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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri/PUC-SP Antunes, Mitsuko Aparecida Makino A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição / Mitsuko Aparecida Makino Antunes. 5. ed. – São Paulo: EDUC, 2014. Bibliografia. ISBN 978-85-283-0494-7 1. Psicologia – Brasil – História. I. Título. CDD 150.981 Conselho Editorial: Anna Maria Marques Cintra (Presidente), Cibele Isaac Saad Rodrigues, Ladislau Dowbor, Mary Jane Paris Spink, Maura Pardini Bicudo Véras, Norval Baitello Junior, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery, Sonia Barbosa Camargo Igliori. EDUC – Editora da PUC-SP Direção: Miguel Wady Chaia Produção Editorial: Sonia Montone Revisão: Siméia Mello Editoração Eletrônica: Waldir Alves, Gabriel Moraes Administração e Vendas: Ronaldo Decicino Produção do ebook: Schäffer Editorial Rua Monte Alegre, 984 – Sala S16 CEP 05014-901 – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558 E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ http://www.studioschaffer.com http://www.pucsp.br/educ A Nena e Luís, in memoriam Ana Carolina e Hermenegildo Sumário Apresentação Introdução PARTE I Antecedentes Capítulo 1 A preocupação com os fenômenos psicológicos no período colonial Capítulo 2 A preocupação com os fenômenos psicológicos no século XIX 2.1. O Pensamento Psicológico na Educação 2.2. O Pensamento Psicológico na Medicina 2.3. À Guisa de Síntese PARTE II A psicologia científica e seu processo de autonomização no Brasil Capítulo 1 A psicologia em instituições médicas 1.1. Os hospícios e algumas instituições correlatas 1.2. Medicina Legal, Psiquiatria Forense e Criminologia 1.3. Teses de Doutoramento das Faculdades de Medicina 1.4. À Guisa de Síntese Capítulo 2 A Psicologia em Instituições Educacionais 2.1. Algumas instituições educacionais 2.2. A Psicologia nas obras pedagógicas e psicológicas 2.3. À Guisa de Síntese Capítulo 3 A Psicologia na organização do trabalho PARTE III Conclusão APÊNDICE BIBLIOGRAFIA CITADA E Apresentação ste é um excelente livro. Serve a muitos e diferentes leitores, de estudantes e profissionais da área de Psicologia a simples interessados em psicologia e história do Brasil. Tem um objeto claro – a história da Psicologia no Brasil –, mas que resulta de cuidadosa pesquisa baseada no princípio segundo o qual uma “abordagem social” nesta área possibilita a apreensão do diálogo que se estabelece entre a Psicologia e a formação social na qual ela se produz, considerado o conhecimento como produto fundamentalmente histórico e social. Por outro lado, é apresentada em texto bem escrito e muito vivo, envolvente, o que o torna de fácil e agradável leitura. Particularmente, é um excelente livro para professores e estudantes em História da Psicologia. Acostumados a conhecer a história da psicologia em manuais escritos a partir de ou para cursos na área, mesmo assim em geral apenas os traduzidos e, entre estes, mais freqüentemente aqueles escolhidos para atender ao entendimento da área como um conjunto de teorias e sistemas em psicologia, os leitores encontrarão neste livro duas importantes novidades. A primeira tem a ver com a questão: de onde começar? Repassando a história desta História, desde o Baldwin, de 1913, ou o Brett, de 1921, mas também a maioria dos livros escritos especialmente como literatura pedagógica (Brock, 1998) –, encontramos uma Psicologia que freqüentemente começa na era pré-socrática. Mas há quem entenda que, para melhor compreendê-la, é preciso ir mais longe, encontrando suas raízes no pensamento oriental que a precedeu. Este livro pode atender a uma proposta diferente: por que não começar de onde estamos? É o que Mitsuko nos traz neste livro: uma história da Psicologia no Brasil. A segunda novidade responde a uma questão relacionada ao objetivo mesmo do ensino superior. Como estudar? Este livro corresponde a uma particular maneira de entendê-la. Trabalhando diretamente com pesquisa na área, professor e aluno familiarizam-se com o fazer histórico, preparando-se para ler criticamente qualquer livro em história da psicologia. Em linguagem muito agradável, a autora – apaixonada pesquisadora do tema – leva o leitor a compreender como a Psicologia conquistou seu espaço próprio como área de conhecimento e campo de práticas no Brasil. E o faz pesquisando não só o desenvolvimento de idéias e práticas psicológicas e suas bases epistemológicas, como os fatores contextuais – sociais, políticos, culturais, no interior dos quais esta história se constrói. Finalmente, cabe lembrar que, correspondendo a uma expecta-tiva da autora, este livro deve contribuir também para estimular novos estudos na área, para o que muito concorrerá uma cronologia de fatos significativos que, em Apêndice, completa a obra. Maria do Carmo Guedes BALDWIN, J. M. (1913). A history of Psychology: a sketch and a interpretation (2 vols.). New York, Putnan. BRETT, G. S. (1912-1921). A history of Psychology (3 vols.). New York, Macmillan. BROCK, A. (1998). Pedagogia e pesquisa. The Psychologist (Bulletin of The British Psychological Society), vol.11, n.4 (Special issue “History and philosophy. Out of margins”), p. 169/72. A Introdução psicologia constitui-se numa ciência que, reconhecidamente, tem exercido uma função social de grande relevância, quer como área de conhecimento que tem contribuído para ampliar a compreensão dos problemas humanos, quer como campo de atuação cada vez mais vasto e efetivo na intervenção sobre estes. No mundo atual, o desenvolvimento científico e tecnológico tem alcançado patamares nunca antes imaginados. Tempo e espaço adquirem novos significados com a eliminação das distâncias pelas redes informatizadas. Novos conhecimentos vêm transformar profundamente a estrutura produtiva, a educação, a assistência à saúde, as artes, as relações humanas. Alguns velhos problemas, no entanto, não apenas permanecem como tendem a agravar-se: a miséria, a exclusão social, a violência, a limitação do acesso ao saber e à saúde, o desemprego, a xenofobia, o racismo, as guerras imperialistas, a escassez de perspectivas existenciais. Nesse panorama, os problemas do presente e os que vislumbramos para um futuro próximo impõem à Psicologia tarefas cada vez maiores e mais desafiadoras; disso decorre a imperativa necessidade de reflexão sobre seu significado e sua responsabilidade na construção do devir histórico. É preciso, pois, que tenhamos uma compreensão mais ampla da Psicologia e de sua relação com a sociedade; nesse quadro, o conhecimento da História da Psicologia torna-se particularmente importante. A compreensão do processo de construção histórica de uma área de conhecimento é tão imprescindível quanto o conteúdo de suas teorias e o domínio de suas técnicas que, tomados atem-poralmente, são meros fragmentos de uma totalidade que não se consegue efetivamente apreender. Para se compreender a Psicologia como construção histórica devem ser considerados três aspectos: o desenvolvimento específico das idéias e práticas psicológicas, sua base epistemológica e os fatores contextuais (aspectos estes só separáveis como recurso didático). O conhecimento de tais elementos é condição necessária para uma reflexão profunda e para o estabelecimento de parâmetros a fim de responder aos desafios que se colocam hoje para esta ciência. Paradoxalmente, pouco se tem investido em estudos e na difusão desse conhecimento. A História da Psicologia em geral e da História da Psicologia no Brasil em particular têm sido relegadas a um plano secundário. Poucos são os cursos de Psicologia que têm essa disciplina em seu currículo, são ainda escassos os estudos e pesquisas nessa área e a bibliografia é restrita. Essa situação agrava-se sensivelmente quandoa referência é a História da Psicologia no Brasil. É possível afirmar que é generalizado o desconhecimento do processo de construção histórica da Psicologia em nosso país, reflexo possível do próprio desconhecimento da História do Brasil pela maioria da população brasileira. Esse quadro começa a se alterar com o incremento de pesquisas na área, particularmente por núcleos e grupos de pesquisadores de várias universidades brasileiras, na sua maioria pertencentes ao Grupo de Trabalho em História da Psicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP. Dessa constatação originou-se a motivação para o empreendimento do presente trabalho, inicialmente elaborado como tese de doutoramento1. Buscou-se compreender como a Psicologia conquistou seu espaço próprio como área de conhecimento e campo de práticas no Brasil, atingindo sua autonomia e reconhecimento como ciência específica, em conseqüência da produção de idéias e práticas psicológicas no interior de outras áreas do saber. Assim, o foco desta obra incide de maneira mais privilegiada no período que vai da última década do século XIX à terceira década do século XX; perío- do de grandes transformações sociais, econômicas e políticas no Brasil e, particularmente, de significativa produção cultural. Para dar sustentação histórica a este estudo, procurou-se explicitar seus antecedentes, isto é, as bases sobre as quais a Psicologia conquistou sua autonomia no Brasil. Nesse