Viera encontrar. João na casa do camarada onde estava hospedado. João lhe disse: — Não vai ser fácil. Tudo dependerá do movimento de solidariedade que pudermos desencadear quando a greve se declarar. A polícia não vai demorar a agir contra a estiva. Eles estão seguindo toda a direção do sindicato. A greve pode se prolongar por muito tempo, a massa do porto é qualquer coisa de extraordinária, possui uma combatividade incrível. Mas, por quanto tempo poderão agüentar?, eis o problema. É necessário pensar em duas coisas imediatamente: iniciar em São Paulo, aqui, em Sorocaba, Campinas, Santo André, em todos os centros operários, uma campanha de finanças para ajudar os grevistas. E, ao mesmo tempo, ir preparando o pessoal, nas fábricas, para paradas de trabalho e mesmo greves de solidariedade. (AMADO, 2011, p. 29) Neste contexto, a greve que contrariava a segurança nacional era aquela com motivações políticas, por vezes, de solidariedade entre os trabalhadores, o que era violentamente reprimido pela polícia. Por outro lado, quando não estavam envolvidos comunistas, estrangeiros e constatava-se conduta ilícita do empregador, como atraso de salários, os movimentos não eram considerados e greve e acabam absolvidos até pelo Tribunal de Segurança Nacional. Com o fim do governo Vargas, na nova Constituição brasileira em 1946 a greve volta a ser reconhecida como Direito. Nas palavras de Siqueira (2017) fim do Estado Novo trouxe novos ares para a República. Esses ares também foram jurídicos. Uma nova gama de autores, com visões plurais, comenta a Constituição de 1946. Se em 1937 todos os autores tinham a mesma posição sobre o direito de greve, nesse momento é facilmente perceptível o surgimento de novas visões – alguns autores contrários ao direito de greve, outros a favor. Por outro lado, os autores que tiveram seus livros publicados pelo Departamento de Imprensa e Propaganda não voltaram a produzir novos textos; apenas Pontes de Miranda escreveu em 1937 e 1946, mudando de posição. 24 Nesse contexto, o ministro do STF entre 1931 e 1945 e presidente da Corte entre 1940 e 1945, Eduardo Espínola, escreveu: “[...] é opinião geral que a nossa legislação do trabalho é das mais evoluídas. A Constituição aproveitou tudo quanto de melhor se estabeleceu entre nós e não deixou de se inspirar também nas leis estrangeiras, bem como na melhor doutrina”. (ESPÍNOLA, 1946). 2.3 DEMOCRACIA, DITADURA E “NOVA REPÚBLICA” O ano de 1945 marcou a deposição de Getúlio Vargas e a eleição de seu ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. Apesar de Dutra ter participado do movimento de destituição presidencial, recebeu o apoio de Vargas. Getúlio Vargas vinha sofrendo forte pressão desde 1943. Os sucessivos acordos e manobras para prolongar a ditadura – mesmo lutando o Brasil contra o fascismo da Europa durante a Segunda Guerra Mundial – iam, aos poucos, minando a base política do governo. As tensões sociais do período de transição do Estado Novo para a democracia em 1945 refletiram no novo ordenamento. Por exemplo, Jorge Amado, Marighela e Luís Carlos Prestes foram deputados constituintes, eleitos pelo Partido Comunista Brasileiro. Não obstante, explodiram diversas greves durante a constituinte, e o assunto foi constante durante a aprovação do novo texto constitucional no Congresso. A tensão social era tanta que o presidente Dutra editou o Decreto-Lei n° 9070/1946, regulamentando o direito de greve. Essa foi primeira norma que versava sobre como deveria ser o exercício do direito de greve, já que até então esse tipo de movimento era ilícito. Entretanto, esse decreto causou, na verdade, duas grandes limitações aos movimentos grevistas. A primeira era que a greve só era permitida nas atividades não essenciais, porém essa era uma limitação muito grande, de modo quase impossível uma greve legal, além disso trazia novos tipos penais, como o de aliciar trabalhadores de outra categoria a aderir a um movimento grevista, a conhecida “greve de solidariedade”. Segue abaixo um trecho do texto original do decreto: Art. 3º São consideradas fundamentais, para os fins desta lei, as atividades profissionais desempenhadas nos serviços de água, energia, fontes de energia, iluminação, gás, esgotos, comunicações, transportes, carga e descarga; nos estabelecimentos de venda de utilidade ou gêneros essenciais à vida das populações; nos matadouros; na lavoura e na pecuária; nos colégios, escolas, bancos, farmácias, drogarias, hospitais e serviços funerários; nas indústrias básicas ou essenciais à defesa nacional. 