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0 1 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2 2 A LINGUAGEM: EIXO PRINCIPAL DE COMUNICAÇÃO DA CRIANÇA COM O MUNDO. ......................................................................................................... 3 2.1 O papel da linguagem no desenvolvimento das funções psicológicas superiores................... ............................................................................................. 7 3 PENSAMENTO E PALAVRA: DEFINIÇÃO E CONCEITO ......................... 8 3.1 O significado das palavras e a formação de conceitos....................... 11 4 PENSAMENTO, PALAVRA E FALA INTERIOR ....................................... 12 5 AS RAÍZES GENÉTICAS DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM ......... 15 6 A TEORIA DE PIAGET SOBRE A LINGUAGEM E O PENSAMENTO DAS CRIANÇAS ................................................................................................................ 20 7 A TEORIA SOBRE PENSAMENTO E LINGUAGEM SEGUNDO VIGOTSKY ...................................................................................................................26 8 A TEORIA DE STERN SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM..............................................................................................................31 9 CONTRIBUIÇÕES DE ALEXEI NIKOLAEVICH LEONTIEV ACERCA DA PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO ............................ 34 10 ZONA DE DESENVOLVIMENTO PRÓXIMO ........................................... 42 11 ORIGENS DA IMAGEM MENTAL NA IMITAÇÃO SENSÓRIO-MOTORA 43 12 TRANSIÇÃO DA INTELIGÊNCIA SENSÓRIO-MOTORA PARA A INTELIGÊNCIA CONCEITUAL ................................................................................. 45 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 46 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 48 2 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta , para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 3 2 A LINGUAGEM: EIXO PRINCIPAL DE COMUNICAÇÃO DA CRIANÇA COM O MUNDO. Fonte: cliapsicologia.com.br É possível afirmar que a linguagem não é um fenômeno ou advém de características inatas e particulares aos seres humanos e também não tem um começo, ela evoluiu ao longo do tempo devido a uma necessidade básica dos seres vivos, a comunicação. Pesquisas diversas comprovam que todos os animais possuem linguagens e meios de se comunicar com seus grupos por intermédio de sons ou gestos. A linguagem pode realizar a função de descarga emocional ou uma função social de comunicação, mas são os seres humanos que se apropriaram da linguagem de forma a efetivamente transmitir as descobertas e conhecimentos acumulados ao longo do desenvolvimento da humanidade. A linguagem como função comunicativa se estabelece como ponto central das interações sociais, possibilitando a materialização de outras inúmeras funções, em outras palavras, é o fator primordial para a evolução dos seres humanos, pois é por seu intermédio que acontece o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. (MARTINS, 2011, apud MARÇAL, 2015, p. 2). É importante destacar alguns pontos fundamentais quanto à relação linguagem e pensamento na perspectiva Vigotskiana. Para superar a visão psicológica dicotômica presente no contexto acadêmico russo, Vigotski concluiu que o método marxista – materialista-histórico e materialista-dialético – possuía os aportes 4 necessários para fundamentar uma psicologia unificada ao afirmar que todos os fenômenos devem ser estudados como processos em movimento e mudança, dessa forma, rompendo com a visão fragmentada de pensamento e linguagem, Vigotski propõe o estudo da relação pensamento e linguagem como um fenômeno dialético, que se desenvolve quantitativa e qualitativamente no curso de seu desenvolvimento. O pensamento e a linguagem têm raízes genéticas diferenciadas, isto é, não tem a mesma origem que o progresso da fala não é paralelo ao progresso do pensamento. As curvas de crescimento de ambos se cruzam muitas vezes; podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até mesmo fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente, as duas funções se desenvolvem ao longo de trajetórias diferentes e independentes, no entanto, no processo de evolução do pensamento e da fala tem início uma conexão entre ambos que depois se modifica e se desenvolve. Assim, o desenvolvimento da linguagem e do pensamento distinguem-se dois momentos: uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala. Um terceiro momento, quando pensamento e linguagem se entrelaçam é a chamada linguagem simbólica ou pensamento verbal. Tratar destas fases no desenvolvimento infantil requer novamente destacar alguns pressupostos da teoria histórico-cultural, sendo, o trabalho enquanto atividade vital humana (responsável pela transformação da natureza e do próprio homem), o papel dominante da experiência social no desenvolvimento humano, e a mediação dos sistemas simbólicos. Todo o desenvolvimento humano se dá por meio das atividades humanas, nas quais as interações estabelecidas, requerem o emprego de signos, que tem um papel importante, pois o signo inicia-se enquanto comunicação, mas evolui no sentido do signo mental, constituindo formas superiores de comportamento, e mediando as relações homem mundo. É importante salientar que estes pressupostos auxiliam na compreensão do processo de desenvolvimento da criança, na medida em que o desenvolvimento humano é concebido essencialmente a partir das relações sociais na prática humana, mediada por sistemas simbólicos como a linguagem e a matemática. O desenvolvimento, a apropriação da linguagem se dá nessa interação dialética entre homens e natureza no processo de produção social de bens culturais 5 e materiais (trabalho). Dessa forma, a fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento e a fase pré-intelectual do desenvolvimento da fala, que se situam nos primeiros anos de vida da criança, acontecem dentro desse contexto e devem ser compreendidas como o início da apropriação da cultura humana, a primeira parte da construção subjetiva (psíquica) do sujeito. A fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento se caracteriza essencialmente na independência das reações intelectuais rudimentares em relação à fala. Antes mesmo da fala, a ação se torna conscientemente intencional (mesmo que de forma muito rudimentar), há um pensamento prático dentro do campo de percepção visual, isto é, antes da fala já existe o pensamento associado ao uso de instrumentos, e às atividades práticas. Na fase pré-intelectual do desenvolvimento da fala há uma linguagem predominantemente emocional, para a criança o choro,o balbucio, o riso, os gestos afetivos os quais representam seus meios instintivos de contato social, e que não tem nenhuma relação com a evolução do pensamento; geralmente, essas formas de comunicação são consideradas como comportamentos puramente emocionais, porém Vigotski apresenta investigações que refutam essa concepção e evidencia que nem todas essas manifestações assumem a função de descarga emocional, nesse sentido, as evidências demonstram que a função social da fala já é aparente mesmo nessa fase, pois as risadas, os sons inarticulados, os movimentos, etc., são meios de contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança. Contudo, em certo momento (aproximadamente aos dois anos de idade) há o encontro entre o progresso da fala e o progresso do pensamento, o que resulta em um salto qualitativo no desenvolvimento infantil. O momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento convergem (VIGOTSKI, 2008, apud MARÇAL, 2015, p. 4). Pode-se entender que no início da vida a criança está presa ao campo visual, à percepção visual, devido à forma como seu pensamento funciona. Nessa fase o uso de instrumentos é comparável ao dos macacos antropoides, e conforme desenvolve a linguagem simbólica ela vai superando esse estágio. Assim o desenvolvimento da linguagem simbólica propicia o salto qualitativo e a criança passa a constituir-se no 6 campo das representações mentais. O campo das representações mentais está vinculado às palavras (mesmo que essa represente apenas o nome de objetos). Outro elemento presente no desenvolvimento do pensamento é a fala interior. As abordagens apresentadas por autores como Watson eram incorretas; o estudo da fala interior deveria se basear no elo entre fala aberta e fala interior, esse elo intermediário está na fala egocêntrica. Piaget apresenta que a fala egocêntrica tem duas funções, função de descarga emocional e acompanhamento da atividade da criança. A fala inicialmente acompanha a criança durante a atividade prática, quer dizer, a fala segue a ação, no entanto posteriormente surge uma nova relação quando assume a função planejadora – a criança planeja suas ações na fala egocêntrica - nesse momento a fala dirige e determina o andamento da atividade, da ação, não mais somente acompanhando, mas precedendo na atividade própria da criança. Nesse sentido, a fala como ação planejadora é tão importante quanto a ação, pois fazem parte da mesma função psicológica complexa dirigida para a solução de um problema. Quanto maior a complexidade do problema, maior importância da fala durante a operação. As crianças utilizam a percepção (visual), a fala e ação para resolver atividades práticas, o que resulta na internalização do campo visual. É mister ressaltar que antes de ser interiorizada fisicamente, a fala passa por um processo de interiorização