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PSICOLOGIA E CRIMINOLOGIA Eliane Dalla Coletta Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer o surgimento da psicologia como ciência. � Identificar as diferentes abordagens da psicologia. � Descrever a emergência da psicologia jurídica como disciplina e área de atuação. Introdução A psicologia é uma ciência que estuda o comportamento e o psiquismo humano. Seu surgimento se relaciona ao estudo do comportamento e dos fenômenos mentais com objetividade e métodos e técnicas espe- cíficas, conforme o método científico. Na prática, a psicologia científica e experimental surgiu com a inauguração do primeiro laboratório experi- mental, em 1878, levada a cabo por W. Wundt, em Leipzig, na Alemanha. Desde então, surgiram muitas correntes psicológicas. A multiplicidade das psicologias, sobretudo no domínio prático, leva à identificação de duas atitudes psicológicas básicas, que correspondem a duas maneiras de se fazer psicologia: experimental e clínica. A psicologia experimental estuda mais profundamente o comporta- mento humano. Já a psicologia clínica trata da investigação sistemática de casos individuais ou grupais na exploração do psiquismo humano por meio da linguagem (da palavra), como também do tratamento tera- pêutico de certas neuroses e psicoses. Não há dúvida de que ambos os domínios se complementam, apesar de possuírem muitas divergências. Neste texto, você vai conhecer a história da psicologia e vai entender como ela alcançou o seu estatuto de cientificidade. Também vai conhecer as três grandes doutrinas da psicologia: behaviorismo, psicanálise e ges- talt. Além disso, vai compreender as principais atribuições do psicólogo na área jurídica. Desenvolvimento da psicologia como ciência Para entender o desenvolvimento da psicologia como ciência, você deve vi- sualizar esse processo historicamente. A psicologia é tão antiga quanto o desenvolvimento do pensamento subjetivo. Ela remete ao início da preocupação do homem com as suas percepções e emoções. Essa preocupação abrange também o desenvolvimento do pensamento racional sobre o mundo e sobre os seres humanos, bem como o pensamento do homem sobre si mesmo, o sujeito pensante da filosofia. Quando o homem não aceita mais as explicações míticas e passa a questio- nar a origem da vida, o pensamento mítico dá lugar ao pensamento racional, passando para o estágio de filosofar. Como você sabe, filosofar significa refletir sobre os fatos, acontecimentos, sobre o existir. Surge então o pensamento filosófico. Até o século XIX, todas as ciências humanas ficaram vinculadas ao destino da filosofia, mais especificamente da antropologia filosófica. Quando a psicologia se desprendeu da psicologia, ela se desenvolveu como ciência humana, tomando consciência de que o conhecimento científico não é filosófico. Esse desprendimento ocorreu em meados do século XIX, quando surgiram as ciências humanas, com a adoção de metodologias empíricas aceitas como ciência (ABIB, 2009). Nesse processo de constituir-se como ciência, sendo a psicologia uma ciência humana, necessitou romper com duas perspectivas por sua incapacidade de revelar o objeto específico de seu estudo: o homem. A primeira perspectiva é a sua ligação histórica com a filosofia, que descrevia os comportamentos do homem em termos de substância e de faculdades inatas transcendentes. A psicologia era concebida como a explicação racional dos comportamentos de consciência. Como representantes dessa psicologia, você pode conside- rar Descartes (1596–1650), Kant (1724–1804), Bergson (1859–1941) e Ribot (1839–1916). Nessa fase, a psicologia era considerada uma ciência menor dentro da filosofia e se dedicava ao conhecimento abstrato e puramente reflexivo. A segunda perspectiva foi a da sua aliança com as ciências experimentais de ordem psicoquímica ou biológica, que tinham o estatuto de cientificidade reconhecido por todos. O homem tornou-se então “objeto de experiência”. Foi o período da redução dos fenômenos psíquicos aos fenômenos orgânicos e experimentais. O homem passou a ser estudado em laboratórios com o objetivo de provar a origem orgânica de seus comportamentos. Na segunda metade do