25 § 1º O Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, mediante portaria, poderá incluir outras atividades entre as fundamentais. § 2º Consideram-se acessórias as atividades não classificadas entre as fundamentais. (negritei). (BRASIL, 1946) Observa-se que, não só o rol das atividades essenciais é amplo, como ainda pode ser ampliado por ato do Ministério do Trabalho e aquilo que não for essencial é acessório, limitando, assim, o exercício do direito de greve. O segundo problema era que o decreto fora editado em março de 1946, durante a vigência da constituição de 1937, pois a nova Constituição passou a viger somente em setembro, então a norma seria inconstitucional. Sobre isso, tanto juristas que eram a favor do direito de greve quanto os que eram contra concordavam que o decreto não teria validade, por regular um direito não reconhecido pela constituição de 1937 e também não ter sido recepcionado pela nova ordem constitucional em 1946, que reconheceu o direito à greve no seu Art. 158. De acordo com Siqueira (2019), o Supremo Tribunal Federal julgou pouco mais de trinta processos envolvendo direito de greve entre 1946 e 1964, nos quais reconheceu a legalidade do decreto n° 7090, acatando a tese da “Repristinação Constitucional”, pela qual uma norma inconstitucional no sistema anterior passa a ter vigência no atual por ser adequada à nova constituição. Entretanto, devido às limitações impostas pelo referido decreto, apenas uma greve foi considerada legal, um caso bem pontual, onde, apesar da atividade ser essencial, a empresa tinha falhado e os trabalhadores estavam sem receber salário. Em seguida, no golpe civil-militar de 31 de março de 1964, tanta era a preocupação com a tensão social que as greves poderiam causar que, já em junho do mesmo ano, o governo publica um decreto-lei regulando a greve. Norma essa tão restritiva quanto a de 1946. Nesse momento histórico, o instituto da greve foi regulamentado pela Lei 4.330/64, conhecida como “Lei da Greve”. A norma determinouos casos específicos em que o movimento grevista seria considerado como ilegal. Segue abaixo a redação original: Art. 22. A. greve será reputada ilegal: I - Se não atendidos os prazos e as condições estabelecidas nesta lei; II - Se tiver objeto reivindicações julgadas improcedentes pela justiça do Trabalho em decisão definitiva, há menos de 1 (um) ano; 26 III - Se deflagrada por motivos políticos, partidários, religiosos, sociais, de apoio ou solidariedade, sem quaisquer reivindicações que interessem, direta ou legitimamente, à categoria profissional; IV - Se tiver por fim alterar condição constante de acôrdo sindical, convenção coletiva de trabalho ou decisão normativa da Justiça do Trabalho em vigor, salvo se tiverem sido modificadas substancialmente os fundamentos em que se apoiam. (BRASIL, 1964) Por sua vez, o artigo 20, parágrafo único, da lei retromencionada estabelecia que a greve ilícita, nos moldes do artigo 22, suspendia o contrato e o pagamento dos dias de paralisação ficava a cargo do empregador ou da Justiça do Trabalho, desde que fossem deferidas, no todo ou em parte, as reinvindicações formuladas pelos grevistas. Detalhe, até mesmo na ditadura militar o corte de ponto só era autorizado após a greve ser considerada ilegal. Sob a égide do antigo regramento infraconstitucional, a Lei nº 4.430/64, a greve política e de solidariedade eram proibidas de forma expressa, nos seguintes termos: “a greve será reputada ilegal: III – se deflagrada por motivos políticos, partidários, religiosos, sociais, de apoio ou solidariedade, sem quaisquer reinvindicações que interessem, direta ou legitimamente, à categoria profissional”. A Constituição Federal de 1967 assegurou o direito de greve aos trabalhadores da iniciativa privada, vedando-o aos servidores públicos e atividades essenciais definidas em lei. A Emenda Constitucional nº 01/69, que parte da doutrina considera ser uma nova constituição, limitou-se a manter a disposição constitucional anterior, em seus artigos 162 e 165, XXI. O Decreto-Lei nº 1.632/78 estabeleceu quais seriam os serviços públicos e atividades essenciais em que o exercício do direito de greve estaria proibido. No mesmo sentido, a Lei da Segurança Nacional (Lei 6.620/78) previa os crimes contra a segurança nacional, punindo a incitação à paralisação dos serviços públicos e à cessação coletiva do trabalho por parte de funcionários públicos. Outrossim, Miron (2017, p. 20) destaca que a partir de 1979 eclodiram diversos movimentos grevistas no Brasil. Com o passar dos anos, houve um reconhecimento formal de que a greve consistiria em uma forma legítima de manifestação dos interesses sociais da classe trabalhadora. Diante desse novo modelo de relação de trabalho, a dita “Nova República” e a Constituição de 1988 passou a reconhecer o instituto da greve como um direito social, um instrumento democrático a serviço da cidadania, sendo entendido como uma reação natural dos trabalhadores em prol de melhoria nas condições de trabalho. 