psicológica. Funcionalmente a fala egocêntrica é a fala interior, é a fala em sua trajetória para a interiorização. A interiorização da fala passa pelo mesmo processo que as outras operações mentais, esse processo possui quatro estágios: primeiro, o primitivo – pré-linguístico do pensamento e pré-intelectual da fala; segundo, a psicologia ingênua, no qual a criança começa a desenvolver sua inteligência prática a partir de experiências com seu corpo e objetos em seu ambiente; o terceiro é caracterizado pelo uso de instrumentos e signos externos para auxiliar na resolução de problemas internos – nesse estágio se encontra a fala egocêntrica – e por último o estágio de crescimento interior, no qual as operações externas se interiorizam e passam por profundas mudanças qualitativas: a criança passa a usar a memória lógica (opera com relações intrínsecas e signos interiores), na fala esse é o último estágio: a fala interior. No entanto, não se deve esquecer que continua a existir interação constante entre operações internas e externas. A atividade intelectual verbal é concebida como uma série de estágios nos quais as funções emocionais e comunicativas da fala são 7 ampliadas pelo acréscimo da função planejadora. Por intermédio da fala, pode-se dirigir sua ação, resolvendo problemas durante a execução da atividade, e regulando seu próprio comportamento. É interessante também destacar que o pensamento e os processos linguísticos não estão necessariamente ligados: quando se unem produz- se o pensamento verbal, mas este não resume todas as formas de pensamento ou de fala. 2.1 O papel da linguagem no desenvolvimento das funções psicológicas superiores A linguagem é considerada enquanto espaço de recuperação do sujeito como ser histórico e social, e a produção vigotskiana aborda a problemática da relação do pensamento e da palavra como um processo dinâmico, no qual a linguagem preenche funções muito específicas na constituição das funções psicológicas superiores. Os estudos de Vigotski são essenciais para o que se denomina funções mentais superiores – ou funções psicológicas superiores – os processos tipicamente humanos tal qual a memória e lembrança voluntária, a atenção, a imaginação, a ação intencional, a capacidade de planejar, a elaboração conceitual, o uso da linguagem, o pensamento abstrato e o raciocínio dedutivo. Vigotski compreende esses processos enquanto ações mediadas, isto é, ações construídas nas relações que os seres humanos estabelecem entre si e a natureza. A capacidade de imaginar fatos que nunca aconteceram, de pensar em objetos ausentes, planejar ações e estabelecer relações entre fatos e eventos, são tipos de atividades psicológicas consideradas superiores, pois diferenciam dos mecanismos psicológicos elementares, de origem biológica que são presentes em seres humanos e animais, como as ações reflexas e mecânicas. O desenvolvimento dessas funções na criança não acontece por ela ser um ser humano no sentido biológico ou orgânico, o crescimento intelectual da criança depende de seu domínio dos meios sociais de pensamento, isto é, da linguagem, isto quer dizer que está essencialmente ligado às formas culturais de organização/ordenação do real/social, essas funções tem uma origem histórica e social, dessa forma, a mediação tem papel fundamental no processo de desenvolvimento das funções mentais superiores, pois é por meio dela que a criança progressivamente internaliza as formas sociais de pensamento, ação, etc. A mediação 8 pode se dar nas interações sociais com outras crianças ou adultos, mas também se dá por meio dos instrumentos e o sistema de signos – linguagem, escrita, sistema numérico, etc., que são construídos dentro da esfera social, sendo dessa maneira fortemente ligados às formas culturais –, a relação do ser humano com o mundo não se dá de forma direta, mas sim indiretamente, sempre como uma ação mediada. Desta forma, quando conclui que na ausência da linguagem: [...] seria impossível a representação abstrata do objeto sob a forma de conceito. Eis mais um salto qualitativo decisivo para a afirmação da natureza social humana. A imagem mental passa a ser denominada por palavras da linguagem, conquistando, assim, o status de signo – convertendo-se em ideia a ser expressa e transmitida sob a forma de juízos e conceitos (MARTINS, 2011, apud MARÇAL, 2015, p. 7). Novamente, a representação mental é mediada pelas palavras, sendo por meio destas que se é possível os processos de ideação e construção conceitual. 3 PENSAMENTO E PALAVRA: DEFINIÇÃO E CONCEITO Para se buscar maior entendimento dos processos entre linguagem e pensamento na perspectiva vigotskiana, é importante o entendimento de alguns conceitos. A palavra como unidade mínima da linguagem é caracterizada como matriz complexa de diferentespistas e conexões acústicas, morfológicas, léxicas e semânticas na qual, em diferentes situações, preponderam quaisquer dessas conexões, dado que lhe confere ampla variabilidade, e é uma parte essencial da fala, o meio de comunicação vocal e oral em que se utiliza a linguagem com a função objetiva de comunicação/transmissão de informações. Essa transmissão de informação, baseia-se também na frase que é a unidade básica da expressão narrativa em que ocorre uma combinação de palavras em conformidade com as normas da língua. A língua por sua vez é um sistema específico de comunicação por meio da linguagem, que se estrutura por vocabulário, gramática e sistema fonológico específicos, e finalmente a linguagem, caracterizada como “sistema de signos que opera como meio de comunicação e intercâmbio entre os homens e também como instrumento da atividade intelectual. 9 A principal crítica de Vigotski a outras escolas psicológicas era o fato de terem uma tendência anti-histórica ao estudarem o pensamento e a linguagem sem fazer qualquer referência à história de seu desenvolvimento. O pensamento e a linguagem não possuem um elo primário, entretanto na medida em que evoluem inicia-se uma conexão entre ambos, que durante esse progresso vai se modificando e desenvolvendo. Contudo, essa conexão não se dá de forma mecânica, sendo um equívoco afirmar que a linguagem e o pensamento (e a palavra) são elementos isolados que constituem o pensamento verbal resultando de uma união externa. Dessa forma, o estudo ou análise do pensamento verbal não deve ser trabalhado como elementos independentes, mas sim em unidades. Essa unidade do pensamento verbal se encontra no significado das palavras. O significado das palavras confirma a estreitíssima e interdependente correlação entre pensamento e linguagem, como é evidenciado por Vigotski: O significado das palavras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio das palavras, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento (VIGOTSKI, 2003, apud MARÇAL, 2015, p. 8). O significado das palavras evolui, estabelecendo que na evolução da linguagem, a estrutura do significado e sua natureza psicológica também mudam; isto é, afirma que a constituição dos significados das palavras não é estática, mas um processo dinâmico que se modifica na medida em que a criança se desenvolve e de acordo com as várias formas de funcionamento do pensamento. O significado das palavras possui um papel no processo de pensamento, assim, cada estágio do desenvolvimento do significado das palavras estabelece uma relação particular entre o pensamento e a fala. Esse conceito resume-se da seguinte forma: a relação entre pensamento e palavra é um processo de contínuo movimento entre seus elementos, nesse processo essa relação se transforma até mesmo no sentido funcional. Assim o pensamento não é simplesmente expresso em palavras, mas passa a existir por meio delas, não é só expressão que encontra na fala; encontra sua realidade e forma. O pensamento estabelece relações entre coisas e cada pensamento é um movimento de evolução e amadurecimento de si e da função que exerce. 10 Não é possível traduzir todo pensamento em palavra: o pensamento passa por muitas mutações até se transformar em fala. Para Vigotski a fala é uma unidade complexa, não homogênea e possui dois planos, o fonético e o semântico. O plano fonético ou exterior, e o plano semântico e significativo que é o aspecto interior da fala, apesar de apresentarem uma unidade, têm leis diferenciadas de movimento. Os aspectos semânticos e externos (fonéticos) da fala seguem movimentos opostos: um vai do geral para o particular (frase para palavra), e outro do particular para o geral (palavra para frase). À medida que o seu pensamento se torna mais diferenciado, a criança perde a capacidade de expressá-lo em uma única palavra, passando a formar um todo composto. Inversamente, o avanço da fala em direção ao todo diferenciado de uma frase auxilia o pensamento da criança a progredir de um todo homogêneo para partes bem definidas (VIGOTSKI, 2003 apud MARÇAL, 2015, p. 9). Enquanto no aspecto fonético, ao começar a se apropriar da fala exterior, a criança parte de uma única palavra e a partir daí começa a progredir para uma fala mais complexa, no sentido do significado, essa única palavra representa uma frase completa. Já no aspecto semântico ela parte de um todo amorfo e indistinto para somente depois, no curso do progresso, começar a distinguir as unidades semânticas separadamente, ou seja, os significados das palavras e ir dividindo o pensamento. Com o decorrer do desenvolvimento a criança lentamente começa a distinguir entre os aspectos fonéticos e semânticos e compreender essas diferenças o que vai se evidenciar no próprio pensamento verbal. No princípio a criança não diferencia entre as formas verbais e o significado, sendo a palavra parte integrante do objeto a qual denota; dessa forma, inicialmente, só existe a função nominativa, a significação independente da nomeação e o significado independente da referência que só surgirão mais tardiamente, por isso muitas vezes na interação verbal usa-se as mesmas palavras que os adultos, porém não com o mesmo significado. Quando acontece a fusão entre esses dois aspectos da fala no campo semântico e fonético, a criança começa a compreender melhor a fala dos outros. 