século XIX, na Europa, havia teorias diversificadas sobre as exigências espiritualistas sobressaindo-se taxativamente em todos os domínios da vida intelectual, com a dominância da ideia do determinismo Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica12 universal. O objetivo primordial e único era a análise dos “fatos” e de suas regularidades. O saber somente era alcançado por meio da experiência “po- sitiva”. O positivismo é, ainda hoje, uma teoria utilizada nas investigações científicas quando a pesquisa privilegia o quantitativo, o rigor, a racionalidade, a medição objetiva e os fatos observáveis. Entretanto, foi pela sua proximidade com a filosofia que a psicologia concebeu a sua emancipação e o seu acesso a um estatuto científico, por conformação ao modelo das ciências da natureza que já estavam constituídas. Por isso, até hoje a psicologia balança entre duas grandes correntes: uma mais filosófica, que utiliza modelos explicativos e interpretativos, e outra propria- mente científica, que tem proximidade com as ciências naturais e com seus modelos explicativos (behaviorismo). A psicologia experimental foi a primeira a utilizar um método psicológico com pretensões científicas. Instituiu-se contra a atitude introspectiva. O fato psicológico era concebido como a recepção de um estímulo seguido de uma resposta, e o método permitia que esse circuito funcionasse em condições controláveis e mensuráveis pelo experimentador. Você deve notar que o nascimento da psicologia científica ocorreu num clima intelectual impregnado pelo positivismo comtiano. Foi o fisiólogo e anatomista E. H. Weber (1795–1878) que, por meio de seus estudos sobre as sensações táteis e visuais, conseguiu, pela primeira vez, passar do domínio da fisiologia ao da psicologia. Ernst Heinrich Weber, médico alemão, foi o fundador da psicologia experimental, publicando o seu trabalho experimental em 1846. Nesse trabalho, ele comprovou, por meio do método experimental, que a sensibilidade comum é a consciência do estado sensorial global do corpo. Para ele, a sensação deveria ser distinguida da sua interpretação. Porém, é relacionado a W. Wundt (1832–1920) o surgimento da psicologia experimental, sendo ele o primeiro psicólogo na história da psicologia. Antes de Wundt, havia muitas psicologias, mas não existiam psicólogos. Os precur- sores são médicos, fisiologistas e físicos. Em 1879, Wundt criou o primeiro laboratório experimental, em Leipzig, na Alemanha, todo equipado com o instrumental científico daquela época. Wundt dedicou-se inicialmente ao estudo da percepção sensorial, especialmente da visão. Mais tarde, passou a estudar a memória, a inteligência, bem como o desenvolvimento estético, moral e social. Ele queria descobrir e determinar a relação dos fenômenos psíquicos com seu substrato orgânico, especialmente cerebral, pois acreditava que nada se passava na consciência que não encontrasse seu fundamento em determinados processos físicos. Entretanto, atribuiu às pesquisas experimen- tais apenas um campo bastante limitado, reconhecendo dois tipos de leis do 13Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica conhecimento: leis associativas e leis perceptivas, sendo que a lei perceptiva exprimia a atividade livre do pensamento. Para Wundt, a psicologia como ciência é psicologia empírica. A psico- logia empírica, por sua vez, é voltada para a causalidade psíquica. Assim, a observação dos fenômenos psíquicos busca determinar e captar as causas, leis e condições iniciais do fenômeno, em um cenário em que as afirmações são controláveis pelos fatos. Nesse sentido, Wundt fecha as portas para as explicações mais obscuras e espiritualistasou materialistas. Em 1874, ele escreveu o primeiro livro sobre estruturalismo. Posteriormente, essa obra foi abandonada pela psicologia, pois não conseguiu apresentar um padrão de semelhança de critérios entre sujeitos, já que cada pessoa possui um sistema perceptivo único. Wundt é considerado o principal pensador dessa teoria. Contrapondo-se a Wundt, surgiu, em 1890, Willian James (1842–1910), conhecido como o pai da psicologia americana. Ele sustentava que a psicolo- gia era uma ciência natural. Surgia então o funcionalismo como