27 Sobre isso, a Constituição de 1988 assegurou aos trabalhadores da iniciativa privada o direito de greve em seu artigo 9º, regulamentado atualmente pela lei 7.783/89. Abaixo o texto original da Constituição: Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. § 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. (BRASIL, 1988) No que tange aos servidores públicos civis, a Constituição Federal também reconheceu a eles o direito de greve em seu artigo 37, VII, condicionando, porém, seu exercício, primeiramente, à edição de lei complementar. Com a Emenda Constitucional nº 19/98, o exercício do direito passou a depender de regulamentação por lei específica, ainda não aprovada pelo Congresso Nacional. Entretanto, de acordo com Oliveira (2013), ainda que o Art. 37 da Constituição de 1988 abranja os servidores da Administração direta e indireta, a Lei de Greve se aplica aos empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista, como Correios e Petrobrás, por força do Art. 173, §1°, inc. II, também da Constituição, que lhes impõe regime jurídico igual ao das empresas privadas. Portanto, no momento estariam pendentes apenas a regulamentação dos termos e dos limites da greve dos servidores públicos estatutários civis. Sendo esta uma questão atual no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que, como a História sempre mostrou, a falta de regulamentação ou até mesmo a proibição não impediu que os trabalhadores de praticar a greve. Por isso, o capítulo seguinte busca aprofundar o conceito de agentes públicos. 28 3 REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES E SERVIÇOS PÚBLICOS Junto ao conceito de Estado moderno surgem os serviços públicos. Até mesmo o Liberalismo clássico, que defendia o Estado mínimo, reconhece que alguns serviços devem ser responsabilidade pública, como a segurança, a administração da Justiça, a construção e manutenção de bens de uso coletivo, como estradas e pontes, dentre outros. Considerando que o Estado é pessoa jurídica e que, como tal, não dispõe de vontade própria, ele atua sempre por meio de pessoas físicas, a saber, os agentes públicos. Várias teorias surgiram para explicar as relações do Estado pessoa jurídica com seus agentes, quais Di Pietro (2014, p. 589-590) destaca: 1. pela teoria d o mandato, o agente público é mandatário da pessoa jurídica; a teoria foi criticada por não explicar como o Estado, que não tem vontade própria, pode outorgar o mandato; 2. pela teoria da representação, o agente público é representante do Estado por força de lei; equipara-se o agente à figura do tutor ou curador, que representam os incapazes; a teoria também foi criticada, quer por equiparar a pessoa jurídica ao incapaz, quer por implicar a ideia de que o Estado confere representantes a si mesmo, quando não é isso o que ocorre na tutela e curatela; além disso, essa teoria, da mesma forma que a anterior, teria outro inconveniente : quando o representante ou mandatário ultrapassasse os poderes da representação, a pessoa jurídica não responderia por esses atos perante terceiros prejudicados; 3. pela teoria do órgão, a pessoa jurídica manifesta a sua vontade por meio dos órgãos, de tal modo que quando os agentes que os compõem manifestam a sua vontade, é como se o próprio Estado o fizesse; substitui-se a ideia de representação pela de imputação. Não obstante, a autora destaca que, enquanto a teoria da representação considera a existência da pessoa jurídica e do representante como dois entes autônomos, a teoria do órgão funde os dois elementos, para concluir que o órgão é parte integrante do Estado. Por conta disso, essa teoria seria utilizada por muitos autores para justificar a validade dos atos praticados por funcionário de fato; considera-se que o ato do funcionário é ato do órgão e, portanto, imputável à Administração. A mesma solução não é aplicável à pessoa que assuma o exercício de função pública por sua própria conta, quer dolosamente (como o usurpador de função), quer de boa-fé, para 29 desempenhar função em momentos de emergência, porque nesses casos é evidente a inexistência de investidura do agente no cargo ou função. Com base na teoria do órgão, pode-se definir o órgão público como uma unidade que congrega atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram com o objetivo de expressar a vontade do Estado. Na realidade, o órgão não se confunde com a pessoa jurídica, embora seja uma de suas partes integrantes; a pessoa jurídica é o todo, enquanto os órgãos são parcelas integrantes do todo. O órgão também não se confunde com a pessoafísica, o agente público, porque congrega funções que este vai exercer. Sobre isso, destaca-se que uma das dimensões do princípio da Impessoalidade da Administração Pública, significa que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. (DI PIETRO, 2014, p. 