11 3.1 O significado das palavras e a formação de conceitos Fonte: dreamstime.com A partir do momento que a criança descobre que tudo tem um nome, cada novo objeto que surge representa um problema que a criança resolve atribuindo-lhe um nome. Quando lhe falta à palavra para nomear este novo objeto, a criança recorre ao adulto. Esses significados básicos de palavras assim adquiridos funcionarão como embriões para a formação de novos e mais complexos conceitos. Todas as atividades cognitivas básicas do indivíduo ocorrem de acordo com sua história social e acabam se constituindo no produto do desenvolvimento histórico-social de sua comunidade. Portanto, as habilidades cognitivas e as formas de estruturar o pensamento do indivíduo não são determinadas por fatores congênitos. São, isto sim, resultado das atividades praticadas de acordo com os hábitos sociais da cultura em que o indivíduo se desenvolve. Consequentemente, a história da sociedade na qual a criança se desenvolve e a história pessoal desta criança são fatores cruciais que vão determinar sua forma de pensar. Neste processo de desenvolvimento cognitivo, a linguagem tem papel crucial na determinação de como a criança vai aprender a pensar, uma vez que formas avançadas de pensamento são transmitidas à criança através de palavras (THOMAS,1993, apud GARCIA, 2002, p.3). Para um claro entendimento das relações entre pensamento e língua é necessário para que se entenda o processo de desenvolvimento intelectual. Linguagem não é apenas uma expressão do Pensamento e linguagem e sim o 12 conhecimento adquirido pela criança. Existe uma inter-relação fundamental entre pensamento e linguagem, um proporcionando recursos ao outro. Desta forma a linguagem tem um papel essencial na formação do pensamento e do caráter do indivíduo. 4 PENSAMENTO, PALAVRA E FALA INTERIOR Fonte: revistasimplesmente.com.br A relação entre pensamento e palavra não pode ser claramente compreendida sem um esclarecimento da natureza psicológica da fala interior. A fala interior é para si mesmo; a fala exterior é para os outros. Desse modo, para se estudar a fala interior, a fala egocêntrica, necessita-se realizar um elo que permite melhor compreensão na relação pensamento palavra. A fala egocêntrica na teoriapiagetiana expõe que, para Piaget a fala egocêntrica apresenta as funções de descarga emocional e acompanhamento da atividade da criança, porém, para Piaget ela é uma expressão direta do egocentrismo do seu pensamento, o qual, por sua vez, é um meio termo entre o autismo primitivo do seu pensamento e a sua socialização. À medida que a criança cresce, o autismo desaparece e a socialização evolui, levando ao declínio do egocentrismo no seu pensamento e na sua fala. [...] A fala egocêntrica não tem nenhuma função no pensamento ou na atividade realistas da criança – limita-se a acompanhá-los. [...] e desaparece 13 juntamente com o egocentrismo. [...] sua história diz mais a respeito da involução do que à evolução (Piaget apud VIGOTSKI, 2003). Discordando desses aspectos, Vigotski considera que a fala egocêntrica fornece os elementos necessários para compreender a apropriação da fala e o desenvolvimento do pensamento, como elo da fala interior e exterior, sendo externa em seu modo de expressão, mas ao mesmo tempo fala interior em função e estrutura. A fala egocêntrica acontece mais ou menos entre os três até aos sete anos, durante esse período é observável as mudanças que ocorrem em sua estrutura e funcionamento. A fala interior é uma fala quase sem palavras, operando com uma estrutura semântica e destacando o sentido da palavra sobre o significado. O termo sentido é a soma de todos os eventos psicológicos que determinada palavra desperta em nossa consciência, esse fenômeno de saturar uma única palavra com uma diversidade complexa de sentido tem destaque, pois, se fosse para descrever o sentido de uma palavra na fala exterior, seriam necessárias muitas palavras para expressá-la. Assim a fala interior se origina da diferenciação entre a fala egocêntrica e a fala social primária da criança, definindo-se como uma função de fala autônoma. A fala interior não é o aspecto interior da fala exterior – é uma função em sim própria. Continua a ser fala, isto é, pensamento ligado por palavras. Mas enquanto na fala exterior o pensamento é expresso por palavras, na fala interior as palavras morrem à medida que geram o pensamento. A fala interior é um pensamento que expressa significados puros. É algo dinâmico, instável e inconstante, que flutua entre palavra e pensamento, os dois componentes mais ou menos estáveis, mais ou menos solidamente delineados do pensamento verbal (VIGOTSKI, 2003, apud MARÇAL, 2015, p. 11). O pensamento tem sua estrutura própria, e sua transição para a fala não é um processo simples. Pois ao ser concebido o pensamento não se apresenta fragmentado, mas em sua totalidade, e para ser traduzido em palavras e ser comunicado é necessário que seja dividido em seus diversos aspectos. A comunicação de um pensamento se dá de forma indireta, mediado pelos significados e depois pelas palavras. O processo de formação do pensamento verbal, no qual são componentes a palavra e o pensamento, evidencia uma relação viva: o nascimento do pensamento por meio das palavras, nunca algo completo, formado e constante, mas o contrário, dialético, em movimento e desenvolvimento e constante modificação. Tomando a linguagem como fundamental para o desenvolvimento das funções 14 psicológicas superiores e a necessidade das relações sociais para a constituição dos sujeitos enquanto seres humanos, indivíduos inseridos em uma sociedade regida por determinadas relações de produções que regem essa mesma sociedade, a palavra apresenta-se um elemento essencial para o pensamento: é o signo do discurso interior (fala interior) e está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação. As palavras expressam relações complexas que os homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elementos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-los e a abordagem histórico cultural analisa a palavra não como uma das funções simbólicas, mas como um sistema simbólico básico elaborado pela necessidade da interação entre os indivíduos na atividade especificamente humana: o trabalho, que exigia a criação de um sistema de signos para a troca de informações, permitindo uma ação conjunta no mundo, por meio dos significados compartilhados pelos indivíduos. Dessa forma, pode-se afirmar que a linguagem é um produto histórico e significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas. A palavra tem funções designativa e conceitual, sendo o signo mediador de todo o processo de elaboração do mundo e do próprio sujeito, isto é, a palavra surge inicialmente como produto das formas naturais de comunicação, porém, em outro nível de desenvolvimento, surgem as relações mediadas, nas quais os signos se convertem em principal meio de comunicação. 15 5 AS RAÍZES GENÉTICAS DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM Fonte: pensamentoevolutivo.com O fato mais importante posto pelo estudo genético do pensamento e a linguagem é o fato da relação entre ambas passar por muitas alterações; os progressos no pensamento e na linguagem não seguem trajetórias paralelas: as suas curvas de desenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se e correr lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabam por se afastar de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como ao ontogenético. Nos animais, o pensamento e a linguagem têm várias raízes e desenvolvem- se segundo diferentes trajetórias de desenvolvimento. Este fato é confirmado pelos estudos recentes de Koehler, Yerkes e outros sobre os macacos. Koehler provou que o surgimento de um intelecto embrionário nos animais, isto é, o aparecimento de pensamento no sentido próprio do termo – não se encontra de maneira nenhuma relacionado com a linguagem. As “invenções” dos macacos na execução e utilização de instrumentos, ou no capítulo da descoberta de caminhos indiretos para a solução de determinados problemas, embora sejam sem sombra de dúvida pensamento embrionário, pertencem a uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento. Vigora considerável desacordo entre os psicólogos das diferentes escolas acerca da interpretação teórica das descobertas de Koehler. A massa de literatura crítica a que estes estudos deram origem representa uma grande variedade de pontos 16 de vista o que torna tanto mais significativo a ninguém contestar os fatos ou a dedução que mais particularmente interessa: a independência entre as ações do chimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boa mente, mesmo pelos psicólogos que, como Thorndyke e Borovski. Nada veem nas ações do chimpanzé para lá dos mecanismos instintuais e da aprendizagem por “tentativas e erros”, “nada mais, salvo o já conhecido processo de formação de hábitos” e pelos introspeccionistas que fogem a rebaixar o intelecto ao nível