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Educação em saúde Tratado de Medicina de Família e Comunidade – Capitulo 12: Educação Popular Características da educação popular • Concepção teórica de educação que surgiu na América Latina há quase seis décadas e se espalhou pelas práticas sociais de países de todos os continentes. • Se tornou importante no setor da saúde por inspirar e orientar as primeiras iniciativas de saúde comunitária no Brasil, que se tornaram referência para se pensar o atual sistema de saúde. • A crise existencial trazida pela doença cria uma situação de grande potencialidade educativa, na medida em que instiga fortes reflexões sobre o modo anterior de levar a vida, e pode mobilizar mudanças pessoais e apoios de parentes e amigos para seu enfrentamento. • O educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) foi o pioneiro na sistematização teórica dessa concepção. É instrumento para uma abordagem mais integral na assistência à saúde, pois agrega dimensões políticas, econômicas e culturais nas soluções construídas e fortalece o protagonismo social das pessoas envolvidas. Ela coloca o trabalho cotidiano em saúde a serviço do fortalecimento da democracia, da justiça e da solidariedade social. • É o campo de prática e do conhecimento sistematizado do setor da saúde que se tem dedicado mais diretamente à criação de vínculos entre o trabalho de saúde e o pensar e o agir cotidiano da população. • Diferentes concepções teóricas e práticas estão presentes no campo científico da educação em saúde. No entanto, na medida em que a saúde pública está fortemente marcada pelas orientações e pela ideologia dos grupos políticos e econômicos dominantes, têm predominado concepções educativas em saúde voltadas para a imposição de normas e comportamentos, por eles considerados adequados, para as classes populares. Por essa ideologia dominante, a massa populacional pobre, carente, ignorante e doente precisaria ser educada para ter condições de participar disciplinadamente e sem maiores custos na construção da nação brasileira. Histórico • A educação em saúde se constituiu e se organizou como disciplina teórica no Brasil no início do século XX, quando, dentro do movimento higienista, intelectuais e profissionais de saúde se deram conta da importância das práticas educativas para a construção da nação e para o enfrentamento das epidemias e endemias que tanto atrapalhavam o desenvolvimento. Além disso, esses profissionais de saúde, engajados na luta contra a ditadura militar (1964-1985), envolveram-se em práticas de organização comunitária voltadas para o fortalecimento da sociedade civil. Eles descobriram que as classes populares não eram simplesmente uma massa de carentes e ignorantes. Sendo assim, eles enxergaram que elas eram compostas de pessoas e grupos com uma intensa “busca de ser mais” (expressão muito usada por Paulo Freire), com significativos e surpreendentes saberes sobre como buscar a alegria e a saúde nas suas condições concretas de existência e com grande criatividade para participar da construção de soluções para seus problemas. • Muitas experiências de saúde comunitária orientadas pela EP surpreenderam pela capacidade de construir, de modo compartilhado com a população, práticas de grande eficácia no enfrentamento dos problemas de saúde por levarem em conta o saber acumulado dessa população, os seus interesses, as forças sociais ali presentes e as peculiaridades da realidade local. Tais experiências geravam também maior solidariedade local, novas lideranças, organizações comunitárias e protagonismo político, fortalecendo a sociedade para lutas sanitárias e sociais mais amplas. A ruptura com o modelo autoritário • A difusão da EP no setor da saúde ajudou a criar uma ruptura com o tradicional modo pedagógico, autoritário e normativo dos profissionais de saúde para lidarem com as classes populares. • A partir do final da década de 1980, profissionais de saúde, entusiasmados com as potencialidades da EP para esse setor, organizaram-se e começaram a produzir teoricamente sobre os caminhos de sua aplicação nos serviços de saúde. • Hoje, a Educação Popular em Saúde (EPS) é um campo teórico importante do setor da saúde, presente em muitas iniciativas de movimentos sociais, entidades acadêmicas, congressos, universidades e nos serviços de saúde. A APS tornou-se um de seus campos de aplicação mais importantes, por ser a área em que é possível realizar ações de forma mais continuada e inserida no cotidiano de luta das pessoas e famílias por uma vida mais plena. Em 2013, com a aprovação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS) pelo Ministério da Saúde, criou- se a possibilidade dessa perspectiva participativa de construção da integralidade generalizar-se mais amplamente nas ações de saúde. Essa política propõe a valorização e a implementação – nos âmbitos municipais, estaduais e nacionais do SUS – de práticas político-pedagógicas orientadas por estes princípios: diálogo; amorosidade; problematização; construção compartilhada do conhecimento; emancipação; e compromisso com a construção do projeto democrático e popular. • É fruto de um movimento social de intelectuais, ativistas e organizações coletivas preocupadas e engajadas na luta pela justiça, pela solidariedade e pelo protagonismo social dos que hoje são subalternos, marginalizados, oprimidos e empobrecidos. Dimensões da Educação Popular • As diversas classes e grupos sociais encontram formas de transmitir esses saberes para seus companheiros e para as próximas gerações. A força do ato educativo é saber colocá-lo a serviço da “busca de ser mais” já existente em todos os educandos, valorizando os significativos saberes acumulados e as suas maneiras bem próprias de construí-los. • O diálogo é o elemento central da EP. Não um diálogo feito com astúcia, com o intuito apenas de identificar a melhor estratégia e linguagem para transmitir de forma eficaz um pacote de verdades e valores, mas soluções que partam do reconhecimento autêntico do educador da insuficiência de seu saber. • No entanto, muitos têm buscado a EP apenas para ter acesso a técnicas eficazes de convencimento de grandes públicos e para difundir comportamentos e modos de encarar a vida