68). Contudo, destaca ainda Di Pietro, “servidor público” é expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado, os empregados públicos. Entretanto, apesar da Constituição não utilizar o vocábulo ‘funcionário’, isto não impede que este seja mantido na legislação ordinária. Outrossim, também existem preceitos aplicáveis a outras pessoas que exercem função pública; esta, em sentido amplo, compreende não só a função administrativa, de que cuida o capítulo referente à Administração Pública, mas também as funções legislativa e jurisdicional, tratadas em capítulos próprios, e ainda há as pessoas que exercem função pública, sem vínculo empregatício com o Estado. Daí a necessidade de adoção de outro vocábulo, de sentido ainda mais amplo do que servidor público para designar as pessoas físicas que exercem função pública, com ou sem vínculo empregatício. Em razão disto, os doutrinadores brasileiros passaram a falar em agente público nesse sentido amplo. 3.1 AGENTES PÚBLICOS E O REGIME ESTATUTÁRIO 30 Na Constituição de 1988, de acordo com Di Pietro (2014, p. 633), existem quatro categorias de agentes públicos: “1. agentes políticos; 2. servidores públicos; 3. militares; e 4. particulares em colaboração com o Poder Público”. Conceituando cada um deles, a autora ensina que agentes Políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, são os ocupantes dos cargos que compõem o arcabouço constitucional do Estado e, portanto, o esquema fundamental do poder. Sua função é a de formadores da vontade superior do Estado." Para ele, são agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, os Prefeitos e respectivos auxiliares imediatos (Ministros e Secretários das diversas pastas), os Senadores, os Deputados e os Vereadores. Nesse contexto, a função política “implica uma atividade de ordem superior referida à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e em sua unidade, dirigida a determinar os fins da ação do Estado, a assinalar as diretrizes para as outras funções, buscando a unidade de soberania estatal”. Compreende, basicamente, as atividades de direção e as colegislativas, ou seja, as que implicam a fixação de metas, de diretrizes, ou de planos governamentais. Os servidores públicos, em sentido amplo, são as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. Compreendem: 1. os servidores estatutários, sujeitos ao regime estatutário e ocupantes de cargos públicos; 2. os empregados públicos, contratados sob o regime da legislação trabalhista e ocupantes de emprego público; 3. os servidores temporários, contratados por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da Constituição); eles exercem função, sem estarem vinculados a cargo ou emprego público. (DI PIETRO, 2014, p. 588-599). Os da primeira categoria submetem-se a regime estatutário, estabelecido em lei por cada uma das unidades da federação e modificável unilateralmente, desde que respeitados os direitos já adquiridos pelo servidor. Quando nomeados, eles ingressam numa situação jurídica previamente definida, à qual se submetem com o ato da posse; não há possibilidade de qualquer modificação das normas vigentes por meio de contrato, ainda que com a concordância da Administração e do servidor, porque se trata de normas de ordem pública, cogentes, não derrogáveis pelas partes. 31 Enquanto os da segunda categoria são contratados sob regime da legislação trabalhista, que é aplicável com as alterações decorrentes da Constituição Federal; não podem Estados e Municípios derrogar outras normas da legislação trabalhista, já que não têm competência para legislar sobre Direito do Trabalho, reservada privativamente à União (art. 22, I, da Constituição). Embora sujeitos à CLT, submetem- se a todas as normas constitucionais referentes a requisitos para a investidura, acumulação de cargos, vencimentos, entre outras previstas no Capítulo VII, do Título III, da Constituição. Por fim, os da terceira categoria são contratados para exercer funções em caráter temporário, mediante regime jurídico especial a ser disciplinado em lei de cada unidade da federação. Eles substituem os servidores a que fazia referência ao artigo 106 da Constituição de 1967 (com a redação dada pela Emenda Constitucional nº1/69), que previa, também, um regime especial para duas hipóteses: servidores admitidos em serviços de caráter temporário ou contratados para funções de natureza técnica especializada. A Constituição de 1988, que substituiu a expressão funcionário público por servidor público, previu, na redação original, regime jurídico único para os servidores da Administração Direta, autarquias e fundações públicas (art. 39). A partir da Emenda Constitucional nº 19/98, a exigência tinha deixado de existir, de modo que cada esfera de governo podia instituir o regime estatutário