do comportamento dos macacos, mesmo dos mais avançados. As ações dos chimpanzés não têm qualquer relação com a linguagem; e que, no homem, o pensamento mobilizado pela utilização dos utensílios também tem uma relação muito mais tênue com a linguagem e com os conceitos do que qualquer outra forma de pensamento. A questão seria bem simples se os macacos não tivessem nenhum rudimento de linguagem, não tivessem nada que se assemelhasse à linguagem. Acontece que se encontra no chimpanzé uma linguagem relativamente bem desenvolvida, que, sob certos aspectos — sobretudo foneticamente — não deixa de ser semelhante à humana. Esta linguagem tem uma característica notável: a de funcionar independentemente do intelecto. Suas expressões fonéticas denotam apenas desejos e estados subjetivos; são expressões de afetos e nunca um sinal de algo objetivo. Mas a fonética dos chimpanzés e a humana têm tantas coisas em comum que se pode confiantemente presumir que a ausência de um discurso do gênero humanonão se deve a nenhuma causa periférica. O chimpanzé é um animal extremamente gregário e responde de forma muito intensa à presença de outros exemplares da sua espécie. Descreve-se formas altamente diversificadas de comunicação linguística entre chimpanzés. Em primeiro lugar vem o seu vasto repertório de expressões afetivas: jogo facial, gestos, vocalização; a seguir encontram-se os movimentos que exprimem as emoções sociais; gestos de saudação, etc. Os macacos são capazes tanto de compreender mutuamente os seus gestos como também de exprimir, por meio de gestos, desejos que envolvem outros animais. Habitualmente, um chimpanzé executará o início de uma ação que pretende que outro animal execute — por exemplo, empurrá-lo-á e executará os movimentos iniciais de marcha para convidar o outro a segui-lo, ou agarrará o ar quando pretende que o outro lhe dê uma banana. Todos estes gestos são gestos relacionados diretamente com a própria ação. Koehler menciona que o experimentador é levado a utilizar meios de comunicação 17 elementares essencialmente semelhantes para transmitir aos macacos aquilo que espera deles. Estas observações confirmam sobejamente a opinião de Wundt segundo a qual os gestos de apontar que constituem o primeiro estádio do desenvolvimento da linguagem humana não aparecem ainda nos animais, mas alguns gestos dos macacos são uma forma de transição entre o movimento de preensão e o de apontar. Considera-se que este gesto de transição é um passo muito importante da expressão afetiva não adulterada para a linguagem objetiva. Não há, no entanto, provas factuais de que os animais tenham atingido o estádio da representação objetiva de nenhuma das suas atividades. Os chimpanzés de Koehler brincavam com barro colorido, começando por pintar., com os lábios e a língua e passando mais tarde para pincéis a sério; mas estes animais — que normalmente transferem para as suas brincadeiras o uso dos utensílios e outros comportamentos aprendidos em atividades “sérias” (isto é, em experiências) e, vice-versa — nunca evidenciaram a mínima intenção de representar o quer que fosse nos seus desenhos nem o mais leve indício de atribuírem o mais pequeno significado aos seus produtos. Certo fato se põe de sobreaviso no sentido de não sobrestimarmos as ações dos chimpanzés. Sabe-se que nunca nenhum viajante confundiu um gorila ou um chimpanzé com um homem, e que nunca ninguém observou entre eles nenhum dos utensílios ou métodos tradicionais que, nos homens, embora variando com as tribos, indicam a transmissão de geração em geração das descobertas já feitas, nenhuma das arranhadelas que executam na areia ou no barro poderia ser confundida com desenhos que representassem alguma coisa ou com decorações traçadas durante a atividade lúdica; não há linguagem representacional, isto é, não há sons equivalentes a nomes. As reações orais são muito frequentes e variadas nos chimpanzés jovens, mas a linguagem no sentido humano não existe. O seu aparelho vocal é tão desenvolvido e funciona tão bem como o do homem. O que lhe falta é a tendência para imitar sons. A sua mímica está quase totalmente dependente dos estímulos óticos; eles copiam ações, mas não sons. São incapazes de fazer o que o papagaio faz com tanto êxito. Se as tendências imitativas do papagaio se combinassem com o calibre intelectual das do chimpanzé, este último possuiria sem dúvida linguagem, já que tem um 18 mecanismo vocal semelhante ao do homem, assim como um intelecto de tipo e nível que lhe permitem utilizar os sons tendo em vista o discurso oral. A linguagem não depende necessariamente do som. Há por exemplo a linguagem de sinais dos surdos e a leitura dos lábios, que é também interpretação de movimentos. Nas linguagens dos povos primitivos, os gestos são utilizados em paralelo com o som e desempenham um papel de certa importância. Em princípio, a linguagem não depende da natureza do material que emprega. Se é verdade que os chimpanzés têm o intelecto necessário para adquirirem algo análogo à linguagem humana, e o único problema reside no fato de não serem capazes de imitação vocal, então deveriam ser capazes de dominar nas experiências um qualquer tipo de gestos convencionais, cuja função psicológica seria precisamente a mesma dos sons convencionais. O meio de expressão não está em causa; o que importa é o uso funcional dos signos, de quaisquer signos que possam desempenhar um papel correspondente ao da linguagem humana. O papaguear das crianças, o seu choro e inclusivamente as suas primeiras palavras são muito claramente estádios do desenvolvimento da linguagem que nada têm a ver com o desenvolvimento do pensamento. Tem-se encarado de má forma generalizada estas manifestações como formas de comportamento predominantemente emocionais. Contudo, nem todas servem apenas a função de alívio de uma tensão. Investigações recentes das primeiras formas de comportamento das crianças e das primeiras reações das crianças à voz humana (efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo) mostraram que a função social da linguagem já é claramente evidente durante o primeiro ano de vida, quer dizer, no estádio pré- intelectual do desenvolvimento da linguagem de criança. Observa-se reações bem definidas à voz humana logo no terceiro mês de vida e a primeira reação especificamente social à voz durante o segundo mês. As gargalhadas, os sons inarticulados, os movimentos são meios de contato social logo durante os primeiros meses da vida das crianças. Assim, as duas funções da linguagem que se pode observar no desenvolvimento filogenético já existem e são evidentes nas crianças com menos de um ano de idade. Em determinado momento por alturas dos dois anos de idade, as curvas de desenvolvimento do pensamento e da linguagem, até então separadas, se tocam e fundem-se, dando início a uma nova forma de comportamento. É um momento crucial, 19 quando a linguagem começa a servir o intelecto e os pensamentos começam a se oralizar, é indicado por dois sintomas objetivos que não deixam lugar a dúvidas: a súbita e ativa curiosidade da criança pelas palavras, as suas perguntas acerca de todas as coisas novas (“o que é isto? ”). E, o consequente enriquecimento do vocabulário que progride por saltos e muito rapidamente. Antes do ponto de viragem, a criança reconhece um pequeno número de palavras que, tal como no condicionamento, substituem objetos, pessoas, ações, estados, desejos. Nessa idade, a criança só conhece as palavras que lhe foram transmitidas por outras pessoas. Agora a situação altera-se: a criança sente a necessidade das palavras e, por meio das suas perguntas, tenta ativamente aprender os signos relacionados com os objetos. A linguagem, que no estádio anterior era afetiva-conotativa entra agora no estádio intelectual. As trajetórias do desenvolvimento da linguagem e do pensamento encontraram-se. Neste momento, os problemas do pensamento e da linguagem entrelaçam-se. A grande descoberta das crianças só se torna possível depois de se ter atingido um nível de desenvolvimento do pensamento e linguagem relativamente elevado. Por outras palavras, a linguagem não pode ser descoberta sem o pensamento. Pode-se concluir que no seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e a linguagem têm raízes diferentes. No desenvolvimento linguístico da criança, pode-se estabelecer com toda a certeza uma fase pré-intelectual no desenvolvimento linguístico da criança — e no seu desenvolvimento intelectual pode- se estabelecer uma fase pré-linguística. A determinada altura estas duas trajetórias encontram-se e, em consequência disso, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional. Seja qual for a forma como se aborda o controverso problema da relação entre o pensamento e a linguagem, tem-se sempre que tratar com certa exaustão do discurso interior. Este é tãoimportante para a atividade pensante que muitos psicólogos, chegam a identificá-lo com o pensamento — que consideram ser uma fala inibida e silenciosa. Mas a psicologia ainda não sabe como se dá a transição do discurso aberto para o discurso interior, nem com que idade ocorre, por que processo e por que razão se realiza. Não se sabe em que ponto do desenvolvimento da organização linguísticas, as crianças passam do discurso aberto para o murmúrio e depois para o discurso interior, porque esse problema só foi estudado de forma acidental. Não há razões válidas para 20 crer que o discurso interior se desenvolve duma forma mecânica qualquer, por meio de uma gradual diminuição da audibilidade da fala (murmúrio). 