quadro, os conteúdos serão apresentados em partes, a saber: Parte I: Antecedentes, composta por dois capítulos referentes à produção psicológica no período colonial e no século XIX; Parte II: A conquista da autonomia da Psicologia no Brasil, composta por três capítulos referentes à produção de conhecimento psicológico por instituições médicas, instituições educacionais e pela aplicação da Psicologia à organização do trabalho; Parte III: Conclusão e um apêndice, composto por uma cronologia dos fatos mais significativos para a História da Psicologia no Brasil – 1890 / 1930. Deve-se destacar ainda a impossibilidade da escrita da história ser definitiva, sobretudo quando os estudos são iniciais, como é este. Em outras palavras, o processo será sempre inacabado e a história deverá ser continuamente escrita. Nesse sentido, solicita-se a todos aqueles que puderem contribuir com sugestões, correções, críticas e dados / fontes para o desenvolvimento deste e de outros trabalhos nessa área, que o remetam à autora que, desde já, se manifesta profundamente agradecida. Pretende-se, assim, que este trabalho possa contribuir, naquilo que lhe cabe, para ampliar o pouco conhecimento que se tem sobre a Psicologia no Brasil. Não há, pois, a pretensão de esgotar o assunto ou considerá-lo definitivo, uma vez que, desde o início, a pesquisa apontava para a imensidão de estudos a serem feitos nesse campo praticamente intocado. Há, no entanto, na publicação deste trabalho, a imodesta expectativa de que ele possa estimular o debate e a produção de novos estudos e pesquisas na área. 1 ANTUNES, M. A. M. O processo de autonomização da Psicologia no Brasil – 1890/1930: uma contribuição aos estudos em História da Psicologia. São Paulo, tese de doutoramento, Psicologia Social PUC/SP, 1991. Parte I A Antecedentes finalidade desta parte é expor brevemente a preocupação com os fenômenos psicológicos no período anterior à penetração da Psicologia científica no Brasil. Falaremos em pensamento psicológico e não em Psicologia, sendo esta última expressão utilizada para se referir à ciência psicológica. Deve-se lembrar que a Psicologia alcançou o estatuto de ciência autônoma somente no último quartel do século XIX, tendo como marco o estabelecimento de sua definição, objeto de estudo, métodos e objetivos por Wilhelm Wundt, na Alemanha, segundo interpretação de vários autores em História da Psicologia. A preocupação com os fenômenos psicológicos faz-se presente no Brasil desde os tempos da colônia, aparecendo em obras escritas nas diferentes áreas do saber e, mais tarde, durante o século XIX, em produções advindas de instituições como faculdades de medicina, hospícios, escolas e seminários. A abordagem desses antecedentes tem por objetivo demonstrar como o pensamento psicológico foi produzido por outras áreas do saber, sendo que seu desenvolvimento no seio destas foi fundamental para a absorção dos avanços que, no final do século passado, os estudos psicológicos alcançaram na Europa. Criaram-se assim as condições para a penetração e conseqüente desenvolvimento da Psicologia no Brasil, a qual permaneceu ligada a outras áreas do saber por muitos anos ainda, e só gradativamente foi delas se separando e assumindo seu espaço próprio. A Capítulo 1 A preocupação com os fenômenos psicológicos no período colonial lgumas informações sobre o pensamento psicológico produzido no período colonial podiam ser encontradas no artigo de Samuel Pfromm Netto, intitulado “A Psicologia no Brasil”2. Entretanto, somente a pesquisa pioneira realizada por Marina Massimi3, concluída em 1984, trouxe extenso e minucioso estudo sobre essa temática. Com base nesse trabalho, procuraremos, neste capítulo, tão somente traçar uma breve caracterização da produção referente aos fenômenos psicológicos nesse período. As mais antigas bases sobre as quais, mais tarde, veio a Psicologia a se estabelecer no Brasil são reveladas pelo pensamento psicológico produzido nesse momento, denominado por Pessotti4 como período pré-institucional da Psicologia, por não terem as obras então produzidas vínculos diretos com instituições específicas, como viria a acontecer posteriormente. A preocupação com os fenômenos psicológicos aparece em obras oriundas de outras áreas do saber, tais como: Teologia, Moral, Pedagogia, Medicina, Política e até mesmo Arquitetura; encontram-se, nestas, partes dedicadas ao estudo, análise e discussão de formas de atuação sobre os fatos psíquicos. Os autores são brasileiros, com exceção de alguns que, embora tenham nascido em Portugal, aqui passaram a maior parte de suas vidas. Em geral, tiveram formação jesuítica e cursaram universidades européias, particularmente a Universidade de Coimbra. A maioria desses autores exercia função religiosa — eram preponderantemente jesuítas – ou política, tendo vários deles ocupado importantes cargos na colônia ou na metrópole. As obras são impressas na Europa, sobretudo em Portugal, pois ainda não havia imprensa no Brasil. Encontram-se nessas obras preocupações com os seguintes temas: emoções, sentidos, auto-conhecimento, educação de crianças e jovens, características do sexo feminino, trabalho, adaptação ao ambiente, processos psicológicos, diferenças raciais, aculturação e técnicas de persuasão de “selvagens”, controle político e aplicação do conhecimento psicológico à prática médica5. São encontradas referências sobre emoções e prática de seu controle ou “cura”, geralmente em sermões de edificação ético-religiosa, de autores como Padre Vieira, Frei Mateus da Encarnação Pinna e Padre Angelo Ribeiro de Sequeira; em obras de Filosofia Moral, como a de Mathias Aires Ramos da Silva de Eça, e obras médicas, como as de Francisco de Mello Franco. Tais obras apontam para análises de âmbito comportamental e tratam de assuntos como: amor, saudade, vaidade, ódio ou tristeza. Sobre isso, Massimi (1987, p. 100) afirma: “As emoções, chamadas de ‘paixões’, são consideradas pelos autores ‘forças’ potentes e cegas que, se excessivas, podem afetar o equilíbrio do organismo, tornando-se ‘enfermidades’.” Sob diferentes enfoques, escreveram sobre o “conhecimentode si”, autores como Padre Vieira e Encarnação Pinna (obtenção de conhecimento de si pelo sujeito), Azeredo Coutinho (objetivação da experiência interior) e Mathias Aires (estudo da vaidade, com base no auto-conhecimento). Essa temática guarda íntima relação com questões posteriormente abordadas pela Psicologia, sendo o auto- conhecimento assunto que permanece como objetivo da ciência psicológica e de sua prática, enquanto a preocupação com a “objetivação da experiência interior” constitui ainda hoje uma questão fundamental para a pesquisa psicológica. As sensações e os sentidos foram abordados principalmente no século XVIII e tiveram relação com o desenvolvimento das idéias empiristas. Muitos dos estudos então realizados valeram-se da observação e até mesmo de resultados obtidos pela experimentação. Nesses estudos, temas característicos da Psicologia que viria a se desenvolver já estavam prenunciados: loucura, fatores de natureza sexual, fantasias, instintos e ilusão de ótica. Trataram desses assuntos: Padre Vieira, Encarnação Pinna, Mathias Aires, Sequeira e Mello Franco. A pesquisa de Massini revela que foram freqüentes e recorrentes as preocupações com a criança e seu processo educativo, tendo sido encontrados os seguintes temas: formação da personalidade; desenvolvimento da criança; controle e manipulação do comportamento; aprendizagem; influência dos pais etc. Trataram desse tema: Alexandre de Gusmão, Mathias Aires, Mello Franco, Americus, Manoel de Andrade Figueiredo, Azeredo Coutinho e Fernão Cardim. O papel da mulher foi também abordado por diversos autores, como: Feliciano Souza Nunes, Alexandre de Gusmão, Azeredo Coutinho e Mello Franco. Várias obras tratam do papel da mulher na sociedade, abordando elementos de natureza psicológica ou a eles relacionados, tais como: gravidez, amamentação, comportamento maternal, sexualidade e seus desvios. Segundo Massimi (1984, p. 272): “... O interesse pela psicologia da mulher nasce como parte da tentativa de definição do papel da mulher na sociedade colonial e pós-colonial. Há uma diferença muito grande entre a função ou valores atribuídos à mulher índia e os que se atribuem à mulher ‘colonizada’ de acordo com os hábitos da cultura portuguesa.” Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Vale a pena destacar, no trabalho de Massimi, a referência às idéias de Alexandre de Gusmão, que defende a instrução feminina; de Feliciano de Souza Nunes, que refuta a afirmação corrente sobre a inferioridade mental da mulher e de Azeredo Coutinho que desenvolve uma metodologia específica para a instrução feminina, nos “Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória”, primeiro colégio feminino brasileiro, fundado em 1802 e que custou a seu idealizador a retirada compulsória para Portugal. Várias obras estudadas por Massimi abordam a problemática do trabalho, principalmente sob a perspectiva moral, social e psicológica. É recorrente a condenação do ócio, especialmente nas suas relações com o vício, ao qual o trabalho se contrapõe. Nessa questão, o indígena é especialmente considerado, sendo visto como preguiçoso e ocioso e, por isso, propenso ao pecado; nessa perspectiva, o trabalho é visto como meio de cura e instrumento para sua “civilização”. São discutidas questões sobre: adaptação ao trabalho, importância do trabalho para a criança, controle sobre a atividade produtiva e trabalho como instrumento de controle. Mello Franco, Alexandre de Gusmão e Mathias Aires são autores que abordam esse tema. O tema “adaptação ao ambiente” aborda a questão do “caráter brasileiro”, o que pode prenunciar elementos relacionados à Psicologia Social. Para vários autores, o ambiente é considerado como um dos fatores determinantes do comportamento; para Padre Vieira, o clima brasileiro favorece o ócio e a dissimulação, assim como para Mello Franco, para quem a natureza dispensa o homem da luta, levando-o ao ócio. Concepções como estas serão freqüentes até meados do século XX e terão relações muito próximas com o pensamento psicológico-psiquiátrico desenvolvido no Brasil. Ainda sob esse tema são abordadas questões relativas à aculturação e ao aprimoramento do domínio sobre os índios. A aplicação de conhecimentos psicológicos à Medicina é tema tratado já no final do período colonial por Mello Franco, o qual aborda questões relativas a: teorias sobre relação mente-corpo; estudos sobre os nervos e o sistema nervoso; psicopatologia; temperamentos; terapêuticas; teorias sobre o sono e os sonhos e, vale destacar, dentre suas contribuições, a concepção a respeito da sexualidade como determinante da loucura. O processo de colonização do Brasil por Portugal, no contexto da expansão econômica européia, foi pautado fundamentalmente na exploração. A metrópole decidia o que deveria ser produzido, a maneira de fazê-lo e tinha seu monopólio, tendo como finalidade exclusiva o lucro. Não houve preocupação de fato com a colonização propriamente dita, o que caracteriza o Brasil meramente como colônia de exploração. Essa situação exigiu a organização de um forte aparelho repressivo de um lado e, de outro, um sólido aparato ideológico, sustentado principalmente pela Igreja Católica, cuja função precípua era transmitir e manter uma ideologia que, em última instância, legitimasse a exploração da colônia. Nesse contexto, a Companhia de Jesus exerceu papel fundamental e manteve sua influência mesmo após sua expulsão de Portugal e, conseqüentemente, do Brasil, pelas Reformas Pombalinas. Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela A articulação entre o pensamento psicológico produzido no Brasil e os interesses metropolitanos revela-se em muitos dos conteúdos das obras estudadas por Massimi. Destes, deve-se destacar a preocupação com os índios, sobretudo no que diz respeito ao trabalho e à aculturação. Soma-se a isso a preocupação com o controle ou “cura” das emoções que, em algumas obras, sugere a busca de soluções para problemas enfrentados pela colônia, cuja natureza era fundamentalmente de ordem moral. As preocupações com a educação eram também relacionadas aos interesses metropolitanos, quer pela difusão da ideologia dominante, quer pela necessidade de formação de quadros destinados à organização da empresa colonial. Entretanto, se de um lado é patente a condição de dependência do pensamento psicológico produzido no Brasil em relação aos interesses metropolitanos, por outro lado é impossível negar o caráter de originalidade em muitas obras, particularmente no que se refere às idéias psicológicas propriamente ditas, o que pode ser constatado em muitos elementos apontados por Massimi em sua pesquisa. Destes, vale destacar os prenúncios da psicoterapia, os estudos sobre as crianças e sua educação, a determinação do ambiente sobre o comportamento, as concepções contrárias à completa submissão da mulher, sobretudo o reconhecimento da capacidade intelectual feminina e, finalmente, as relações entre a prática médica e o saber psicológico. Percebe-se, assim, que a produção de idéias psicológicas na colônia refletia as contradições da sociedade colonial e, por decorrência, da metrópole, na medida em que a primeira constituía-se em função das relações determinadas pela segunda. Nesse sentido, é possível compreender que as idéias psicológicas produzidas apresentassem concomitantemente articulações com os interesses metropolitanos, posições de confronto com estes e, por outro lado, originalidade do ponto de vista dos estudos psicológicos. Essas idéias são faces de umamesma realidade, pois refletem as contradições da formação social em questão. Assim, é possível compreender a originalidade de várias idéias psicológicas como tendo surgido do fato de que, em busca de soluções para alguns problemas, a criatividade tornou-se um imperativo; as necessidades impostas pela realidade exigiram soluções que, ao mesmo tempo que buscavam a manutenção da ordem estabelecida, também se constituíam em forças impulsionadoras do real em direção ao futuro, ou ainda, poderiam estar articuladas às forças que colocavam em questão o próprio “status quo”, no sentido da busca de uma nova ordem, o que pode ser confirmado pelo fato de que vários autores estudados por Massimi tiveram em uma ou outra ocasião problemas com o poder metropolitano ou com a Inquisição. O pensamento psicológico produzido no período colonial é de extrema importância para a compreensão da construção histórica da Psicologia no Brasil, pois explicita suas mais antigas raízes, muitas das quais referentes a assuntos que permaneceram em pauta, às vezes com profundas mudanças nas formas de abordagem e outras vezes mantendo, ao longo do tempo, sua forma e conteúdo, como será demonstrado adiante. Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela 2 PFROMM NETTO, S. A Psicologia no Brasil, in: FERRI, M. G. e MOTOYAMA, S. (orgs.) História das Ciências no Brasil. São Paulo, EPU e EDUSP, 1978-1981, pp. 325/276. 3 MASSIMI, M. História das Idéias Psicológicas no Brasil em obras do período colonial. São Paulo, dissertação de mestrado, USP, 1984. 4 PESSOTTI, I. Notas para uma História da Psicologia brasileira, in: Quem é o psicólogo brasileiro? São Paulo, Edicon e CFP, 1988, pp. 17/31. 5 Sugere-se também a leitura de: MASSIMI, M. História da Psicologia Brasileira. São Paulo, EPU, 1990 e MASSIMI, M. As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial, in: História da Psicologia – Cadernos PUC, nº 23. São Paulo, EDUC, 1987, pp. 95/117. O Capítulo 2 A preocupação com os fenômenos psicológicos no século XIX Brasil sofreu grandes mudanças no século XIX, deixando a condição de colônia e transformando-se em império, ainda que se mantendo sob o poder da realeza portuguesa. A condição de autonomia, mesmo que relativa, trouxe profundas transformações à sociedade brasileira, entre as quais incluem-se significativas mudanças no plano cultural, inserindo-se aí a produção de idéias e práticas de natureza psicológica. Nesse contexto, o pensamento psicológico produzido nesse período diferenciou-se do precedente, particularmente pela vinculação às instituições então criadas. A produção do saber psicológico ainda foi gerada, no entanto, no interior de outras áreas de conhecimento, fundamentalmente na Medicina e na Educação, que serão tratadas a seguir, tendo em vista a explicitação da maneira como se deu, a partir delas, o desenvolvimento do pensamento psicológico no período em questão. Para melhor organizar a exposição, dividiu-se este capítulo em duas partes: o pensamento psicológico na Educação e o pensamento psicológico na Medicina. No primeiro item serão abordados os aspectos gerais da Educação no período, os conteúdos psicológicos no ensino e as idéias psicológicas na Pedagogia. Em relação à Medicina, serão abordadas as produções relativas às Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, do Hospício Pedro II e do Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. 