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309 José Carlos Riechelmann 10. Publicidade médica .................................................................. 331 Danilo Kfouri Ennes e Marisa Teresinha Patriarca 11. Ética na pesquisa científica em Ginecologia e Obstetrícia ........................................................ 339 Roseli Mieko Yamamoto Nomura Princípios bioéticos 1 Ética em Ginecologia e Obstetrícia 19 1 Princípios bioéticos introdução A palavra Bioética surgiu em 1971, em um artigo do oncologista Van Ressenlaer Potter, da Winsconsin University, sendo que esse campo do co- nhecimento foi criado e desenvolvido diante da necessidade de equilibrar a ciência e os valores humanos.1 O respeito à vida é um princípio fundamental da Bioética; contudo, não é imutável, uma vez que se ajusta às condições da sociedade e ao seu desenvolvimento cultural e científico. A Obstetrícia, que trata das fases mais significativas da vida (crescimen- to e desenvolvimento intrauterino, nascimento e pós-parto), enfrenta dile- mas éticos imprevistos em cada avanço do conhecimento médico: a revolu- ção biológica desencadeada pela descoberta do DNA, por Watson e Crick, em 1953, criou as condições para o surpreendente movimento de inovação científica e, em decorrência disso, situações inéditas surgiram, não só para as pacientes, mas para os profissionais de saúde. Os dilemas vão desde as necessidades básicas de Saúde Pública e Direi- tos Humanos até as mais complexas consequências do aprimoramento técni- co, como a utilização do genoma humano. A área de Reprodução Assistida (RA), por exemplo, trouxe mudanças inquestionáveis no âmbito da criação da vida: já faz 40 anos que o primeiro “bebê de proveta” veio ao mundo no Reino Unido e, desde então, cerca de oito milhões de outros nasceram como resultado das técnicas de RA e de outros tratamentos avançados.2 É exatamente nesse ambiente de grandes avanços e de preocupações con- traditórias que a Bioética emerge, como assinala Maria do Céu Patrão Neves:3 Ética em Ginecologia e Obstetrícia20 É a ética aplicada à vida, um novo domínio da reflexão e da prá- tica, que toma como seu objetivo específico as questões humanas na sua dimensão ética, tal como se formulam no âmbito da prática clínica ou da investigação científica, e como método próprio a apli- cação de sistemas éticos já estabelecidos ou de teorias a estruturar. Aliás, é justamente pela dificuldade de se chegar a consensos – e pelos receios em relação ao futuro – que, em Bioética, há quem prefira refletir em cima do conceito de Slippery Slope4 (algo como “ladeira escorregadia”, em tradução livre), ou seja, quando um ato particular e aparentemente inocente pode levar a um conjunto de eventos de crescente malefício. Assim, em te- mas controversos, o conceito justificaria ser reticente a pequenas concessões, à primeira vista, sem maiores consequências. Princípios Na tentativa de superar dilemas na área de Saúde, surgiu em 1979 um modelo de análise bioética comumente utilizado e de grande aplicação na prática clínica em muitos países, especialmente nos EUA e na Europa: o “Principalista”, introduzido por Beauchamp e Childress. Esses autores5 pro- põem quatro princípios bioéticos fundamentais ao contexto sanitário, que são a Autonomia, Beneficência, Não-Maleficência e Justiça. O princípio da Autonomia requer que indivíduos aptos a deliberar sobre suas escolhas pessoais devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. Desde a década de 90, os Códigos de Ética Profissional, inclusive o de Ética Médica, tentam estabelecer uma relação médico-paciente na qual o respeito à autonomia tenda a ser ampliado, reconhecendo o direito de as pessoas atendidas decidirem sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida.6 Quaisquer atos médicos, portanto, devem ser autorizados pelo paciente: obter a permissão depende da capacidade de comunicação e empatia do mé- dico, como explicam Muñoz e Fortes: A postura do médico na relação com o paciente, dentro dos prin- cípios bioéticos, é a de consultor, conselheiro, parceiro, compa- nheiro e amigo, com maior ou menor predomínio de um desses papéis na dependência das características de personalidade do paciente e do próprio médico.6 Ética em Ginecologia e Obstetrícia 21 Em relação às mulheres, o princípio da Autonomia enfatiza o importan- te papel que devem adotar na tomada de decisões quanto aos cuidados de sua própria saúde. Neste ponto, os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, questionando expressamente sobre suas escolhas e respeitando suas opiniões,7 como salienta, desde 1994, a Federação Internacional de Gi- necologia e Obstetrícia (FIGO). O marco ético emitido pela FIGO tem sido divulgado por meio de seu Comitê para Assuntos Éticos da Reprodução Hu- mana e Saúde da Mulher. Tratando a paciente com o adequado respeito à sua condição humana, o médico conseguirá obter seu consentimento para os atos propostos, ou então identificará, sem maiores dificuldades, os motivos da recusa, procurando, no diálogo, alternativas para solucionar ou aliviar o sofrimento. Deve-se, enfim, tentar compreender as razões da rejeição, identificando opções que sejam aceitas e satisfaçam a atendida.8 No caso de pacientes intelectualmente deficientes e de crianças, o prin- cípio da Autonomia é visto como limitado, e, por isso, deve ser exercido pela família ou responsável legal. Entretanto, motivados por questões religiosas, culturais e emocionais, estes não têm o direito de forçar os menores a rece- berem tratamentos nocivos ou desproporcionalmente penosos. Isso significa que, quando a equipe médica concluir que as decisões de pais e responsáveis são contrárias aos melhores interesses do paciente, deve intervir ou negar-se a adotar condutas específicas, contando, por exemplo, com o apoio do Servi- ço Social ou Comitê de Bioética Hospitalar, e, como último recurso, fazendo uso de medidas de cunho legal. É válido lembrar que, por não ser um direito moral absoluto, mesmo a au- tonomia da paciente legalmente responsável ou sem deficiência poderá entrar em conflito com a do profissional de saúde.6 Por razões éticas, é permitido ao médico alegar objeção de consciência para se opor aos desejos da paciente de realizar certos procedimentos, incluindo aborto e técnicas de reprodução as- sistida, ainda que haja amparo legal ou deontológico para essas ações.9 A autonomia do médico de recusar-se a prestar serviços que contrariem “os ditames de sua consciência” está explicitada no próprio Código de Ética Médica.9 Como exceção figuram situações de urgência e emergência, de da- no ao paciente, ou na ausência de outro colega. Por sua vez, o princípio da Beneficência refere-se à obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. A Beneficência vincula-se à obrigação moral de agir em favor dos outros, ajudando-os a promover seus interesses importantes e legítimos, muitas vezes prevenindo ou removendo Ética em Ginecologia e Obstetrícia22 possíveis danos.10 Ou seja, o profissional deve ter convicção e informação técnica para assegurar que o ato médico será benéfico ao paciente (ação de fazer o bem). O princípio da Beneficência proíbe infligir dano deliberado, e isso é en- fatizado também pelo princípio da Não-Maleficência, que estabelece que a ação do médico deva levar ao menor prejuízo ou agravos à saúde do paciente (ação de não fazer o mal). A Não-Maleficência é universalmente consagrada pelo aforismo hipocrático “primum non nocere” (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos ou indesejáveis das ações diag- nósticas e terapêuticas no ser humano.8,11 O princípio da Justiça estabelece como condição fundamental a equida- de, obrigação ética de tratar cada indivíduo conforme o que é moralmente correto e adequado. Nos cuidados de saúde é geralmente definido como uma forma de justiça distributiva, ou, como dito por Aristóteles, “dar a cada um aquilo que