6 A TEORIA DE PIAGET SOBRE A LINGUAGEM E O PENSAMENTO DAS CRIANÇAS A psicologia deve muito a Jean Piaget. Ele revolucionou o estudo da linguagem e do pensamento infantis, pois desenvolveu o método clínico de investigação das ideias das crianças que posteriormente tem sido generalizadamente utilizado. Foi o primeiro a estudar sistematicamente a percepção e a lógica infantis; além disso, trouxe ao seu objeto de estudo uma nova abordagem de amplitude e arrojo invulgares. Em lugar de enumerar as deficiências do raciocínio infantil quando comparado com o dos adultos, Piaget centrou a atenção nas características distintivas do pensamento das crianças, quer dizer, centrou o estudo mais sobre o que as crianças têm do que sobre o que lhes falta. Por esta abordagem positiva demonstrou que a diferença entre o pensamento das crianças e dos adultos era mais qualitativa do que quantitativa. Como muitas outras grandes descobertas, a ideia de Piaget é tão simples que parece evidente. Já tinha sido expressa nas palavras de Rousseau, citadas pelo próprio Piaget, segundo as quais uma criança não é um adulto em miniatura e o seu cérebro não é um cérebro de adulto em ponto reduzido. Por detrás desta verdade, que Piaget escorou com provas experimentais, esta outra ideia simples – a ideia de evolução, que ilumina todos os estudos de Piaget com uma luz brilhante. No entanto, apesar de toda a sua grandeza, a obra de Piaget sofre da dualidade comum a todas as obras pioneiras da psicologia contemporânea. Esta clivagem é correlativa da crise que a psicologia está atravessando à medida que se transforma numa ciência no verdadeiro sentido da palavra. A crise decorre da aguda contradição entre a matéria prima factual da ciência e as suas premissas metodológicas e teóricas, que há muito são alvo de disputa entre as concepções materialista e idealista do mundo. Na psicologia, a luta é talvez mais aguda do que em qualquer outra disciplina. 21 Enquanto faltou um sistema generalizadamente aceite que incorpore todo o conhecimento Psicológico disponível, qualquer descoberta importante conduzirá à criação de uma nova teoria conforme aos fatos novos observados. Freud, Levy-Burl, Bonde, todos eles criaram os seus próprios sistemas de psicologia. A dualidade predominante reflete-se na incongruência entre estas estruturas teóricas, com os seus tons carregados de metafísica e idealismo, e as bases empíricas sobre que foram construídas. Na moderna psicologia fazem-se diariamente grandes descobertas, descobertas essas que, no entanto, logo são envolvidas em teorias ad hoc pré- científicas e semi-metafísicas. Piaget tenta escapar a esta dualidade fatal atendo-se aos fatos. Evita deliberadamente fazer generalizações mesmo no seu próprio campo de estudo, pondo especial cuidado em não invadir os domínios correlatos da lógica, da teoria do conhecimento da História da filosofia. Para ele, o empirismo puro parece-lhe o único terreno seguro. [...] antes do mais, e acima de tudo, uma coleção de fatos e documentos. Os elos que unem entre si os diversos capítulos são os elos fornecidos por um método único a várias descobertas e de maneira nenhuma os de uma exposição sistemática. (VYGOTSKY, 1978, apud GARCIA, 2002, p.14). Na verdade, o seu forte consiste em desenterrar novos fatos, analisá-los e classificá-los penosamente, quer dizer, na capacidade de escutar a sua mensagem. Das páginas de Piaget cai uma avalanche de grandes e pequenos fatos sobre a psicologia infantil. O seu método clínico revela-se como uma ferramenta verdadeiramente inestimável para o estudo dos todos estruturais complexos do pensamento infantil nas suas transformações genéticas. É um método que unifica as suas diversas investigações e nos proporciona um quadro coerente, pormenorizado e vivo do pensamento das crianças. Os novos fatos e o novo método conduzem-nos a muitos problemas; alguns são inteiramente novos para a psicologia científica, outros aparecem-nos a uma luz diferente. Os problemas dão origem a teorias, apesar de Piaget estar determinado a evita-las atendo-se estreitamente aos fatos experimentais – e passando, de momento, por cima do fato de que a própria escolha das experiências é determinada por certas hipóteses. Mas os fatos são sempre examinados à luz de qualquer teoria, não podendo, por conseguinte, ser totalmente destrinçados da filosofia. Tal é particularmente verdade para os fatos relativos ao pensamento. 22 Segundo Piaget, o elo que liga todas as características específicas da lógica infantil é o egocentrismo do pensamento das crianças. Ele reporta todas as outras características que descobriu, quais sejam, o realismo intelectual, o sincretismo e a dificuldade de compreender as relações, a este traço nuclear e descreve o egocentrismo como ocupando uma posição intermédia, genética, estrutural e funcionalmente, entre o pensamento artístico e o pensamento orientado. A ideia de polaridade do pensamento orientado e não orientado tomada de empréstimo à psicanálise. O pensamento orientado é consciente, isto é, prossegue objetivos presentes no espírito de quem pensa, É inteligente, isto é, encontra-se adaptado a realidade e esforça-se por influenciá-la. É suscetível de verdade e erro ... e pode ser comunicado através da linguagem. (VYGOTSKY, 1978, apud GARCIA, 2002, p.15). O pensamento autístico é subconsciente, isto é, os objetivos que prossegue e os problemas que põe a si próprio não se encontram presentes na consciência. Não se encontra adaptado à realidade externa, antes cria para si próprio uma realidade de imaginação ou sonhos. Tende, não a estabelecer verdades, mas a recompensar desejos e permanece estritamente individual e incomunicável enquanto tal, por meio da linguagem, visto que opera primordialmente por meio de imagens e, para ser comunicado, tem que recorrer a métodos indiretos, evocando, por meio de símbolos e mitos, os sentimentos que o guiam. O pensamento orientado é social. À medida que se desenvolve vai sendo progressivamente influenciado pelas leis da experiência e da lógica propriamente dita. O pensamento autístico, pelo contrário, é individualista e obedece a um conjunto de leis especiais que lhe são próprias. Entre estes dois modos de pensamento contrastantes: há muitas variedades no que respeita ao seu grau de comunicabilidade. Estas variedades intermédias obedecerão necessariamente a uma lógica especial, que também é uma lógica intermédia entre a lógica do autismo e a lógica da inteligência. Propomos dar o nome de pensamento egocêntrico à principal forma intermédia. Embora a sua função principal continue a ser a satisfação das necessidades pessoais, já engloba em si algumas adaptações mentais, um pouco da orientação para a realidade característica do pensamento dos adultos. O pensamento egocêntrico das crianças situa-se a meio caminho entre o autismo no sentido estrito 23 da palavra e o pensamento socializado. É importante notar que através de toda a sua obra Piaget sublinha com mais intensidade os traços que são comuns ao pensamento egocêntrico e ao autismo do que os traços comuns que os distinguem.É claro que, do ponto de vista genético, temos que partir da atividade da criança para podermos compreender o seu pensamento; e essa atividade é incontestavelmente egocêntrica e egotista. O instinto social sob a sua forma bem definida só se desenvolve mais tarde. O primeiro período crítico a este respeito só ocorre por volta dos sete ou oito anos de idade. (VYGOTSKY, 1978, apud GARCIA, 2002, p.17). Antes desta idade, o egocentrismo é como algo que impregna tudo. Considera- se direta ou indiretamente egocêntricos todos os fenômenos da lógica infantil na sua rica variedade. Do sincretismo, importante expressão do egocentrismo, diz inequivocamente que impregna todo o pensamento da criança, tanto na sua esfera verbal, como na sua esfera sensorial após os sete ou oito anos, quando o pensamento socializado começa a ganhar forma, os traços egocêntricos não desaparecem instantaneamente. Desaparecem das operações sensoriais da criança, mas continuam cristalizados na área mais abstrata do pensamento puramente verbal. A partir da concepção da predominância do egocentrismo na infância conclui- se que o egocentrismo do pensamento se encontra tão intimamente relacionado com a natureza psíquica da criança que é impermeável à experiência. As influências a que os adultos submetem as crianças não se encontram nestas como se tratasse de uma placa fotográfica: são assimiladas, quer dizer, são deformadas pelo ser vivo que as sofre e implantam-se na sua própria substância. É esta substância psicológica da criança, ou, por outras palavras, a estrutura e o funcionamento característicos do pensamento da criança que se procura descrever e em certa medida explicar. A base da convicção de Piaget é dada pelas investigações a que submeteu o uso que as crianças dão à linguagem. As suas observações sistemáticas chegaram à conclusão que todas as conversações das crianças se podem classificar em dois grupos: o egocêntrico e o socializado. A diferença entre ambos reside sobretudo nas suas funções. No discurso egocêntrico a criança fala apenas dela própria, não se preocupa com o interlocutor, não tenta comunicar, não espera qualquer resposta e frequentemente nem sequer se preocupa com saber se alguém a escuta. O discurso egocêntrico é semelhante a um monólogo numa peça de teatro: a criança como que 24 pensa em voz alta, alimentando um comentário simultâneo com aquilo que está a fazer. No discurso socializado, ela não procura estabelecer um intercâmbio com os outros — pede, manda, ameaça, transmite informações, faz