2.1. O Pensamento Psicológico na Educação Preocupações com o processo educativo na colônia permaneceram no século XIX, guardando muitas das características do período precedente, porém, assumindo um caráter mais sistemático, seja pela gradativa vinculação institucional, seja pela maior elaboração no trato de seus conteúdos. Farela Com a transferência da Corte para o Brasil, em 1808, novas necessidades surgiram, tornando necessária a formação de quadros para os aparatos repressivo e administrativo do governo, demandando uma maior preocupação com a Educação e com o ensino. Assim, pode-se dizer que foi a partir desse momento que efetivamente foram criados os cursos superiores no país, embora tendo como finalidade quase exclusiva a formação profissional, praticamente inexistindo preocupação com a produção de conhecimento. O ensino secundário manteve ainda por um bom tempo a herança das aulas avulsas, de caráter precipuamente propedêutico, voltado para o ensino quase exclusivo dos alunos do sexo masculino e sob o domínio da iniciativa privada, sobretudo da Igreja Católica; a exceção foi o Colégio Pedro II, de caráter universalista e enciclopédico, caracterizado por ser elitista e aristocrático, apesar de ter finalidade modelar. Na década de 30 foi criada, em Niterói, a primeira Escola Normal, seguida de muitas outras, oferecendo cursos de no máximo dois anos, sem garantia de formação profissional e com docentes pouco preparados; somente em 1880, em São Paulo, o curso passou para três anos de duração. Em 1890, no Rio de Janeiro, foi criado o “Pedagogium”, com a finalidade de constituir-se em centro de pesquisas educacionais e museu pedagógico, sob a inspiração de Rui Barbosa. No que diz respeito ao pensamento brasileiro no século XIX, extensivo à Educação, sofreu este profunda influência européia. As principais correntes de pensamento que aqui penetraram foram o liberalismo e o positivismo, embora houvesse ainda, no pensamento filosófico, forte presença do tomismo e do empirismo, além de influências do espiritualismo francês e do idealismo alemão. Essas idéias tiveram grande influência sobre o pensamento psicológico, não apenas como tendência geral, mas por constituírem-se como conteúdos relacionados às questões de natureza psicológica. Esses conteúdos são revelados particularmente pelos programas de vários cursos, sobretudo pelas obras filosóficas então difundidas6. Teólogos, professores e médicos são freqüentemente os autores de tais obras filosóficas e tendem a considerar a Psicologia como parte integrante da metafísica, tendo como objeto de estudo geralmente a “alma”, o “espírito” e o “eu”. Em pesquisa empreendida por Massimi (1989), os assuntos encontrados em tais obras filosóficas são divididos pela autora em duas categorias: os conceitos relativos aos fundamentos da vida psíquica (alma, eu, consciência, identidade, caráter, faculdades etc.) e os conceitos referentes a fenômenos psíquicos específicos (percepção, emoção, cognição, motricidade etc.). Esses assuntos aparecem freqüentemente em obras psicológicas e pedagógicas das primeiras décadas do século XX, porém abordados mais cientificamente. Obras de Teologia Moral, nessa época, abordam também questões de ordem psicológica. Além dos conteúdos de ensino, a preocupação especificamente pedagógica foi também fonte para o desenvolvimento do pensamento psicológico. Há uma crescente preocupação com os fenômenos psíquicos, especialmente no que diz respeito aos métodos de ensino, pois estes remetem à necessidade de conhecimento sobre o educando e à formação do educador, o qual deve dominar esse saber para realizar mais eficazmente sua ação pedagógica. Esses conteúdos são encontrados nos programas da disciplina Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Pedagogia das Escolas Normais, os quais tratam geralmente de questões como: educação das faculdades psíquicas, aprendizagem e utilização de recompensas e castigos como instrumentos educativos. Há evi- dente influência de pensadores como Locke, Rousseau, Pestalozzi, Herbart e Spencer, além da presença do dualismo interacionista de Descartes, conforme demonstra Massimi (1989). Há grande preocupação pedagógica com a educaçãoou com o desenvolvimento das faculdades psíquicas da criança, especialmente a inteligência, seguida das sensações e da vontade. Encontra Massimi (1989), em sua análise, a concepção de inteligência “... como uma faculdade complexa, composta de várias funções: atenção, percepção, imaginação, intuição, abstração e generalização, associação de idéias, comparação, juízo, raciocínio, razão, memória e linguagem.” (p. 361) As preocupações com as questões de ordem psicológica pela Pedagogia, no século XIX, esboçam a sistematização que será empreendida a partir de seu final e início do século seguinte, com maior aprofundamento e especialmente maior rigor metodológico em seu estudo. Os temas pouco diferem nos dois períodos, o que permite afirmar que não há ruptura, mas uma evolução no tratamento dessas questões, confirmando a importância da relação entre Psicologia e Pedagogia. Acrescenta-se a isso que a relação entre Psicologia e Pedagogia guarda íntima relação com o pensamento escolanovista, cuja penetração no Brasil inicia-se no século XIX, mas cuja efetiva explicitação e consolidação somente ocorrerá no século XX. 2.2. O Pensamento Psicológico na Medicina As Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia foram criadas em 1832, tendo sua origem nas Cadeiras de Cirurgia, na Bahia, e de Cirurgia e Anatomia, no Rio de Janeiro, instaladas em 1808. Nessas faculdades, como exigência para a conclusão do curso, o aluno deveria defender publicamente uma tese de doutoramento ou inaugural, que lhe conferia o título de doutor. Grande parte dos trabalhos sobre assuntos psicológicos, nessa época, é proveniente dessas teses, que tratavam de temas relacionados a: Psiquiatria, Neurologia, Neuriatria, Medicina Social e Medicina Legal. Muitas dessas teses antecedem a criação formal de uma cátedra afim às questões psicológicas, pois a primeira delas, denominada “Clínica das Moléstias Mentais”, foi criada em 1881 e, desde 1836, encontram-se teses que tratam do fenômeno psicológico. Os assuntos tratados são muito variados, dentre os quais: paixões ou emoções, diagnóstico e tratamento das alucinações mentais, epilepsia, histeria, ninfomania, hipocondria, psicofisiologia, instrução e educação física e moral, higiene escolar, sexualidade e temas de caráter psicossocial. Os mesmos assuntos foram também tratados em artigos publicados nos “Annaes Brasilienses de Medicina” e em outras revistas médicas, em obras isoladas e mesmo em teses de alunos brasileiros que fizeram sua formação na Europa. Farela Farela A primeira tese que trata do fenômeno psicológico foi defendida em 1836, por Manoel Ignacio de Figueiredo Jaime, denominada “As paixões e afetos d’alma em geral, e em particular sobre o amor, amizade, gratidão e o amor da pátria”, de influência cartesiana e muito próxima das temáticas abordadas no período colonial. Outras, além desta, tratam assunto semelhante, sendo que, no final do século, as expressões por elas usadas já não mais aparecem, dando lugar à palavra “emoção”. Temas relativos à sexualidade são muito freqüentes, como: cópula, onanismo, histeria, ninfomania, prostituição etc., valendo ressaltar que, em 1914, a tese de Genserico Aragão de Souza Pinto evolui para um tratamento teórico baseado na Psicanálise. Crescente interesse pela Medicina Legal é observado, assim como sua proximidade com a Psicologia Social. A tese de Júlio Afrânio Peixoto, denominada “Epilepsia e Crime”, é demonstrativa desse fato. Nos anos finais desse período, temas bastante próximos da Psicologia propriamente dita começam a aparecer de maneira significativa, revelando maior rigor metodológico e uma base científica mais apurada. Vale lembrar que a Psicologia conquistou o estatuto de ciência autônoma no último quartel daquele século, momento em que aparecem teses que podem ser identificadas com a ciência psicológica. No final do século XIX é defendida a tese “Duração dos Atos Psíquicos Elementares”, de Henrique Roxo, considerada por Lourenço Filho, Pessotti e Pfromm Netto como o primeiro trabalho de Psicologia Experimental, baseado em número significativo de dados obtidos experimentalmente, com o uso do “psicômetro de Buccola”. Muitas teses podem ser consideradas como pertencentes à Medicina Social7 e tratam de questões relacionadas à higiene e àquilo que hoje consideramos como fatores ou fenômenos psicossociais. As condições de saneamento das cidades e de saúde da população eram extremamente precárias, sobretudo nas cidades e para as camadas mais pobres. A presença de “leprosos, loucos, prostitutas e mendigos” nas ruas, aliada ao clima quente e à posição geográfica da cidade (principalmente Rio de Janeiro) eram questões preocupantes para os médicos, para quem as “sujeiras” e “imundícies” — materiais e morais — que grassavam nas cidades deveriam ser eliminadas. É nesse contexto que se origina, segundo Roberto Machado (1978), a Medicina Social no Brasil, preocupada mais com a “saúde” do que com a “doença”, buscando as causas das moléstias para preveni-las. Busca-se, pois, a normalização da sociedade, com vistas a uma formação social sadia, composta por indivíduos sadios; ou seja, é preciso que a sociedade seja organizada, livre da “desordem” e dos “desvios” que devem ser eliminados por meio de um projeto profilático. A Medicina Social, nesse quadro, elaborará propostas para as várias instituições sociais, com finalidade de higienizá-las, preocupando-se com hospitais, cemitérios, quartéis, bordéis, prisões, fábricas e, de maneira especial, com as escolas, tema esse muito freqüente nas teses de doutoramento. Para a higienização das escolas são propostas formas de controle do comportamento, em que se discute o uso de recompensas e castigos para eliminar, por exemplo, a desobediência e a prática da Farela Farela Farela Farela Farela masturbação. Esta última, segundo Machado (1978), é vista como algo que “... provoca a tísica, a loucura, a epilepsia, a hipocondria, a flegmasia crônica de todos os órgãos e finalmente a morte” (p. 304); acrescenta ainda o autor que uma das medidas preventivas para o onanismo é a prática da ginástica. Deve ser lembrado que a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro esteve articulada às Faculdades de Medicina na defesa da Medicina Social. A Medicina Social contribuiu também no plano da intervenção social, o que remete à