uma reação às teorias do estruturalismo. Como ciência natural, a psicologia consistia na previsão e no controle práticos. Você pode considerar que foi a partir de Wundt e James que a história da psicologia como ciência se iniciou. Alguns estudiosos afirmam que nessa fase a psicologia era mais um projeto cientí- fico, não chegando a se consolidar como ciência. Mas foi a partir de então que essa disciplina procurou atingir o estatuto de cientificidade, mediante a reivindicação do modelo de objetividade característico das ciências naturais. O desenvolvimento da psicologia experimental enfrentou sérias oposições em função de querer romper com a filosofia (FELDMAN, 2015). No seu desenvolvimento como ciência, a psicologia teve de se valer do método experimental dos físicos e dos biólogos na busca da cientificidade. Na aplicação desse método, foi constatada a insuficiência para definir e para validar o objeto da psicologia. Com esse fracasso da psicologia dos estados mentais e o êxito simultâneo da psicologia animal (reflexo condicionado), surgiu a grande revolução em psicologia — o behaviorismo — a partir de 1913, com o famoso artigo de Watson (1849–1936) chamado Psychology as the Behaviorist views it. Com esse artigo, Watson apresentou uma posição radical contra toda e qualquer psicologia que pensasse e admitisse a existência da consciência como objeto de estudo da psicologia. Porém, a psicologia não poderia prescindir do estudo da imaginação, do afeto, das emoções e dos sentimentos. Então, nessa época em que o behavio- rismo pretende expurgar a psicologia científica de todo o recurso à observação interna dos fatos da consciência, bem como de toda a propagação filosófica, Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica14 surgiram dois fatos novos que teriam uma consequência profunda na história da psicologia. O primeiro fato foi a iniciação filosófica de Husserl (1859–1938), que procurou instituir a fenomenologia como uma disciplina científica. O segundo fato foi a instauração da psicanálise freudiana. As investigações de Husserl e a Interpretação dos sonhos, de Freud, apareceram no ano de 1900, e as Ideias diretrizes para uma fenomenologia, de Husserl, em 1913. Ambas foram contemporâneas dos famosos artigos de Watson. Como você deve imaginar, abranger todas as correntes psicológicas com um quadro completo e detalhado desses três séculos de existência é uma tarefa impossível. A psicologia se apresenta numa pluralidade espantosa de domínios. Essa multiplicidade por vezes é atribuída às variações das práticas psicológicas, que frequentemente se entrelaçam. Ao estudar essa disciplina, é importante que você entenda a sua pluralidade e as suas diversas correntes doutrinárias e metodológicas, bem como os distintos pontos de vista pelos quais a psicologia vê seu objeto. Assim, a psicologia não pode ser considerada uma disciplina única nem unificada. É de suma importância que você identifique em qual doutrina ou método se baseiam determinadas análises do seu cotidiano e do seu “eu” enquanto indivíduo histórico. A regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil levou um longo tempo. Houve discussões, idas e vindas de projetos, pré-projetos, substitutivos, emendas e muita negociação até a primeira lei que regulamentou a profissão, em 1962 (BRASIL, 1962). Porém, para os estudiosos e historiadores, o início da atuação dos psicólogos ocorreu na década de 1930, início da industrialização e do desenvolvimento progressivo de urbanização, que requeriam práticas psicológicas na organização do trabalho, nas escolas e nas clínicas infantis. Nessa época, no Brasil, buscava-se a construção de um novo país e de um novo homem, meta nacionalista que se inspirava no positivismo e no tecnicismo, tendo a psicologia como apoio. Nos pré-projetos, projetos e emendas, você encontra as discussões sobre a temática do ensino de psicologia e a profissão do psicólogo. Surgem, então, as primeiras propostas de atribuições do psicólogo (1953–1954) como: professor de psicologia, psicólogo clínico, psicotécnico, orientador educacional e psicopedagogo. Nesse período, também surgiram outras comissões que tiveram como tema: psicologia geral, psicologia infantil e psicopedagogia, psico- patologia, psicoterapia e psicanálise, psicologia social e jurídica. Foram criadas diversas associações nos estados de São Paulo, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Em 1975, o processo foi finalizado com a aprovação do Código de Ética e a criação dos conselhos e da profissão de psicólogo. 15Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Diferentes abordagens da psicologia Na constituição das ciências humanas no século XIX, surgiram as primeiras escolas, divididas em duas grandes tendências: comportamental e clínica. A psicologia experimental (behaviorismo) se volta ao método científico e estuda a conduta humana, ou seja, o comportamento do ser humano. Já a psicologia clínica (psicanálise) é voltada ao estudo profundo do psiquismo humano. A psicologia do século XX apresenta diversas e diferentes concepções sobre o homem. Essa psicologia continuou num processo contínuo de transformação, tendo hoje, no século XXI, diversas ramificações. Você vai ver aqui as diferentes abordagens da psicologia em suas princi- pais correntes e teorias psicológicas. Essas correntes e teorias deram origem a uma vasta multiplicidade de psicologias; muitas delas são divergentes no seu método e no seu objeto de estudo, mas diversas outras são convergentes e complementares. Por isso, hoje é muito difícil, até mesmo para o psicólogo, definir o que a psicologia estuda. Isso dependerá de que doutrina, de que teoria está em jogo. Existem várias respostas possíveis e há uma multipli- cidade de olhares sobre o homem, com diferentes modos de investigação e de atuação prática. A seguir, você vai conhecer melhor aquelas que são consideradas grandes correntes na psicologia: o behaviorismo, a psicanálise e a gestalt. Behaviorismo A doutrina behaviorista se afirmou a partir de 1913, com o famoso artigo de Watson chamado Psychology as the Behaviorist views it. Nesse artigo, Watson apresentou uma posição radical contra toda e qualquer psicologia que pensasse e admitisse a consciência como objeto de estudo da psicologia. O comportamento, para essa doutrina, é uma reação ou resposta do “su- jeito” observado (homem ou animal) a uma determinada situação. Ou seja, é a resposta do sujeito observado a um estímulo. Isso é expresso no esquema clássico: S ← R. O estudo do comportamento será possível a partir da variação do estímulo S e da observação de cada reação ao estímulo dado. A psicologia do comportamento encontra nos estudos de Pavlov (1849 – 1936) sobre reflexos condicionados uma grande auxiliar. Pavlov estudou o reflexo animal e o behaviorismo baseou-se nesse estudo, que analisa a pos- sibilidade de passar do reflexo espontâneo aos reflexos condicionados, o que culminaria numa espécie de educação do comportamento. Por uma questão de método e de coerência doutrinária, a psicologia behaviorista desconsiderou o Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica16 papel do imaginário na vida dos indivíduos, reduzindo o pensamento somente aos fenômenos sensório-motores passíveis de observação. No início dos anos 1930, Skinner (1904–1990), na análise de problemas precisos de aprendizagem, limita metodologicamente sua abordagem a ape- nas doistipos de fatos observáveis: os inputs ou estímulos apresentados e os outputs ou respostas verificáveis e mensuráveis que lhes seguem. Entre os dois fatos encontra-se o “organismo” ou a “pessoa”, com muitas variáveis intermediárias psicológicas e mentais. Skinner não reconhece essas variáveis e compara esse “organismo” a uma caixa preta. Nessa caixa, é possível apenas o estabelecimento de relações entre os inputs e os outputs. Assim, não se pode saber nada do seu interior, pois não é observável. Skinner introduz o conceito de condicionamento operante por meio de sua experiência com ratos (Pavlov havia identificado o condicionamento respondente-reflexo) e a sua teoria do reforço — em que todo organismo tende a repetir situações agradáveis, sendo que o papel do reforço é converter essas situações numa resposta frequente. Essa doutrina trouxe uma contribuição significativa para a psicologia. Muitos conceitos e técnicas que apareceram a partir dessa linha de pensamento ainda são muito