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Análise narrativa da Bíblia Handley José Cantas aedificat Coleção Bíblia em Comunidade PRIM EIRA SÉRIE - VISÃO GLO BAL DA BÍBLIA 1. Bíblia, comunicação entre Deus e o povo - Informações gerais 2. Terras bíblicas: encontro de Deus com a humanidade - Terra do povo da Bíblia 3. O povo da Bíblia narra suas origens - Formação do povo 4. As famílias se organizam em busca da sobrevivência - Período tribal 5. O alto preço da prosperidade - Monarquia unida em Israel 6. Em busca de vida, o povo muda a história - Reino de Israel 7. Entre a fé e a fraqueza - Reino de Judá 8. Deus também estava lá - Exílio na Babilônia SEGUNDA SÉRIE - TEO LO GIAS BÍBLICAS 1. Deus ouve o clamor do povo (Teologia do êxodo) 2. Vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus (Teologia da aliança) 3. Iniciativa de Deus e corresponsabilidade humana (Teologia da graça) 4. O Senhor está neste lugar e eu não sabia (Teologia da presença) 5. Profetas e profetisas na Bíblia (Teologia profética) 6. O Sentido oblativo da vida (Teologia sacerdotal) 7. Faça de sua casa um lugar de encontro de sábios (Teologia sapiencial) 8. Grava-me como selo sobre teu coração (Teologia bíblica feminista) 9. Teologia rabínica (em preparação) TERCEIRA SÉRIE - B ÍBLIA COMO LITERATURA 1. Bíblia e Linguagem: contribuições dos estudos literários (em preparação) 2. Introdução às formas literárias no Primeiro Testamento (em preparação) 3. Introdução às formas literárias no Segundo Testamento (em preparação) 4. Introdução ao estudo das Leis na Bíblia QUARTA SÉRIE - RECURSOS PEDAGÓGICOS 1. O estudo da Bíblia em dinâmicas - Aprofundamento da Visão Global da Bíblia 2. Aprofundamento das teologias bíblicas (em preparação) 3. Aprofundamento da Bíblia como Literatura (em preparação) 4. Pedagogia bíblica 4.1. Primeira infância: E Deus viu que tudo era bom 9. A comunidade renasce ao redor da Palavra - Período persa 10. Fé bíblica: uma chama brilha no vendaval - Período greco-helenista 11. Sabedoria na resistência - Período romano 12. O eterno entra na história - A terra de Israel no tempo de Jesus 13. A fé nasce e é vivida em comunidade - Comunidades cristãs na terra de Israel 14. Em Jesus, Deus comunica-se com o povo - Comunidades cristãs na diáspora 15. Caminhamos na história de Deus - Comunidades cristãs e sua organização 10. Paulo, apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus (Teologia paulina) 11. Compaixão, cruz e esperança (Teologia de Marcos 12. Lucas e Atos: uma teologia da história (Teologia lucana) 13. Ide e fazei discípulos meus todos os povos (Teologia de Mateus) 14. Teologia joanina (em preparação) 15. Eis que faço novas todas as coisas (Teologia apocalíptica) 16. As origens apócrifas do cristianismo (Teologia apócrifa) 17. Teologia da Comunicação (em preparação) 18. Minha alma tem sede de Deus (Teologia da espiritualidade bíblica) 5. Introdução à análise poética de textos bíblicos 6. Introdução à Exegese patrística na Bíblia (em preparação) 7. Método histórico-crítico (em preparação) 8. Análise narrativa da Bíblia 9. Método retórico e outras abordagens (em preparação) 4.2. Segundo Infância (em preparação) 4.3. Pré-adolescência (em preparação) 4.4. Adolescência (em preparação) 4.5. Juventude (em preparação) 5. Modelo de ajuda (em preparação) 6. Mapas e temas bíblicos (em preparação) 7. Metodologia de estudo e pesquisa (em preparação) Jaldemir Vitorio SJ Análise narrativa da Bíblia Primeiros passos de um método Bíblia como Literatura 8 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vitorio, Jaldemir Análise narrativa da Bíblia : primeiros passos de um método / Jaldemir Vitorio. - São Paulo : Paulinas, 2016. - (Coleção Bíblia em comunidade. Série Bíblia como literatura) Bibliografia. ISBN 978-85-356-4092-2 1. Bíblia. A.T. - Linguagem, estilo 2. Bíblia - Crítica e interpretação 3. Bíblia - Estudo e ensino 4. Narração na Bíblia I. Título. II. Série. 16-00371 CDD-220.014 índice para catálogo sistemático: 1. Narrativa bíblica : Linguagem e comunicação 220.014 Direção-geral: Editora responsável: Coordenação de revisão: Revisão: Gerente de produção: Capa e diagramação: Bernadete Boff Maria Goretti de Oliveira Marina Mendonça Ana Cecilia Mari Felício Calegaro Neto Manuel Rebelato Miramontes Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gra\>açâo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados. SAB - Serviço de Animação Bíblica Av. Afonso Pena, 2.142 - Bairro Funcionários 30130-007 - Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3269-3737-Fax: (31) 3269-3729 e-mail: sab@paulinas.com.br Paulinas Rua Dona Inácia Uchoa, 62 04110-020 - São Paulo - SP (Brasil) Tel.: (11)2125-3500 Telemarketing e SAC: 0800-7010081 http://www.paulinas.org.br - editora@paulinas.com.br ©Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2016 mailto:sab@paulinas.com.br http://www.paulinas.org.br mailto:editora@paulinas.com.br c :: Introdução....................... ............................................................ 11 Capítulo Primeiro - Narrar, uma arte................................... 15 Os personagens e o leitor...................................................... 19 O leitor implícito.....................................................................25 Pseudoepigrafia.......................................................................27 A Bíblia e a história.................................................... 31 Historiografia bíblica.............................................................. 31 Para aprofundar a reflexão................................................... 32 Capítulo Segundo - A análise narrativa.............. 33 A repetição................. 35 Análise narrativa.....................................................................36 O método histórico-crítico..................................................... 37 Para aprofundar a reflexão...................................................40 Capítulo Terceiro - As narrações bíblicas.................................41 Teologia narrativa .................................................... 41 A leitura das narrativas bíblicas.............................................44 Para aprofundar a reflexão...................................................50 Capítulo Quarto - O enredo: como se articula o conjunto da narração?........... ..........................................53 Narrativa e conflito................................................................ 55 As características divinas do narrador.................................. 57 Os limites de uma narração...................................................60 Para aprofundar a reflexão...................................................74 Capítulo Quinto - Os personagens: quem são e como são identificados?................................................77 Os vários tipos de personagens................... ...............................80 Deus como personagem................................................................ 81 Para aprofundar a reflexão................ ....................................... 103 Capítulo Sexto - A localização: como fatos e personagens entram na mira do narrador?................105 As localizações...... ..........................................................................109 Para aprofundar a reflexão ................................................... 109 Capítulo Sétimo - A temporalidade: que indicações são oferecidas para situar a narração no tempo? ....... 111 Para aprofundar a reflexão.................. ................ ....................120 Capítulo Oitavo - O contexto: sobre qual pano de fundo a narração é projetada?............... ............. . 121 Ponto de vista................... .............. ................................................123 Para aprofundar a reflexão ........................................................ 131 Capítulo Nono - O ponto de vista: quais são os sistemas de valores subjacentes?...........................................133 Ponto de vista....... ......... ................................................................ 134 Para aprofundar a reflexão............. .......... ...............................138 Conclusão............. ........ ................. ............. ........................................ 139 Bibliografia....................................................................... ................. . 141 O curso “Bíblia em Comunidade” aborda, no terceiro nível, a Bíblia como literatura. Muitos cursistas do Serviço de Animação Bíblica (SAB), de início, estranham que a Bí blia seja tratada como literatura. Reminiscências do passado, quando o texto bíblico se revestia de uma sacralidade quase intocável, dificultam a leitura da Bíblia como obra literária. Isso seria uma espécie de profanação! Entretanto, ler a Bíblia como literatura de forma alguma tira-lhe a sacralidade ou diminui-lhe a condição de texto reli gioso. Antes, possibilita compreendê-la com mais profundida de e chegar à mensagem que tem para nós hoje. Ao ter contato com esse modo de abordagem do texto bíblico, grande parte dos cursistas percebe seu valor, pois ela lhes possibilita transi tar pelos meandros da Bíblia e descobrir uma riqueza enorme de mensagens, descortinando horizontes novos de compreen são da Palavra de Deus. Análise narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método faz parte do estudo da Bíblia como literatura e, como o próprio título evidencia, serve de introdução ao método de análise narrativa, ainda pouco explorado por estudiosos da Bí blia. As narrações são um jeito agradável que os autores bíbli cos encontraram para transmitir as tradições da vida e da fé do povo aos filhos e às gerações, servindo-se de histórias carrega das de teologia e de espiritualidade. Por outro lado, eram for mas privilegiadas de memorizar os ensinamentos enraizados na sabedoria do povo. 7 Esta obra explicita os elementos da narração bíblica, centrando-se na tríade narrador-texto-leitor. Como afirma o autor, “as perguntas de fundo são: como o narrador trabalhou para produzir o texto a ser oferecido aos leitores? Que recur sos literários utilizou para transmitir a mensagem aos leitores destinatários? Como arquitetou o texto que o leitor tem em mãos?”