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Richard Bucher Inlernacicinais de Catalogarão na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livrei, SP, Brasill Bucher, Richard, 1940-1997 B932n A psicolcrapia pela fala: fundamentos, princípios, qucstiotianicnios / Richard Emil 13uolior. São Paulo: EPU, 19S9. Bibliografia ISBN 85-12-60440-9 1. Psicanálise 2. Psicologia clínica 3. Psitolcrapía 4. Relações interpessoais [. Titulo. 8-2178 CDD-SIS.89H -157.9 -616.8917 NLM-WM 420 índices paia tuialii^n sisltmálico: 1. Psicanálise: Medicina 616.S917 2. Psicologia clinica 157.9 3. Psicoterapia: Medicina 616.89 4. Relações Psicolcrápiças 616.8914 A PSICOTERAPIA PELA FALA icípiFundamentos, princípios questionamentos rapia" "todos os métodos que utilizam meios psicológicos para combater a doença pela intervenção do funções psíquicas". Nesta definição se reflele tanto o enfoque medica] ("combater as doenças") quanto a referência à psicologia associacionista da época ("as funções psíquicas"). 10. A respeito, pode-se citar a controvérsia en- tre Binswanger d Freud acerca dos compo- nentes espirituais ("superiores") e pulsío- nais {"inferiores") da natureza humana. Binswanger, no seu trabalho comemorati- vo do 80." aniversário de Freud, "A Con- cepção Freudiana do Homem à Luz da Antropologia", criticou a concepção natu- ralista de Freud, pela qual o homem seria "reduzido" a um esquema ou sistema con- forme às ciências exalas. Diante das preo- cupações espiritualistas e transcendentais de Binswanger, Freud já anteriormente ti- nha deixado clara a sua posição: "A hu- manidade desde sempre sabia que tem espírito; eu tinha que mostrar a ela que também há pulsÕes". Quanto ao referido trabalho, Fremi o elogia com cortesia, para continuar: "Naturalmente apesar de tudo, não acredito no Sr. Sempre demorei apenas no térreo e no subsolo do prédio. O Sr. afirma que basta mudar o ponto de vista para enxergar lambem um andar superior onde residem hóspedes tão distintos como religião, arte e outros. O Sr. não c o único, ali, a maioria dos exemplares culturais do homo naturu pensa assim. O Sr. nisso é conservador, eu sou revolucionário. Se ti- vesse ainda toda uma vida de trabalho diante de mim, me atreveria a indicar àque- les aristocratas uma moradia em minha ca- sinha humilde...". Percebe-se que as pre- missas (ou os "pontos de vista") são bem divergentes, fílosófico-transcendcntais de um lado, empírico-clínicas de outro. Nota-se ainda que Binswanger, num traba- lho posterior, corrigiu sua crítica do homo untura de Freud, percebendo outros valores de "veracidade" na obra de Freud. Em: BINSWANGER, L., Mein Weg zu Freud, em: Der Memcli in der Psychialrle. Neske, 1951. Este trecho ainda é citado por Rollo MAY, no texto "Psicologia Existencial", em: Millon, T. Teorias da Psicologia e Per' sotialidade, pp. 136-37. 11. BINSWANGER, L. Lebensfutútion und innere Lebensgesehichte, (1927). Em: Aus- gewâhlte Vorlràge und Aufsatze, vol. I. Bem, Francke Verlag, 1961(;), pp. 50-73 (tradução nossa). 12. JASPERS, K. Psicopatoiogia geral. Z vol. Rio de Janeiro, Athencu, 1979P). Ver 2.a parle: As conexões compreensíveis da vida psíquica (Psicologia compreensiva); I, pp. 361-534. 3.a parte: As conexões causais da vida psíquica (Psicologia explicativa); II, pp. 551-672. Nota-se que a noção de "conexão" ("Zu- sammenhang") influenciou, desde Dilthey, em alto grau as ciências humanas da época, notadamente na Alemanha. Na própria obra de Freud ele aparece com frequência, sendo traduzida da maneira mais variada (coerência, contexto, coesão, correlação, encadeamento, ligação, trama, elo, proces- so, aproximação, conjunto, associação, se- quência...), de sorte que seu reconheci- mento nas traduções é de averiguação difí- cil (tanto cm inglês ou francês quanto em português). Antes de qualquer estruturalis- mo, a noção de Zusainmenhang se equipara àquela de estrutura; em Freud, testemunha a. sua convicção do determinismo psíquico e da coerência de todos os fenómenos da alma humana, antecipando a concepção es- trutural propriamente dita. Capítulo 3 Delineamentos teóricos do campo psicoterápico 3.1. O problema da teoria da prática psicoterápica No capítulo precedente, confronta- monos com a especificidade da relação psicoterápica. Esta se opõe, como vimos, à relação médico-paciente, na medida em que não recorre a meios intermediários. Se a ação médica opera mediante recursos objetivos, instrumentais, apelando para forças de oulra espécie — físicas, quími- cas, biológicas — a psicoterapia apela unicamente para aqucías forças que estão presentes diretamenfe em qualquer ação (ou melhor: interação) humana: as forças do diálogo, da "fala", da verbalízação e tudo aquilo que implicam afetiva e cogni- livamente. Não obstante, cabe, com vistas a uma delimitação teórica do campo psicoterápi- co, distinguir a relação psicológica da re- lação psicoterápica propriamente dita. A primeira sempre está presente, em qual- quer relação humana, inclusive na relação médica. Ela é implícita, concomitante, automática por assim dizer e, embora consciente, se efetua de maneira não re- fletida, mais como um pano de fundo di- fuso do que respondendo a uma intenção explícita. Sem referência a teorias ou técnicas, a dimensão psicológica participa de tudo que é humano, regulamentada por certas convenções (as fórmulas de polidez, por exemplo) e codificada (e decodificada) segundo as necessidades de cada situação concreta. No caso da relação médica, ela intervém pela maneira do paciente apre- sentar a f-ua queixa, do médico interrogar, examinar, discutir, prescrever e, quem sabe, prometer alivio ou mesmo cura com- pleta do achaque — interações aparente- mente simples, mas de fato complexas se pensarmos nas implicações mágicas ou in- conscientes que contêm; complexas tam- bém no que tange à sugestão, à persuasão que o médico pode ser tentado a usar (prometendo alívio, por exempio). Neste caso, situamo-nos na região limí- trofe da relação psicológica cotidiana, isto é, não psicoterápica, em consequên- cia do ohjetivo consciente, mas talvez in- 42 confessado, de querer diretamente in- fluenciar o outro, para que "acredite" nas palavras — e no poder — daquele que fala, que "sabe" e que ordena em con- cordância com este seu saber. A persuasão aproxima-se, portanto, da relação psicoíerãpica(l), porquanto visa produzir uma certa mudança no outro. A relação psicológica, no entanto, não pre- tende alcançar esta mudança de maneira explícita ou proposital: ela pode produ- zir-se iocidentalmente, como efeito de re- forço ou pelo amparo que uma atenção caritativa, por exemplo, proporciona ao doente. O médico, no caso, não se empe- nha em propiciar esta mudança ou cura pela via psicológica, o que resta o apaná- gio, precisamente, da relação psicote- rápica. Bem em oposição à relação psicológica, espontânea e superveniente em qualquer situação humana, esta é explícita, siste- mática e relativamente padronizada. Ela se sustenta por um arcabouço teórico que lhe confere uma certa coerência, um certo rigor e uma veríficabilidade que, embora longe de ser experimental, obedece a cri- térios de reflexão científica e contém re- ferências a parâmetros metodológicos ave- riguados. A conjunção dos dois aspectos, da teo- rização contínua e do méíodo sistemáti- co de investigação e prática, oferece uma garantia mínima pela não-arbitrariedade e seriedade do empreendimento terapêu- tico. Esta não deixa de ter a sua impor- tância, visto as pretensões de cientificida- de, isto c, de uma certa objetividade e comprovação intersubjetiva da psicologia clínica. Voltaremos à distinção das diversas re- lações psicológicas e psicoterápicas. Por enquanto, traiamos em primeiro lugar da necessidade de definir teoricamente o que c psicolerapia, onde, em que campo ela se situa e como cia procede. Esta necessida- de decorre precisamente da pretensão científica mantida por aquela psicologia clínica que se inscreve na tradição filo- sófico-científica do ocidente. Pelas suas exigências de reflexão metodológica, de rigor, consistência c autocrítica,ela reage contra as abordagens psicológicas de cunho mais especulativo, místico, trans- cendental ou parapsicológico. Nestas orientações, os critérios tradicionais de cientificidade são desleixados; outras re- ferências são invocadas para justificar as linhas de atuação, tais como a intuição, a criatividade espontânea, o contato ime- diato com o cliente, a meditação transcen- dental, a mentali^ação, a sugestão, o êxta- se, relações com forças ou seres extrater- restres e assim adiante. Não se trata aqui de criticar estas li- ge aos critérios de verificação e de elabo- ria oriental; basta citá-las para assinalar a diferença radical de enfoque no que tan- ge aos critérios de verificação e de elabo- ração teórica, bem como para situar a psicologia clínica à qual nós nos referi- mos: ela não pretende fugir das exigên- cias de coerência lógica e racional que caracterizam a evolução da ciência no ocidente; embora "não positiva", no sen- tido de não referir-se a um objeío direta- mente observável ou quantificável, ela não abre mão da sua própria cientificida- de. Para alcançá-la, elabora critérios pró- prios de investigação, adaptados ao seu objeto geral — o ser humano que luta com dificuldades c conflitos —, tanto quanto ao seu objeto específico — as in- teraçôes que, a nível de terapia, possam iniciar processos de mudança que benefi- ciem este ou aquele portador de conflitos. De fato, como vimoj nos dois capítu- los anteriores, a psieoterapia consiste numa interação muito particular entre duas (ou mais) pessoas. Ela é, portanto, uma prática, mas uma prática que não tira sua consistência de nenhuma teoria, de nenhuma "ciência básica" preestabele- cida. Em sua estrutura, distingue-se essen- cialmente da terapia comportamental. Esta considera a si mesma como uma apli- cação de princípios encontrados por ou- tros métodos, ou seja, no laboratório, pela psicologia experimental (sobretudo ani- mal). Isto implica um procedimento cien- tífico radicalmente