utilizados na aprendizagem, como os métodos instrucionistas e as tecnologias de ensino. Essas noções também são utilizadas nos treinamentos de empresas, na clínica, no trabalho educativo de crianças excepcionais, na indução da fala em pessoas com atraso no desenvolvimento, no tratamento de autismo, no tratamento de fobias, em anúncios publicitários, etc. Psicanálise A psicanálise surgiu em 1900, com a publicação da primeira obra de Freud (1856–1939), A interpretação dos Sonhos. Freud descobriu o inconsciente por meio da análise dos sonhos, atos falhos e lapsos. Com a investigação sistemática, construiu uma teoria unificada da mente, demonstrando que a certeza da consci- ência não é verdadeira, porque a vida intencional pode ter outros “sentidos” que não o imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber, instala-se o inconsciente, revelando um saber que não é dado, mas que deve ser procurado para ser encontrado. A descoberta do inconsciente gerou um efeito radical no pensamento da época, especialmente em todas as áreas da ciência. A psicanálise é conhecida no mundo todo e até hoje muito praticada na clínica psicológica. É uma teoria que apresenta um entendimento complexo e estruturado da vida psíquica, utilizando o método interpretativo. Na prática profissional, a forma de tratamento é a análise, que busca a cura pelo autoco- nhecimento por meio da técnica de associação livre. 17Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Entre 1920 e 1930, surge a teoria da personalidade, com os conceitos de id, ego e superego. No id, encontram-se as pulsões de vida e de morte; o inconsciente é regido pelo princípio do prazer. O ego é regido pelo princípio da realidade, buscando o equilíbrio entre as forças do prazer (id) e as forças do superego, que é a consciência moral. O ego tem como funções básicas: a memó- ria, a percepção, os sentimentos e o pensamento. No superego, encontram-se os valores da sociedade; essa esfera busca atingir três objetivos, que são inibir qualquer impulso contrário às regras, forçar o ego a se comportar de maneira moral e conduzir o indivíduo à perfeição em gestos, pensamentos e palavras (ideal do ego). Nesses sistemas, encontram-se as experiências pessoais, que se constituem na relação com o outro e na conjuntura social. No campo social, Freud escreveu O mal-estar na civilização e Reflexões para o tempo de guerra e morte. Nessas obras, o autor reflete sobre a possi- bilidade constante de dissolução dos vínculos sociais. A psicanálise e os psicanalistas contribuíram também em várias áreas da saúde mental. Como exemplo dessa contribuição, você pode considerar o tra- balho de Winnicott no tratamento de crianças com transtornos psíquicos. Ana Freud é outro exemplo; ela se dedicou ao tratamento de crianças e ao estudo dos mecanismos de defesa. Já Françoise Dolto e Maud Mannoni focaram seu trabalho no tratamento de crianças e adolescentes em creches, hospitais e abrigos. Gestalt A gestalt é uma doutrina que estudou também o comportamento, porém di- ferentemente do behaviorismo. Ela considera que o comportamento somente pode ser estudado em um contexto amplo e não isolado. Assim, é necessário considerar as condições que alteram a percepção do estímulo. Para os gestal- tistas, toda percepção é um gestalt (um todo) que não pode ser compreendido pela separação das partes, pois o todo é maior que a soma das partes. A gestalt surgiu em 1910, na Alemanha, com os trabalhos científicos de Max Wertheimer (1880–1943), Wolfgang Köhler (1887–1967) e Kurt Kofka (1886–1941). Os estudos psicofísicos que relacionavam a forma à sua percepção construíram a base dessa teoria. Os estudos da percepção e da sensação do movimento trouxeram uma importante contribuição para a psicologia, pois a descoberta da influência da percepção no comportamento revolucionou os princípios fundamentais da ciência. Considere, por exemplo, duas pessoas olhando o mesmo objeto ou a mesma situação. Naturalmente, elas podem ver de diferentes formas. Isso é possível porque a percepção é induzida por vários fatores que podem distorcê-la ou moldá-la. Onde estão esses fatores? Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica18 Esses fatores podem estar em quem percebe, no objeto percebido, no ponto de onde ele é visto ou na situação em que a percepção ocorre. Essa descoberta da relação entre o todo e a parte — o todo influencia a compreensão do objeto — demonstra que o comportamento das pessoas é determinado por sua percepção da realidade e não pela realidade em si. Pode haver diferentes entendimentos da realidade por diferentes pessoas, o que contribui para muitas distorções na comunicação e na compreensão de diferentes situações. A solução dos problemas resultaria na reestruturação do campo perceptual. A partir da compreensão no campo da percepção, se seguiram outros estudos, como aqueles relacionados à aprendizagem, à memória e às reações motoras. Todos esses aspectos foram estudados a partir do princípio de que não podem ser compreendidos pela separação das partes, e sim pelo todo, que é maior do que a soma das partes. Essas três doutrinas constituíram os padrões de referência no desenvolvimento da ciência psicológica, levando às mais diversas ramificações na psicologia contemporânea. A partir do behaviorismo, surgiram o behaviorismo radial e o behaviorismo cognitivo. Da gestalt, vieram a psicologia existencialista e a gestalt terapia. Da psicanálise, originaram-se a psicologia analítica (Jung), a reichiana (Wilhelm Reich), a kleiniana (Melanie Klein) e a lacaniana (Jacques Lacan). Além disso, esses estudos embasaram as psicologias da aprendizagem, a psicologia escolar, a psicologia social, a psicologia organizacional, a psico- logia cognitiva e a psicologia jurídica. Há tantas psicologias quantas são as perspectivas sobre o homem, e não há como unificá-las numa psicologia geral, pois são muitos pontos de vista diferentes. O que elas têm em comum é que buscam aprofundar e apreender aquilo que manifesta-se como o sentido do ato pelo qual o homem convoca a si mesmo e o mundo em seu projeto. A profissão de psicólogo foi regulamentada no Brasil pela Lei nº. 4.119, de 27 de agosto de 1962. Contudo, desde a década de 1950 até a regulamentação, houve muitos movimentos. Além disso, somente 13 anos depois da aprovação da lei, em 1975, é que o processo foi finalizado com a aprovação do Código de Ética e a criação dos conselhos e da profissão de psicólogo. Saiba mais sobre o assunto no artigo O psicólogo no Brasil: notas sobre seu processo de profissionalização, disponível no link a seguir. https://goo.gl/nfonh7 19Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Psicologia jurídica como disciplina e área de atuação A psicologia é uma ciência secular de difícil apreensão em sua totalidade. Afinal, como você viu, há diversas doutrinas e diversos métodos de investi- gação no imenso domínio das ciências exatas, biológicas, naturais,humanas e, mais recentemente, na neurociência. Essa diversidade deve-se à variação das práticas psicológicas, que muitas vezes se entrelaçam. Por essa amplitude de domínio, a psicologia estabelece relações com muitas outras áreas de conhecimento, bem como com áreas importantes da vida em sociedade, como é o caso da saúde, da educação, do trabalho, das comunidades, da Justiça e outras mais. A relação da psicologia com o direito é anterior ao surgimento daquela como ciência. Analisando o percurso histórico, é possível ter uma dimensão disciplinar da psicologia jurídica. Se você analisar a história da loucura, partirá da Idade Média. Nessa época, a loucura era uma ocorrência privada, os cuidados e tratamentos médicos eram exclusivos dos mais ricos. No século XVII, o “louco” passou a ser internado em instituições, pois acarretava uma ameaça à ordem da razão e da moral da sociedade. Durante o período da Idade Média até o século XVIII, o homem era o sujeito da razão relacionado ao direito moderno. Nesse período, a religião dominava todas as esferas da vida, desempenhando o papel de julgamento das atitudes humanas. As relações entre os sujeitos eram de tamanha complexidade que o direito amparou a função de julgar por meio de suas leis, porém teve que se embasar nos conceitos e estudos de outras ciências para o entendimento dos comportamentos desviantes ou inadequados. Nos séculos XVIII e XIX, surgiu o novo funcionamento do sistema penal. Assim, a conduta dos