defesa da criação de hospícios, uma necessidade imperativa para a higienização e a normalização da sociedade. Até meados do século XIX, não havia qualquer forma de assistência específica aos doentes mentais. Os “loucos” erravam pelas ruas, eram encarcerados nas prisões ou reclusos em celas especiais das Santas Casas de Misericórdia, sendo que algumas destas possuíam suas “casinhas de doudos”. Por volta de 1830 começam a aparecer as reivindicações para a criação de hospícios, partindo principalmente dos médicos, sobretudo os higienistas ligados à Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, por meio de artigos em que eram criticadas as condições de abandono dos “loucos”, propondo a criação de um asilo higiênico e tratamento moral. Essa proposta vincula-se ao projeto da referida sociedade para organizar, disciplinar e normalizar a cidade, em busca da salubridade geral do espaço urbano. Para Machado (1978), a constituição da Psiquiatria no Brasil inicia-se com a criação dos hospícios, articulada às finalidades da Medicina Social; afirma ele: “Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o louco com o objetivo de reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivo que ela viu caracterizada em suadoença. Nasce assim, no Brasil dos meados do século XIX, não uma ‘psiquiatria preventiva’, mas a psiquiatria como instrumento da prevenção.” (p. 380) Assim, em 1842, é inaugurado no Rio de Janeiro o Hospício Pedro II, cujas práticas foram fundamentadas nas idéias de Pinel e Esquirol. Seu funcionamento guiava-se pelos princípios de isolamento, vigilância, distribuição e organização do tempo dos internos, com vistas à repressão, controle e individualização. Considerava-se a necessidade de afastar o “louco” das causas da loucura, isto é, da sociedade e da família, e romper com seus hábitos para realizar-se o tratamento. Via-se o trabalho como excelente terapêutica, por sua necessidade de disciplina, sendo o trabalho agrícola especialmente recomendado; entretanto, essa terapia não era igualmente aplicada, sendo prescrita sobretudo aos internos pobres. Nesse sentido, a Psiquiatria brasileira evoluiu de uma concepção que propunha a cura da “loucura” com sangrias e banhos para uma preocupação de natureza comportamental, em que o tratamento passou a basear-se em intervenções no plano moral. Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Em 1848 é aprovada por lei provincial a criação de um hospício em São Paulo e, em 1852, é inaugurado o Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo8, na Av. São João, nas proximidades da Av. Ipiranga, tendo ficado conhecido como Hospício Velho. Sua ação ficou limitada à reclusão, objetivando excluir os “loucos” das ruas da cidade. Sua direção ficou a cargo de um alferes, Tomé de Alvarenga, tendo negros libertos e egressos das prisões como funcionários, os quais eram mal vistos socialmente, o que explica a aceitação de um trabalho que era considerado repugnante e aviltante. Muitos dos internos eram estrangeiros, geralmente imigrantes italianos ou negros alforriados; a maioria era do sexo masculino. O hospício sofreu muitas rebeliões e vários surtos de epidemia. Para Cunha (1986), o hospício “causava incômodo ou escândalo – quando não medo puro e simples – aos seus seletos vizinhos do centro da cidade. Seu administrador não cessa de enfatizar, em seus relatórios, a impossibilidade de conter a loucura naqueles exíguos sete cômodos, sem ventilação, sem condições sanitárias, sem condições de segurança. O espaço do internamento produz o medo constante da contaminação da cidade, e tenderá a ser deslocado para longe das vistas temerosas.” (p. 61) Assim, em 1862, o Hospício Velho mudou-se para a Ladeira Tabatinguera. Essa mudança ocorre em função da problemática disciplinar, não havendo preocupação terapêutica específica. Permanecem, no entanto, os problemas de superlotação, altas taxas de mortalidade e morbidade, fugas e violência. Os métodos disciplinares não são mudados. Somente com o ingresso do médico alienista Francisco Franco da Rocha, o hospício paulista passa para uma fase em que a preocupação é de caráter médico-terapêutico. Vê-se, pois, que havia diferenças profundas entre os hospícios do Rio de Janeiro e de São Paulo. O primeiro teve, desde seu início, uma preocupação médico-psiquiátrica, com base em teorias e práticas da Psiquiatria estrangeira. O hospício paulista, ao contrário, funcionou tão somente como espaço de reclusão, aparecendo uma concepção psiquiátrica apenas no final do século, com Franco da Rocha. Tal diferença pode ser em parte explicada pelo fato de que o Rio de Janeiro tinha, nessa época, um clima bastante propício à discussão e ao desenvolvimento do pensamento psiquiátrico, contando com a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a Faculdade de Medicina, instituições estas que foram fundamentais para a evolução do pensamento e da prática alienista no Rio de Janeiro. Ainda nesse século foram criados: o Hospício São João de Deus, em 1861, em Recife; um em Salvador, em 1874 e outro em Porto Alegre, em 1884. 2.3. À Guisa de Síntese Farela Farela Farela Farela As transformações históricas por que passou a sociedade brasileira, no seio da qual foi produzido o pensamento psicológico aqui em estudo e o desenvolvimento das idéias psicológicas na Europa, que caminhavam para o estabelecimento de sua autonomia, são fatores fundamentais para a compreensão da História da Psicologia no Brasil. O fim da condição colonial permitiu o desenvolvimento de várias instâncias da formação social brasileira, dentre as quais as de âmbito cultural. A criação de cursos superiores, a impressão de livros e o surgimento de várias instituições são exemplos dessa mudança. A busca de uma “identidade nacional”, principalmente advinda de intelectuais que buscavam a compreensão e a solução dos problemas nacionais, deve também ser destacada; a preocupação com a saúde e a educação encontram-se nesse plano. Ao mesmo tempo, é possível dizer que o Brasil, agora nação autônoma, adquiria maior facilidade de contato com o resto da Europa, isento da mediação de Portugal, o que facilitava a penetração de idéias correntes no Velho Mundo, especialmente na França, indiscutível centro intelectual da época. A produção de idéias psicológicas foi também produto dessa sociedade em transformação, sobretudo na busca de respostas às necessidades que se diversificavam e se impunham pelos novos tempos. As transformações econômicas, com suas conseqüências para o incremento do processo de urbanização, acabaram por trazer à tona novos problemas ou a explicitação de problemas antigos, que o país não se encontrava preparado para resolver. Nesse contexto, a Medicina e a Educação foram chamadas a contribuir para a solução dos problemas, incluindo-se aí a preocupação com o fenômeno psicológico em várias de suas dimensões. O desenvolvimento do pensamento psicológico no Brasil, no século XIX, não pode ser visto porém apenas na sua dimensão local. É necessário considerar que a preocupação com os fenômenos psicológicos vinha, durante séculos, se desenvolvendo; entretanto, é no século XIX que a evolução da Filosofia, de um lado, e dos conhecimentos produzidos pela Fisiologia, de outro, começaram a caminhar em direção a uma possível síntese. É possível dizer que o século XIX foi, para a Psicologia, o momento fundamental que preparou as condições para sua autonomia. Esse período não apenas sintetizou e aprofundou o conhecimento a respeito dos fenômenos psicológicos, mas, mais que isso, as mudanças ocorridas na Europa do século XVIII criaram desafios e necessidades que precisavam ser respondidas pelo conhecimento produzido no século XIX. Aparece aqui também a problemática do incremento do processo de urbanização decorrente, na Europa, do avanço do modo-de-produção capitalista. Assim, uma sociedade que enfrentava, de um lado, os problemas relativos à saúde, saneamento, habitação e outros, criados pela densidade demográfica e, por outro lado, os movimentos sociais que questionavam as bases sobre as quais aquela sociedade se erigia, precisava de instrumentos para melhor compreender tais problemas e sobre eles intervir. Era necessário buscar o controle, não apenas de problemas como epidemias, mas também da conduta humana. A isso acrescenta-se que a ideologia burguesa colocava no indivíduo o fundamento de uma sociedade baseada na propriedade privada, portanto pessoal e individual; fazia-se necessário, pois, compreender o homem nessa dimensão. De resto, é preciso Farela Farela considerar que uma formação social baseada na divisão social do trabalho e no avanço técnico apontava para a especialização do conhecimento. Nesse panorama, o contato de muitos brasileiros com os movimentos intelectuaiseuropeus inevitavelmente fez com que essas idéias, lá em franca expansão, mais cedo ou mais tarde aqui chegassem também. A profusão de idéias na Europa, somada às necessidades da sociedade brasileira, permitiu que aqui se desenvolvessem, dentre várias áreas de conhecimento, também as idéias psicológicas. Farela 6 Marina Massimi realiza em sua tese de doutoramento um extenso estudo sobre as idéias psicológicas difundidas em instituições de ensino de São Paulo e Rio de Janeiro, no século XIX, encontrando um material revelador da preocupação com os fenômenos psicológicos no período em questão. Ver MASSIMI, M. A Psicologia em Instituições de Ensino brasileiras do século XIX. São Paulo, tese de doutoramento, USP, 1989. 