diferente, o que reper- cute inevitavelmente nos métodos de ava- liação e de comprovação. Por conseguinte, a relação com a teo- ria é muito diferente: no caso da terapia uomportamcntal, a teoria precede a apli- cação, sendo elaborada num contexto di- ferente — contexto que corresponde, qua- se que totalmente, aos critérios da cien- tificidade "positiva", aqueles de quantifi- cação, objetivação e abstração. Com muita lógica, a terapia comportamental conside- ra a sua aluação como "científica", uma vez que aplica os resultados da ciência experimental do comportamento, obtidos principalmente por via indutiva. Ela se re- fere, pois, explicitamente, ao caráter "po- sitivo" da sua fundamentação teórica, en- raivada bem mais nas ciências exalas, em particular na biologia, do que nas ciências do homem. A psieoterapia aqui conceituada, en- quanto parte da abordagem clínica não comportamental (nem psicométrica), de- senvolve-se obedecendo a princípios dife- rentes. Sendo ela prática clínica (e não aplicação técnica), não se refere a uma teoria constituída alhures, mas elabora a sua teoria própria, mini movimento cir- cular permanente: a sua elaboração teóri- ca, embora fertilizada pelas reflexões filo- sóficas e antropológicas milenares da hu- manidade, procede com uma referência imprescindível à experiência clínica. Esta, sendo não experimental, não controlada e não repetitiva, não pode submeter-se aos cânones da ciência "positiva" — me- lhor, não pode nem deve submeter-se a eles, uma vez que obedece a outros prin- cípios, decorrentes da sua situação especí- fica com um objeto, não apenas alvo de investigação e de pesquisa, mas um sujei- to, parceiro num processo de interação que almeja a mudança. Não se pode pensar, pois, como na si- tuação experimental ou de aplicação, no controle das variáveis ou na estabilidade do seu aetting, se no enfoque psicoterápi- co, controle e estabilidade não fazem parte das propriedades desejáveis — se, pelo contrário, devem ser excluídos ou combatidos como "sintomas" de rigidez, de defesa e de resistência de um ou de ambos os protagonistas desta singela rela- ção humana. Assim entendida, a psicologia clínica (e com eia a psieoterapia aqui em foco) não é "positiva" segundo o conceito tradicio- nal (e positivista) de ciência. Levando as coisas ao pé da letra — uma vez que as palavras "querem dizer algo" c que a no- ção de "positivo" faz parte de um contex- to histórico que quis extirpar, explicita- mente, o "obscurantismo" do não-positi- vo, isto é, do negativo, pelas célebres "ideias claras c distintas" (leia-se: quan- titativas) de Descartes — a nossa psico- logia clínica logicamente pertencerá a uma "psicologia negativa" (2). O que caracteriza então uma tal psi- cologia negativa, contestada, por não ser científica, cm seu direito de cidadania na 44 45 comunidade ideológica dos cientistas.. . ? Sendo baseada na prálica, será ela neces- sariamente situativa e concreta; referin- do-se à fala, ao diálogo como meio de co- municação e instrumento de trabalho, será ela necessariamente dialética; focali- zando as experiências passadas da pessoa, do "sujeito" pedindo auxílio, será ela ne- cessariamente histórica; enfatizando o ca- ráter humano da problemática em ques- tão, será ela necessariamente ligada às ciências do homem; investigando as es- truturas do tornar-se homem e dos trope- ços que neste processo o acometem, será ela universal em suas extrapolações teó- ricas, à condição que estas sejam proces- sadas com rigor e pertinência. Quanto ao conteúdo desta "psicologia negativa", a ser recriada sempre, embora antiga como a sabedoria humana, farão parte dela todas aquelas experiências ne- gativas que o homem está sofrendo consi- go mesmo e com os outros, ligadas à sua situação existencial, ao drama de ser "jo- gado no universo", numa derrelição sem fim. Pertencem a estas experiências a an- gústia, existencial ou situativa, a agressi- vidade e destrutividade humanas, a psico- patologia de cada um, micro ou macroscó- pica; a mortalidade, finalmente, ou seja, o espectro da morte, inelutável na sua certeza objetiva e absoluta, perseguindo o homem como única certeza não-científíca, acerca da qual não lhe resta dúvida de quanto quer fugir dela. De maneira mais ampla, fazem parte destas experiências negativas iodos os fe- nómenos irracionais, nos quais se incluem o amor, a sexualidade, a afcíividade, o sonho, o desejo e a culpa — experiências banidas dos laboratórios da ciência posi- tiva. Elas se infiltram cm nossa consciên- cia, fazem irrupção em nosso comporta- mento, oriundos de um "outro lugar" (como disse Fechner a respeito do sonho), de uma "cena alheia", ao mesmo tempo inquietante e familiar (isto é, subjetiva), exercendo um efeito subversivo sobre as nossas certezas aparentemente bem orde- nadas . . . Todos estes aspectos "irracionais", pre- sentes na mais cotidiana conduta huma- na, não são tratados pela "psicologia geral e experimental". Porém, eles não de- vem ser negados ou evitados pela fuga para o laboratório e suas certezas acon- chegantes, nem pela prioridade intransi- gente atribuída ao estudo do "homem ge- ral, adulto e civilizado", nem pela prima- zia reclamada para o estudo de traços parciais ou ultradetalhados do seu com- portamento. Ao lado desta psicologia ge- ral, cabe pois uma psicologia concreta e, em particular, clínica, cuja elaboração urge, visto a amplidão e a permanência dos conflitos humanos — presentes inal- teradamente apesar de todo o "progresso da ciência". Esta psicologia concreta, longe de pre- tender alcançar a abstração, aceita a im- plicação do psicólogo ou do psicotera- peuta nas interações múltiplas com o seu objeto que, precisamente, não é um objeto, mas um sujeito, a ser apreendido, estudado e tratado na sua singularidade subjetiva. Esta subjetividade, tão bem en- fatizada por Binswangcr, não apresenta um déficit, uma fraqueza da abordagem psicológica aqui preconizada, mas uma riqueza na investigação de fenómenos hu- manos de alta relevância. Como já frisa- mos, esta psicologia será concretae uni- versal ao mesmo tempo, st' conseguir apreender c articular entre si elementos significantes de uma tal qualidade e en- vergadura que revelem os alicerces da es- truturação psíquica do homem, a um nível transindividual e propriamente an- uo pológico. Uma tal abordagem, sem dúvida, não permitirá verificações empíricas diretas ou "positivas", mas nem por isso será ne- cessariamente incontrolável, selvagem, es- peculativa ou não-científica. Para executar este projeto, será preciso basear-se cm cri- térios próprios de cientificidade, diferen- ics daqueles das ciências exalas — o que não quer dizer que sejam por isso menos rigorosos, sendo que o critério de exaíidão (isto é, de quantificação e metrificação) não é o único critério científico. Qualquer sistema com pretensões de cientificidade se valida não pelo aspecto da exatidão, mas pela coerência lógica das suas propo- sições e hipóteses teóricas, o que é um problema não quantitativo, mas episte- mológico. Esboçadas estas considerações gerais sobre a necessidade de discutir a questão da cientificidade também a nível da psi- cologia clínica, bem como de proceder à sua elaboração teórica, faz-se mister en- contrar critérios capazes de nortear este empreendimento. De fato, a tentação pode ser grande — e não são poucas as orientações ou "escolas" que sucumbem a ela — de desistir da reflexão teórica rigorosa, uma vez que não adianta, diante da especificidade do objeto, a relação psicoterápica, recorrer aos critérios tradi- cionais da ciência. Em particular, não adianta recorrer ao sacrossanto critério da quantificação, se se quer apreender o que de subjetivo, de inconsciente, de a\e- tivo ou de irracional participa na intera- ção entre terapeuta e paciente, ou até mesmo a constitui estruturalmente, se nós a considerarmos além da sua aparência observável. Não obstante, empenham-se muitos au- tores hoje em dia para chegar a uma ava- liação quantitativa daquilo que "se passa" numa sessão de psícoterapia, ou ainda, dos efeitos supostos que a inleração cons- tatada produz. Não nos referimos aqui a estes esforços em detalhe, empreendidos sobretudo na escola rogeriana(3) e na es- cola que se baseia na teoria da comunica- ção(4); em pesquisas sobre a interação psicoterápica, é sem dúvida possível obter resultados estatísticos interessantes, mas estes se situarão inevitavelmente a nível da consciência e da racionalidade — onde os elementos e processos qualitativos já estão bastante complexos — o que nos pa- rece insuficiente para levar em conta a globalidade e a complexidade do psiquis- mo humano. Por outro lado, a insuficiência da abor- dagem científica tradicional não deve ser- vir de pretexto para abrir mão, simples- mente, do esforço reflexivo: significaria abdicar da responsabilidade ética pela ação psicoterápica, tanto ao nível indivi- dual quanto ao nível comunitário, e en- tregar-se a uma perigosa fantasmatização ideológica. Conquanto nenhuma reflexão teórica é capaz de eliminar a influência ideoló- gica — presente, no seu sentido mais am- plo, em todos os empreendimentos huma- nos — compete, tanto ao cientista quanto ao prático, ficarem vigilantes a este res- peito, para diminuir ao máximo aquela presença imponderada. Ela facilmente se torna distorcedora dos verdadeiros obje- tivos, minando sub-repticiamente as posi- ções éticas declaradas e abrindo as por- tas a situações clínicas falaciosas e irre- flctídas, uma vez que a formação mínima do profissional é, em psicologia, muito lacunária e de difícil controle, apesar das 46 47 lindemos aqui, tão-somente, mostrar a preocupação com a fundamentação cien- tífica do novo método psicotcrapêutico, descoberto acidentalmente por Breuer e desenvolvido por Freud. É nesta mesma página, aliás, que o novo procedimento é resumido de modo singular e conciso: trata-se simplesmente de "dar palavras ao afeto" (reprimido) — em que consiste, su- mariamente, todo o segredo da psicote- rapia, mesmo se a referência concerne ainda