juízes desloca-se para a análise do comportamento. O julgamento não era apenas pela prática criminosa: o sujeito passou a ser julgado pela culpa ou inocência, pela sanidade ou insanidade, por seu louco ou normal. A partir do século XIX, a relação entre a psicologia e o direito passou a se evidenciar com as experiências sobre testemunhos e o sistema de inter- rogatório, a detecção da mentira, os falsos testemunhos e a simulação de anamneses, surgindo a psicologia do testemunho. A função da psicologia era verificar a veracidade e a precisão dos depoimentos nos processos judiciais. A psicologia, nessa época, tinha a influência do paradigma do positivismo, com seus métodos das ciências naturais. Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica20 No início do século XIX, o psicólogo era requisitado como testemunha pericial. O primeiro psicólogo nessa função foi Albert Von Sharanck, que em 1896 tentou convencer um juiz de que a interferência da memória e das falsas memórias seria capaz de prejudicar a coisa julgada. A psicologia jurídica como disciplina e área de atuação foi aceita prontamente na Europa. Nos Estados Unidos, essa função do psicólogo foi reconhecida bem mais tarde, com um discípulo do Wundt, Hugo Munsterberg. Ele buscava conscientizar seus pares sobre a importância da interação entre a psicologia e o direito, iniciando a atuação dos psicólogos para a realização de perícias sobre os estados mentais das pessoas com processos judiciais. As questões a serem respondidas pelos psicólogos passaram a ser: é consciente de seus atos ou não? É sano ou insano? É o vitimador ou a vítima? Que perigo representa para a sociedade? Precisa de cadeia ou hos- pital? O psicólogo, em qualquer área que atue no estabelecimento da justiça, “[...] utiliza da vigilância da Lei para a construção de suas técnicas de exame, de avaliação, de diagnóstico, já que esta atividade profissional não se firma ou limita ao espaço intramuros do estabelecimento Fórum [...]”, conforme diz Brunini (2016, p. 83-84). No Brasil, em 1955 foi editada a obra Manual de Psicologia Jurídica, por Emilio Mira y Lopez. Essa obra trata sobre os processos de avaliação da per- sonalidade criminosa. Nas décadas de 1940 e 1950, a psicologia, junto com a psiquiatria, inicia sua atuação no universo das prisões com fins avaliativos para subsidiar processos jurídicos e, em 1962, a profissão do psicólogo é regulamentada. O art. 13 da Lei nº 4.119/62, que, como você viu, regulamenta a profissão do no Brasil, confere ao portador do diploma de psicólogo o direito de ensinar psicologia e de exercer a profissão de psicólogo. Nesse sentido, a utilização de métodos e técnicas psicológicas (diagnóstico psicológico, orientação e seleção de profissionais, orientação psicológica e tratamento de problemas de ajustamento) é de uso exclusivo do psicólogo. No parágrafo segundo, o mesmo artigo afirma que é da competência do psicólogo a colaboração em assuntos psicológicos ligados a outras ciências, em que se insere a atuação psicojurídica (BRASIL, 1962). Em 2003, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), na Resolução nº 7, instituiu o Manual de Elaboração de Documentos Escritos decorrentes de avaliação psicológica. Essa resolução determina que o psicólogo deve se basear exclusivamente em instrumentos técnicos (entrevistas, testes, observações, dinâmicas de grupo, escuta e intervenções verbais) para coleta de dados, estu- dos e interpretações de informações a respeito de pessoas ou grupo atendidos (BRASIL, 2003). 21Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Psicólogo especialista em psicologia jurídica é a denominação dada pela Resolução nº 013/2007 do Conselho Federal de Psicologia. Essa resolução institui formalmente o domínio dos profissionais de psicologia que trabalham na área jurídica (BRASIL, 2007). Nessa área, o psicólogo atua no âmbito da Justiça, colaborando no planejamento e na execução de políticas de cidadania, direitos humanos e prevenção da violência. Esse profissional centra sua atuação na orientação do dado psicológico repassado não só para os juristas como também aos indivíduos que carecem de tal intervenção. A ideia é possibilitar a avaliação das