. São questões que chamam a atenção para os cami nhos percorridos pelo narrador para comunicar a mensagem da fé. Quanto maior sua capacidade de narrar, tanto maior será o efeito produzido pela narração. As explicitações possibilita das pela análise narrativa dão margem a uma leitura mais rica dos textos bíblicos, para colher da forma mais acertada sua mensagem. O autor toma o livro de Rute, uma narrativa curta e de grande riqueza, como base para a aplicação do método. Os leitores, dessa forma, terão um primeiro exemplo de como aplicá-lo. Por sua vez, os exercícios práticos, no final de cada capítulo, são incentivos para o trabalho de descoberta pessoal dos ricos filões de sentido das narrações bíblicas. Quanto mais o leitor se exercitar, tanto mais progredirá na arte de entrar nos meandros do Primeiro e do Segundo Testamento. A linguagem clara e acessível permitirá a um público muito amplo aproveitar o trabalho do Pe. Vitorio. Com a lei tura atenta desta obra, mesmo pessoas não iniciadas na análise dás narrativas bíblicas poderão adentrar o mundo da Bíblia, muito lida, porém mal interpretada pela falta de métodos ade quados. Daí as tentações fundamentalistas e historicistas, per niciosas para quem tem nas mãos os textos bíblicos. Este livro se insere no terceiro nível do Projeto Bíblia em Comunidade. O primeiro nível abordou a Visão Global da 8 Bíblia, sob o fio condutor do contexto histórico e geográfico, bem como dos escritos bíblicos surgidos em cada época. O segundo nível tratou das Teologias Bíblicas, surgidas ao longo da história do Povo de Deus. O terceiro nível se dedica a estu dar a Bíblia como Literatura. Trata-se, portanto, de um instru mental precioso para os estudos da Bíblia feitos por estudantes de teologia, catequistas, professores de religião, pregadores, e para o público mais amplo, formado por quem se interessa em ler a Bíblia de maneira proveitosa, mesmo sem preocupações religiosas. O Projeto Bíblia em Comunidade tem ajudado muitas pessoas a conhecer e aprofundar as Escrituras, inserindo-as numa vivência mais consistente da fé e numa atuação mais efetiva em muitos âmbitos pastorais. Faço votos de que o presente volume cumpra seu obje tivo de ser ferramenta para quem é desafiado a transformar o texto bíblico em Palavra da Salvação. Ir. Romi Auth, fsp 9 A Bíblia - Palavra de Deus - chega às comunidades e às pessoas de fé em forma de literatura. Como literatura, tem a mesma fisionomia do que se poderia chamar literatura pro fana. Nada na Bíblia se identifica como “linguagem celeste”, linguajar não humano. É o mistério da encarnação da Palavra. Deus “fala” a linguagem humana para ser entendido. Seus lei tores se veem às voltas com a tarefa de identificar a Palavra de Deus revestida com palavras humanas. O grande desafio das comunidades de fé consiste em captar a mensagem da salvação nas entrelinhas de um texto ao mesmo tempo fácil e difícil. Fácil, pois, por meio de boas traduções disponíveis, pode-se ter acesso a textos bíblicos confiáveis. Difícil, por se tratar de um texto escrito num hori zonte cultural e linguístico muito distinto do horizonte atual. Para entendê-lo se requer um instrumental específico, apto a possibilitar o acesso à mensagem veiculada. Em outras pala vras: só é possível chegar ao sentido do texto num processo de interpretação. Os textos bíblicos foram escritos para ser lidos e, por conseguinte, interpretados. Ler é interpretar! E, vice-versa, interpretar é ler! Quem lê sem interpretar jamais entenderá o que lê. Na direção contrária, quem interpreta pro duz um tipo de leitura que poderá assumir variadas roupagens, dependendo do intérprete e seus contextos. Cada leitura faz brotar um manancial inesgotável de sentido. Sem leitores e leitoras intérpretes - pessoas e comu nidades - , os textos bíblicos permaneceríam letra morta. Os 11 leitores dão-lhes vida e fazem com que se tomem “Palavra do Senhor” ou “Palavra da Salvação”. Lidos e interpretados, têm a força de se tomarem “Palavra de Deus”. Lidos sem o esforço de interpretação, limitam-se à materialidade da letra. É a fra gilidade das leituras fundamentalistas e historicistas.1 Daí sua pobreza -o u a inutilidade! - , por serem incapazes de entrar no “mundo do texto”; antes, dão-se por satisfeitas por transitarem em sua superfície. Os fundamentalistas e os historicistas se enganam, redondamente, ao se considerarem “conhecedores da Bíblia” quando, de fato, movem-se em um universo bíblico fruto de dogmatismos e fanatismos, sem qualquer relação com o que a literatura bíblica pretende ser, desde as mais remotas origens de sua redação.2 Os leitores e as leitoras têm à disposição variados mé todos de interpretação dos textos bíblicos. Os chamados mé todos diacrônicos ou históríco-críticos tentam retraçar a histó ria subjacente ao texto, correspondente ao contexto histórico de origem. Outros se perguntam pelas tradições com as quais os autores bíblicos trabalharam. Outros, ainda, se interessam pelo processo de redação, nas várias etapas, até chegar ao texto como é conhecido hoje. Há quem se pergunte pela pragmática dos textos bíblicos, ou seja, as atitudes concretas propostas pe los autores aos primeiros leitores destinatários. Existem méto dos interessados nos efeitos produzidos pelo texto ao longo do témpo. É a chamada Wirkungsgeschichte (história do efeito). 1 A Fundamentalista é a “leitura ao pé da letra”: a verdade corresponde ao conteúdo das palavras. Historicistaé a leitura que considera “histórico” tudo quanto a Bíblia relata, como se se tratasse de um livro de crônicas. Até o relato da criação (Gn 1-2) se tem na conta de descrição científica do que aconteceu no começo de tudo. Daí os inúteis conflitos entre fé-ciência promovidos por certos defensores da Bíblia. 2 Cf. ARENS, E. A Bíblia sem mitos. Uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007. 12 Já os métodos sincrônicos centram-se no texto assim como se oferece aos leitores. A preocupação está ligada à questão do sentido, decorrente da maneira como o texto está organizado. O autor real do texto e seu contexto estão fora de cogitação.3 Abordaremos, em grandes linhas, a chamada análise narrativa. Caracteriza-se como método sincrônico de inter pretação do texto bíblico. O polo de interesse está voltado para os recursos literários usados pelo narrador no processo de construção do texto, tendo em vista o efeito a ser produ zido nos leitores. A análise narrativa oferece o instrumental para se entrar no mundo do texto e suas articulações literárias, imperceptíveis à primeira vista. O primeiro capítulo explicita o sentido de dois termos: narrar e narração. Sem se acertar os ponteiros, logo de saída poderíam ser entendidos de modo muito distinto de como são tomados aqui. O segundo capítulo se detém em caracterizar, de maneira sumária, o método da análise narrativa e as respectivas pretensões. A delimitação previne o risco de esperar dele coisas alheias ao seu âmbito. O terceiro capítulo elenca algumas precauções a serem tomadas em se tratando de interpretar textos narrativos bíblicos. Em bora sejam literatura como qualquer outra, em fazendo parte da Bíblia têm características peculiares, inexistentes em outras categorias de narração. Os capítulos seguintes abordam cada passo da análise narrativa. O quarto capítulo gira em tomo do enredo, ou seja, da articulação do conjunto da narração, com seu esquema preciso, em cinco momentos bem interli gados. O quinto capítulo mostra como o narrador constrói os 3 Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1994. p. 14-42 (capítulo I - Métodos e abordagens para a inter pretação). VITORIO, Jaldemir. Os estudos bíblicos em novas perspectivas. Pers pectiva Teológica 31 (1999) 323-361. 13 eccle Realce personagens, cujas ações descrevem o percurso do enredo nos seus vários momentos. O sexto capítulo descreve os vários tipos de focalização, mostrando como as cenas e os persona gens entram na mira do narrador, desde a visão mais ampla até a percepção do íntimo dos personagens. O sétimo capítulo está centrado no tema da temporalidade, elemento fundamen tal da narração, na qual tudo se passa no tempo e no espaço, de modo a distingui-la da ficção e do mito. O oitavo capítulo é dedicado ao contexto da narração, que pode ser entendido como o pano de fundo sobre o qual a narração é projetada. O nono capítulo, por fim, trabalha os pressupostos ideológicos do narrador e sua escala de valores, a permearem a narração, pois o ato de narrar pode ser entendido como mediação para se transmitir convicções de todos os tipos, até mesmo religiosas, como é o caso dos narradores bíblicos. Após explicar o objetivo do respectivo passo, do quarto ao nono capítulo faz-se um exercício prático de aplicação do método, tendo como referencial o livro de Rute,4 o qual se presta muito bem para a finalidade por se tratar de uma nar rativa breve e, ao mesmo tempo, como se verá, portadora de inesgotável riqueza literária. O leitor e a leitora deverão estar atentos para a mensagem transmitida pelo narrador de Rute ao “contar” a história de uma estrangeira que, por caminhos enviesados, foi parar em Israel e se tomou uma antepassada do grande rei Davi. Uma catequese fascinante! 4 As afirmações, ao longo do texto, serão ilustradas com textos do Primeiro Testa mento e das narrativas evangélicas. Os exercícios, no final de cada capítulo, terão sempre um bloco dedicado à narrativas do Primeiro Testamento e outro, à narrati vas evangélicas. 