perguntas. A parte de longe mais importante das conversas das crianças em idade pré-escolar é constituída por falas egocêntricas. Investigações posteriores com crianças de seis e sete anos de idade demonstraram que, nesta idade, nem o discurso social se encontra totalmente liberto de pensamentos egocêntricos. A demais, para além dos seus pensamentos expressos, as crianças têm muitos pensamentos não expressos. Alguns destes pensamentos, ficam por exprimir precisamente porque são egocêntricos, isto é, incomunicáveis. Para os transmitir aos outros, a criança teria que ser capaz de adotar os seus pontos de vista. Pode-se dizer que o adulto pensa socialmente mesmo quando se encontra só, ao passo que as crianças com menos de sete anos pensam e falam egocentricamente, mesmo em sociedade com os outros. Assim, o coeficiente de pensamento egocêntrico será necessariamente muito mais elevado do que o coeficiente de fala egocêntrica. Mas só os dados orais são mensuráveis, só eles fornecem a prova documental sobre que Piaget baseia a sua concepção do egocentrismo infantil. As suas explicações sobre o discurso egocêntrico e o egocentrismo das crianças em geral são idênticas. Em primeiro lugar, não há vida social persistente em crianças com menos de sete ou oito anos; em segundo lugar, a verdadeira linguagem social das crianças, quer dizer, a linguagem utilizada na atividade fundamental das crianças — o jogo — é uma linguagem de gestos, movimentos e mímica, tanto quanto uma linguagem de palavras. Quando, com sete ou oito anos de idade, o desejo de trabalhar com os outros começa a manifestar-se, a fala egocêntrica continua a subsistir. Na sua descrição do discurso egocêntrico e do seu desenvolvimento genético, esse discurso não cumpre nenhuma função no comportamento da criança e que se limita a atrofiar-se à medida que a criança atinge a idade escolar. Entretanto o discurso egocêntrico assume desde muito cedo um papel muito definido e importante na atividade da criança. Para determinar qual a causa da fala egocêntrica e que circunstâncias a provocam, foram organizadas as atividades das crianças de forma muito semelhante à de Piaget, acrescentando-lhes, porém, uma série de frustrações e de dificuldades. Por exemplo, quando uma criança se preparava para pintar, descobria subitamente 25 que não havia papel, ou lápis da cor que necessitava. Por outras palavras, ela era obrigada a defrontar-se com determinados problemas, obstruindo a sua atividade livre. A criança tentaria dominar e remediar a situação falando para si própria: “Onde está o lápis? Preciso de lápis azul. Deixa lá, vou desenhar com o lápis vermelho e molho- o com água; ficará mais escuro e parecerá azul”. Portanto, é legítimo presumir que as interrupções do livre desenrolar da atividade são estímulos importantes para o discurso egocêntrico. Esta descoberta adequa-se com duas premissas que o próprio Piaget se refere. Uma delas é a chamada lei da consciência, segundo a qual os obstáculos ou as perturbações de uma atividade automática fazem com que o autor dessa atividade se aperceba dela. A outra premissa é a que afirma que o discurso é uma expressão desse processo de tomada de consciência. Assim o discurso egocêntrico já não se limita a ser um simples acompanhamento da atividade da criança. Para além de ser um meio de expressão e de libertação de tensão em breve se torna um instrumento de pensamento no sentido próprio do termo — um instrumento para buscar e planear a solução de um problema. Considera-se que o desenvolvimento total segue a seguinte evolução: a função primordial da linguagem, tanto nas crianças como nos adultos, é a comunicação, o contato social. Por conseguinte, a fala mais primitiva das crianças é uma fala essencialmente social. De início, é global e multifuncional; mais tarde as suas funções tornam-se diferenciadas. Numa certa idade o discurso social da criança subdivide-se bastante nitidamente em discurso egocêntrico e discurso comunicativo. O discurso egocêntrico emerge quando a criança transfere as formas sociais cooperativas de comportamento para a esfera das funções psíquicas pessoais internas. A tendência da criança para transferir para os seus processos internos os modelos anteriormente sociais é uma tendência bem conhecida que Piaget conhece muito bem. Noutro contexto, discussões entre crianças dão origem às primeiras manifestações de reflexão lógica. Algo semelhante acontece, julgamos, quando a criança começa a conversar consigo, própria como se estivesse a falar com outra pessoa. Quando as circunstâncias a obrigam a deter-se para pensar, o mais certo é começar a pensar em voz alta. O discurso egocêntrico, dissociado do discurso social geral, acaba com o tempo por conduzir ao discurso interior que serve simultaneamente o pensamento autístico e o pensamento lógico. 26 O discurso egocêntrico como forma linguística separada, autônoma é o elo genético altamente importante na transição entre o discurso oral e o discurso interior, um estádio intermédio entre a diferenciação das funções do discurso oral e a transformação final de uma parte do discurso oral em discurso interior. É este papel de transição do discurso egocêntrico que lhe confere um interesse teórico tão grande. Toda a concepção do desenvolvimento do discurso se alteraráprofundamente, consoante a interpretação que se der ao papel do discurso egocêntrico. Assim, o esquema de desenvolvimento — primeiro, o discurso social, depois o discurso egocêntrico, depois o discurso interior — diverge profundamente não só do esquema behaviourista tradicional, — discurso oral, murmúrio, discurso interior — mas também da sequência de Piaget — que passa do pensamento autístico para o discurso socializado e o pensamento lógico através do discurso e do pensamento egocêntrico. Nesta concepção, a verdadeira trajetória de desenvolvimento do pensamento não vai no sentido do pensamento individual para o socializado, mas do pensamento socializado para o individual. Não é possível avaliar todos os aspectos da teoria de Piaget sobre o desenvolvimento intelectual, as preocupações centram-se sobre a sua concepção do papel do egocentrismo na relação evolutiva entre a linguagem e o pensamento. 7 A TEORIA SOBRE PENSAMENTO E LINGUAGEM SEGUNDO VIGOTSKY Em seus estudos Vigotsky aborda a importância das relações interfuncionais entre pensamento e linguagem, relações essas que, a seu ver, estudos anteriores não conseguiram desenvolver com propriedade por entenderem pensamento e fala como funções isoladas. Os métodos de análise atomísticos e funcionais, predominantes na última década, trataram os processos psíquicos isoladamente. Métodos de pesquisa foram desenvolvidos e aperfeiçoados com a finalidade de estudar funções isoladas, enquanto sua interdependência e sua organização na estrutura da consciência como um todo permaneceram fora do campo de investigação. Impunha-se, então, uma mudança de abordagem, de paradigma, que levasse a Psicologia a assumir essa 27 inter-relação como seu problema central, seu foco de atenção, essencial a um estudo produtivo do pensamento e da linguagem. Vygotsky propõe que se analise o aspecto intrínseco da palavra, ou seja, o seu significado, pois é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem. O significado é, então, simultaneamente ato de pensamento e linguagem, de onde decorre que o método a seguir na exploração da sua natureza seja a análise semântica – estudo do desenvolvimento, do funcionamento e da estrutura dessa unidade em que pensamento e fala estão indissociavelmente inter-relacionados. Um outro aspecto do estudo de Vigotsky, porventura o mais relevante, o mais inovador e o que mais marca o seu pensamento refere-se à comunicação, à interação social enquanto função primordial da fala. É para comunicar que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem, e é a necessidade de comunicar que impulsiona o seu desenvolvimento. Na ausência de um sistema de signos, linguísticos ou não, a comunicação torna-se limitada e de cariz mais afetivo, já que a transmissão racional e intencional de experiências e de pensamentos requer um sistema mediador – a fala. Ou seja, a verdadeira comunicação requer significado e generalização, tanto quanto requer signos. Mas as formas mais elevadas da comunicação humana só são possíveis porque o pensamento reflete realidades definidas, razão pela qual certos pensamentos só devem ser comunicados às crianças quando estas tiverem os conceitos adquiridos e amadurecidos. O mais difícil do ensino de palavras novas é, exatamente, a apropriação dos conceitos e não a dos sons. Os aspectos afetivos e intelectuais também não podem ser separados enquanto objeto de estudo, pois pensamentos dissociados das necessidades e interesses, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa, são desprovidos de significado/ sentido. Na parte seguinte da obra Vigotsky faz uma análise crítica à teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento das crianças, bem como à sua ideia de evolução. Para Piaget, a característica específica da lógica das crianças é o egocentrismo do seu pensamento, que relaciona com o realismo intelectual, o sincretismo e a dificuldade de compreender as relações, descrevendo-o como genético, estrutural, e intermediário entre o pensamento autístico e o pensamento dirigido. Este é entendido como o pensamento consciente, inteligente, susceptível de verdade ou de erro, social, que pode ser comunicado através da linguagem e influenciado pela experiência e pela 28 lógica, enquanto o pensamento autístico é subconsciente, ligado à