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Resenha - CLASTRES, Pierre Da tortura nas sociedades primitivas

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Resenha do texto “Da tortura nas sociedades primitivas” de Pierre Clastres.
Matheus Fontebasso Ramiro Menin
Artigo publicado em 1973 na revista antropológica L’Homme, compõe o livro de compilação de textos do autor que recebeu o nome de “Sociedade contra o Estado”. Clastres é conhecido por produzir materiais no campo da antropologia política, em especial, que circundam sua famosa tese que consiste na afirmação de que o Estado centralizado e divisor de poderes não é um telos de todas sociedades que, inclusive, é negado profundamente por diversas.
Na primeira seção do artigo, Clastres apresenta brevemente a estreita relação entre lei e escrita. Com a produção da escrita as sociedades passam a escrever suas leis, e uma vez que a difusão dessa escrita é efetivada, como por exemplo em escolas, não é possível alegar o desconhecimento da lei, afinal “A escrita existe em função da lei, a lei habita a escrita; e conhecer uma é não poder mais desconhecer a outra. Toda lei é, portanto, escrita, toda escrita é indício de lei” (CLASTRES, p. 195). Posteriormente, irá debruçar-se sobre o corpo como superfície de escrita, para tal empreitada, evoca trecho da obra literária A colônia penal do famoso Frans Kafka. Neste, um certo funcionário da máquina de escrever a lei explica sobre a aplicação da mesma através da marcação do corpo escritos, como “Respeite seu superior”, com efeito, o culpado não necessita ter conhecimento de sua sentença, afinal, ele irá aprender no próprio corpo. Também aponta para o fato de ser difícil ler tal escrita com os olhos, dessa forma, o indivíduo escrito aprende através de suas feridas, afinal, processo leva em torno de seis horas. Instaura-se assim, na ficção a tríplice aliança entre lei, escrita e corpo. Logo em seguida, Clastres aponta para uma possível anunciação kafkaniada da realidade através da ficção: colônias penais da Moldávia que marca os copos dos “culpados-vítimas”, fazendo com que se tornem, e mais importante, que seus corpos enunciem que estão “inteiramente fora da lei”.
Em seguida, o autor expõe a relação entre corpo e ritos. Afirma não ser incomum a necessidade de tortura e sofrimento em ritos de iniciação que jovens de diversas aldeias se submetem, nos quais “o corpo mediatiza a aquisição de um saber, e esse saber é inscrito no corpo”. (Ibid, p. 198). A próxima sessão irá se debruçar na tortura identificada em tais ritos, para tal, o autor expõe alguns dados etnográficos de ritos de iniciação que utilizam de “tortura” e “crueldade”, por exemplo, as escarificações dos guayaki e as perfurações com ossos de jaguar efetuadas pelos Mbayá-Guykuru. Ambos casos têm em comum a provocação do sofrimento em ritos de iniciação: “nas sociedades primitivas, a tortura é essência do ritual de iniciação”, além da necessidade do silêncio durante tais processos. Neste ponto Clastres afirma que a interpretação clássica aponta para uma demonstração de valor individual, e que caso nos prendamos a esta, desconheceremos a função do sofrimento de ensinar alguma coisa ao indivíduo (Ibid, p. 200).
Agora a preocupação se dá na memória. “Um homem iniciado é um homem marcado” (Ibid, p. 201). Sendo assim, não basta uma faca de bambu produzidas pelos Guayaki para cortar a pele, e sim, o uso de determinada pedra afiada que, ao invés de cortar dilacera a pele, fazendo com que o processo seja mais doloroso e a marca mais visível, ou seja, dois elementos importantes para atenuar a memória. A marca da sociedade sobre o corpo dos jovens é o objetivo da iniciação, causar uma recordação desagradável, segundo Clastres, que irá proclamar a segurança e o seu pertencimento ao grupo. (Ibid, p. 201). Ao final da sessão, o autor indaga se as funções evidentes da iniciação (avaliar resistência e pertencimento social) são realmente tudo.
Enfim, a revelação do segredo da iniciação segundo a leitura performatizada de Clastres:
"Sois um dos nossos.Cada um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Tendes o mesmo nome e não o trocareis. Cada um de vós ocupa entre nós o mesmo espaço e o mesmo lugar: conservá-lo-eis. Nenhum de vós nos é inferior, nem superior. E não vos podereis esquecer disso. As mesmas marcas que deixamos sobre o vosso corpo vos servirão sempre como uma lembrança disso." (Ibid, p. 202)
Dessa forma é possível identificar o rascunho do esquema proposta por Clastres: sociedade cria e dita suas leis aos membros; inscreve na superfície dos próprios corpos; ninguém se esquece da lei fundamental.
Em seguida menciona cronistas do sec. XVI que afirmavam que índios brasileiros eram pessoas sem fé, sem rei, sem lei. E a partir dessa ideia reafirma que sim, é certo que tais “tribos” ignoram a “lei separada” que numa “sociedade dividida” “impõe o poder de alguns sobre todos os demais” (Ibid, p. 203). A isso, estabelece a oposição na “lei da sociedade primitiva”, que é aprendida através da dor, uma lei inscrita na superfície dos corpos que recusa a divisão e o risco de um poder separado dela: “A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão. Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-se substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei” (Ibid, p. 203). Segundo a proposta de Clastres, a marca atingi a todos membros da sociedade, assim como seus efeitos. Finalmente, afirma que os “selvagens” sabiam, admiravelmente, de tudo isso, e buscavam ao preço terrível da crueldade, impedir o surgimento de crueldade ainda pior (Ibid,p. 204)
É incrível como em poucas páginas Clastres consegue estabelecer seis seções com ganchos que as unem através da proposta da tríplice aliança entre lei, escrita e corpo, que se organizam em: A lei; a escrita/código; o corpo; o rito; a tortura; a memória e, finalmente em seu final, estabelecer novamente a relação com a lei. Todavia, o texto pode incomodar alguns leitores cientes de teorias antropológicas contemporâneas, seja pelo apagamento dos nativos em suas enunciações, reduzidos ao nome de seus grupos étnicos. Seja pela transposição, sem reflexões, de ideias e conceitos “nossos” para “interpretar” e traduzir a realidade indígena, que passam de maneira não percebida pela ótima elaboração do texto, como por exemplo “indivíduo”, “sociedade”, “crueldade”, “igualdade”, “Estado”. Ademais, parece que a preocupação maior do autor não está na reflexão antropológica e etnológica em si, e sim, em reafirmar a sua tese exposta inicialmente, dessa forma, efetua um salto entre a o sofisticado esquema de análise que identifica a marcação da lei na superfície dos corpos como mecanismo de pertencimento, lembrança e provação, à afirmação de tais procedimentos implicam em uma recusa, consciente, dos elementos integrantes do Estado moderno, que pressupõem mecanismos desiguais de distribuição de poderes, por exemplo. Dessa forma, também não há esforço em identificar mecanismos, dentro de tais sociedades, que sinalizem para quaisquer “desigualdades” e, quando os são encontrados (como por exemplo nas diferenças rituais entre “homens” e “mulheres) são deixados de lado ou não explorados.

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