ao modelo da neurose traumática. O problema, no entanto, é de saber como chegar lá, como proceder para que isto se produza, em benefício do paciente e da sua libertação interna. Sem entrar muito em detalhes, pare- ce-nos interessante seguir um momento a apresentação que Freud faz do seu novo método. Como base da sua reflexão teó- rica, Freud situa a noção de defesa e, por- tanto, de conflito: a intervenção terapêu- tica consiste num esforço, num "traba- lho psíquico" que tem que opor-se à "força psíquica" do paciente, força esta que se opõe à rememoração e, por conf.e- guinte, à resolução do conflito. O modelo de Freud, de chofre, é emi- nentemente dinâmico: o psicoterapeuta intervém num "jogo de forças" no qual tem que tomar posição em favor da ideia ou representação reprimida (não se fala ainda de recalque), contra o Eu do pa- ciente. Este, em consequência da repro- vação do conteúdo temático da represen- tação, a relega a um lugar "fora" da cons- ciência e da memória disponível. Neste "lugar" —• que pouco depois Freud cha- mará de inconsciente — a representação continua ativa, exercendo um efeito palo- gênico devido a sua pressão constante sobre o psiquismo consciente da pessoa. Destarte, o não-saber do histérico cor- responde mais a um "não-querer-saber", mas com a ressalva de que este não-que- rer não se impõe de maneira toíalmente consciente. A tarefa do psicoterapeuta consiste, na formulação de Freud, em "superar a resistência à associação pelo trabalho psíquico", sendo que a própria terapia corresponde au "caminho até a re- presentação patogênica". À maneira de um quebra-cabeça, cabe, pois, ao psico- terapeuta, recompor a "organização su- posta" ao material patogénico, num ver- dadeiro "jogo de paciência" que se torna muito demorado pela impossibilidade de "peneirar diretameníe até o núcleo da or- ganização patogênica". Além da insistência sobre o aspecto di- nâmico, percebemos, pois, através das comparações que Freud emprega, a alu- são a um fator lúdico: o trabalho psico- terapéutico é uma atividade humana comparável a um jogo (em um texto pos- terior, Freud chega a comparar a própria psicanálise com um jogo de xadrez) (8), com regras complexas cuja aplicação re- quer paciência, dosagem e perspicácia. Ao lado do aspecto lúdico, este "jogo" contém um outro que podemos chamar de cognitivo: várias vezes aparecem no- ções como "inteligência inconsciente", "pensamento inconsciente", "fio lógico", coerência, sistema. . ,, além da referência contínua à importância da linguagem, ou seja, ã Iransposição em palavras, à verba- lização dos conteúdos mentais "reprimi- dos". Todas estas formulações ocupam um lugar central e demonstram um inte- resse teórico particularmente nítido. Quanto aos meios de que o psicotera- peuta pode dispor para superar as tena- zes resislências do paciente, são eles mui- to simples: "quase todos aqueles pelos quais um homem exerce em geral um efeito psíquico sobre um outro". Nada pois de artefatos, de truques, de forças extraordinárias ou mágicas, mas um tra- balho que se situa ao nível de interações psíquicas que são simplesmente humanas —- ideia que já encontramos acima, apre- sentando a concepção de Binswanger. O interesse pela fundamentação cien- tífica, manifestado por Freud já neste texto precoce, assinala-se ainda em dois outros trechos. Num primeiro, frisa que nem sempre é possível "encerrar a ativi- dade psicoterápica em fórmulas"; isto tornar-se-ia particularmente difícil quan- do se tratasse de convencer o paciente a abandonar ou trocar os seus motivos de defesa, depois do psicoterapeuta os ter "adivinhado". Percebe-se, no entanto, que a dificuldade mencionada por Freud se deve a uma teorização insuficiente da transferência e do seu manejo — muito embora já a aponte, mas de modo mais descritivo do que instrumental, usando os termos, por exemplo, "vinculação er- rónea" ou mésalliance; não pode conce- ber a mudança psicoterápica sem recor- rer ao modelo da sugestão, a atitudes ex- plicativas ou ate paternalistas. . . Não obstante, é nítido queFreud en- trevê a "transformação em fórmulas" como um ideal desejável para uma abor- dagem científica, o que não deixa de con- figurar um presságio de tentativas poste- riores, notadamente estruturalistas, de formalizar os processos psíquicos e psico- terápicos. Finalizando, Freud toca aí no proble- ma da compreensão da i ale ração entre psiquismo consciente e inconsciente, a respeito de suposições acerca do estado do material patogénico antes da análise. A seu ver, é impossível dizer algo de coe- rente ou de pertinente sobre estes esta- dos, "antes de ter clareado, aprofunda- danente, as c ncepçóes psicológicas de ba;e, em particular sobre a natureza da consciência". Com esta colocação, parece-nos estipu- lada a necessidade de uma teoria abran- gente do psiquismo humano, teoria essa que Freud se esforçava por elaborar du- rante muitos anos, sem que chegasse, contudo, a uma formulação definitiva. Porém, o que nos interessa aqui é que desde o início, vislumbrava esta necessi- dade, e isto precisamente no que tange à compreensão dos processos psicoterãpi- cos: sem dispor, como base, de uma teo- ria geral do psiquismo, não será possível entender o que se passa numa psicotera- pia, nem o que fundamenta e estrutura os processos psíquicos normais e/ou palo- Iógicos do homem. Não existe até hoje nenhuma teoria abrangente do psiquismo humano, na qual seria possível basear-se para atingir o nosso objetivo: delinear o campo psicote- rápico. Nem Freud, nem a psicanálise pós-freudiana, nem outras abordagens lo- graram lançar mão de uma teoria geral, aceitável como "provisoriamente definiti- va" pela comunidade dos cientistas psi- cólogos. O que existe, entrementes — e com que podemos e devemos contar — são os diversos modelos teóricos, surgi- dos em determinados momentos da his- tória da psicologia e que hoje coexistem, embora, de fato, nem sempre pacifica- mente. . . Fm particular, estamos em presença de três modelos teóricos, de concepções mui- to diferentes e de alguma forma comple- mentares, que respondem a exigências mí- nimas de cientificidade, pelos seus proce- dimentos, premissas, critérios e objetivos. 50 Todos os três foram elaborados fora do campo médico e psiquiátrico, embora mantendo certos vínculos com ele: o mo- delo behaviorista, baseado no conceito da aprendizagem e no esquema estímulo- -resposta; o modelo da comunicação, re- ferindo-se à teoria geral dos sistemas, e o modelo psicanalítico, baseado no conceito do inconsciente e na estruturação que este impõe ao psiquismo humano. Não cabe esmiuçar aqui estes três mo- delos; basta citá-los para que se Lenha uma ideia geral sobre os modelos básicos que orientam a prática psícolcrápica ho- dierna bera como a reflexão que esta ins- pira. Pessoalmente, já deixamos clara nossa preferência pelo modelo psicanalí- tico •— ou, de maneira mais geral, "psi- codinámíco". Trata-se aí, é óbvio, de uma limitação arbitrária, devida a uma opção pessoal que assumimos; porém, esta se sustenta por uma razão simples: a (eoría psicanalítica é a única das três teorias ci- ladas que £i? origina diretamente na prá- tica clínica. Com efeilo, foi a parlir da sua expe- riência clínica que Freud a elaborou, e é com referência permanente àquela, que a reformulava sem parar. Por esta razão, ela se apresenta, ao nosso ver, como a teo- ria mais adequada para dar conta dos processos psicoterápicos, ou seja, daqui- lo que se passa, concretamente, entre os dois protagonistas da situação psicoterá- pica. Como a psicanálise não nasceu em laboratórios experimentais, nem toma empresíado os seus conceitos ou esque- mas de outros campos epistèmicos (ou se o faz, o faz de modo metafórico, isto é, transfigurando o seu alcance), ela não 0, portanto, uma "aplicação" de conheeí- mentos obtidos em searas alheias; ela de- monstra pela sua própria estruturação in- terna, uma congenialidade com o campo a delinear. Neste sentido, o modelo psicanalítico representa o nosso horizonte teórico, mas isto apenas em termos gerais, como refe- rência que possa nortear a nossa investi- gação, sem que seja a nossa intenção discutir conceitos ou concepções psícana- líticos em detalhe, nem querer "apli- cá-los" diretamente ao campo psicote- rápico. Este, como campo da atuação profis- sional do psicolerapeuta, poderá benefi- eíar-se da contribuição metodológica e re- flexiva que o modelo psicanalítico ofe- rece, em particular quando se trata de analisá-lo com respeito às incidências an- tropológicas e psicológicas "negativas" que o caracterizam. É o que já iniciamos, tanto ao nível do desenvolvimento da te- mática dos capítulos anteriores, quanto pela referência a Freud no que tange às suas ideias sobre a psicoterapia da histe- ria. Se aquele trabalho de Freud repre- senta o início da reflexão científica (iatQ é, teórica) sobre a atividade do psicote- rapeuta, ele pode também ser considera- do como base possível da nossa investi- gação, se bem que es!a seja mais ampla e mais concreta. Não acreditamos, portanto, ser possí- vel proceder à elaboração de uma doutri- na geral da psicoterapia: as diversas abordagens são diferentes demais, as po- sições e posturas dos teóricos demasiada- mente influenciadas por elementos ideo- lógicos e subjetivos, para que seja possí- vel chegar-se a uma unificação. Contudo, a multiplicidade de modelos, de tipos de terapia e de concepções do homem não contém aspectos apenas negativos; indica também a riqueza e a complexidade do fenómeno humano e da sua abordagem pela psicoterapia. Como já frisamos acima, isto, no en- lanlo, não quer dizer que se deva acolher às cegas tudo aquilo que hoje em dia se ;>presenta como psicoterapêutico, nem que as atitudes ecléticas sejam as mais apro- priadas ou as mais prometedoras para os pacientes: para que uma psicoterapia me- reça este nome, ela lem que passar pelo crivo da reflexão teórica e da avaliação científica, obedecendo a critérios espe- cíficos adaptados ao seu objeto. Somente assim será possível aproveitar a riqueza e a