imaginação e ao sonho e, assim, estritamente individual. Já o pensamento sincrético é uma transição da lógica dos sonhos para a lógica dos pensamentos, ocorrendo quando a fala egocêntrica se transforma em fala socializada. Para Vigotsky, porém, ambas as falas de Piaget são sociais, embora com funções diferentes e, por isso, propõe que a fala “socializada” de Piaget seja substituída pelo termo “comunicativa”. Embora na fala egocêntrica o indivíduo não verbalize, não interaja socialmente, ele está a interiorizar ideias e pensamentos, a falar consigo próprio. E enquanto que para Piaget esta desaparece à medida que se manifesta nas crianças o desejo de trabalhar, à medida que se vão socializando e interagindo, para Vigotsky a fala egocêntrica das crianças transforma-se na fala interior dos adultos, no pensar para si próprio, na reflexão silenciosa, uma mudança qualitativa de vulto. A função primordial da fala é, então, para Vigostsky, nunca é demais repeti-lo, a comunicação, o contato social, que se desenvolve à medida que o indivíduo interage, sempre influenciado pelo meio social e cultural em que se insere. Ainda segundo Piaget, o pensamento aparece antes da linguagem, que lhe é subordinada e apenas uma das suas formas de expressão. E a formação do pensamento depende, basicamente, da coordenação dos esquemas sensório- motores, pelo que só ocorre depois de a criança ter alcançado um determinado nível de habilidades mentais, que pode mobilizar na evocação de um objeto ou acontecimento ausente, ou seja, na formação de conceitos. Já para Vigotsky, pensamento e linguagem são processos interdependentes desde o início da vida. A aquisição da linguagem pela criança modifica as suas funções mentais superiores, dá forma definida ao pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o planeamento da ação. Neste sentido a linguagem, diferentemente daquilo que Piaget postula, sistematiza a experiência direta da criança e, por isso, adquire uma função central no seu desenvolvimento cognitivo, reorganizando os processos em desenvolvimento. Já, na teoria de Stern acerca do desenvolvimento da linguagem. Este autor desenvolveu uma concepção intelectualista do desenvolvimento da fala na criança, de um ponto de vista genético-personalista, em que distingue três raízes: a (tendência) expressiva, a social e a intencional. E enquanto as duas primeiras são também observadas entre os animais, a terceira é específica e exclusivamente humana, 29 refletindo uma intencionalidade que se desenvolve a partir de uma força motriz inata, quase um impulso. Para Stern a criança, por volta dos dois anos, descobre o significado da linguagem de uma vez por todas, experiência que considera ser fruto da genética, não levando em conta os estudos experimentais que indicam que só mais tarde a criança aprende a relação entre signo e significado, e ignorando a relação entre as complexas transformações funcionais e estruturais do pensamento que ocorrem com o desenvolvimento da fala. Vigotsky, criticando esta premissa, reconhece haver um momento de descoberta que à primeira vista parece ser repentino, mas que se trata, de fato, de um desenvolvimento linguístico, cultural e intelectual relacionado com as vivências, trocas e experiências da criança, que assim aprende e apreende novos conceitos e cria novas competências, pelo que não se trata apenas de genética. O quarto tema da obra trata exatamente disso, das raízes genéticas do pensamento e da linguagem. Considerando estudos anteriores realizados por Koehlere Yerkes com macacos antílopes, Vigotsky chega à conclusão que, embora haja nesses animais, em certos aspectos, um intelecto parecido com o do homem e uma linguagem rudimentar, isso não significa que tenham a capacidade de desenvolver um raciocínio e uma linguagem igual à humana, porque a correspondência estreita entre pensamento e fala, característica do homem, não existe nos animais. Os seus estudos comprovaram que o pensamento e a fala têm raízes genéticas diferentes, e que o progresso de ambas não é paralelo: as funções do pensamento e da fala desenvolvem-se ao longo de trajetórias diferentes e independentes, não havendo qualquer relação clara e constante entre elas, embora essas linhas se encontrem no pensamento verbal e na fala racional. Procurando esclarecer essa relação Vigotsky aborda o estudo da fala interior, que considera importante para a compreensão entre pensamento e linguagem. Para ele, a linguagem interior não consiste na ausência de som, nem tão pouco na reprodução da fala na memória. É o contrário da fala exterior e consiste na tradução do pensamento em palavras, invertendo-se o processo: a fala interioriza-se no pensamento. Piaget foi o primeiro a prestar atenção à fala egocêntrica da criança, mas os resultados dos seus estudos teriam sido mais profícuos se tivesse considerado a sua característica mais importante – a relação com a fala interior. Com efeito, se a fala egocêntrica é um estágio da fala interior, e a primeira desaparece na idade escolar, 30 quando a segunda surge, uma transforma-se na outra, como conclui Vigotsky. Dizer que a fala egocêntrica desaparece equivale a dizer que a criança para de contar quando não usa mais os dedos, quando o que na realidade sucede é que com a decrescente vocalização da fala egocêntrica a criança adquire uma nova capacidade: a de pensar as palavras, ao invés de as pronunciar. Para Vigotsky, a fala é interiorizada psicologicamente antes de o ser fisicamente, e está ligada à organização do desenvolvimento da criança. A fala interioriza-se porque a sua função muda, e desenvolve-se mediante um lento acumular de mudanças estruturais e funcionais - as estruturas da fala que a criança domina tornam-se estruturas básicas do pensamento. Assim, o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, pelos instrumentos linguísticos, mas também pela experiência social e cultural da criança – o seu crescimento intelectual depende do domínio que tem sobre os meios sociais do pensamento. Com o desenvolvimento da fala interior e do pensamento verbal é a natureza do próprio desenvolvimento que se transforma. Tal como no reino animal, também no ser humano pensamento e linguagem têm origens diferentes; 1) Inicialmente o pensamento não é verbal, a linguagem não é intelectual, e as suas trajetórias não são paralelas, embora se cruzem em dado momento, dando início a uma nova forma de pensamento; 2) É a partir desse ponto que o pensamento se começa a tornar verbal e a linguagem se começa a tornar racional; 3) De início, a linguagem usada pela criança parece servir apenas para interação superficial, para convívio, mas a certa altura penetra no subconsciente e passa a constituir a estrutura do pensamento da criança; 4) A partir do momento que a criança descobre que tudo tem um nome, cada objeto que surge representa um problema só solucionado quando lhe atribui esse nome; 5) Quando lhe falta a palavra para nomear esse objeto, a criança recorre à ajuda do adulto para solucionar o problema; 6) Os novos significados das novas palavras servem como embriões de novos e complexos conceitos. 31 Como já visto, para Vigotsky todas as atividades cognitivas básicas do indivíduo ocorrem e decorrem de acordo com a sua história social, acabando por contribuir, e fazer parte integrante, do desenvolvimento histórico-social da sua comunidade. Logo, as habilidades cognitivas e as formas de estruturar o pensamento do indivíduo não são determinadas por fatores genéticos, antes são o resultado das experiências e dos hábitos sociais da cultura em que o sujeito se insere. Assim, a história da sociedade na qual a criança se desenvolve, e a história pessoal dessa criança, são fatores cruciais para a sua forma de pensar. E nesse processo de desenvolvimento cognitivo a linguagem tem um papel determinante na forma como a criança vai aprender a pensar, uma vez que as formas mais avançadas do pensamento são transmitidas à criança através de palavras. Então, é necessário um claro entendimento das relações entre pensamento e linguagem para se entender o processo do desenvolvimento intelectual. A linguagem não é apenas uma expressão do conhecimento adquirido pela criança, mas existe uma inter-relação entre pensamento e linguagem, que se proporcionam mutuamente recursos. Em síntese, Vigotsky aponta a necessidade de se olhar para a criança como um ser social, que apreende e aprende ao longo da vida com as suas vivências, na relação e interação com o outro, e que constrói significados à medida que vai tendo experiências e contatos com a cultura em que se insere. A criança não deve ser vista como um adulto em miniatura, mas como ela própria, um ser social único, singular e particular, que ao longo da sua história se vai construindo e reconstruindo. Daí a necessidade de a observar, escutar e compreender na fase real em que se encontra, tentando perceber o significado do pensamento e da linguagem que lhe são próprios. 8 A TEORIA DE STERN SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecida e que tem vindo a ganhar terreno com o passar dos anos, é a sua concepção intelectualista sobre o desenvolvimento da linguagem na criança. Contudo, é esta mesma concepção que mais claramente revela as limitações e as incoerências do personalismo filosófico e psicológico de Stern, os seus fundamentos idealistas e a sua ausência de validade científica. É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como personalista- genético. Analisaremos o princípio personalista mais à frente. 