14 Capítulo primeiro Narrar vai além da despretensiosa descrição de fatos e episódios em estilo de crônica. O narrador é um artista.1 Domina a arte de apresentar um conjunto de fatos ou cenas, organizados em tomo de um enredo (trama, plot) bem urdi do, mantendo viva a atenção dos ouvintes-leitores. Quando o narrador é privado de talento, a narração se toma enfadonha. Sendo talentoso, exerce sobre os ouvintes-leitores uma tal fas cinação, a ponto de seguirem com atenção a história até o fim, saboreando cada palavra e interessando-se por cada detalhe. Saber narrar é um dom! O ato de narrar exige do narrador que se transforme. Pensemos num contador de história! Muda o timbre de voz: sendo homem, fala com voz de mulher, e vice-versa. O brasi leiro faía com sotaque estrangeiro. O medroso assume ares de corajoso. O intelectual parece ser ignorante e inculto. O lín- gua-solta se faz de gago. E assim por diante! O narrador toma distância da pessoa física que está falando. É como se fosse outra pessoa, com nova identidade. Quanto mais a pessoa que “O narrador [na Bíblia] aparece com as mesmas características essenciais de uma voz sem rosto ou nome, jamais se colocando na frente à maneira de um ‘eu’ ou de outro modo (evita toda referência ao ato de narrar e dirige tudo a seus ouvintes) e exercendo em cada um de seus livros os privilégios da onisciência" (SONNET, J.-P. L'Analyse narrative des récits bibliques. In: BAUKS, M.; NIHAN, Ch. [eds.]. Manuel d'exégèse de VAncien Testament. Génève: Labor et Fides, 2008. p. 53). 15 fala encarna o narrador, melhor será a narração ao se tomar mais convincente. Narrar é a arte de fazer escolhas. O narrador faz contí nuas opções e a narração resulta numa espécie de costura das muitas escolhas feitas. Ele está sempre se decidindo pelo que mais interessa à narração. As decisões dependerão do objetivo visado, ou seja, do efeito a ser produzido no ouvinte-leitor: diverti-lo, levá-lo à reflexão ou sugerir-lhe determinada atitu de. O desafio das escolhas toca, também, a quem deve narrar um enredo já conhecido. Um mesmo fato pode ser contado - “narrado” - de di versas maneiras; um mesmo conteúdo informativo (a história contada) pode ser apresentado em diferentes narrações. Tudo dependerá do narrador, pois cada narrador tem sua maneira de narrar. Daí que toda narração é feita de maneira original. Cada um tem seu jeito de “contar”, por exemplo, centrando-se mais em determinados elementos, frisando o que lhe parece importante, referindo-se de passagem a tópicos que, na fala de outro narrador, teriam destaque. Pensemos na maneira como as pessoas narram as histórias de Jesus. Não existem duas nar rações idênticas! Cada narrador sublinha os pontos da tradição evangélica que mais interessam ao seu escopo, seja catequé- tico, homilético, exegético, espiritual ou formativo e tantos outros. Em outras palavras, um mesmo conteúdo (história { contada) pode ser narrado de muitíssimas maneiras (compo- V sição narrativa).2 Pode acontecer de alguém “contar” histórias 2 “Várias pessoas chamadas a dar testemunho depois de um acidente de trânsito darão tantas versões quantas forem as testemunhas. A infinidade das variantes possíveis representa o tanto de composições narrativas, emanadas dos diferentes narradores chamados a contar o acidente ao qual assistiram.” Entretanto, nenhuma delas correspondería ao “fato bruto”, como pretende ser o boletim de ocorrência 16 de Jesus com fins burlescos para ridicularizar os cristãos ou para questioná-los. Suas histórias sobre Jesus, com certeza, serão bem diferentes da que uma catequista conta para seus catequizandos. O narrador capta elementos da realidade, muitas vezes díspares e contrastantes, e os apresenta de forma artística, ser- vindo-se de recursos literários, de modo a formar uma unida de de sentido a ser compreendida com facilidade, até mesmo porpessoas sem grande formação cultural. O dom de narrador se toma patente nos recursos empregados na narração. Um detalhe, à primeira vista sem importância, é retomado de ma neira criativa. Os personagens são descritos com vivacidade. Os traços peculiares são destacados, de modo a possibilitar ao ouvinte-leitor elaborar o retrato de cada um deles. Cabe ao narrador se decidir pelo modo como os fatos serão apresentados, montar o conjunto do enredo e pensar a correlação interna dos fatos. Isso se dá de duas maneiras: 1) Inserindo os personagens nas distintas cenas e deter minando seus atos e suas palavras (diálogos, discursos, monó logos e pensamentos). Nesse caso, o leitor tem a impressão de que os fatos acontecem diante de si (modo cênico - showing). A preferência pelo discurso direto mostra como a fala dos per sonagens é importante para os narradores bíblicos. Através dela a identidade dos personagens se constrói. Daí a atenção a lhe ser dada na análise dos textos bíblicos. Até mesmo os pen samentos são narrados em forma de fala, isto é, de monólogo interior. policial (MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as narrativas bíblicas. Ini- ciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. p. 32). 17 eccle Realce 2) Descrevendo os fatos e personagens com suas pró prias palavras. Os fatos brotam da pena do redator e não das palavras/ações dos personagens (modo narrativo - telling). Os narradores bíblicos, porém, tendem a evitar o discurso indire to, em terceira pessoa. Antes, privilegiam o discurso direto. A palavra é dada aos personagens para que exponham, em pri meira pessoa, seus pontos de vista. No primeiro caso, a impressão é de o personagem estar falando ao vivo; no segundo, parece tomar distância e filtrar os fatos. “Com o showing o narrador descreve sem dizer, com o telling o narrador diz sem descrever.”3 O modo narrativo permite frisar o essencial, fazer julgamentos, explicitar os sentimentos. O modo cênico permite ao leitor deduzir os sen timentos dos personagens a partir do que se narra e qualificá- -los. As narrações evangélicas recorrem ao modo cênico. As intervenções do narrador são raras! O narrador bíblico, “ofe recendo ao leitor algumas chaves relativas aos personagens , (modo narrativo), transforma esse leitor em observador e juiz dos mesmos personagens em ação (modo cênico)”.4 3 ZAPPELLA, L. Mamiale di analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014. p. 41. O termo showing, usado em textos sobre análise narrativa, deriva-se do verbo inglês to show, mostrar; telling, por sua vez, deriva-se do verbo to tell, contar, di zer, narrar. “A representação dos diálogos é a técnica mais significativa e a melhor exemplificada da opção ‘cênica’ da narração bíblica. A interação dos personagens é sempre, também, aquela de suas palavras” (SKA, J.-L. et alii. Uanalyse narrati- ve des récits de VAncien Testament. Paris: Cerf, 1999. p. 30 - grifo do autor). 4 SKA, J.-L. et alii. Uanalyse narrative des récits de l 'Ancien Testament. Paris' Cerf 1999. p. 29. 18 Os personagens e o leitor "Os personagens podem, também, transmitir o significado e os valores da narrativa ao leitor, pois esses constituem o ponto focal de interesse. Suas personalidades e histórias atraem a atenção do leitor numa medida maiòr que os outros componentes da narrativa (explicações, cenários etc.). Em gerai, provocam um considerável envolvimento emocional. Sentimos o que sentem, alegramo-nos com suas alegrias, ficamos tristes com suas tristezas e participamos de sua sorte e experiências. Algumas vezes os personagens provocam nossa simpatia, outras vezes repulsa. Entretanto, jamais nos sentimos indiferentes em relação a eles. Quere mos conhecê-los, ver corno atuam em seu ambiente, e entender suas razões e desejos. Acompanhamos suas lutas para alcançar süas metas e prestamos particular atenção ao que dizem, pois quando falam entre si também se dirigem a nós" (BAR-EFRAT, S. Nacrative Art in the Bible, Sheffield: Sheffield Academíc Press, 2000. p. 47). - Narração é um gênero literário (modo de falar e escre ver) popularmente conhecido, com regras peculiares de for mulação e de interpretação. O narrador cria o enredo, não o gênero literário. E se subordina às suas exigências. Isso acon tece de maneira espontânea, como no caso dos contadores populares de histórias. O dom dispensa a formação acadêmi ca! A assimilação desse gênero literário acontece no âmbito sociofamiliar, com os pais e as mães contando histórias dos mais variados tipos, inclusive as narrações bíblicas, aos filhos pequenos. As novelas de televisão podem ser enquadradas no gênero literário narração, com seus esquemas e técnicas. Da mesma forma, as histórias em quadrinhos e os desenhos ani mados. Se o narrador atropela a dinâmica da narração, imedia tamente o ouvinte-leitor perceberá. Com grande probabilidade, perder-se-á no emaranhado das palavras e desinteressar-se-á pelo que está sendo lido-contado. É como se a cabeça da pes soa estivesse formatada para acompanhar a narração, com seu 19 esquema peculiar. Uma criança jamais se conformará em ou vir a história de Branca de Neve e os sete anões se o narra dor introduzir qualquer modificação no núcleo articulador da história, sobejamente conhecida. Quanto mais o ouvinte-leitor desconhecer os elementos do enredo, tanto mais o narrador poderá ser criativo. Porém, se a narração se basear em fatos ocorridos e o narrador se afastar demasiado do que se conhe ce, passará por mentiroso. Sua criatividade terá limites! Toda narração segue uma estrutura formal - enredo - em cinco passos: 1) situação inicial ou exposição; 2) nó; 3) ação transformadora; 4) desenlace; 5) situação final.5 Esse es quema parece já estar na mente de qualquer pessoa que escuta ou lê uma narração. O narrador introduz o fato a ser narrado, com o pro blema de fundo, em tomo do qual tudo girará. É a situação inicial, na qual os personagens e seus contextos são apresen tados, bem como o problema-tema a ser tratado na narração. O ouvinte-leitor já começa a levantar, mentalmente, uma série de questões e nutre o desejo de vê-las respondidas. O passo seguinte consiste em colocar a narração em movimento - nó - ao tomá-la sempre mais complexa, com a interação dos personagens - amizade-inimizade, amor-ódio, proximidade-afastamento, ofensa-perdão - , e levá-la a cen- trar-se num determinado ponto.6 5 Adota-se, aqui, a terminologia de D. Marguerat e Y. Bourquin (cf. Para ler as nar rativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. p. 55-67). 