complementariedadc das diversas abordagens, respeitando as diferenças e os esforços de outros profissionais para abrir novos caminhos. No que diz respeito ao modelo psica- nalítico que norteia este nosso delinea- mento, cabe uma última afinação. Como salientamos, Freud pode ser considerado não somente fundador da psicanálise, mas lambem pioneiro na investigação leórica da psicoterapia. No decorrer da "evolu- ção" da psicanálise, todavia, o espírito pioneiro de Freud chegou a se perder cada vez mais. Paralelamente às conces- sões ao modelo médico c às necessidades terapêuticas da sociedade — sobretudo nítidas na vertente americana da psicaná- lise, na ego-psychology e na "psiquiatria dinâmica" — desenvolveu-se um dogma- tismo oprimente que pesava muito {c con- tinua a pesar) sobre o interesse por outras formas de psicoterapia, bem como sobre a própria psicanálise. Preocupadas mais cm manter uma suposta "pureza doutri- nal" (c com ela, quem sabe, um monopó- lio de mercado), na qual o próprio Freud nunca tinha pensado, as gerações poste- riores de psicanalistas afincaram-se em elaborar sistematizações mais abrangen- tes, em propor novas classificações, es- quemas e conceitos que, de fato, alarga- ram o campo psicanalítico, mas o priva- ram de forças mais imaginativas e mais criativas, que poderiam, na esteira de Freud, ter proporcionado uma renovação acurada da sua obra. Não é por acaso que a obra de Lacan, visando uma tal renovação, desenvolveu-se à margem des- ia psicanálise "oficial". .. Dianlc da esterilidade da psicanálise assim institucionalizada e "adestrada", anunciada como herdeira de Freud mas desvirtuada da sua intenção originária e fundadora, as reações não se fizeram es- perar e são fáceis de compreender. Elas vão da rejeição pura e simples, como no caso de um Eysenck(9), por eexmplo, a aceitação parcial ou à transformação de determinados elementos em peças-mestres de novas doutrinas. Nestas, o conjunto do arcabouço teóri- co de Freud e o seu relativo equilíbrio são abandonados, em benefíciode ele- mentos que podem ser importantes, mus que, na psicanálise, eram subordinados à concepção global do funcionamento da alma; isolados deste contexto que lhes d;i sentido e coerência, transformam-se facil- mente cm hipertrofias provocando visões (e atuações) unilaterais, em detrimento da reflexão teórica rigorosa c do respeito à unidade psicossomática do homem c ã complexidade da sua existência. Isto aconteceu, ao nosso ver, com Bins- wanger, como já indicamos, e num senti- do semelhante com |ung, Boss c outros, que focalizaram mais o Sado espiritual, esquecendo-se do pulsional e da sua inci- dência no inconsciente. Do lado oposto, assistimos à ênfase dada por Reich e ou- tros ao biológico, por ]anov, Pcrls, Mo- reno c outros à reação catártica, pelos culturalistas à influência social e aos patterns culturais. . . Seria possível pro- longar esta enumeração c apresentar a longa Hsla de "novas" psicoterapias que se referem em algum aspecto à psicaná- lise, mas não é essa a nossa intenção. Bas- ta esta alusão à evolução da psicanálise, aos problemas que ela suscita cm conse- quência da sua falta de rigor e da sua di- fusão ideológica, bem como à sua absor- ção filtrada por ou iras escolas de psicoterapia, nem sempre conscientes ou preocupadas em esclarecer as suas raízes, empréstimos e implicações; basta ter apre- sentado aqui esta situação geral, para po- dermos nos situar, nos definir e proceder agora ã investigação teórica preconizada. 3.3. A fundamentação teórica e os manuais de psicoterapia Acreditamos ter insistido suficiente- mente sobre a importância e o caráter im- prescindível da fundamentação teórica da prática psicoterãpica. Porém, folheando monografias ou manuais sobre psicotera- pia, deparamo-nos com a ausência quase que total de uma reflexão teórica explíci- ta. Quando muito, encontramos referên- cias teóricas a determinados modelos ou, mais frequentes, alusões incidentais aos arcabouços leóricos que sustentam as di- versas técnicas. O questionamento das in- cidências epistcmológicas e antropológi- cas, a serem apreendidas precisamente através da mais rigorosa fundamentação possível das premissas desta prática, sur- preendentemente muitas vezes faz falta. Ao nosso ver, temos aí um índice de como são subestimadas a necessidade e a importância desta reflexão teórica — B como, simetricamente, se sobrevaloríza o aspecto técnico da atuação profissional do psicoterapeuta. Vale a pena examinarmos alguns dos grandes manuais de psicoterapia ou de psicologia clínica que, pela suma das in- formações e pelas contribuições dos mais variados autores, são sem dúvida repre- sentativos do pensamento c das tendên- cias atuais que norteiam a clínica psíco- terápica. Em 1965, foi publicado o Handbook of Clinica! Psychology, sob a coordenação de B. B. Wolman(lO). O volume, de mais de 1.500 páginas, conta com a colabora- ção de 61 profissionais, especializados nas diversas áreas psieoterápicas. Na introdução, o coordenador apresen- ta os diversos objetivos que regiam a ela- boração da obra; quanto ao nosso propó- sito, define o seguinte objetivo: "familia- rizar os psicólogos clínicos e profissionais afins com o vasto campo de pesquisa, ex- perimentação, leórica e prática da psico- logia clínica"; quanto aos objetivos mais pragmáticos e éticos, enfatiza: "apresen- tar a profissão do psicólogo clínico e de- monstrar sua vitalidade, sua vigorosa e eficiente busca da verdade científica c sua boa vontade c capacidade de ajudar a quem precisa de auxílio destes profis- sionais". Aparecem, portanto, aí noções tais como "campo de pesquisa", "experimen- tação", "teoria", ou ainda "busca da ver- dade científica", que tesfemunham o inte- resse pelos aspectes epistemológicos da prática psicolerápica. E, com efeito, no corpo do livro, a segunda parte é dedi- cada aos "Fundamentos teóricos da psi- cologia clínica". Em dez capítulos, são tratadas as diversas disciplinas que estão contribuindo para o entendimento das "perturbações mentais" e suas causas. São discutidas, sucessivamente, a genética, a neurologia, a bioquímica, a sociologia, a antropologia, a teoria da aprendizagem, as teorias comportamentais e de persona- lidade, a psicanálise c as suas diversas escolas. Porém, não se trata aí, realmente, de uma reflexão epistemológica e antropoló- gica sobre a fundamentação teórica da prática psicoterápica; as diversas disci- plinas "fundamentadoras" ficam justapos- tas e não são consideradas numa perspec- tiva integradora, ficando, portanto, "es- Iranbas" ao campo psicoterápico. Mas será que a fundamentação teórica de uma determinada prática pode processar-se a partir de outros campos epistèmicos de investigação e de saber . . . ? Não será ne- cessário que esta reflexão se desenvolva, pelo menos em parte, dentro do próprio campo de atuação, em congenialidade com as características do seu objeto: a intcraçâo humana. . .? 1'arecc-nos que esta preocupação, tão fundamental, está ausente nesta obra vo- lumosa, no resto muito bem concebida. Talvez seja esta ausência uma consequên- cia da linha metodológica ou científica adotada e apresentada na primeira parte do volume, "Métodos c pesquisa em psi- cologia clínica", pelo que se vê que a questão da metodologia é colocada antes da questão da fundamentação teórica. Mas não é que esta determina em grande parte aquela e que é tão-somente a par- tir do delineamento teórico de um objeto de estudo que métodos possam ser elabo- rados para a sua investigação? A relação circular que existe entre definição do objeto, método, prática e teoria fica, pois, ao nosso ver, pouco valorizada na presen- te obra. Uma outra obra prestigiosa, embora não coletiva, é The Technique of Psycho- thempy, da autoria de L. R. Wolberg( 11). Na segunda edição, de 1967 (l.a edição em 1954), os dois volumes ultrapassam 1.400 páginas. O livro apresenta uma visão —• muito bem elaborada e desenvol- vida, por sinal — da psicoterapia, a par- tir das premissas da psiquiatria dinâmi- ca americana, fundada, como se sabe, a partir de uma recepção transformadora das principais ideias de Freud acerca do funcionamento do psiquismo humano. O título, no entanto, indica já clara- mente que a obra se restringe aos aspec- tos técnicos da psicoterapia; mesmo no primeiro grande capítulo, de mais de 400 páginas (The scope, types and general principies of psychotherapy), não encon- tramos, apesar de muitas considerações interessantes e aprofundadas, nenhuma referência ã fundamentação teórica deita prática — prática singela que o autor des- creve muito bem, propondo diferenciu- ções pertinentes quanto a outras relações psicológicas. Mencionamos ainda que o enfoque da obra c predominantemente médico e psiquiátrico, embora não che- gue a contestar a presença de psicólogos clínicos no campo psicoterápico. Em 1971, foi publicado o Handbook of Psychotherapy and Behavior Change, coordenado por Bergin Sc Garfield(12). Contando com a colaboração de 32 auto- res, a obra apresenta (apesar do sub- título An Empirical Anaíysis) uma pri- meira parte sobre Theory, Methodology and Experimentation. Contudo, nos seis capítulos desta parte introdutória não en- contramos, novamente, nenhuma elabora- ção teórica criteriosa; o primeiro capitu-- lo, Some Historical and Conceptual Pers- pectives on Psychotherapy and Behavior 54 55 Changt, introduz considerações gerais •obra a evolução da psícoterapia cm nos- so século, mas limita-se, em seguida, a discutir táticas e técnicas de procedimen- to. .. Como o título deixa supor, o en- foque é mais psicológico do que psiquiá- trico, mas aqui ainda, as preocupações de operacionalização e de aplicação pragmá- tica tampouco deixam espaço para ques- Lionamenío epis temo lógicos. No âmbito do idioma alemão, cabe mencionar a sistematização tentada em Klinische Psychologie, coordenado por Schraml & Baumann( 13). O primei- ro volume, "Teoria e Prática", foi reedi- tado, ampliado, em 1975 (1.