32 Afirmaremos já à partida que esta teoria, tal como todas as teorias intelectualistas, é, pela sua própria natureza, anti-genética. Stern estabelece uma distinção entre três raízes da linguagem: a tendência expressiva, a tendência social e a tendência intencional. Enquanto as duas primeiras estão também subjacentes aos rudimentos de linguagem observados nos animais, a terceira é especificamente humana. Stern define intencionalidade neste sentido como uma orientação para certo conteúdo, ou significado. Em determinado estádio do desenvolvimento psíquico, o homem adquire a capacidade de significar algo proferindo palavras, de se referir a algo objetivo. Em substância, tais atos intencionais são já atos de pensamento; o seu surgimento denota uma intelectualizarão e uma objetificação do discurso. Em consonância com certo número de autores que representam a nova psicologia do pensamento, embora em menor grau do que alguns deles, Stern sublinha a importância do fator no desenvolvimento da linguagem. Não há nada a obstar à afirmação segundo a qual a linguagem humana desenvolvida possui um significado objetivo, pressupondo, portanto, certo grau de desenvolvimento do pensamento, é necessário tomar em linha de conta a relação estreita que existe entre a linguagem e o pensamento lógico. O problema está em que Stern encara a intencionalidade característica do discurso desenvolvido, que exige explicação genética (isto é, que exige se explique como foi gerada no processo evolutivo), como uma das raízes do desenvolvimento da linguagem, como uma força motora, como uma tendência inata, quase como um impulso, mas, de qualquer forma como algo primordial, geneticamente equiparada às tendências expressiva e comunicativa – as quais na verdade são detectáveis já nos primeirosestádios da linguagem. Ao ver a intencionalidade desta maneira, substitui a explicação genética por uma explicação intelectualista. Este método de explicar uma coisa pela própria coisa que há que explicar é o erro fundamental de todas as teorias intelectualistas e, em particular, da de Stern – daí a sua vacuidade geral e o seu caráter anti-genético (pois se relegam para os primeiros estádios de desenvolvimento da linguagem características que pertencem aos seus estádios mais avançados) Stern responde à questão de como e porque a linguagem adquire significado afirmando. A linguagem adquire significado pela sua tendência intencional, isto é, pela tendência à significação. Isto faz-nos recordar o médico de Molière que explicava os efeitos soporíferos do ópio pelas suas 33 propriedades dormitivas. Da famosa descrição que Stern nos dá da grande descoberta feita pelas crianças por volta do ano e meio ou dois anos de idade podemos ver a que exageros pode conduzir uma acentuação exagerada dos aspectos lógicos. Por essa idade, a criança descobre pela primeira vez que cada objeto tem o seu símbolo permanente, uma configuração sonora que o identifica – quer dizer, que cada coisa tem o seu significado. Stern crê que, pelo segundo ano da sua vida, uma criança pode tomar consciência dos símbolos e da sua necessidade e considera que esta descoberta é já um processo de pensamento no sentido próprio do termo: A compreensão da relação entre o signo e o significado que desponta na criança por esta altura é algo diferente em princípio da simples utilização de imagens sonoras, de imagens de objetos e da sua associação. É a exigência de que todos os objetos, sejam eles quais forem, tenham o seu nome próprio pode considerar-se como uma verdadeira generalização levada a cabo pela criança. (STERN, 1928, apud GARCIA, 2002, p.27). Tudo o que conhecemos da mentalidade da criança de um ano e meio ou dois anos entra em choque com a idéia segundo a qual ela poderia ser capaz de operações intelectuais tão complexas. Tanto a observação como os estudos experimentais indicam-nos que a criança só muito mais tarde apreende a relação entre o signo e o significado, ou a utilização funcional dos signos; tal encontra-se muito para lá do alcance de uma criança com dois anos. Além disso, as investigações experimentais sistemáticas mostraram que a compreensão da relação entre o signo e o significado e da transição para o estádio em que a criança começa a operar com os signos, não resulta nunca de uma descoberta ou invenção repentinas. Stern acredita que a criança descobre o significado da linguagem de uma vez por todas, mas na realidade, trata- se de um processo extremamente complexo que tem a sua “História Natural” (isto é, as suas origens e as suas formas de transição aos mais primitivos níveis genéticos) e também a sua “História Cultural” (que também tem as suas séries de fases próprias, o seu próprio desenvolvimento quantitativo, qualitativo e funcional, as suas próprias leis e dinâmica). 34 9 CONTRIBUIÇÕES DE ALEXEI NIKOLAEVICH LEONTIEV ACERCA DA PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO Fonte: innovationinsider.com.br A primeira forma de pensamento aponta as suas próprias origens, tanto do ponto de vista filogenético quanto ontogenético, quando pensamento e ação se identificam no trato das situações-problema. Os embrionários processos de análise, síntese e generalização encontram-se indissoluvelmente ligados à manipulação dos objetos e as conexões estabelecidas entre eles circunscrevem-se ao campo sensório perceptual da operação. Essa forma de pensamento caracteriza o curso do desenvolvimento do pensamento por anterioridade ao desenvolvimento da linguagem – daí que também possa ser identificado nos animais superiores sob a forma de inteligência prática. O objeto do pensamento efetivo ou motor-vívido é, portanto, o ato de realização da tarefa, essencialmente condicionado pelo impulso de operação, de exploração do meio como forma ainda difusa de atendimento às necessidades. Assim, dota-se de um caráter pragmático circunstancial, alheio a quaisquer formas de planejamento que projetem a ação no futuro. Por conseguinte, essa forma de pensamento não ultrapassa os elos mais imediatos da atividade a que se associa. Considera-se, no tocante a essa questão, que, a atividade humana complexa se impõe como uma cadeia de ações realizadas por meio de operações. Se as ações são os componentes comportamentais da atividade, são condicionadas por 35 finalidades específicas e realizadas por operações que necessariamente vinculam o sujeito da ação às condições objetivas dadas, elas contêm exigências de duas ordens. A primeira, diz respeito ao domínio sensorial, empírico, dos objetos; a segunda, ao domínio da significação dos mesmos. Portanto, se toda ação é finalista, impossível pensá-la na ausência de domínios simbólicos que contemplem, de um lado, a representação abstrata do objeto sob a forma de palavra e, de outro, a função social de tal objeto. Por conseguinte, se o modo e/ou meio pelo qual o indivíduo se relaciona com a realidade para atender a suas carências aponta na direção da estrutura da atividade, representada pelas ações e operações, constata-se que a atividade está para o motivo (seu porque), tanto quanto cada ação está para sua finalidade (seu para que), estando as operações para as condições objetivas. Assim, há que se constatar que o terceiro polo na tríade atividade-ação- operação se revela prevalente nos momentos iniciais de vida, posto que não existe significação na ausência da linguagem e, sendo assim, inexistem fins e motivos. Ou seja, inexistem ações e atividades. O pensamento efetivo ou motor vívido corresponde a esse período, cuja centralidade evolutiva subjuga-se ao desenvolvimento da fala, graças à qual o objeto conquista representação abstrata por meio da palavra – trata- se dos primórdios da formação do ‘reflexo consciente da realidade’. Desta forma, a formação da consciência se impõe como condição fundante quer de uma ação, isto é, de um conjunto de operações à vista de uma finalidade pontual, quer da unidade entre várias ações cujos fins se revelem intercompletares, ou seja, da atividade. Ademais, no percurso de desenvolvimento, preponderam diferentes tipos de atividade como modos prevalentes de relação com o mundo circundante à vista do atendimento dos estados carenciais. São essas atividades que operam as transformações mais decisivas no desenvolvimento à medida que transformam e especializam as funções psíquicas e, consequentemente, a relação sujeito-objeto. Tais atividades foram denominadas por este autor como atividades-guia e balizaram as pesquisas levadas a cabo, tendo em vista a identificação das mesmas a cada etapa do desenvolvimento cultural dos indivíduos. De tais pesquisas resulta a proposição das seguintes atividades-guia: comunicação emocional direta bebê/adulto; objetal-manipulatória; jogos simbólicos, atividade de estudo; atividade de comunicação íntima pessoal e preparação profissional/estudo (adolescência inicial e adolescência, respectivamente), 36 possibilitando inferir o trabalho como atividade-guia da idade adulta. Com base nessas formulações, temos que o período correspondente ao pensamento efetivo ou motor vívido acompanha ativamente a vivência da comunicação emocional direta bebê/adulto, dado que conduz à seguinte indagação: quais são, então, as funções psíquicas que aí se destacam? Fundamentalmente aquelas envolvidas no senso motricidade, a saber, sensação, percepção e emoção, sintetizadas na ação. Tais funções se manifestam, evidentemente, no funcionamento do bebê e da criança pequena, impondo-se como lastro de sua existência social. Todavia, da mesma forma que essas funções se dão a descoberto, o exercício delas mobiliza, de modo oculto, indireto, o
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