ou o contratual, com possibilidade de conviverem os dois regimes na mesma entidade ou órgão, não havendo necessidade de que o mesmo regime adotado para a Administração Direta fosse igual para as autarquias e fundações públicas. No entanto, o Supremo Tribunal Federal suspendeu, em ação direta de inconstitucionalidade, a vigência do artigo 39, caput, voltando a aplicar-se o dispositivo em sua redação original. Algumas categorias se enquadrarão necessariamente como servidores estatutários, ocupantes de cargos e sob regime estatutário, estabelecido por leis próprias: trata-se dos membros da Magistratura, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da Advocacia Pública e da Defensoria Pública. Além disso, também ocupam necessariamente cargos públicos, sob regime estatutário, os servidores que “desenvolvam atividades exclusivas de Estado”; isto porque o artigo 247 da Constituição, acrescentado pelo artigo 32 da Emenda Constitucional nº 19/98, exige sejam fixados, por lei, "critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado". Ainda não foram definidas as carreiras de Estado, mas, com certeza, pode-se afirmar que abrangem, além dos servidores que 32 atuam nas áreas de polícia civil ou militar, controle, fiscalização, diplomacia e regulação. Os servidores das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações privadas regem-se pela legislação trabalhista. Para as empresas que exercem atividade econômica, esse regime é imposto pelo artigo 173, § 1 º, da Constituição. Para os demais, não é obrigatório, mas é o que se adota por meio das leis ordinárias, por ser o mais compatível com o regime de direito privado a que se submetem. (DI PIETRO, 2014, p. 602). Ainda sobre o regime estatutário: O regime jurídico dos servidores é, portanto, o conjunto de normas que estabelecem os direitos e deveres desses agentes públicos, pelo menos aqueles que se possam imputar de modo geral aos servidores públicos. Isso porque, para além de direitos e deveresgerais, os servidores públicos também devem observar normas específicas, relativas a determinadas categorias de agentes, diferenciados, sobretudo, pela natureza da atividade exercida. Assim é que servidores tais como professores, policiais civis e médicos, além das normas do regime jurídico único comum a todos, deverão também submeter-se a regras que são próprias das atividades exercidas pelas respectivas categorias. Mas mesmo essas normas específicas devem ser da mesma natureza daquelas do regime comum dos servidores públicos, no sentido de pertencerem ao direito administrativo ou ao direito do trabalho. (ARAUJO, 2017). Complementa Araújo (2017, p.12) que, independentemente da posição que se possa adotar no tocante à natureza do regime único, para a sua boa aplicabilidade, é imprescindível estabelecer o seu alcance, ou seja, determinar quais as espécies de servidores públicos estão nele incluídos e quais os excluídos. Para a delimitação dos servidores excluídos do regime único, é relevante atentar para o fato de que a CF estabeleceu normas específicas para determinadas carreiras do serviço público, com o claro propósito de diferenciá-las da generalidade dos servidores públicos no tocante ao regime jurídico. Assim, regimes específicos encontram-se previstos para os militares (CF, art. 42, § 1º, e art. 142, § 3º, X), para os magistrados (CF, art. 93, que prevê o Estatuto da Magistratura) e para o Ministério Público (CF, art. 128, § 5º, com a previsão do Estatuto do Ministério Público). Caso os demais servidores públicos sejam submetidos ao regime estatutário, tanto eles quanto os servidores das carreiras com estatutos específicos serão caracterizados como agentes sujeitos a regimes da mesma natureza, ou seja, o regime estatutário. Porém, não há que se confundir a natureza do regime com o seu conteúdo. Regimes de conteúdos distintos podem ser da mesma natureza. No caso, teremos diversos regimes estatutários, na medida em que tivermos distintos estatutos, 33 com conteúdos diferentes, não obstante apresentarem todos a mesma natureza, sendo todos estatutários. Outra categoria de agentes públicos, os militares abrangem as pessoas físicas que prestam serviços às Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica (art. 142, caput, e § 3º, da Constituição) - e às Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, Distrito Federal e dos Territórios (art. 42), com vínculo estatutário sujeito a regime jurídico próprio, mediante remuneração paga pelos cofres públicos, constituindo categoria própria. Por fim, os particulares em colaboração com o Poder Público são pessoas físicas que prestam serviços ao Estado, sem vínculo empregatício, com ou sem remuneração. 