6 No tocante à articulação entre os enredos episódicos (pequenas unidades) e o enredo integrador (o conjunto do enredo), “as principais relações entre as várias unidades são as de causa e efeito, paralelismo e contraste” (BAR-EFRAT, S. Nar- rative Art in the Bible. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000. p. 93). 20 A ação transformadora, como diz a expressão, corres ponde a um fato que interfere de tal modo na narração a pon to de lhe dar uma guinada e exigir do narrador oferecer ao ouvinte-leitor o conhecimento que tanto desejava para matar a curiosidade ou a sede de informação. O bom narrador conduz o ouvinte-leitor e sabe como prepará-lo para esse momento, instigando-o a levantar muitas questões em tomo dos “segre dos” e dos dados mantidos ocultos. O desenlace corresponde ao esclarecimento das muitas questões que o ouvinte-leitor levantou ao longo da escuta-lei- tura. A situação inicial atingiu o clímax e o ouvinte-leitor se dá por satisfeito. Se está insatisfeito é porque existe algo de falho na narração. O narrador terá sido inábil ao narrar certas cenas ou deixá-las incompletas. O narrador hábil sabe como fechar, com maestria, a narração. O mau narrador frustra o ouvinte-leitor ao apresentar um desenlace decepcionante e sem criatividade. Com o desenlace e a obtenção dos esclarecimentos es perados a narração chega à situação final. Trata-se do polo opostoà situação inicial. Se a narração começa como alegria, conclui-se com tristeza. Se começa com vitória, termina em derrota. Se começa com paz, terá a guerra como desfecho. Se começa com vida, findará em morte. A narração se caracteriza, pois, por começar num ponto e se concluir no seu oposto. O chamado final feliz, happy end, em geral, agrada os ouvintes- -leitores pouco exigentes. Um desfecho bem elaborado é obra de narrador tarimbado. Caso contrário, o ouvinte-leitor ficará decepcionado. O tempo e o espaço da narração permitem aos per sonagens e aos fatos se encontrarem, entrecruzarem-se, 21 rejeitarem-se ou completarem-se. No final do enredo, cada personagem e cada fato chegarão a um ponto onde o ouvinte- -leitor se dará por satisfeito, por ter alcançado um resultado plausível. A narração articula os fatos por ordem cronológica.7 Eles se sucedem no tempo. Pode, também, articulá-los por ordem de configuração. Eles se relacionarão por laços de cau salidade: uma coisa dá origem a outra. Coerência e inteligibi lidade são duas exigências para permitir ao leitor seguir o fio da história, correlacionando cada episódio com o precedente e o sucessivo. No final, o ouvinte-leitor deverá ter percebido a lógica pela qual a narração chegou ao desenlace, em meio a ambiguidades e suspenses. E mais, deverá estar convencido da plausibilidade de os eventos terem acontecido como foram narrados. É a credibilidade da narração. A arte de narrar consiste na capacidade de, entrelaçando ■ os fatos, criar um emaranhado de causalidades e encaminhar tudo para um momento concentrado de tensão, a exigir uma solução. Portanto, narrações incoerentes e de difícil enten dimento tendem a produzir tédio no ouvinte-leitor. Narrar é produzir um mundo repleto de personagens e ações, com um claro ponto de partida e de chegada, cujo percurso - enredo - se faz pelos múltiplos entrelaçamentos dos personagens e idas ações, num jogo de causa e efeito, num preciso quadro '•■temporal. 7 Uma mesma tradição pode ser usada por distintos narradores em contextos narra tivos distintos. Um bom exemplo de diferente ordem cronológica de uma tradição narrativa é o episódio da purificação do Templo de Jerusalém. Nos Sinóticos, está no final da vida de Jesus (cf. Mc 11,15-17; Mt 21,12-13; Lc 19,45-46), enquanto no Evangelho de João está no começo do seu ministério (cf. Jo 2,14-16). Isso depende do projeto narrativo de cada evangelista. 22 A narração distingue-se da ficção, que se configura fora do tempo e do espaço - “era uma vez...” - e não exige de quem escuta ou lê o esforço de recriar espaçotemporalmente o que se descreve. A tensão narrativa prende a atenção do ouvinte-leitor e o envolve na narração, fazendo dele um conarrador, leitor engajado no processo de construção da narração, tendo à dis posição os elementos oferecidos pelo narrador. Caber-lhe-á, no diálogo com o texto, completar os pontos deixados em suspenso; dar resposta a questões não respondidas; imaginar soluções para impasses, onde o narrador foi parcimonioso nas informações oferecidas. O narrador conta com a colabora ção do ouvinte-leitor, pois não pode dizer tudo. A narração seria infinita! Porém, a complementação deverá ser plausível e encaixar-se devidamente na dinâmica da narração. Cada ouvinte-leitor é desafiado a desempenhar essa tarefa para o bom proveito da escuta-leitura. Daí a possibilidade de serem múltiplas as formas de complementação dos ouvintes-leitores, com a exigência de não serem excludentes. Haverá, sempre, um ponto em comum a integrá-las. O ato de narrar, como se pode observar, distingue-se do ato de descrever. A descrição corresponde a uma sequência de afirmações desprovidas de relação de causalidade. Esse fenô meno literário se chama parataxe. Os elementos são coloca dos um ao lado do outro, sucedendo-se sem uma necessária inter-relação. A linguagem popular dá-lhe o nome de “colcha de retalhos”. A narração comporta uma sintaxe, isto é, uma perfeita conexão de seus vários componentes. Os elementos são devidamente articulados, de forma a se perceber a unidade do conjunto, que forma uma peça harmônica, embora multi- colorida. Uma imagem pode ajudar a compreender a diferença 23 1 entre os dois termos. Pensemos numa pilha de tijolos (parata- xe) e em uma parede (sintaxe). Os tijolos de uma parede estão perfeitamente conectados e formam uma unidade. Os tijolos empilhados estão desconectados, postos um sobre o outro. Doravante nossa atenção se fixará nas narrações escri tas, onde acontece a relação narrador-leitor. No ato de narrar, o narrador jamais poderá prescindir do leitor. Caso contrário, trabalhará em vão. Antes, escreve para ser lido! Ao se decidir a escrever, imagina diante de si “alguém” para quem escreve rá. Essa figura imaginária o acompanhará ao longo da ação de narrar. E o leitor implícito, ou seja, a pessoa capaz de entender o texto a ser produzido. E mais, disposta a abraçar o universo de valores, inclusive éticos, transmitido pelo narrador e trans formar em vida a mensagem veiculada. Pode-se dizer que o leitor implícito é um projeto de leitor real, ou seja, a pessoa que, realmente, se dá ao trabalho de enfrentar a leitura da nar ração, em qualquer tempo e lugar, sem qualquer controle do autor real ou do autor implícito. Quando o narrador escreve, espera que seu texto caia nas mãos de pessoas que correspon dam ao modelo de leitor que tem em mente. Só este poderá fazer uma leitura frutuosa da narração e tirar proveito dela.8 8 Marguerat e Wénin estabelecem uma distinção entre “leitor codificado” e “leitor j edificado (ou construído)”. O primeiro corresponde ao narratário (leitor implíci to), que emerge da narração e tem competência para se apropriar dela. O segundo corresponde ao “leitor que o narrador quer construir por meio do seu texto: não se " trata, então, da soma das competências, mas dos efeitos que o texto busca exercer sobre ele. É um leitor desejado mais que postulado, ideal mais que ratificado” (MARGUERAT, D.; WÉNIN, A. Sapori dei racconto bíblico. Una nuova guida a testi millenari. Bologna: EDB, 2013. p. 27). Um bom exemplo se encontra no Evangelho de Mateus, onde o leitor construído corresponde ao discípulo vivendo em comunidade. “O leitor de Mateus é um leitor edificado na comunidade, um leitor construído na Igreja e como Igreja” (ibidem, p. 44). 24 O leitor implícito "0 leitor implícito faz parte intrínseca da estrutura da narração. No 'drama da leitura', o leitor real, que aceita a convenção proposta pelo autor implí cito, 'torna-se' o leitor implícito. Em outras palavras, o leitor implícito' é menos uma pessoa que um papel que todo leitor concreto é convidado a desempenhar no ato de ler. Cada narração comporta um convite a partilhar determinada experiência, a imaginar ou recriar um universo, a entrar em : contato com certos valores, sentimentos, decisões ou visões de mundo. Tal participação é outro modo de descrever a 'parte' do leitor implícito. Isso não significa que todo 'leitor real' aceitará os valores da narração que : lê. Nem todo leitor dos Evangelhos converte-se a Jesus Cristo. Entretanto, todo leitor sensível dos Evangelhos, seguramente, é levado a compreender seu objetivo e a descobrir as grandes linhas de uma experiência de fé." (SKA, J.