que consideram justos e saudáveis. “O poder dos doutores, mesmo bem- intencionados, costuma calar ainda mais a voz dos subalternos.” • As lógicas expressas, quando o diálogo engrena, podem ser tão diferentes das lógicas imaginadas pelo profissional de saúde que, muitas vezes, ele nem as entende, desconsiderando-as. Outras vezes, trazem valores que se chocam com os valores do educador. Os ritmos de envolvimento de cada pessoa no processo educativo são diferenciados, exigindo paciência. É necessário, portanto, habilidades de manejo educativo e estudo dos contextos culturais dos grupos envolvidos para que o espaço de diálogo avance. • A problematização usada pela EP tem como base uma epistemologia (um modo de processar e elaborar a produção do conhecimento) diferente, que parte do pressuposto da incompletude de todos os saberes. Para sua superação, não basta buscar apenas a interdisciplinaridade e o diálogo de especialistas no tema para a construção do conhecimento necessário, mas também, e fundamentalmente, a valorização dos saberes dos usuários, dos moradores e dos movimentos sociais envolvidos. Esses saberes valorizados pela EP não são apenas conhecimentos logicamente estruturados, mas também saberes de outra natureza, como os vindos da intuição, da sensibilidade e da emoção que surgem na arte, na vida espiritual, no envolvimento amoroso, na contemplação, nas brincadeiras, nas festas e na agressividade guerreira. É impressionante como as classes populareslatino-americanas e seus movimentos sociais se tornam ricos e ficam à vontade quando seus saberes são acolhidos e valorizados. • A valorização dos movimentos sociais é outra importante dimensão da EP. Esses movimentos expressam, de forma mais clara, os interesses e saberes dos grupos sociais marginalizados, pois são espaços de elaboração de suas avaliações e propostas. Eles enriquecem muito o diálogo e a construção compartilhada das soluções. Ao mesmo tempo, são espaços de formação pessoal desses grupos para a promoção do protagonismo social e da altivez. Precisam ser apoiados e valorizados. Além disso, são atores importantes no processo político de transformação da sociedade. As raízes de problemas locais de saúde muitas vezes estão fora do ambiente familiar e comunitário, estão na forma como a sociedade se organiza política e economicamente. Nesse sentido, esses movimentos são importantes atores no jogo de transformação social para além da dinâmica comunitária local. A EP busca trabalhar com eles e para eles. Resumindo... A EP é uma concepção de educação que tem cinco dimensões: - Uma perspectiva de ver a realidade; - Um projeto de transformação da sociedade; - Uma metodologia de ação; - Uma epistemologia; - Uma atitude para o educador. Cada uma dessas dimensões se justifica pelas demais. Trata-se, portanto, de uma teoria e de uma prática pedagógica bem elaboradas, com dimensões logicamente estruturadas entre si e que vêm alcançando crescente reconhecimento internacional. Entretanto, a sua forte presença no trabalho social latino-americano, por várias décadas, fez com que ela se difundisse de modo irregular e parcial. Muitas das práticas mais inovadoras da APS brasileira foram concebidas nessas experiências, muito antes da criação do SUS. Um exemplo importante são os agentes comunitários de saúde (ACS), no formato hoje existente no Brasil. Na década de 1970, já existiam redes de agentes de saúde, em várias cidades brasileiras, formadas por trabalhos pastorais das igrejas cristãs, com práticas que inspiraram, bem mais tarde, em 1991, o programa de ACS e, posteriormente, o Programa Saúde da Família (PSF). O controle social por conselhos de saúde não foi uma invenção do SUS, pois já fora conquistado, em muitos serviços e em muitas cidades, pela luta dos movimentos populares de saúde. A tradição de enfrentamento de problemas específicos de saúde, por meio da discussão conjunta com a comunidade e suas organizações, foi introduzida e difundida por essas experiências pioneiras. A participação de todos os membros da equipe do serviço em rodas de conversa, na avaliação e no planejamento das atividades surgiu e se difundiu nessas experiências de saúde comunitária. A aproximação com a vida familiar e comunitária, trazida pela APS, ajuda a revelar as dimensões emocionais, ambientais e sociais envolvidas no problema, enriquecendo imensamente o processo de cuidado. É preciso estar preparado para lidar com esse espaço educativo que se abre quando se vai além de uma atuação centrada apenas na abordagem do órgão adoecido. Não é fácil lidar com tantas emoções e questões inesperadas. No entanto, é nesse momento que se revela a potencialidade e a beleza do trabalho em saúde. A experiência de ser intensamente significativo e de receber a gratidão profunda das pessoas, em momentos tão difíceis, é estruturante de um novo sentido e gosto do trabalho profissional. O tratamento a ser implementado não é uma decisão puramente técnica. As pessoas não se modelam passivamente às prescrições médicas, pois já trazem para o atendimento, mesmo que não as expressem, suas próprias visões de seus problemas e uma série de outras práticas alternativas de tratamento. São visões e saberes válidos, porque estão integrados em sua cultura e em sua realidade material de vida. É importante, portanto, construir condutas terapêuticas por meio do diálogo entre, de um lado, a pessoa que conhece intensamente a realidade em que seu problema está inserido e, de outro, o profissional com conhecimentos técnico-científicos sobre a questão. Todos esses conhecimentos estão atravessados por crenças, hábitos e valores próprios da cultura do grupo social em que se formaram. Na medida em que cada um é crítico dos limites de suas análises e propostas, é possível estabelecer uma relação pedagógica na qual o diálogo não seja apenas uma estratégia de convencimento, mas também a busca de uma terapêutica mais eficaz, por respeitar a cultura e as condições materiais da pessoa. Agindo dessa forma, contribui-se também para a formação de cidadãos mais capazes de gerirem sua própria saúde. A eficácia clínica está, portanto, subordinada à eficácia pedagógica da relação com a pessoa e com a sua família.
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