3.2 SERVIÇOS PÚBLICOS E OS SEUS PRINCÍPIOS Sobre os serviços públicos, Miron (2017, p. 37) destaca que no ordenamento jurídico brasileiro atual, ainda existem divergências na doutrina quanto a definição do instituto, pois a sua noção sofreu diversas transformações no decurso do tempo, tanto no que tange aos seus elementos constitutivos, quanto no que diz respeito à sua abrangência. Além disso, a doutrina ora apresenta uma noção orgânica, ora expõe um conceito formal, ora oferece uma definição material. Sobre isso, José dos Santos Carvalho Filho explica que há duas concepções sobre o serviço público: uma concepção subjetiva e outra objetiva. Pela concepção subjetiva, são levados em consideração os órgãos do Estado responsáveis pela execução das atividades voltadas à sociedade. Pela concepção objetiva, o serviço público é a atividade em si, prestada pelo Estado e seus agentes. A partir disso, o autor discorre sobre os três critérios normalmente utilizados pela doutrina de modo a definir o serviço público. Pelo critério orgânico, serviço público é aquele prestado por órgãos públicos, diretamente pelo Estado. Esse critério é alvo de críticas, pois a execução das atividades públicas não se restringe ao Estado, podendo ser delegadas a particulares. Noutro vértice, pelo critério formal, serviço público é aquele disciplinado pelo regime de direito público. Entretanto, esse também seria um critério insuficiente, pois nem todo serviço público é prestado sob regime exclusivamente público. Isso porque 34 podem incidir regras de direito privado em alguns segmentos da prestação de serviços públicos. É o caso, por exemplo, das sociedades de economia mista e das empresas públicas. Contudo, Miron (2017, p. 38) destaca que de acordo com o critério material, serviço público seria aquele que atendesse direta e essencialmente à comunidade. Ocorre que existem atividades estatais que não atendem à comunidade de forma direta, mas sim de forma indireta e mediata. Além disso, nem todas as atividades executadas pelo Estado são frutos de uma demanda essencial da coletividade, isto é, muitas das vezes são executadas atividades secundárias pelo Estado. Diante do apresentado, Carvalho Filho (2015, p. 333) conceitua o serviço público como “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, em vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2016, p. 418), “serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado”. Quanto aos princípios do inerentes ao serviço público, destacam-se os princípio o da continuidade do serviço público, o da mutabilidade do regime jurídico e o da igualdade dos usuários. Quanto à continuidade dos serviços públicos, este princípio tem aplicação especialmente com relação aos contratos administrativos e ao exercício da função pública. No magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 113) é possível identificar as duas dimensões desse princípio: No que concerne aos contratos, o princípio traz como consequências: 1. a imposição d e prazos rigorosos a o contraente; 2. a aplicação da teoria d a imprevisão, para recompor o equilíbrio econômico- financeiro do contrato e permitir a continuidade do serviço; 3. a inaplicabilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração; 4. o reconhecimento de privilégios para a Administração, como o de encampação, o de uso compulsório dos recursos humanos e materiais da empresa contratada, quando necessário para dar continuidade à execução do serviço. Quanto ao exercício da função pública, constituem aplicação do princípio da continuidade, dentre outras hipóteses: 1. as normas que exigem a permanência d o servidor e m serviço, quando pede exoneração, pelo prazo fixado em lei; 2. os institutos da substituição, suplência e delegação; 35 3. a proibição do direito de greve, hoje bastante afetada, não só no Brasil, como também em outros países, como a França, por exemplo. Lá se estabeleceram determinadas regras que procuram conciliar o direito de greve com as necessidades do serviço público; proíbe-se a greve rotativa que, afetando por escala os diversos elementos de um serviço, perturba o seu funcionamento; além disso, impõe-se aos sindicatos a obrigatoriedade de uma declaração prévia à autoridade, no mínimo cinco dias antes da data prevista para o seu início. A aplicabilidade do princípio da continuidade dos serviços públicos no contexto do exercício da função pública e a constante luta dos servidores faz com que a edição de lei específica que regulamenta o direito de greve seja cada vez mais relevante e urgente. 3.3 PROJETOS DE LEI SOBRE A GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO No início do ano de 2020, dois projetos mais avançados se destacam no Congresso Nacional. Na Câmara, o 4497/2001, de autoria da deputada Rita Camata (PMDB/ES), que tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
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