-L. OurFathersHave Told Us. Introduction tothe Analysis of Hebrew Narratíves. Rome: Pontifício Istituto Bíblico, 1999. p. 42-43). O leitor implícito, destinatário imaginário da narração, deverá ser capaz de entender a linguagem usada pelo narrador, com a qual a narração será tecida. O narrador pode oferecer alguma pista ao leitor, na pressuposição de não possuir de terminada informação para entender algum elemento da nar ração, consciente da função do leitor de dar vida ao texto no processo de leitura. Caso contrário, a leitura ficaria truncada e a narração correría o risco de ser um texto incompreensível. O narrador funciona como guia do leitorno percurso a ser feito nos meandros do texto. Quanto mais eficiente, tanto melhor será na arte de narrar. Cada leitor real - quem, de fato, tem nas mãos o texto e se põe a lê-lo - se coloca diante da narração de maneira pe culiar, com sua carga de pressupostos, informações e opções.9 9 “A propósito da Bíblia, importa lembrar que teve, tem e terá os mais diversos lei tores reais: judeus ou cristãos, agnósticos ou ateus, fundamentalistas ou críticos” 25 Mas é preciso deixar-se conduzir pelo narrador, assumindo a identidade do leitor implícito. Em outras palavras, o leitor real deve ter competência para a leitura, para não distorcê-la ou perder o foco da narração. Competência significa que o leitor real conhece a língua e a linguagem com as quais a narração é construída, os elementos culturais aos quais alude, o pano de fundo ideológico sobre o qual se articula, e, mais, é capaz de atinar para a mensagem transmitida. Pode-se dizer que a competência é a roupagem com a qual o leitor se reveste no processo de leitura. Sem ela, será um “analfabeto” diante da narração, embora esteja apto para a leitura material do texto.10 A competência permite que os leitores deem vida ao texto de diferentes formas. O diálogo leitor real-texto permite que cada leitor pe netre no mundo da narração e descubra-lhe riquezas imper ceptíveis num primeiro momento, dependendo de quem faz o exercício da leitura. Só a leitura atenta permite-lhe captar a mensagem do texto no decorrer da leitura. Cabe-lhe a tarefa de garimpar a mensagem (semântica) pela percepção dos ex pedientes narrativos utilizados pelo narrador no processo de construir a narração. Tudo quanto tem a dizer será feito pelo viés da narração. Mesmo na eventualidade de determinado au tor real ser ainda vivo, poderá ser dispensado pelo leitor, em busca da mensagem do texto. O fruto da arte narrativa tem vida independente do seu criador! (SKA, J.-L. et alii. Uanalyse narrative des récits de 1'Ancien Testament. Paris: Cerf, 1999. p. 21). 10 Esse fato pode ser ilustrado pela opção de Jesus para falar por meio de parábolas. Só os discípulos tinham competência para entendê-las, bem como as explicações que o Mestre lhes dava em particular. Quem estava fora do círculo dos discípulos ouvia tudo, mas sem entender (cf. Mt 13,10-17; Mc 4,10-12). 26 Portanto, um mesmo texto é passível de múltiplas lei turas, dependendo de quem o lê. A pluralidade de leituras não é ruim quando são complementares e apontam numa mesma direção. O problema surge quando são contraditórias, ou seja, uma desdizendo a outra. Na raiz do conflito estão os leitores e não o texto. Se os leitores se põem de acordo no processo de leitura, atendo-se aos mesmos princípios de interpretação - hermenêutica - , o fato de fazerem leituras distintas apontará para a riqueza de sentido contida no texto - reserva de sentido a possibilitar sempre novas leituras, sem que se esgote a possibilidade de se chegar a novos sentidos. O autor real, o produtor material da narração, tem diante de si leitores implícitos. Porém, pode ter em vista leitores reais, aqueles para quem, de fato, está escrevendo e espera ter como leitores. E poderá conhecer-lhes o ho rizonte de compreensão. Entretanto, uma vez produzida a narração, é como se o autor real morresse para dar lugar ao autor implícito, a ser reconhecido nas entrelinhas do texto, onde se esconde sua identidade. Os leitores reais indepen dem do autor real ao se defrontarem com a narração. Pode acontecer de os leitores reais aos quais o narrador visava jamais chegarem a ler o texto produzido para eles. E o texto caia em mãos muito distintas. Desses leitores será exigido que incorporem a identidade literária dos leitores implíci tos para se apropriarem da narração. Pseudoepigrafia . Pseudoepigrafia (falsa autoria de um texto) - "'[...] a atribuição a uma 'autoridade' que não foi o autor era um fenômeno muito comum na Antiguidade, onde a atribuição do livro servia mais para honrar a autori dade por trás da obra e garantir sua aceitação. Mais especificamente, na 27 tradição judaica e cristã, a atribuição de um escrito a uma 'autoridade' servia de chancela para o uso na sinagoga ou na igreja. O valor religioso do livro não depende, portanto, da 'autoridade literária', i.é, do fato de ser escrito pela pessoa que leva seu nome" (KONINGS, J. A Bíblia, sua origem e sua leitura. 7. ed. atual. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 153). A leitura acontece num contexto de liberdade literária. O autor real está impossibilitado de controlar o sentido dado ao texto pelos leitores reais. Os leitores reais se inter-relacio- nam com o autor implícito, descoberto no decorrer da leitura. Pode acontecer de o autor real ser muito diferente do autor implícito. O autor real é alguém de caráter difícil e o autor implícito, depreendido do texto, uma pessoa afável. Ou, vice- -versa, o autor real tem um caráter gentil e o autor implícito é uma pessoa cruel e vingativa. E mais, o mesmo autor real poderá revestir identidades distintas em suas múltiplas obras. Numa poderá falar como um pai e em outra como um men digo; numa será um náufrago e em outra um rico banqueiro. Numa se identifica como homem e em outra como mulher Portanto, um único autor real pode estar na origem de muitos autores implícitos! Ao criar os personagens da narração, o narrador cons- trói-lhes a identidade narrativa, a ser descoberta pelo leitor. O autor implícito é reduzido à total mudez (e o autor real morreu ao colocar o ponto final da narração!): o leitor real está diante dele e levanta muitas questões, sem a menor possibilidade de obter resposta. A mudez do autor implícito, de certo modo, compromete o leitor com a narração, desafiando-o a criar saí das para as situações ambíguas, onde são muitas as possibili dades de solução. Esse fenômeno tira o leitor da passividade diante do texto. Se quiser fazer uma leitura proveitosa, deverá 28 ser uma leitura engajada, comprometida, tomando-se capaz de completar o que o autor real falou com meias-palavras, deixou subjacente ou na penumbra, foi sucinto na informação, serviu- -se de ironia, esqueceu-se de dizer ou preferiu omitir. O autor real ficaria bloqueado e seria obrigado a pro duzir um texto infindável se, ao narrar, quisesse prescindir da colaboração do leitor implícito e real. O texto já nascería morto por excesso de peso, padecendo de obesidade literária. Seria um texto inútil, pois, em última análise, o autor escre vería para si mesmo. A arte de narrar supõe do narrador a pre disposição para aceitar a colaboração do leitor, como forma de coautoria. Donde a preocupação de facilitar a compreensão do texto e sua mensagem por parte do leitor. Facilitar é distinto de antecipar-se. Mesmo se o narrador se dispõe a facilitar a leitura, o leitor tem inteira liberdade diante do texto. Contudo, deve respeitar suas coordenadas, a serem captadas nas entre linhas; caso contrário, a leitura tomar-se-ia aleatória. O texto corresponde a um código, cuja infração impossibilita a leitura frutuosa. A colaboração do leitor possibilita ao narrador fazer eco nomia narrativa: fixar-se nos elementos importantes e deixar de lado os secundários; valorizar o que faz a ação progredir e dar dinamicidade à narração, sem perder tempo com detalhes irrelevantes. O centro de interesse da narração é a ação.11 Nela o leitor concentrará a atenção. “Em toda narração, a ação é fundamental. Na Bíblia, ela o é de modo especial. A ação permite à história avançar, e aos leitores e leitoras compreender - e isso é primordial — como os personagens agem e reagem. As narrações transmitem as ações essenciais para o desenrolar do enredo, coisa que os diálogos não conse guem fazer” (NAVARRO PUERTO, M. Quand la Bible raconte. Clés pour une lecture narrative. Bruxelles: Lumen Vitae, 2005. p. 53). 29 Um elemento importante na arte de narrar é a relação do narrador com a história, como a entende a modernahisto riografia. O narrador não se preocupa com a historicidade dos fatos e personagens, mesmo ao fazer alusão a acontecimentos históricos. O elemento histórico só tem importância enquanto componente da narração. O desafio será sempre o de oferecer um texto plausível, verossímil e confiável, mesmo utilizando com liberdade elementos da história conhecidos do leitor. Na eventualidade de o narrador fazer pesquisas históricas antes de compor a narração, o resultado do seu trabalho jamais será um texto de história, historiográfico. Poderá, por exemplo, organi zar os fatos e relacioná-los de maneira distinta da encontrada na pesquisa prévia. A organização do tempo, onde os fatos se inserem, é criação do narrador. O narrador não trabalha com o conceito de verdadeiro e falso, como entende a historiogra fia. Não se pergunta: isso aconteceu exatamente assim? Tal afirmação corresponde à verdade histórica? Posso inserir na narração esse elemento, sabendo não corresponder ao que ve- rifiquei na pesquisa historiográfica? O leitor deverá ter sempre em mente que a verdade da narração é de outro gênero. Um exemplo tirado da Bíblia é o caso de Moisés, figura de enor me relevo na tradição histórica de Israel. Fora do texto bíbli co, é inútil buscar traços de sua existência enquanto líder dos israelitas, em processo de fuga da escravidão egípcia e de uma caminhada épica, de longa duração, pelo deserto do Sinai.12 Um caso atual e bem conhecido se refere à obra de Dan Brown O Código da Vinci (2003). O narrador foi tão hábil na arte de narrar a ponto de criar celeuma entre as pessoas de fé, como se estivesse fazendo afirmações históricas que contradiziam o 12 Cf. SKA, J.-L. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens. São Paulo: Loyola, 2005. p. 51-71. 