características de personalidade e fornecer subsídios ao processo judicial, além de contribuir para a formulação, a revisão e a interpretação das leis. Assim, o psicólogo especialista em psicologia jurídica: � avalia as condições intelectuais e emocionais de crianças, adolescentes e adultos em processos jurídicos, seja por deficiência mental e insanidade, testamentos contestados, aceitação em lares adotivos, posse e guarda de crianças, aplicando métodos e técnicas psicológicas e/ou psicometria para determinar a responsabilidade legal por atos criminosos; � atua também como perito judicial nas varas cíveis, criminais, na Justiça do trabalho, da família, da criança e do adolescente elaborando laudos, pareceres e perícias; � realiza pesquisa visando à construção e à ampliação do conhecimento psicológico aplicado ao campo do direito; � realiza atendimento a crianças envolvidas em situações que chegam às instituições de direito, visando à preservação de sua saúde mental; � desenvolve estudos e pesquisas na área criminal, constituindo ou adap- tando os instrumentos de investigação psicológica. A psicologia e o direito versam sobre a solução de problemas de formas diferentes, apesar de sua intersecção ao analisar determinado fenômeno e/ou problema e/ ou solução. Essa relação deve ser mantida, mesmo podendo ser complementar ou contraditória, no sentido da busca da interdisciplinaridade. O psicólogo, ao assessorar um juiz, visa a apresentar uma leitura psicológica dos casos judiciais. A avaliação psicológica atende a uma determinação judicial e é apresentada em forma de laudo. A interdisciplinaridade se constituirá na prática do dia a dia, com respeito aos limites de atuação de cada área, de modo que o compartilhamento do conhecimento ocorre concomitantemente. Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica22 ABIB, J. A. D. Epistemologia pluralizada e história da psicologia. Scientiae Studia, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 195-208, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?pid=S1678-31662009000200002&script=sci_arttext&tlng=es>. Acesso em: 13 mar. 2018. BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº. 007. Institui o Manual de Elabo- ração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológicae revoga a Resolução CFP º 17/2002. 2003. Disponível em: <http://site.cfp. org.br/wp-content/uploads/2003/06/resolucao2003_7.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018. BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº. 013. Institui a Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro. 2007. Disponível em: <https://site. cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/Resolucao_CFP_nx_013-2007.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018. BRASIL. Lei nº. 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. 1962. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4119.htm>. Acesso em: 13 mar. 2018. BRUNINI, B. C. C. B. A intersecção da psicologia com a lei: problematizando a psicologia jurídica na prática profissional dos psicólogos. 178 f. 2016. (Dissertação) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2016. Disponível em: <http:// hdl.handle.net/11449/133954>. Acesso em: 13 mar. 2018. FELDMAN, R. S. Introdução à psicologia. 10. ed. Porto Alegre: McGraw-Hill, 2015. Leituras recomendadas BAPTISTA, M. T. D. da S. A regulamentação da profissão da psicologia: docu- mentos que explicitam o processo histórico. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 30, p. 170-191, 2010. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414- -98932010000500008&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 13 mar. 2018. BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Disponível em: <http://unesav.com. br/ckfinder/userfiles/files/Psicologias%20-%20Ana%20Merces%20Bahia%20Bock%20 %20Outros.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018. ROSE, N. Psicologia como uma ciência social. Psicologia & Sociedade, v. 20, n. 2, p. 155-164, 2008. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/3093/309326698002/>. Acesso em: 13 mar. 2018. 23Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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