* ed. em 1970) e conta com 30 colaboradores; o segundo volume, intitulado "Métodos, Resultados e Problemasde Pesquisa" data de 1974, com 26 autores. Apesar da promessa contida no título do primeiro volume, encontramos alusões apenas oca- sionais à problemática da fundamentação teórica. Na introdução dos editores, en- contramos uma preocupação cm definir o campo da psicologia clinica, mas eia é considerada simplesmente como uma aplicação de "conhecimentos, técnicas e métodos das disciplinas básicas da psico- logia e das suas disciplinas vizinhas", tais como psicologia profunda, sociologia e pedagogia social. Não se questiona pois, como estes co- nhecimentos, técnicas e métodos são adquiridos e o que eles implicam quanto à imagem do ser humano a ser tratado; o enfoque é predominantemeníe dinâmico e social, mas não antropológico — lacuna importante, ao nosso ver, desta obra que, de resto, se destaca pela sua linha mais psicossocial do que psiquiátrica. Cabe mencionar em seguida o Hand- buch der I'sychohgie(l4), obra monu- mental elaborada segundo as melhores tradições da psicologia alemã, O volume 8, editado em dois livros (1977 e 1978), totaliza mais de 3.300 páginas c conta com contribuições de mais de 100 auto- res, o que nos dá uma ideia do seu al- cance. Sendo muito bem concebida e muito complexa, não nos é possível ofe- recer aqui uma visão global da obra; po- rém, encontramos enfim algo que corres- ponde às nossas preocupações de funda- mentação: na introdução ("História, Objcto, Fundamentos da Psicologia Clí- nica"), de autoria do coordenador geral L. J, Pongratz, confrontamo-nos, em 50 páginas, não somente com uma visão de- talhada da história da psicologia clínica desde Rousscau, Darwin e Kracpelin, mas ainda com um esforço de definir o que é a psicologia clínica c qual o objeto específico sobre o qual age ou intervém. Na última parte desta introdução, en- contramos mesmo "Prolegômcnos antro- pológicos" da psicologia clínica, onde se discutem as diversas imagens do homem, implícitas nos diversos modelos que nor- teiam as atividades do psicólogo clínico. Referência se faz à célebre controvérsia entre Skinner e Rogers acerca do homem como sendo controlado ou autónomo, a uma comparação realizada por Ford & Urhan entre as concepções do "homem- -robô" e do "homem-piloto", e a questão de saber se o ser humano é essencialmen- te ativo ou reativo (o que implica em pressupostos cosmológicos e epistcmoló- gicos e propriamente numa "cosmo- visão"). Citamos um trecho da conclusão do autor deste capítulo: "Conceitos antropo- lógicos significam muito para a ciência; eles determinam de modo definitivo teo- ria, terminologia e metodologia. Do pon- Io de vista da psicologia clínica, eles têm consequências para o objetivo de uma te- rapia e para a técnica do tratamento. Os modelos do homem robô, reativo e con- trolado se adaptam mais ao objetivo tera- pêutico de eliminação de sintomas e a uma intervenção terapêutica preponderan- temente ativa. Ao contrário, os modelos do homem 'piloto', ativo e autónomo, evocam uma atitude terapêutica visando descobrir a estruturação própria ao in- divíduo e leva ao objetivo da auto- rcalização". Seguem-se as diversas partes da obra, a primeira dedicada a sintomatolo- gia, a segunda aos "Fundamentos teó- ricos gerais" c a terceira, aos "Funda- mentos teóricos específicos". Percebe-se, pois, que a questão da fundamentação teórica recebe a devida atenção: desen- volvida em mais de 500 páginas, ela con- tém, entre muitas outras contribuições, um capítulo específico sobre "Fundamen- tos epistemológicos", onde são discutidas as relações entre teoria, pesquisa e prá- tica, os problemas de validação, de for- mação dos conceitos, do planejamento, bem como questões ét icas. . . Se todos estes aspectos não são tratados de manei- ra aprofundada, eles pelo menos são men- cionados no devido contexto, de sorte que a sensibilização aos "prolegómenos antropológicos, filosóficos e epistemoló- gicos" da prática clínica se torna pos- sível. No âmbito da cultura francesa, men- cionamos uma única obra, a Propédeuti- que d'une Psychothémpte (1976), de au- toria de P. B. Schncidcr(15), com uma série de colaboradores. Obra sucinta, de apenas 350 páginas, ela, não obstante, loca às questões fundamentais não mais da psicologia clínica em geral, mas da psicoterapia. "Propedêutica", no sentido de introdução, de conhecimentos prelimi- nares ao exercício da disciplina em pauta, ela corresponde em muito às nossas preo- cupações de fundamentar a prática psico- terápica — com uma ressalva importante: não podemos concordar com o enfoque exclusivamente médico ou psiquiátrico do autor principal; este enfoque nos parece por demais antiquado, visto a evolução da psicologia clínica desde a introdução da psicanálise c as aplicações da psicolo- gia comportamental; cabe, hoje em dia, ressaltar, em primeiro lugar, as diferen- ças fundamentais entre o discurso médico e o discurso psicanalítico, bem como as repercussões deste último sabre a prática psicoterápica em geral. Voltaremos, abaixo, a esta diferença capital. Por enquanto, mencionamos que a primeira parte desta "Propedêutica", "Alguns problemas teóricos", contém de- senvolvimentos interessantes e aprofun- dados, sobretudo no primeiro capítulo, "Esboço de uma teoria geral da psicote- rapia", e no capítulo sobre a "Relação psicoterápica". dos quais veremos algu- mas ideias adiante. Finalizando esta revisão de grandes manuais de psicolerapia ou de psicologia clínica, cabe salientar que não temos co- nhecimento da existência de tais obras no âmbito brasileiro. Convém referir-se, no entanto, ao livro de H. J. Fiorini, Teoria e Técnica de Psicoterapias (1976 trad. do espanhol) (16). O título, porem, pela sua generalidade engana: trata-se essen- cialmente de um trabalho sobre a psico- terapia breve, com algumas considera- ções mais amplas. Estas se desenvolvem segundo um enfoque que procura consti- tuir "uma teoria das técnicas de psicote- 56 57 rapia em que esteja incluída uma conside- ração crítica de algumas de suas bases ideológicas" — projeto bem concebido pelas suas intenções, mas cuja execução não faz justiça à pretensão anunciada. 3.4. A definição do campo psicoterápico Pretender definir o campo da atuação psicoterápica corresponde a definir (ou a tentar definir) o que é e onde atua a psi- coterapia. No segundo capítulo, confron- tamo-nos com a análise fcnomenológica que Binswanger fez da palavra psicotera- pia. Reencontraremos os princípios desta análise mais adiante (3.7.), procedendo primeiro ao exame de algumas defini- ções propostas por diversos autores. Há, no entanto, autores que omitem definir o campo e a atuação do psicolerapeuta. As- sim, por exemplo, ouve-se que "psicote- rapia é tudo aquilo que um psicotera- peuta profissional faz" (em Strotzka, H.) (17), o que, obviamente, não corres- ponde a uma definição, mas a unia saída pela tangente diante de uma dificuldade que caberia enfrentar. Bem é verdade que nenhuma ciência começa por uma definição clara do seu campo ou do seu objeto, e que a elabo- ração teórica se processa ao longo de todo um percurso de pesquisa e de re- flexão; não obstante, quando se trata de uma prática que envolve outrem, a exi- gência de pensar sobre esta atividade e as suas implicações se faz, por razões tanto éticas quanto científicas, particularmente premente. Wolberg (1967) (11) define psicotera- pia como "o tratamento de problemas de natureza emocional mediante meios psi- cológicos"; insiste em que, nela, "uma pessoa formada estabelece cieliberada- mente uma relação profissional com o pa- ciente", com os objetivos " 1 . " de elimi- nar, modificar ou retardar os sintomas existentes, 2." de influenciar modos per- turbados de comportamento e 3." de pro- mover um crescimento e uma evolução positiva da personalidade". Percebemos que o autor, embora psi- quiatra, se situa numa linha mais psico- lógica do que médica: não há, em sua definição, referência à noção de doença; o psicoterapeuta não é um médico, mas "'uma pessoa formada" (ou "treinada") e os objetivos aludem, além da eliminação de sintomas, às noçõesde comportamen- to e de personalidade, como noções e objelívos claramente não médicos. Em re- lação a estes três objetivos, o autor dis- tingue, de fato, em seguida, entre três tipos de psicoterapia: aqueles que visam influenciar os sintomas, o comportamen- to ou as atitudes, e a personalidade pro- funda. Porém, o portador dos "problemas de natureza emocional" estranhamente está ausente, mas reaparece depois sob a for- ma do "paciente" com o qual se institui uma "relação profissional"... Com a omissão ou até eliminação da pessoa afe- tada de "problemas emocionais", cabe in- dagar, no entanto, se não se elimina tam- bém o aspecto da subjetividade, do "su- jeito" que carrega estes problemas, com a sua conseguinte transformação em "pa- ciente", isto é, em alguém que, passiva- mente, se submete ao tratamento. . . Voltaremos mais adiante a estas impli- cações. Por enquanto, citamos uma se- gunda definição de psicoterapia, desta vez de Meltzoff & Kornreich (1970) (18). Segundo eles, psicoterapia consiste "na aplicação informada e planejada de téc- nicas que são derivadas de princípios psicoiógicos estabelecidos". Estas técni- cas seriam aplicadas "por pessoas que, pela formação e experiência, se qualifica- ram para isto". Como objetivo da psico- lerapia, os autores estipulam: "apoiar os indivíduos para modificar aquelas carac- terísticas pessoais, como sentimentos, va- lores, atitudes e modos de comportamen- to, que O terapeuta avalia como desa- juste". Aqui também, os autores se situam, de maneira resoluta, numa linha psicológi- ca e, mais precisamente, compor-lamentai. Não é questão da pessoa, nem dos seus desejos, nem da sua motivação para mo- dificar-se: os objetivos a atingir serão fi- xados pelo terapeuta, que determinará o que deve ser considerado como "desajus- tamento" ou "desadaptação". A atitude normativa c direliva deste terapeuta se destaca, pois, com nitidez. Mencionamos uma terceira definição, bem diferente das anteriores. Strotzka (1978) (17) expressa-se assim: "Psicote- rapia é um processo interacional cons- ciente c planejado que visa influenciar, mediante meios psicológicos verbais e averbais, distúrbios de comportamento e estados patológicos que são consensual- mente considerados como necessitando de um tratamento". O autor insiste em que este consenso deverá ocorrer "se possível entre paciente, terapeuta e gru- po de referência"; como meta, estipula que o processo se direciona "para um objetivo definido e elaborado, se possível, em comum (minimização dos sintomas e/ou mudança estrutural da persona- lidade)". Finalmente, estes objetivos seriam al- cançados graças a "técnicas ensináveis e baseadas numa teoria do comportamento normal e patológico", sendo que se preci- sa uma "ligação emocional sólida" para a consecução destas metas. A orientação que se reflete nesta com- plexa definição é psicológica e médica. E nofadamente a ideia de doença que, se não aparece explicitamente no texto, pre- domina nas expressões empregadas: "es- tados patológicos" (ou "mórbidos"), "teo- ria do comportamento normal e patoló- gico". De fato, o autor defende a preser- vação da noção de doença, em oposição a noções psicológicas, como desajusta- mento, para não correr o risco de "re- cair num estádio pré-cicntífíco da psi- quiatria". A posição médica e a insistência sobre as virtudes do "discurso médico" caracte- rizam, pois, esta definição, mesmo se elas se coadunam com uma perspectiva social apreciável, se pensarmos na noção de consenso entre terapeuta, paciente e o gru- po de referencia, como a família ou a comunidade. As três definições analisadas nos pa- recem reflelir três orientações teóricas e clínicas bem diferentes; poderíamos citar outras, mas elas sempre vão correspon- der, de perto ou de longe, a uma destas três linhas de atuação psicoterápica, se- guindo quer uma psicologia de vaga ins- piração psicanalítica, quer uma psicolo- gia comportamcntal ou uma abordagem medico-psiquiátrica. Diante da multiplicidade dos aspectos enfocados nestas definições, percebe-se mais uma vez a complexidade do fenóme- no psicoterapia, a influência das atitudes e opções pessoais dos seus autores (que podemos chamar de ordem ideológica: não há definição neutra.. .) , bem como a necessidade de chegar-se a uma visão 58 59 mais integrada da aluação psicoterápica — no interesse daqueles que a procuram e no interesse, novamente, da sua cienti- ficidade e ética. Em nosso entender, pois a psicolera- pia consiste numa ativiáade clínica, que se desenvolve no campo clínico e traía de problemas clínicos. Isto já decorre da palavra terapia, con- siderada tradicionalmente como aquela parle da medicina que "estuda c aplica os meios adequados para aliviar ou curar os doentes". No enlanlo, pela evolução das disciplinas psicológicas e sociais, bem como pela dificuldade da psiquiatria cUíssica em definir positivamente etiolo- gia, patogênese e nosologia das "entida- des mórbidas", é óbvio, hoje em dia, que não se pode restringir o campo psicote- rápico à aplicação médica. A esse respeito, já vimos acima que os três modelos teóricos predominantes na psic o terapia moderna foram elaborados fora do âmbito psiquiátrico, se não em oposição a ele. Os seus integrantes, na verdade, mais se interessaram em erigir sistemas e classificações nosológicas cor- respondendo ao enfoque orgânico e "científico" da "doença mental" c em de- fender a hegemonia sobre a área, do que em preocupar-se com a investigação da dimensão psíquica do ser humano. Esta foi e continua sendo o apanágio das ciências do homem. È a partir destas que foram desenvolvidos instrumentos de intervenção e de tratamento psicológico. Porém, se destarte elas se afastaram e se diferenciaram cada vez mais do campo médico, quer isto dizer que as suas apli- cações se tornaram necessariamente "não-clínicas". . . ? A resposta a esta quentão dependerá de como nós definimos "clínico". Durante séculos, clínico (significando, etimologi- camente, leito, ao leito, acamado) foi considerado como sinónimo de atuação médica, um pouco como — não pode- mos resistir à tentação de fazer o cotejo — a psique foi considerada sinónimo de consciência e de racionalidade. A partir da psicanálise, no entanto, a noção de psique foi ampliada, incluindo a dimen- são do inconsciente, para grande escân- dalo dos filósofos e outros profissionais do pensamento cartesiano; pela psicaná- lise c pelas teorias de aprendizagem e de comunicação, foi ampliada a noção de clínico, acrescentando às "doenças men- tais" os conflitos, desajustes, transtornos de personalidade, desadaptações e outras dificuldades de ordem psíquica ou social. Mas nem por serem não-médicas, estas dificuldades deixam de ser "clínicas", no sentido de — mesmo sem referência a uma doença ou a um quadro mórbido or- gânico —• implicar um sofrimento que, quando suscita um desejo de mudança e um pedido de ajuda, contém uma neces- sidade de tratamento. Definir assim o clínico como uma di- mensão humana que ultrapassa a medi- cina, englobando o pathos, a interação "pática" entre psiquismo, organismo e ambiente, como sendo aquilo que deter- mina antropologícamente a existência do homem, não quer dizer, em absoluto, que se deva abrir mão de critérios rigorosos para definir esta dimensão. £ noladamen- te o estudo da psicopatologia que se tor- na imprescindível para quem quer, futu- ramente, aluar neste campo clínico hu- mano. Contudo, a psicopatologia não se refere apenas à nosografia psiquiátrica, mas é essencialmente uma disciplina psi- cológica, que estuda e classifica as ííís- junções psíquicas, do mesmo modo que a psicologia geral estuda as suas funções. O campo clínico no qual atua o psíco- terapeuta se define, pois, pelos proble- mas psicopatológicos que nele se en- contram. Esles problemas podem ser entendidos e classificados segundo os critérios mais diversos, inclusive não- -científicos. Mas nisto, um clemenlo- -chave não pode faltar: que eles sejam abordados como problemáticas humanas, necessitando portanto de uma compreen- sãoantropológica, no sentido mais amplo do termo, e de uma referência à imagem do homem (bem como à eosmovisão) que inevitavelmente implicam. Cabe pergunfar-se se a psicopatologia, entendida destarte como uma disciplina básica para a psicoterapía, pode dispen- sar a noção de "doença", e em particular aquela de "doença mental", sem que se caia num empirismo claudicante ou até pragmático, mas sem princípios. Esíe pe- rigo, ao nosso ver, realmente existe, mas acreditamos que ele possa ser contorna- do por uma reflexão rigorosa (v. 3.5). Ademais, o perigo contrário parece-nos pesar ainda mais sobre a prática psicote- rápica, a baber, aquele de "coisificar" a pessoa doente em favor da sua suposta doença (mental) e de levar assim a uma rotulação do paciente, com toda aquela esligmatização social bem conhecida (labeling ejject). Devemos e podemos, portanto, abrir mão, em psicopalologia e psicoterapia, da noção médica cie doença e de doente, em benefício desta pessoa que luta com difi- culdades de ordem psíquica, e sem que isto implique perder rigor e eficácia no seu atendimento. Por conseguinte, não falaremos mais, daqui por diante, de "doentes". Mas co- mo designar então a pessoa que, no cam- po clínico acima definido, está à procura de uma psicoterapia? A palavra ' cliente" é muito comum, hoje em dia, sob a in- fluência da psicologia americana. Ela tem, sem dúvida, uma conotação de consumo ou de marketlng, aproximando-se de "freguês", devido à ênfase implícita ao intercâmbio comercial, obedecendo às leis da demanda e da oferta; no entanto, im- plica também uma opção, uma ação cons- ciente de busca de alguma mudança: se chega a consultar e depois a entrar numa relação psicoterápica qualquer, 6 que o cliente o quer pessoalmente, uma vez que poderia dizer "não" a este seu enga- jamento. O voluntariado deste engajamento, pois — ou ainda, o seu aspecto "liberal" — se destaca bem pelo termo "cliente". Mas vejamos nele mais dois inconvenien- tes. Em primeiro lugar, a referência a uma certa passividade. Apesar da pro- cura deliberada, incluindo uma ação, é o "cliente" que "recebe" algo, em maior ou menor grau de dependência e passivi- dade, do "outro" que "está dando". Im- plica portanto uma prestação de serviço que o cliente "compra" do terapeuta, submetendo-se ao saber e às técnicas deste. . .(19). Em segundo lugar, o recurso a esse ter- mo deve ser considerado, pelo menos im- plicitamente, como uma tentativa de contornar os problemas da patologia psí- quica e os tabus a esta associados. Falan- do-se de cliente, os seus problemas psico- patológicos são negados ou, ao menos, minimizados. De fato, não há dúvida de que, até hoje, o patológico assusta e discrimi- na, tanto mais quanto se trata de "pro- blemas mentais". Sofrer de tais proble- 61 mas é extremamente mal visto, em nossa sociedade, seja tão-som ente sob forma de um "desajuste" ou de uma "desadapta- ção"; falar de "cliente", então, ao invés de "paciente", equivale a contornar este tabu — mas instaura e reafirma, pelo mesmo fato, a bem conhecida segregação entre normal e patológico. Como se o pa- tológico não fizesse parte da existência humana, como se ele pudesse ser evitado, e como se a pessoa que sofre de dificul- dades de ordem psicopatológica, fosse um "menos", um marginal, um excluído da sociedade... Diante deste exorcismo, reafirmamos pois o valor plenamente humano do pa- tológico, conforme o "princípio de cris- tal" acima mencionado, e não tememos a palavra "paciente". Conotações de pas- sividade marcam, aliás, tanto o termo "paciente" quanto o termo "cliente". Com ambos os apelidos, a ação, o agir terapêutico é relegado às mãos do outro, do terapeuta, investido, destarte, de um grande poder e de uma grande responsa- bilidade. No extremo, isto pode significar que o paciente ou cliente se desrespon- sabiliza da sua problemática e da con- duta terapêutica a adotar, e se reme- te inteiramente ao poder terapêutico (ou mágico. . .) do "agente". Deste, ele "re- cebe" ou "sofre" a intervenção, destina- da a pôr fim ou