30 dogma cristão. Um romance policial foi tido na conta de his tória do cristianismo, enganando os incautos. A confusão dos âmbitos provocou quiproquós estéreis. A Bíblia e a história A primeira intenção da Bíblia "não é exatamente a de 'informar' quanto à história - sobre 'o que realmente aconteceu' mas, melhor que isso, a de formar a consciência religiosa de um povo. Essa segunda finalidade não exclui, absolutamente, a presença de elementos históricos nas nar rações. A maneira de narrar, porém, é diferente, porque o que interessa ao narrador não é apenas ou primariamente a objetividade dos dados, e sim o significado dos acontecimentos para seus destinatários, e os meios utilizados na composição das narrações são selecionados em função desse objetivo" (SKA, J.-L. A palavra de Deus nas narrativas dos homens. São Paulo: Loyola, 2005. p. 47-48). Historiografia bíblica "O projeto historiográfíco da Bíblia é, simultaneamente, uma atividade teológica: o desenrolar da história está em permanente relação com o que o narrador relata ou deixa pressentir a respeito do desígnio de Deus. Importa sublinhar que, entre esses dois parâmetros, teológico e historio- gráfico, a arte narrativa constitui, na Bíblia, a mediação obrigatória, [...] É na narração dos destinos humanos que o leitor assiste ao choque do encontro entre o desígnio divino e a contingência da história" (SQNNET, J.-P. Lanalyse narrative des récits bibliques. In: BAUKS, M.; NIHAN, Ch. (eds.). Manueldexégèse de 1'Ancien Testament. Génève: Labor et Fides, 2008. p. 91). 31 eccle Realce Para aprofundar a reflexão13 1. Leia e compare as cenas bíblicas referentes ao mes mo fato procurando perceber a originalidade de cada narrador, com atenção aos detalhes: Bloco A -2S m 24,1-17 e lCr 21,1-17 (o recenseamento do povo) - lRs 10,1-13 e 2Cr 9,1-12 (Salomão e a rainha de Sabá) Bloco B -M t 21,12-17 e Jo 2,13-23 (a purificação do templo) - Mc 6,30-44 e Lc 9,10-17 (a primeira multiplicação dos pães) 2. Compare um mesmo acontecimento narrado em dois jornais diferentes e para públicos distintos (por exemplo, um sério e outro popular). Verifique o tipo de linguagem, o ponto mais frisado e com que espírito se escreve (sensacionalista, informativo, crítico ou outro). 13 Para fazer a análise dos textos bíblicos, sugiro o uso das seguintes traduções: Bí blia de Jerusalém, Tradução Ecumênica da Bíblia, Bíblia do Peregrino ou outra tradução preparada para estudo, com notas de rodapé. Por outro lado, aconselho a leitura das notas de rodapé ou comentários que possam ajudar na compreensão dos textos. 32 Capítulo segundo se narrativa A análise narrativa é um método de interpretação de tex tos bíblicos. Porém, não se trata de uma criação dos exegetas, e sim de aplicação ao domínio dos estudos bíblicos de intui- ções de estudiosos da literatura e de linguistas que se puseram a estudar a arte da narração e produziram textos teóricos a respeito de textos narrativos (Gérard Genette, Wolfgang Iser, Paul Ricoeur, Wayne Booth e outros). Estudiosos da Bíblia, nos Estados Unidos e em Israel, aplicaram os resultados dos estudos de narratologia ao texto bíblico. Shimon Bar-Efrat e Meir Stemberg (Israel) e Robert Alter e Jan Fokkelman (EEUU) foram os que abriram o caminho para a análise nar rativa de textos bíblicos, no final dos anos 70, início dos anos 80, do século XX.1 A análise narrativa consiste em verificar a maneira como o narrador construiu a narração, tanto em sua estrutura interna quanto em seus ingredientes e modos de organizá-los.2 1 Cf. MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as narrativas bíblicas. Inicia ção à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. p. 18-21. JASPER, D. Lecturas literárias de la Biblia. In: BARTON, J. La interpreiación bíblica, hoy. Santander: Sal Terrae, 2001. p. 38-52. SONNET, J.-P. L'Analyse narrative des récits bibliques. In: BAUKS, M.; NIHAN, Ch. (eds.). Manuel cLexégèse de VAncien Testament. Génève: Labor et Fides, 2008. p. 48-50. ! “A análise narrativa procura determinar os expedientes pelos quais o narrador constrói uma narração, cujo universo narrativo será liberado pela leitura. Ela oferece os meios para se identificar a arquitetura narrativa do texto que, no ato de leitura, desvelará esse mundo, no qual o leitor e a leitora são convidados a entrar” 33 Ou seja, perceber como a história é contada e os meios empre gados - estratégias literárias - em vista de influenciar o leitor implícito ou real, ao guiá-lo na compreensão do fato narrado e produzir nele certos efeitos, como sentimentos e reações. O impacto dependerá da qualidade da narração. Não basta a narração como meio de comunicação, mesmo feita da forma correta. A análise narrativa se concentra na tríade: narrador- -texto-leitor. As perguntas de fundo são: como o narrador trabalhou para produzir o texto a ser oferecido aos leitores? Que recursos literários utilizou para transmitir a mensagem aos leitores destinatários? Como arquitetou o texto que o leitor tem em mãos? Além disso, a análise narrativa detecta o ritmo adota do pelo narrador no processo de narrar, o percurso da ação, desde a situação inicial até a situação final, os recursos lite rários usados no processo de narrar (suspense, ironia, mal-en- : tendido, repetição3) e tudo quanto possa ser útil no processo '- de captar a mensagem transmitida. O mergulho no mundo do texto permite transitar por seus meandros e descobrir elemen tos que, à primeira vista ou numa leitura desatenta, passariam despercebidos. (MARGUERAT, D. Entrer dans le monde du récit. In: MARGUERAT, D. [org.]. Quand la Bible se raconte. Paris: Cerf, 2006. p. 11 - grifo do autor). 3 A repetição pode acontecer por meio de palavras-chave, motivos, temas, sequên cia de ações, cenas-tipo; dificilmente acontecerá de forma literal, palavra por pa lavra (cf. SICA, J.-L. et alii. Uanalyse narrative des récits de VAncien Testament. Paris: Cerf, 1999. p. 35-36). 34 ' A repetição "Os prosadores hebraicos, como alhures os poetas, fazem uso, de bom grado, da técnica da repetição e o fazem deliberada e sistematicamen te. Entretanto, os próprios prosadores sabem, pertinentemente, que a repetição gera,rapidamente, a monotonia. Por isso, desenvolveram uma técnica de repetição com variantes cuja primeira finalidade consiste , em aumentar a riqueza do significado da narração e reservar, para nós, : múltiplas surpresas. Esse conceito de repetição exige certo esforço do leitor contemporâneo [a quem foi ensinado] que é preciso, a todo custo, evitar as repetições" (FOKKELMAN, J. P. Comment lire /e récit biblique. Une introduction pratique. Bruxelles: Ed. Lessíus, 2002. p. 122). A preocupação da análise narrativa gira em tomo do efeito produzido pelo texto sobre o leitor, considerando os ex pedientes utilizados pelo narrador. O ato de leitura ocupa lugar de destaque, por se processar a partir dos indícios oferecidos pelo narrador, com os quais o leitor entrará no mundo do tex to, focalizando nele a atenção. Prescinde-se da questão em tomo da veracidade históri ca do conteúdo do texto. A relação entre o fato narrado e sua historicidade está fora de consideração.4 A análise narrativa se detém na observação dos expedientes usados para narrar a história, de forma a permitir ao leitor entrar no mundo da narração. Importa-lhe apenas o texto, no qual o autor deixou marcas de capacidade e inventividade literárias. 4 Isso não significa que a análise narrativa prescinda dos métodos histórico-críticos de leitura da Bíblia. Antes, valoriza-os, por lhe oferecerem informações valio sas para a compreensão dos textos bíblicos. Por exemplo, a estrutura literária, as tradições históricas e teológicas subjacentes, elementos culturais e religiosos, esclarecimentos históricos e geográficos, e muitas outras. Sem os resultados dos métodos histórico-críticos, a análise narrativa ficaria privada de conhecimentos indispensáveis para sua aplicação. Ou, então, ver-se-ia na obrigação de fazer pes quisas prévias, fora de seu âmbito específico de interesse. 35 Análise narrativa "A análise da história (récit) pergunta-se sobre o como da narração (narration). Para ela, uma história é o veículo de uma comunicação en tre um emissor (o narrador) e um receptor (o leitor), e um dos objetivos principais da leitura consiste em estudar a 'estratégia narrativa', ou seja, as modalidades concretas que o narrador usa na história para se comu nicar com o destinatário e apresentar-lhe seu mundo de valores e suas convicções" (SKA, J.-L. et alii. L analyse narrative des récits de ÍAnden Testament. Paris: Cerf, 1999. p. 7). O autor real está fora da esfera de interesse da análi se narrativa. O autor histórico desconhecido é desprovido de importância. Importa-lhe, sim, o autor implícito, identificável nas entrelinhas do texto pelas escolhas feitas no processo de criação literária. Também não lhe interessa o leitor real, em cujas mãos o texto se encontra, mas o leitor implícito, a ser identificado a partir do texto. Todo leitor real é, de certa for ma, desafiado a se revestir com as roupagens do leitor implí cito, para quem a narração foi criada. Caso contrário, entrará numa relação conflituosa com o texto e a leitura ficará sem proveito. Só quem se identifica com o leitor implícito está em condições de fazer uma leitura frutuosa. A análise narrativa faz parte dos chamados métodos sin- crônicos de estudo dos textos bíblicos. Métodos sincrônicos se interessam pelo texto como o temos hoje. Por conseguinte, deixam de lado a pergunta por sua origem, a história de sua formação, as tradições utilizadas, o caminho percorrido para chegar à configuração atual e a veracidade histórica dos fatos narrados. O texto é considerado na forma como se oferece ao leitor de hoje, sem se preocupar com questões que o ultrapas sem. As questões diacrônicas, centradas na “história” do texto ou no texto enquanto reflexo de uma história e de uma cultura, 36 são levantadas por outros métodos, cujas abordagens comple tam os resultados obtidos pela análise narrativa. Os resultados dos variados métodos são complementares e se prestam a en riquecer o ato de leitura. No caso da análise de narrativas bíblicas, recorrer aos métodos histórico-críticos é expediente necessário.5 Afinal, fo ram produzidos numa língua que não é a nossa, numa cultura particular e no ambiente das tradições de Israel (Primeiro Tes tamento) e das primeiras comunidades cristãs (Segundo Testa mento). Sem o conhecimento preciso desse mundo que serve de pano de fundo para as narrações bíblicas, seria dificultada a explicitação da mensagem, presente nas entrelinhas das narra ções. Os métodos histórico-críticos, portanto, são necessários para uma correta interpretação das narrações bíblicas. O método histórico-crítico "Os princípios fundamentais do método histórico-crítico em sua forma clássica são os seguintes: É um método histórico, não só porque se aplica a textos antigos - no caso, os da Bíblia - e estuda seu alcance histórico, mas também, e so bretudo, porque procura elucidar os processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos algumas vezes complicados e de longa duração. Em suas diferentes etapas de produção, os textos da Bíblia são dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que se encontravam em situações de tempo e de espaço diferentes. 