a aliviar os seus acha- ques, sem que tenha que assumir ou, no mínimo, participar no trabalho tera- pêutico. Faz falta portanto um vocábulo mais ativo, como nós o temos cm psicanálise. O parceiro do psicanalista deveras não é o psicanalisado, mas o "analisante", uma vez que ninguém é analisado pelo analis- ta (imagem errónea muito difundida!), mas se analisa, na transferência com e pe- rante este parceiro singular, "diretor" do processo analítico, mas não o seu agente. No que tange ao parceiro do psicotera- peuta, o mais correto então seria falar em "terapeutizante", neologismo, é preciso convir, que não faz sentido. Na falta de um termo mais adequado que traduza a atividade e a responsabili- dade que, em nosso entender, deve fazer parte do processo psicolerápico, damos preferência à palavra "sujeito", que ao menos implica uma participação subjeti- va daquele que se "submete" ao trata- mento. Quanto a cliente ou paciente, pre- ferimos ainda esla última palavra, por- que conota algum sofrimento e se refere mais diretamenle ao campo clínico que tentamos aqui cercear como sendo o cam- po da atuação psicoterápica. Não obstante a nossa recusa em reter as noções de doença e de doente para de- finir este campo, é certo que o sentimen- to de um mal-estar, psíquico ou físico, deve estar presente para que determina- do sujeito se decida a consultar. Este sen- timento pode ate referir-se a uma doen- ça, pode incluir uma convicção de "estar doente" — no caso do paciente psicos- somático, por exemplo. Mas cabe a nós, ao clínico, investigar se se trata de uma doença, isto é, de um achaque orgânico, ou se atrás deste sentimento de "estar doente" se situam problemas não orgâni- cos, isto é, problemas de ordem psíquica ou psicossocial. Ao proceder a esta inves- tigação, poderá ser necessário recorrer a exames complementares, onde o trabalho em equipes interdisciplinares será evi- denlemente de grande valia. Seja como for: sentir-se doente, sen- tir-se mal consigo mesmo ou no relacio- namento com os outros, algum sofrimen- to humano deve estar presente (e deve estar percebido) para que o sujeito, reco- nhecendo-se "paciente" sofrendo de al- gum mal, se decida a recorrer a um tra- balho psicoterápico. Desta forma, ele in- gressará no campo clínico, situar-se-á nele como necessitando de uma ajuda ou de uma intervenção "clínica", isto é, psi- coterápica — e, pelo fato mesmo, distin- guil-Be-á de pessoas que estão à procura de uma ajuda ou intervenção psicológica não-clínica. Com efeito: a psicoterapia, enquanto terapia situada no campo clínico acima definido, dislingue-se da ampla gama de práticas psicológicas não-clínicas. Insistir sobre esta diferença não é desvalorizar ou criticar outras práticas psicológicas, mas simplesmente delinear a atuação das di- versas práticas, uma vez que a confusão das atribuições, competências e objetivos sempre só faz prejudicar o desempenho sério e responsável do profissional. Portanto, há muitas práticas ou técni- cas psicológicas que não são clínicas e que não fazem parte do campo psicote- rápico. Pensamos nos grupos de sensibi- lização ou de encontro, na dinâmica de grupo, nas sessões espíritas, sugestivas ou hipnóticas, nas consultas a cartomantes ou clarividentes, na orientação espiritual, pastoral ou moral, nos objetivos de trei- namento, de aprendizagem, de cresci- mento pessoal, de iniciação religiosa, eso- térica ou mística — todas ações psicoló- gicas interpessoais, onde um agente quer transmitir algo que influencie e modifi- que o outro. Este, à procura de mudança, submete-se aos procedimentos encenados pelo agente e aceita, pelo menos implicita- mente, as premissas de sua atuação, bem como os objetivos almejados ou prome- tidos. Pode até acontecer que estas premis- sas sejam fundamentadas mais ou menos sistematicamente — mas isto não quer di- zer que elas sejam, por isso, psicoterápi- cas, ou se disponham para uma atuação no campo clínico. Assim sendo, a ação psico- lógica do pedagogo, a açãopsicológica do assistente social, do conselheiro conjugal ou do sacerdote, pode basear-se em todo um programa de formação e cm amplos conhecimentos científicos ou pré-científi- cos, mas nem por isso corresponderá a uma ação psicoterápica. Para esla, a refe- rência psicopatológica será decisiva. Com isto, não queremos dizer que um efeito psicoterápico não possa advir por métodos e intervenções que não sejam psi- coterápicos, no sentido próprio da pala- vra. Uma dinâmica de grupo, um grupo de encontro ou uma sessão espirita po- dem perfeitamente alcançar uma mudança comparável a um efeito psicoterápico, mas este efeito será por assim dizer aci- dental, pois não decorre de uma ação executada ad hoc e nem sempre foi pro- curado propositadamente. Este propósito nos parece essencial para definir uma atuação psicolerápica: se a psicoterapia pretende ser reconheci- da como disciplina científica, ela tem que esforçar-se em elaborar uma base teórica, a partir da qual possa justificar os seus conceitos, os seus métodos, objetivos, propósitos e intervenções. Portanto, como já frisamos acima, ela tem que saber o que está fazendo, como e por que o está fazendo. A seriedade científica, a trans- missibilidade e a responsabilidade ética dependerão destes critérios, sem os quais corre-se o perigo de deslizar para o im- 62 63 proviso ou o eclctismo, senão a charla- tanice. Voltaremos abaixo às diversas relações psicológicas e às suas diferenças, distân- cias ou proximidades para com a relação psicoterápica. Esta, repetimos, merece ser considerada num sentido próprio c estri- to, aquele de intervenção planejada e teo- ricamente fundamentada no campo hu- mano das difieuldades psicopatológicas (a serem definidas no próximo capítulo). Neste sentido próprio, pois, pode-se dizer que a psicolerapia, como disciplina cien- tífica, corresponde a uma tentativa de compreender, sistematizar e articular as práticas psicológicas ou psicoterápicas pré-científieas: práticas xamanísticas, es- piritistas, intuitivas, mágicas c outras, com o intento de elaborar teorias e técni- cas metodologicamente verificáveis, per- mitindo uma avaliação criteriosa a partir de práticas milenares. Nesta perspectiva, não se trata de cor- tar os vínculos com as práticas antigas, em favor, por exemplo, de resultados ex- perimentais obtidos em laboratórios; aquelas são reconsideradas à luz de no- vos conceitos e metodologias, com vistas ao seu aprimoramento e a sua operacíona- lização refletida. Ocorre, no entanto, que a distinção entre psicoterapia e outras intervenções psicológicas encontra dificuldades, não somente por causa de efeitos terapêuticos ocasionais, mas em função de definições e delineamentos insuficientes. Isto vaie em particular para o "acon- selhamento", definido em geral de ma- neira bastante nebulosa. Cabe pergun- tar-se até que ponto esta disciplina não foi introduzida no Brasil (por importação do counseling americano) precisamente para contornar as implicações clínicas da prática psicoterápica e para evitar, deste modo, o confronto com o corpo medico — confronto que não deve ser evitado ou contornado artificialmente, mas enfren- tado a partir de um embasamento teóri- co sólido e de uma reflexão rigorosa sobre a prática clínica humana. Neste esforço reflexivo, vale lembrar, será de suma importância lançar mão das diversas contribuições das ciências do ho- mem, referências indispensáveis para che- gar-se a uma compreensão aprofundada do homem "pálico" que todos somos, tra- vando luta sem trégua com dificuldades físicas e psíquicas de todas as espécies, bem como para superar os relentos de se- gregação entre normal e patológico, sem- pre prestes a levantar a cabeça e a infil- trar-se ideologicamente em nossos afos e debates. Neste sentido, a introdução do "acon- selhamento", a cavaío sobre a psicotera- pia e a orientação psicológica(20), cor- responde mais a uma resposta ideológica do que científica, equivalendo ainda, quem sabe, a uma tentativa de apro- priar-se (pscudocícntificameiite) de uma determinada fatia do mercado " p s i " . . . Da definição do campo psícoterápieo como acima esboçada, decorre uma últi- ma consequência: a prática psicoterápica corresponde a uma pratica profissional especializada. Esta será exercida a um ní- vel não somente técnico, assistencial, edu- cacional ou de treinamento, mas clínico, lendo para isso que assumir a contradi- ções do ser humano e as repercussões psicopaíológicas que estas provocam. Necessariamente, uma tal prática exige uma formação profissional aprofundada e contínua, ultrapassando de longe a defi- ciente formação académica de graduação que oferecem as nossas faculdades de psi- cologia. Neste sentido, implica uma for mação de pós-graduação, no sentido amplo; o candidato a psicoterapeuta a realizará segundo a opção teórica ou a li- nha que lhe convém, mas que deveria sempre abarcar toda a gama das ciências do homem, em particular das ciências hu- manas clínicas. 