5 Para um conhecimento dos vários métodos de leitura da Bíblia, cf.: KONINGS, J. A Bíblia, sua origem e sua leitura. 1. ed. atual. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 179-194 (Os métodos científicos da crítica literária e histórica). 37 É um método crítico, porque opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos quanto possíveis em cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da redação), de maneira a tornar acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos, muitas vezes difícil de perceber. Método analítico, estuda o texto bíblico da mesma maneira que qualquer outro texto da Antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana. Entretanto, permite ao exegeta, sobretudo no estudo crítico da redação dos textos, perceber melhor o conteúdo da revelação divina" (PONTIFÍ CIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1994. p. 16). A análise narrativa chama o autor im plícito de narrador (descoberto pela análise narrativa). O autor real (indivíduos, escolas, editores descobertos pela análise histórica) não lhe interessa, pois o sentido está no texto e, no caso da Bíblia, é impossível saber quem foi o autor real. Uma vez publicada, a obra segue seu caminho, independentemente do autor real, que não tem como lhe controlar o sentido e explicar, para cada leitor real, como tal ou tal coisa deve ser interpretada. O leitor real tem diante de si o narrador, não o autor real. Aquele, sim, fala! Trata-se de uma identidade literária'. só existe nos limites da narração. A análise narrativa se in teressa, exclusivamente, pelo narrador e pelo narratário, ou leitor implícito. A este a história é contada pelo narrador, ver balmente (ouvinte) ou por escrito (leitor). No caso da Bíblia, como as narrações foram produzidas para uso nas reuniões comunitárias, estão em diálogo, seja com quem deverá lê-las em público (leitor), seja com quem as escutará (ouvinte). A Bíblia, no seu longo processo de formação, comporta uma enorme gama de narradores. Pode ser considerada como o resultado do trabalho de narrar a fé de Israel (Primeiro Tes tamento) e a fé dos discípulos de Jesus (Segundo Testamento); 38 trabalho feito em mutirão. Mas em distintos momentos e con textos históricos. Houve quem se desse ao trabalho de colecio nar as muitas narrativas, com certo esquema, mas respeitan do a individualidade dos narradores, sem cair na tentação de transformar a pluralidade de narrações numa narração única. A riqueza da teologia narrativa da Bíblia só será desco berta pelo leitor capaz de mergulhar nos meandros das múlti plas narrativas e encontrar um fio condutor a lhe perpassar o conjunto. Assim, compreenderá que a Bíblia está sempre fa lando do mesmo Deus libertador e cheio de misericórdia.Em outras palavras, o Deus do Primeiro Testamento é o mesmo Deus de Jesus Cristo! Os leitores do texto bíblico devem lê-lo com extrema atenção para identificar, a cada momento, com que narrador está em diálogo: quem lhe está falando, o que lhe fala, quais seus objetivos e a que recursos literários recorre. Incorre em tremendo equívoco quem lê a Bíblia como se fosse um livro escrito nos moldes dos livros atuais, ou seja, uma obra pro duzida por um único autor, com clara unidade literária e re- dacional e um gênero literário bem definido. Como o termo Bíblia (= livrinhos) indica, trata-se de uma coleção de livros que na sua pluralidade de formas e linguagens fala da comple xa história da fé de um povo. Sem essa compreensão prévia, a leitura da Bíblia poderá reduzir-se a um fato banal, estando o leitor impossibilitado de atingir o âmago do que se pretendeu quando foi acolhida como livro de referência para as comuni dades de fé, de todos os tempos e lugares. 39 Para aprofundar a reflexão Que efeito o narrador bíblico quis provocar no leitor: Bloco A 1. Com a descrição do dilúvio (Gn 6,5-8,22)? Que mensagem é transmitida com essa história de destruição? 2. Com a narração do pecado de Davi (2Sm 11,1-12,25)? Por que o pecado do rei tem uma gravidade especial? 3. Com o episódio da vinha de Nabot (lRs 21,1-29)? Que lições podem ser aprendidas com o confronto entre o profeta e o rei? BlocoB 1. Com a história do homem rico (Mc 10,17-27)? Quais os elementos mais fortes e contundentes da cena? 2. Com a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37)? Que artifícios literários foram usados? 3. Com a cena da mulher flagrada em adultério (Jo 8,1-11)? Qual a mensagem veiculada pelo texto? Capítulo terceiro As narrações bíblicas A Bíblia está recheada de narrações. Para compreendê- -las e interpretá-las é preciso conhecer o gênero literário “nar ração”, com sua dinâmica e regras peculiares. As narrações bíblicas estão em função da transmissão de uma sabedoria teo lógica e correspondem a um modo de fazer teologia, chamada de teologia narrativa. Teologia e literatura estão em perfeita conexão, pois a narração é a mediação para se falar de Deus. Embora seja literatura religiosa e teológica, conserva os traços da literatura, enquanto tal, nos moldes do fenômeno literário, na sua pluralidade, ao longo dos séculos. Teologia narrativa "A análise narrativa permite apreciar como uma teologia pode ser feita narrativamente. Desconfiemos do teólogo que, pelo fato de ser um homem da palavra, fixa-se em enunciados de discursos e subestima o potencial ínterpretatívo da narração! A análise narrativa leva-nos a cair na conta de que a construção de um-enredo, a disposição de uma rede de personagens, a gestão da temporalidade, a semantízação do espaço, são tão representativos da intenção teológica quanto uma formulação doutrinai ou uma confissão de fé" (MARGUERAT, D, Entrer dans le monde du récít. !n: MARGUERAT, D. (org.). Quand Ia Bible se raconte. Paris: Cerf, 2006. p. 36). : No mundo da Bíblia e das comunidades cristãs primi tivas, a narração era o modo privilegiado de falar de Deus. 41 Narrar significava, pois, “dizer” a própria fé e descrever os caminhos da relação com Deus. A leitura, através dos tem pos, correspondia a fazer memória do passado e tomá-lo atual, como se os personagens de outrora fossem os leitores do pre sente. Surge, daí, um tipo de leitura militante e engajada, onde muitas histórias se inter-relacionam, no esforço de buscar a fidelidade a Deus e superar as eventuais infidelidades. A revelação acontece nesse círculo que se constrói en tre narrador-texto-leitor. Descubro o Deus que se revela em minba vida e em minha história no processo de leitura das narrativas a respeito do Deus que se revelou na história de Israel e nas comunidades cristãs primitivas, por meio de Jesus Cristo. “Enquanto teonarrativa, a narrativa bíblica combina o componente narrativo e a densidade teológica, uma teologia da história e uma teologia por meio da história. Isso aconte ce graças aos três elementos por meio dos quais a narrativa bíblica se toma teonarração: o enredo (a construção da nar ração), os agentes (os personagens e suas ações), o leitor (a interpretação).”1 A análise das narrações bíblicas levará em considera ção os pressupostos peculiares dessa literatura religiosa. Eis alguns deles: 1) As narrações bíblicas têm caráter religioso. Nascem no âmbito de uma comunidade de fé, com o objetivo de in fluenciar e reforçar sua fé. Revestem-se de autoridade pecu liar por terem sido selecionadas e acolhidas pela comunidade. Muitas outras narrações conhecidas no tempo da formação da Bíblia estão fora do conjunto do texto bíblico porque a ZA PPELLA, L. Manucile di analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 20)4. p. 178. 42 comunidade julgou-as inaptas para o serviço da fé. A chamada literatura apócrifa é bem conhecida. São as narrações sem o reconhecimento da comunidade de fé. Urge sublinhar um aspecto: o caráter religioso diz res peito à função das narrações, não à linguagem. Quanto à apre sentação, as narrações bíblicas em nada diferem das “narra ções profanas”. Ambas são literatura e se submetem às regras do gênero literário “narração”. As narrações profanas, por sua vez, dispensam os pressupostos das narrações bíblicas, en quanto narrações de cunho teológico, em função da vida de fé das comunidades. 2) Por serem destinadas à comunidades de fé, o ambien te comunitário corresponde ao lugar mais adequado para se interpretar as narrações bíblicas. Está fora dos objetivos das narrações bíblicas produzir prazer estético individualista - o prazer da leitura - ao serem lidas num ambiente agradável e aconchegante. O lugar apropriado de leitura é a liturgia, quan do a comunidade orante se põe à escuta da Palavra de Deus. Então o sentido escondido nas entrelinhas da narração brota como apelo divino. E se toma “Palavra da Salvação”. A comunidade se autodescobre ao se deparar com o sen tido do texto. Vê-se refletida no texto bíblico, na função de es pelho da comunidade.2 Compreende o texto falando da comu nidade e seus problemas. E mais, percebe o esforço do texto 2 “A preocupação maior não é saber o que a Bíblia diz em si, mas o que ela diz para a vida. Por isso, ela é vista como ‘espelho’” (MESTERS, C. Flor sem defesa. Uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 112). Referindo- -se a Adão e Eva, Mesters afirma que são “um espelho que reflete criticamente a realidade presente e ajuda a descobrir o erro existente em cada um dos leitores” (MESTERS, C. Paraíso terrestre; saudade ou esperança? 17. ed. Petrópolis: Vo zes, 2001. p. 62). 43 em ajudá-la na caminhada. Resulta, pois, uma simbiose do texto com a comunidade: a história contada, afinal de contas, é a história da comunidade. As soluções apontadas pelo texto correspondem às necessidades da comunidade leitora. Para se chegar a esse ponto, é claro, cabe fazer um largo percurso her menêutico. Não se passa diretamente do texto à vida, sem um processo prolongado de convivência e intimidade com ele. Ao penetrar os meandros e as entrelinhas do texto, a comunidade leitora se dá conta da riqueza existente por trás das palavras, por ser uma interlocutora privilegiada. O diálogo com o texto indica à comunidade o caminho a seguir. A ieitura das narrativas bíblicas "Como sugerem muitas indicações presentes na própria Bíblia, as nar rativas foram, geralmente, lidas do rolo em que foram escritas, diante de algum tipo de assembléia reunida para escutá-las (muitas das quais, ; presum ivelm ente , não eram constitu ídas de pessoas letradas), sem passar de m ão em m ão para serem lidas, no sentido atua l. O rolo desenro lado e ra , sob certo aspecto , com o um film e pro jetado , pois o tem po e a seq u ên cia dos eventos ap resen tad os não pod iam , com o n o rm a , ser parados ou a lte rad os, e o ún ico m odo para fixar,de m aneira ad equada, um a ação ou decla ração particu lar, e propô-la a um a análise particu lar, era repeti-la . [ . . .] Por isso, encontram os na narrativa bíblica um sistem a elabo rado de repetições, a lgum as dependentes da recorrência real de fenôm enos, palavras ou frases curtas, outras, pelo contrário , re lacionadas com ações , im agens e idéias que fazem parte do m undo da narrativa que 'reco nstru ím o s' com o le itores, m as não necessariam ente im plicadas na tessitu ra verbal da n a rra tiva " (ALTER, R. The Art ofBiblical Narrative. N ew Yo rk : Basic Books, 1981 . p. 9 0 , 94 ). 3 3) As narrações bíblicas estão atreladas às tradições his- tórico-teológicas de Israel: patriarcas, êxodo, deserto, Sinai, posse da terra, monarquia, Jerusalém, templo, exílio e muitas 44 outras. Os narradores retiram desse rico tesouro, acumulado ao longo de séculos, o material com o qual constroem seus textos. Isso vale tanto para o Primeiro quanto para o Segundo Testamento. De maneira explícita ou implícita, as tradições estão sempre presentes. Embora sem se referir a Deus, sempre apontam para ele. Só a leitura atenta poderá detectá-lo. O mesmo vale para a tradição do êxodo, do deserto, do messianismo davídico, de Sião e tantas outras, detectáveis, apesar de não serem referidas textualmente. Se bem que as narrativas bíblicas não estejam interessa das em resgatar a história factual de Israel - como, de fato, o povo da Bíblia se formou e qual foi sua caminhada na história - , os narradores se servem das “histórias” contadas ao longo dos tempos - “Nossos pais nos contaram...” (cf. SI 44,2; 78,3; Jz 6,13). A partir delas, constroem suas catequeses para iluminar os múltiplos momentos da vida de fé dos israelitas (Primeiro Testamento) e dos cristãos (Segundo Testamento), mormente os tempos de crise.3 A seleção do material transmitido ao longo dos tempos e sua organização, a montagem histórica e a respectiva cons trução dos personagens, as “dicas” para orientar a leitura, o uso dos mais diferentes expedientes literários, entre eles a re petição de palavras, temas e modelos, e das estruturas literá rias (inclusão, estrutura concêntrica, quiasmo, paralelismos e outras) correspondem ao trabalho do autor real no processo de construir a narração. Também para as tradições bíblicas vale o dito popular “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. 45 Talvez se possa compreender esse fenômeno com a se guinte distinção: o autor trabalhou com a história de Israel (tradições orais e escritas) e construiu narrativas históricas sem a pretensão de escrever “a” História de Israel. O autor, tendo à disposição a tradição histórica, não se deu ao trabalho de investigar se correspondia, exatamente, aos acontecimen tos de outrora. Em outras palavras, dispensou o trabalho da pesquisa historiográfica para apurar a “realidade” dos fatos. Antes, interessava-se pelas tradições históricas, como eram contadas, na medida em que serviam à sua catequese narra tiva, ou seja, à construção de uma teologia narrativa, com in teresses práticos - pragmática - bem precisos.4 Resultou daí uma narrativa bem coerente, onde tradições díspares, dos mais diferentes tempos, lugares e origens, são integradas num en redo unificador, cuja mensagem pode ser captada no processo de audição-leitura. 4) As narrações bíblicas estão em estreita relação com o contexto histórico em que foram produzidas. A mensagem do texto (semântica) se destina a leitores bem situados. As narra ções não foram produzidas de maneira gratuita, por narradores preocupados em dar vazão à vocação literária. Antes, atuaram como teólogos, catequistas, agentes de pastoral, preocupados com a fé da comunidade. No processo de criação literária, tinham em vista co munidades concretas com suas questões de fé. A narração correspondeu ao método escolhido para fazer a catequese da 4 A história bíblica pode ser caracterizada com seis adjetivos. “É uma história con fessional, querigmática, interpelante, profética, escatológica, salvífica” (GON- ZÁLEZ LAMADRID, A. As tradições históricas de Israel Introdução à história do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 11 — cf. p. 11-14). Vai além da preocupação com os fatos brutos da história de Israel. 46 comunidade. O narrador visava a tocar em cheio a vida da comunidade servindo-se do texto, usado como meio para co municar sua mensagem. A leitura da Bíblia supõe ter sempre em mente que o ponto de partida da narração é a fé vivida da comunidade. A vivência da fé, em contextos e situações bem precisas, levanta sérios problemas para a comunidade. Seguir adiante como se tais problemas não existissem se mostrará catastrófico com o passar do tempo. Se hoje temos a Bíblia, é porque, no passa do, movidas pela fé, muitas pessoas se deram ao trabalho de pensar as “questões de fé” e buscar uma luz para entendê-las, como serviço à comunidade. Das crises na vivência da fé pro vêm as questões a ser respondidas. Os narradores bíblicos as respondem servindo-se de narrações com preocupações teoló gicas. Daí serem teologias narrativas! As narrativas bíblicas se inserem nesse imenso esforço catequético, pastoral e teológico. Sua leitura frutuosa supõe, portanto, ter em mente a problemática enfrentada por seus autores e a mensagem (semântica) transmitida à sua comu nidade, enquanto leitora implícita, visada no ato de construir a narração. Essa atenção do leitor atual lhe permitirá penetrar nos meandros da narração, inteirar-se da riqueza da mensagem (sentido) do texto bíblico e transformá-lo em projeto de vida. 5) As narrações bíblicas existem em função de uma prática, um modo de proceder, uma sabedoria religiosa. A in terpretação (hermenêutica) a ser exercitada pela comunidade consistirá em desentranhar a mensagem contida na narração. Quem vai ao texto com postura fundamentalista ou historicista ficará restrito à materialidade da letra, sem chegar à Palavra 47 de Deus, com a qual é chamado a se defrontar.5 Da mesma forma os hipercríticos limitam-se à superfície do texto. Os questionamentos sobre eventuais contradições históricas, bem como a exigência de clareza meridiana em tomo de certos fa tos deixados na penumbra pelo narrador são irrelevantes para esse tipo de literatura bíblica. As narrativas da Bíblia exigem do leitor uma postura adequada para poderem desempenhar o papel de literatura religiosa, teologia narrativa. 6) As narrações bíblicas são lidas por muitíssimas ou tras comunidades, diferentes da comunidade leitora implícita original. Daí a condição de metarrelato, texto supratemporal, situado para além do tempo e do espaço. O sentido da narra ção vai além do contexto da primeira comunidade à qual se destinou. Qualquer comunidade, de qualquer tempo e lugar, poderá lê-las, com igual proveito, de forma a encontrar luzes para os desafios da fé, nos respectivos contextos. Isso é possi bilitado por um processo de descronologização das narrações bíblicas, isto é, a desconexão do texto do tempo [chrónos] em que foi escrito. Os leitores e as comunidades leitoras de todos os tem pos e lugares são desafiados a considerar os vários tempos do texto bíblico e as tradições subjacentes. Entre o tempo dos leitores aos quais, originalmente, foi destinado e os múltiplos tempos em que é, efetivamente, lido está o longuíssimo tempo A “Palavra de Deus” é Deus mesmo no ato de se comunicar com os seres humanos. A Palavra de Deus, na Bíblia, atinge os ouvintes-leitores para além da letra. O texto escrito funciona como “alto-falante” de Deus. Ele faz a “voz” de Deus chegar até nós e nos convidar a um diálogo. Apegar-se à letra do texto bíblico e limitar-se a explicá-la, em última análise, corresponde à tentação de calar a voz de Deus e se contentar com ouvir a própria voz. 48 em que foi transmitido, com a intervenção dos leitores e copis- tas, resultando em glosas e pluralidade de versões.6 O texto bíblico, portanto, na língua
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