3.5. A definição do material psícoterápieo Depois de ter definido o campo de atuação do psicoterapeuta como sendo o campo clínico, cabe agora perguntar-se qual o material com que se trabalha nes- te campo. Como já frisamos acima, não pode aí tratar-se de "doenças", uma vez que o campo clínico, em nosso enten- der, não se confunde com o campo mé- dico; o maferial, portanto, tem que ser outro — embora é claro que se possa questionar a própria noção de "material", uma vez que em psieoterapia, o ser hu- mano conta como unidade integrada, e não como um "material" qualquer. Vimos no capítulo 2 que Binswanger, criticando a própria palavra psieoterapia, rejeita a ideia de uma "psique" que se- ria consertada mecanicamente, como por um ato de cirurgião: a psieoterapia não se aplica a uma "máquina", mas envol- ve duas pessoas numa interação muito especifica. Nesta interação, a pessoa do "paciente" está presente em sua totali- dade, como um corpo animado, como uma alma encarnada, a serem "tratados" em conjunto, em suas repercussões "psi- cossomáticas" recíprocas. . . Não obstante, parece-nos pertinente fa- lar, especificamente, de um material que é trabalhado, o que, devidamente defi- nido, não implica prejuízo para o sujeito que se engaja na relação psicoterápica. Este material nos é apresentado pelos conflitos que o ser humano vive, inevi- tavelmente, e que, em certas condições, adolam uma dimensão patológica, a sa- ber, quando não chegam a uma resolu- ção "fisiológica". A ideia de conflito merece alguns comentários. A "Psicologia do Confli- to"{2!) corresponde a uma visão do psiquismo humano como essencialmente conflituoso, islo é, dividido. Segundo es- ta visão, o ser humano não dispõe de uma totalidade harmoniosa: dividido, ele c não-idêntico a si mesmo, mas se desenvolve através de oposições dialéti- cas. De fato, a noção de conflito implica um antagonismo entre duas ou mais ins- tâncias ou partes, opondo-se em função de interesses divergentes. Ora, falando- -se de "interesses", torna-se óbvio que nós nos situamos num campo humano que ultrapassa o aspecto meramente so- mático ou orgânico, fazendo intervir os seus componentes psíquicos ou psicosso- ciais. De fato, à luz de dados antropo- lógicos universais, a evolução humana caracteriza-se por crises e por conflitos não somente inevitáveis, mas ainda ne- cessários e estruturanles para o homem. Estas crises c conflitos não representam cm si nada de patológico — pelo con- trário, assinalam as etapas de sua ma- turação e as diferenças que marcam o seu desenvolvimento singular, tanto quan- to a convivência humana. Exemplificaremos brevemente a que di- ferenças e conflitos psíquicos ou psicos- sociais — em suma, antropológicos —, estamos nos referindo. Universalmente, os homens têm de se confrontar, em sua 64 vida, com duas diferenças fundamentais, independentes de qualquer cultura ou época — confronto, aliás, cujas vicissi- tudes transformam esta vida num per- curso histórico, vivido e experimentado subjetivamente. Trata-se das duas dife- renças de geração e de sexo.Com efeito, não há como não encon- trar estas duas diferenças, naturais e inevitáveis não somente no homem, mas em todo ser vivo: nós todos descende- mos de genitores que existiam antes de nós, inserindo-nos num dos dois grupos sexuais que diferenciara os seres vivos. Ao dizer, no entanto, que se trata aí de duas diferenças "naturais" não abar- camos a totalidade, nem o essencial da- quilo que diferencia os seres humanos. Se estas diferenças se limitassem aos as- pectos biológicos da descendência de de- terminados reprodutores e da matrícula sexual anatómica, elas não suscitariam aqueles conflitos que, psicológica e cul- turalmente, deixam marcas "páticas" no ser humano. Mas eis a incidência cultu- ral no desenvolvimento psicossocial do homem: pela interdição do incesto, prin- cípio organizador fundamental da socie- dade humana, as diferenças de geração e de sexo se transformam em problemá- ticas psicológicas, em encruzilhadas con- flitantes que temos que atravessar e re- solver. Esta travessia, pode-se dizer, represen- ta o processo de humanização da crian- ça, tarefa complicada cuja resolução compete a cada um de nós — resolu- ção, no entanto, que está longe de se passar tranquilamente e sem conflitos, e que sempre deixa traços na persona- lidade que aos poucos se forma. Percebe-se que é o próprio "Complexo de Édipo" que nesta encruzilhada se es- boça c se cristaliza: a "resolução do Édipo" dependerá da maneira pela qual a criança consegue situar-se em sua linha genealógica, explicar-se com os seus pais, assumir a sua posição de filho ou de filha, identificar-se com seu corpo se- xuado e integrar-se em seu papel se- xual(22). Neste sentido, pois, ninguém nasce co- mo homem ou como mulher, mas tem que tornar-se homem ou mulher, atra- vés de todo um processo de identifica- ção consigo mesmo e com o outro, pelo qual a bissexualidade inata chega pau- latinamente a definir o seu rumo, a crian- ça a definir sua identidade. Nesta complexa evolução, múltiplos deslizes podem ocorrer, deslizes que for- marão as diversas manifestações psico- patológicas. A grosso modo, é possível considerar as desordens psicóticas co- mo decorrentes de conflitos de geração (problemas ligados à identidade e á filia- ção), atribuindo-as (não exclusiva mas preferencialmente) ao eixo das diferen- ças entre gerações; por outro lado, as desordens neuróticas vinculam-se nitida- mente a conflitos da áTea sexua! (ou ain- da, do Édipo propriamente dito), dizen- do respeito à aceitação da diferença de sexo. Parece-nos que esta distinção, aqui tão-somente mencionada, tem um valor tanto didático quanto clínico. Segundo estas considerações, pois, a estrutura fundamental do psiquismo hu- mano é conflituosa, sendo tais confli- tos responsáveis, quando não ou insufi- cientemente resolvidos, por perturbações psieopatológicas e pela formação de sin- tomas. Se é com estas perturbações que lida o psicoterapeuta em sua prática (e se é por causa deias que o paciente o procura), elas, não obstante, não são o material sobre o qual se trabalha, uma vez que somente representam a manifes- tação externa e não as "causas" das di- ficuldades deste ou daquele paciente. As "causas", nós as vemos precisamente nos conflitos (não resolvidos) que, embora não-patológicos em si, referem-se às ar- ticulações da estruturação humana on- de, em conseqiiência de particular vulne- rabilidade, processos patológicos podem iniciar-se. Os conflitos que aí temos em men- te são, portanto, conflitos interiorizados, dispondo de um alto potencial patogêni- co e podendo produzir tanto micro quan- to macropsicopatologias: micro no senti- do de "psicopaíologias da vida cotidia- na" (para falar com Freud), macro no sentido de disfunções e desordens afeti- vas que afetam o sujeito de modo glo- bal ou parcial, provocando sintomas, transtornos de personalidade ou desvios de caráter — enfim, que o fazem so- frer em uma área qualquer (ou em to- das) da sua vida pessoal. Contudo, este sofrimento, para nós, não se constitui em "doença". Discordamos, portanto, de Schneider (op. cit.) (15), quando formula que os conflitos interio- rizados "se desenrolam no interior mes- mo do psiquismo do sujeito doente": di- ficuldades de ordem psicológica, sejam elas "macropatoiógicas" no sentido de produzir sintomas neuróticos ou psicóti- cos, não são "doenças". Uma perspec- tiva mais ampla, mais antropológica do que medica, será aqui de rigor. A insistência sobre a qualidade inter- na destes conflitos não é supérflua. Com efeito, 6 condição sine qua non para a possibilidade de um trabalho psicoterá- pico que o paciente reconheça que o seu sofrimento pessoal seja condicionado por uma problemática que se situa nele, e não fora dele. Neste último caso, aliás, de achar que se sofre em função de cau- sas ou razões externas, a pessoa rara- mente se constitui "paciente" disposto a consultar, mas tenta atuar sobre estes problemas externos, ou, ainda, apresen- ta-se como vítima destes, proclamando- -se atingida, por exemplo, pela injustiça social. É indispensável, pois, que o sujeito te- nha aíguma consciência da origem das suas dificuldades e não tente impufá-las a situações externas, a serem invocadas como bodes expiatórios; somente reco- nhecendo que há algo de errado nele, é que o sujeito se sentirá motivado a ini- ciar uma psicoterapia ou a procurar uma ajuda psicológica qualquer. Sem esta mo- tivação, não terá a paciência de ser "pa- ciente" e de submeíer-se a um trabalho de psicoterapia, na maioria das vezes bastante longo, sofrido e oneroso. Em determinadas pessoas e em deter- minadas categorias de dificuldades psieo- patológicas, esta consciência faz falta, ao ponto de nem existir, às vezes, sen- sibilidade para a dimensão psíquica in- terna. De fato, há muitas pessoas que negam a importância da vida interna (ou negam mesmo a sua existência) •— o que não significa que não possam so- frer de conflitos psíquicos. Mas negan- do a sua possível origem interna, esta- rão sem motivação para uma abordagem psicológica ou psícoterápica, podendo até defender-se virulentamente contra uma ta! insinuação. E o caso notadamente dos chamados "pacientes psicossomáticos", em que pese sua obstinação em se declarar "doente orgânico", sem levar em consideração e sem dar espaço à dimensão psíquica dos 66 67 seus achaques (se não da existência co- mo um todo). Este aspecto, capital para a questão da indicação terapêutica, será tratado mais adiante, num capítulo espe- cífico. Da mesma forma, será difícil ou mes- mo impossível trabalhar em psicoterapia com pessoas que percebem a existên- cia de conflitos, mas os situam jora de si; ao invés de intrapessoais, elas os vêem como interpessoais, atribuindo as causas das próprias dificuldades (ou a culpa por estas) "aos outros". Psicopatas ou paranóicos, como costumamos rotulá-los, não terão nenhum motivo para questio- nar-se a si mesmos — no que consiste precisamente grande parte do trabalho psicoterápico — e não sentirão a neces- sidade de elaborar os seus conflitos in- ternos: em sua perspectiva, cabe "aos outros" resolver as dificuldades, uma vez que estes é que as criaram. Um caso particular representam aqui os adolescentes e as crianças. Neles, a consciência de um conflito intrapsíquico raramente está presente — pelo contrá- rio, na maioria das vezes ele é negado, de tal forma que o jovem c levado à consulta pela família. Esta questão tam- bém será tratada mais adiante; limitamo- -nos aqui a frisar que as numerosas pes- soas que negam ou ignoram a dimensão psíquica interna e os seus possíveis con- flitos não são passíveis de uma aborda- gem psicoterápiea no sentido estrito da palavra. Elas poderão ser atendidas me- diante outras formas de tratamento psi- cológico ou sócio-terapéutico, como te- rapias de apoio, de relaxamento, técni- cas comportamentais, ocupaeionais ou de reabilitação, entre outras, mas não con- seguirão tirar proveito de um processo psicofenípico, pela dificuldade intrínseca (pelo menos inicialmente) de aceitá-lo. Cabe ao psicoterapeuta
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