7 Para aprofundamento nessa questão, ver: MACHADO, R. e outros. Danação da norma: Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1978. 8 Para aprofundamento sobre o hospício de São Paulo, ver: CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. Parte II N A psicologia científica e seu processo de autonomização no Brasil ovas e significativas transformações ocorreram, a partir do final do século XIX, tanto na sociedade brasileira quanto na Psicologia. O Brasil adotou o modelo republicano, ao mesmo tempo em que se consolidava e atingia pleno desenvolvimento a economia de base agrário-comercial-exportadora, vinculada fundamentalmente à produção cafeeira, o que contribuiu para a geração de condições que possibilitaram a efetivação do processo de industrialização do país. Tais fatores concorreram para a expansão do processo de urbanização e para a definição do pólo econômico-político-cultural do país na região Sudeste. Assistiu- se, nesse momento, à expansão do ideário liberal entre os intelectuais brasileiros, cuja participação política e cultural tornou-se intensa, trazendo à tona a preocupação com a “questão nacional” e a busca de caminhos para o progresso e a modernidade. A Psicologia, por sua vez, adquiriu no final do século passado o estatuto de ciência autônoma; processo esse originado na Europa e seguido de acelerada evolução dessa ciência não apenas em seu solo original, mas também nos Estados Unidos. Na virada do século, ocorreu intenso desenvolvimento da ciência psicológica em todas as instâncias, quer no plano teórico – destacando-se a diversidade de abordagens surgidas nessa época e o aumento significativo da produção de pesquisas –, quer no plano prático, em que esta ciência penetrou e ampliou seu potencial de aplicação. A concomitância desses dois conjuntos de fatores e a possibilidade efetiva de estabelecimento de relações entre eles, em função da articulação entre potencialidades e necessidades, passíveis de serem mutuamente realizadas, permitiram um avanço sem precedentes na história da Psicologia no Brasil. Os problemas que o Brasil enfrentava no século XIX tenderam, com a virada do século, a agravar- se e outros vieram a eles se somar, de tal maneira que o pensamento psicológico, já em franco processo de desenvolvimento no país, encontrou terreno fértil para penetrar e estabelecer-se na sua dimensão científica e caminhando para sua autonomia teórica e prática em relação às áreas do saber no interior das quais havia se desenvolvido até então, como a Medicina e a Educação. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da ciência psicológica e a ampliação de seu campo de ação maximizavam as Farela Farela Farela possibilidades concretas de a Psicologia contribuir com possíveis respostas para as questões que se impunham. A Psicologia e outras áreas de conhecimento foram buscadas no sentido de contribuir com soluções para os problemas relacionados à saúde, à educação e à organização de trabalho, no interior de uma formação social dependente e atrasada, em busca da mo-dernidade representada pela concretização do ingresso do Brasil no mundo industrializado. Nesse contexto e em face de tais problemas ocorreram importantes realizações da Psicologia no Brasil, cujas principais produções são ainda oriundas das instituições médicas e educacionais. A partir dessa base e em seu interior é que a Psicologia se desenvolveu, conquistando sua autonomia em relação às áreas do saber no interior das quais evoluíra até então, por meio da definição e da delimitação cada vez mais explícitas de seu objeto de estudo e de seu campo próprio de ação. Tentaremos demonstrar que a produção psicológica no interior de algumas instituições delineia-se cada vez com maior clareza, de um lado pela diferenciação gradativa de outras áreas de conhecimento, como a Psiquiatria por exemplo, e de outro lado pela penetração das idéias e práticas já constitutivas daquilo que, na Europa e nos Estados Unidos, era considerado como Psicologia científica. As personagens dessa história são principalmente médicos, educadores, bacharéis em direito e até engenheiros, sendo que muitos deles acabaram por dedicar-se exclusivamente à Psicologia e podem ser considerados como os primeiros psicólogos brasileiros. Acrescentam-se a eles vários psicólogos estrangeiros que para cá vieram ministrar cursos, proferir palestras ou prestar assistências técnicas específicas, dos quais muitos aqui permaneceram e se radicaram definitivamente no país. Abordaremos, a seguir, a produção psicológica na Medicina, na Educação e na sua aplicação à organização do trabalho, no período compreendido entre a última década do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Farela Farela A Capítulo 1 A psicologia em instituições médicas tendência do século XIX manteve-se por algum tempo, diferenciando-se gradativamente, sendo que as preocupações estritamente psiquiátricas foram se delineando com maior clareza e delimitando mais explicitamente suas fronteiras com a Psicologia. Tais fatos ocorreram ainda no interior da Medicina, mas já caracterizada como especialidade psiquiátrica, particularmente nas instituições asilares e em seu correlatos, como a Medicina Legal ou a Higiene Mental. A principal evidência disso foi a criação de laboratórios de Psicologia em diversas instituições psiquiátricas, cuja produção foi principalmente de natureza psicológica. O desenvolvimento dos saberes psiquiátrico e psicológico e suas decorrências práticas foram fatores fundamentais para que ambas as áreas adquirissem contornos mais nítidos e, conseqüentemente, uma maior delimitação entre si. O país encontrava-se ainda na mesma (e talvez pior) situação que no século anterior, no que diz respeito às precárias condições de saneamento e saúde do povo brasileiro. Intelectuais e políticos reclamavam da Medicina intervenções concretas por meio de um projeto profilático, com a finalidade de erradicar, ou pelo menos minimizar, as inúmeras doenças infecto-contagiosas que assolavam o país. Esse movimento, no âmbito da Medicina Geral, estava intimamente relacionado à questão da Higiene que, nos anos iniciais do século XX, estava revestido de ampla responsabilidade frente à realidade. É no bojo de tais fatos que tanto o pensamento psiquiátrico quanto o psicológico encontraram fértil terreno para seus estudos e para a aplicação de seus conhecimentos por meio da Higiene Mental, instância derivada da Higiene em sua expressão geral. As ligas de Higiene Mental foram, assim, importantes fontes de produção de pesquisa e de práticas relacionadas à Psicologia. Para expor essa linha de desenvolvimento histórico da Psicologia, abordaremos a seguir as produções dos hospícios, incluindo a Liga Brasileira de Higiene Mental; as produções relativas às intermediações entre Psiquiatria e Direito, que foi um importante veiode desenvolvimento da Psicologia, principalmente por meio da Medicina Legal, e das teses de doutoramento das Faculdades de Medicina. Farela Farela Farela 1.1. Os hospícios e algumas instituições correlatas O sustentáculo das produções que serão apresentadas a seguir foi o alienismo. Surgiu este na Europa, como área que se autonomizou em relação à Medicina tradicional, estabelecendo como seu objeto de estudo a “razão”, cuja compreensão não poderia, segundo seus defensores, situar-se na Anatomia ou na Fisiologia, pois teria aquela uma natureza diversa. Ao alienismo veio somar-se, mais tarde, o organicismo, que trazia a concepção de loucura como organicamente determinada. O pensamento psiquiátrico brasileiro da época tinha como principal característica o ecletismo, que conjugava o alienismo clássico, especialmente de Pinel e Tuke, com o organicismo, em particular numa de suas vertentes, a teoria da degenerescência, fortemente calcada na concepção da determinação hereditária da loucura. A teoria da degenerescência propunha ações que extrapolavam os muros asilares, propondo a higienização e a disciplinarização da sociedade. Considerava ainda a existência de uma hierarquia racial, estando no ápice a raça ariana e na base a raça negra; muitos teóricos acreditavam ser os negros mais propensos à degeneração por sua inferioridade biológica. No Brasil, essas duas correntes juntam-se numa só experiência, em que a exclusão do “louco” deveria ser compartilhada com a prevenção “social” da loucura. O alienismo havia sido, no século anterior, expressão da Medicina Social, que incluía em seu projeto profilático a preocupação com a pobreza, a marginalidade social, o crime e a loucura. Como solução apresentava-se a necessidade de um efetivo controle sobre a massa urbana, com vistas à sua disciplinarização. Nesse contexto, ganha força a teoria da degenerescência. Essas idéias são incrementadas na virada do século, com o agravamento dos problemas urbanos, de tal maneira que o controle das massas impunha-se como premente necessidade para uma sociedade que almejava ingressar num efetivo processo de industrialização, sobretudo no que diz respeito ao proletariado. Assim, a articulação entre pensamento psiquiátrico e controle do processo produtivo revela-se explicitamente. A preocupação com a “ordem” urbana e com o “progresso” baseia-se também nos princípios positivistas, ainda fortemente arraigados no ideário brasileiro. A questão da “ordem” assume grande importância nessa conjuntura, devendo o asilo excluir do convívio social aqueles que não se adaptassem às normas estabelecidas, isto é, os “desordeiros”, estando incluídos nessa categoria os indivíduos engajados nos movimentos sociais organizados. Tais concepções, embora majoritárias, não foram unânimes, o que demonstraremos adiante pela experiência de Ulysses Pernambuco em Recife. Além desta, apresentaremos a seguir algumas considerações sobre o Hospício do Juquery, o Hospital Nacional de Alienados, a Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro e as Ligas de Higiene Mental. Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Farela Hospício do Juquery9 Os primórdios do Hospício do Juquery situam-se no Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. Sua criação é obra de Franco da Rocha, que empreendeu a reforma psiquiátrica em São Paulo, denunciando a precariedade da assistência aos doentes mentais e defendendo uma nova instituição, baseada em práticas científicas, sobretudo no “asilamento racional”. O Hospício do Juquery foi construído fora da zona urbana, sendo seu projeto arquitetônico de autoria de Ramos de Azevedo. Em 1898 já funcionavam as colônias agrícolas; e suas dependências foram várias vezes ampliadas ao longo do tempo, sendo anexados o pavilhão para “crianças anormais”, o laboratório histoquímico e o Manicômio Judiciário. Franco da Rocha e seu sucessor, Pacheco e Silva, defendiam a centralização da assistência psiquiátrica como forma de gerar condições para o estudo da loucura, com base na descrição, comparação e classificação, revelando concomitantemente a preocupação em demonstrar a pertinência da teoria da degenerescência. Segundo Cunha, a produção do hospício demonstrava que: “o interesse se desdobra a partir de quadros nosológicos já configurados e volta-se para a identificação das formas particulares das ‘doenças’ naquela sociedade particular, como decorrência de uma herança genética onde amalgamavam-se imigrantes, escravos e todo tipo de sangue degenerado: o impacto do crescimento urbano no crescimento da sífilis, deflagradora de um tipo determinado de patologia mental (...); a loucura associada às caracteristicas raciais e o significado disto em sua apresentação na sociedade miscigenada do país; a correspondência entre loucura e crime; a relação entre as formas de doença mental e os padrões culturais ‘atrasados’ como (...) as religiões ‘primitivas’ dos negros e dos pobres” (1986, p. 77). O Juquery representou em São Paulo o pensamento psiquiátrico hegemônico no Brasil, nessa época. Sua prática articulou-se às necessidades trazidas pelo processo de industrialização que se acelerava na cidade e teve uma dimensão política que era a de “conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores sociais não enquadráveis nos dispositivos penais; permitir a guarda (...) e a regeneração ou disciplinarização de ind/ resistentes às disciplinas do trabalho, da família e da vida urbana; reforçar papéis socialmente importantes para o resguardo da ordem e da disciplina, medicalizando comportamentos desviantes ( ...) e permitindo que sua reclusão possa ser lida como um ato em favor do louco, e não contra ele” (Cunha, 1986, p. 80). Farela O hospício vai gradativamente abandonando sua preocupação com a loucura individual e assumindo tarefas de ordem social, sobretudo no que diz respeito ao controle da força de trabalho. Do ponto de vista prático, as técnicas “científicas” utilizadas consistiam, por exemplo, em: alternância de banhos frios e quentes, malarioterapia, traumaterapia, laborterapia e terapias medica- mentosas. A produção do Juquery circunscreve-se especificamente no âmbito da Psiquiatria, não trazendo contribuição direta para o conhecimento e a prática da Psicologia. Entretanto, sua preocupação com a loucura abarca, sem sombra de dúvidas, o fenômeno psicológico, embora sua maior contribuição seja a de demarcar mais nitidamente as fronteiras entre a Psicologia e a Psiquiatria e, conseqüentemente, demonstrar nesse caso um fator relevante para a compreensão do processo de autonomização da ciência psicológica. É necessário reconhecer, entretanto, que ambas as áreas tratam, sob enfoques e fundamentos diversos, fenômenos de uma mesma natureza e que é inquestionável que, apesar das fronteiras, há intersecções tanto do ponto de vista do objeto de estudo quanto do ponto de vista prático. Soma-se a isso que suas produções situam-se numa dada realidade, sendo que cada uma, a seu modo, busca responder às suas demandas. Hospital Nacional dos Alienados Após a proclamação da república, o Hospício Pedro II passou a ser chamado Hospital Nacional dos Alienados10 e sua administração transferida ao Estado, em substituição à Santa Casa de Misericórdia. Em 1902, após a detecção de inúmeros problemas na instituição, foi nomeado para sua direção Juliano Moreira, cuja prática inaugura “uma psiquiatria cujos fundamentos teóricos, práticos e institucionais constituíram um sistema psiquiátrico coerente” (Costa, 1976, p. 26). Esse hospício pode servisto como o primeiro no Brasil que tratou a loucura do ponto de vista eminentemente médico. Nomes consagrados como Henrique Roxo, Afrânio Peixoto e Mauricio de Medeiros contribuíram com a constituição da prática psiquiátrica instalada na instituição. Em 1907, sob a direção de Juliano Moreira, é criado o provável segundo laboratório de Psicologia no Brasil (o primeiro teria sido no “Pedagogium”, em 1906), denominado Laboratório de Psicologia Experimental da Clínica Psiquiátrica do Hospital Nacional dos Alienados11. Esse laboratório foi chefiado por Maurício de Medeiros, construído sob a influência de Georges Dumas, com quem Medeiros trabalhou em Paris, no laboratório de Psicologia do Hospital de Saint’Anne. Nesse hospício, também sob a direção de Juliano Moreira, responsabilizou-se Heitor Carrilho pelo setor que deveria abrigar os “criminosos loucos”, gérmen do Manicômio Judiciário, criado em 1921. O Hospital Nacional dos Alienados foi, como o Juquery, um asilo modelo para o pensamento psiquiátrico da época, representando a tendência vigente em que o ecletismo tornou-se posição Farela Farela praticamente hegemônica. Para ele confluíram médicos cariocas e baianos, representando as orientações de Teixeira Brandão e Raimundo Nina Rodrigues respectivamente, sendo que ambas as tendências tiveram, apesar de suas particularidades, como seu principal fundamento a Medicina Social e seus motivos de natureza sócio-política. Ao contrário do Juquery, no entanto, nesse hospício é explícito o vínculo com a Psicologia, concretizado na existência do laboratório. Nesse sentido, o Hospital Nacional dos Alienados pode ser visto como uma instância produtora de conhecimento psicológico, tendo abrigado profissionais que, em seu laboratório ou fora dele, produziram relevantes obras psicológicas, como Maurício de Medeiros e Plínio Olinto. Isso remete à questão de que a Psiquiatria no Brasil, em sua manifestação institucional, assumiu parcela da produção psicológica, vinda não somente da tradição passada, quando não havia qualquer forma de delimitação entre as duas áreas de saber, mas também pelo fato de que a Psiquiatria necessita do intercâmbio com o conhecimento psicológico, fomentando e sediando sua pesquisa. Por fim, deve-se dizer que a impossibilidade de acesso aos documentos que registram a produção do laboratório, pois esses encontram-se perdidos, compromete sobremaneira a avaliação mais profunda da participação desse hospício e de seu laboratório na história da Psicologia no Brasil. Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro Fundada no Rio de Janeiro na década de 10, a Colônia produziu extensa contribuição à Psicologia por meio de seu fértil laboratório12, criado em 1923. Esse laboratório foi transformado em Instituto de Psicologia, subordinado ao Ministério de Educação e Saúde Pública, em 1932. Em 1937 foi incorporado à Universidade do Brasil, para contribuir, segundo Penna, com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, de Educação e de Política e Economia. Havia também na Colônia a Escola de Enfermagem, que continha em seu currículo a disciplina Psicologia, ministrada por Gustavo Rezende e Nilton Campos. Criado por Gustavo Riedel, diretor da Colônia, o laboratório foi patrocinado pela Fundação Gaffrée-Guinle. Sua finalidade, juntamente com uma exposição de motivos e até mesmo uma definição da função do psicólogo, foi assim expressa por Osvaldo N. de Souza Guimarães: “atualmente todo Instituto destinado ao estudo, cura e profilaxia das moléstias mentais deve ter, como auxiliar indispensável, um laboratório de psicologia, a cargo de um psicólogo profissional. Este torna-se, então, valioso colaborador do médico, para eficiência de tal Instituto” (Guimarães, apud Penna, 1985, p. 28). Para a direção do laboratório foi chamado o psicólogo polonês Waclaw Radecki. O laboratório, que contava com sofisticados equipamentos vindos de Paris e Leipzig, “funcionava como instituição auxiliar médica; (2) como auxiliar das necessidades sociais e práticas; (3) como núcleo de pesquisas científicas; (4) como centro didático para formação de psicólogos”. (Penna, 1985, p. 30). A extensa produção do laboratório demonstra, em relação aos asilos já estudados, um imenso avanço em direção ao reconhecimento da autonomia científica e prática da Psicologia no Brasil. Explicita-se aí, com clareza, que a Psicologia é vista como campo próprio de conhecimento e ação, ao mesmo tempo em que é reconhecida sua íntima relação com a Psiquiatria. Do ponto de vista da produção do laboratório, além da quantidade de pesquisas e ensaios, três elementos apresentam-se como particularmente significativos: a preocupação com a formação de psicólogos e a difusão do conhecimento psicológico; o trabalho clínico e a aplicação da Psicologia a questões relativas ao trabalho. O laboratório da Colônia contribuiu com uma das primeiras referências, no Brasil, da perspectiva psicoterápica, num momento em que tal campo de ação, quando existia, limitava-se à Psiquiatria. É possível tomar como hipótese que esse tipo de trabalho, ainda que incipiente, tenha lançado algumas bases para, mais tarde, tornar-se um dos mais importantes campos de atuação da Psicologia no país, o qual só nas décadas seguintes viria a ter contornos mais definidos como possibilidade de aplicação psicológica. Merece referência também a contribuição do laboratório à organização do trabalho, que se mostra claramente definida, particularmente no que se refere à utilização de testes para fins de seleção e orientação profissional. Foram realizados estudos e pesquisas sobre fadiga em “trabalhadores menores“, seleção de candidatos à aviação militar, psicometria e questões profissionais etc. Além disso, é necessário dizer que o trabalho no laboratório, junto com outros que se realizavam em outras instituições, traz uma nova característica às contribuições que até então as instituições psiquiátricas davam à problemática do trabalho, cuja principal finalidade era exercer o controle e a disciplinarização do proletariado urbano fora dos muros da fábrica. A partir daí, a Psicologia penetra no interior do processo produtivo, com um caráter estritamente técnico-científico, por meio da intervenção direta nos processos seletivos e no estabelecimento de contingências e normas nas relações de produção, com base no saber psicológico. Um destaque especial deve ser dado à importância da presença de Radecki nesse laboratório e, por decorrência, na história da Psicologia no Brasil. Foi ele o autor de grande parte dos trabalhos produzidos no laboratório, quando não colaborador ou orientador. Foi ele quem ministrou inúmeros cursos e conferências, com influência significativa na divulgação e difusão da Psicologia no país. Suas realizações constituem-se na quase totalidade da produção do laboratório, devendo-se a ele também, provavelmente, a marcante cultura psicológica presente nos trabalhos produzidos, em que são freqüentes citações e referências a: Ribot, Claparède, William James, Janet, Forel, Babinski, Bernheim, Kräepelin, Bleuler, Minkowski e Kretschemer, dentre outros, devendo-se salientar a significativa presença da Psicanálise. Finalmente, deve-se reafirmar que a Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro foi uma das mais importantes instituições que geraram condições para o estabelecimento da Psicologia no Brasil, quer pela consolidação desta área do saber como ciência, quer em relação ao reconhecimento de sua autonomia teórica e prática. Liga Brasileira de Higiene Mental e instituições correlatas A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1923, por Gustavo Riedel,tendo em seus quadros os mais eminentes psiquiatras e intelectuais da época. Segundo Jurandir Freire Costa, o objetivo inicial da Liga idealizada por Riedel era a melhoria da assistência ao doente mental. A partir de 1926, porém, esse objetivo foi cedendo lugar ao ideal eugênico13, à profilaxia e à educação dos indivíduos. A preocupação transferiu-se do indivíduo “doente” para o “normal”, da cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica, apoiada na noção de eugenia. Essa concepção contribuiu para uma interpretação racista da sociedade brasileira, que tendia a atribuir os problemas sócio-econômicos às questões raciais, especialmente à presença de “raças inferiores”, numa explícita referência aos negros que, junto com o clima quente, eram responsabilizados pelo atraso do país. Essas idéias desembocaram na defesa do “embranquecimento da raça brasileira” e, posteriormente, na busca da “pureza racial”. No bojo dessa discussão, a problemática educacional ocupou lugar privilegiado, sendo que a ignorância era vista como uma das mais graves doenças sociais. Juntamente com essa questão e a ela relacionada integra-se a problemática das relações de trabalho; temas que estiveram diretamente articulados ao pensamento da Liga e constituíram-se em objetos de estudo e alvos de ação. A Liga reconhecia a Psicologia como ciência afim à Psiquiatria e estimulava sua produção. Nesse sentido, foi criado um laboratório de Psicologia, cuja direção foi inicialmente confiada ao francês Alfred Fessard e posteriormente a Plínio Olinto, que foi sucedido por Brasília Leme Lopes. Além disso, a Liga propôs em 1932, ao Ministério da Educação e Saúde Pública, a presença obrigatória de “gabinetes de Psicologia” junto às clínicas psiquiátricas, sendo a proposta acolhida em instruções do referido ministério. Anualmente a Liga realizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”, cujo objetivo era difundir pesquisas puras e aplicadas nessa área do conhecimento. Preocupação com a Psicologia teve também a Liga Paulista de Higiene Mental, fundada em 1926, por Pacheco e Silva, funcionando em moldes semelhantes à sua correspondente nacional. Na Liga Paulista, a Psicologia aparecia explicitamente articulad4a às questões relativas à organização do trabalho, como instrumento de obtenção de conhecimento a respeito das funções psicológicas presentes no exercício profissional, tais como: funções psicomotoras, memória, atenção e julgamento; tais elementos articulavam-se, na prática, à aplicação da Psicologia à seleção e orientação profissional. Como ilustração, vale a pena citar um trecho de Bonifácio Castro Filho14: “A higiene mental nas oficinas e nas profissões em geral é um fator de grande prosperidade para a indústria, porque assegura um melhor rendimento. Ela pode ser realizada pela orientação profissional e pela seleção psicológica dos operários, tendo por efeito: 1º) a eliminação nas oficinas de certas classes de profissionais psicopatas que constituem um peso morto e um grave prejuízo para a coletividade; 2º) colocar os indivíduos em seus devidos lugares, de acordo com as aptidões mentais, condições que favorecem o êxito do trabalho” (Castro Filho, apud Cunha, 1986, p. 189). Essas idéias buscavam na Psicologia não apenas fundamentação teórica e corpo de técnicas úteis às suas finalidades de higienização social do trabalho e da família, como também prenunciavam um outro tipo de prática que se aproximava da prática clínica da Psicologia no momento subseqüente, pelas denominadas “clínicas de higiene mental”, cuja finalidade era de origem profilática e, portanto, voltada para o indivíduo “normal”. A isso deve-se acrescentar o papel desempenhado pelo Instituto de Higiene de São Paulo, cuja ação foi semelhante à da Liga Brasileira de Higiene Mental. Esse instituto foi dirigido, a partir de 1926, por Geraldo Paula Sousa, que organizou um grupo de estudos de Psicologia Aplicada, do qual participaram médicos, educadores e engenheiros; os estudos aí realizados versaram sobre a Psicologia do Trabalho e deram também origem ao “Serviço de Inspeção Médico-Escolar”, no qual foi criada uma escola especial para crianças com deficiência mental e, em 1938, uma clínica de orientação infantil, provavelmente uma das primeiras no país, chefiada por Durval Marcondes. A concepção psiquiátrica das Ligas de Higiene Mental, embora fortemente arraigada nas idéias correntes na Psiquiatria brasileira, não era contudo unânime. Segundo Freire Costa, “na mesma época, Odilon Galotti, no Rio, James Ferraz Alvim, em São Paulo, e Ulisses Pernambucano em Recife (...) orientavam suas pesquisas numa direção totalmente oposta à higiene social da raça. Para esses psiquiatras, que mantinham também ligações com a L.B.H.M., a higiene mental continuava a ser aquilo que Riedel havia desejado que fosse: melhoramento e humanização da assistência psiquiátrica aos doentes mentais” (1976, p. 63). O pensamento e a ação das ligas são expressões de uma concepção autoritária de mundo, representada na Psiquiatria principalmente pelo pensamento alemão, nas figuras de Rudin, Hoffmann e Meggendorfer, continuadores do organicismo de Kräepelin. Pretendia-se, em nome da ciência, abarcar o controle da sociedade e, para tal, defendia-se e estimulava-se a pesquisa e a aplicação da Psicologia como meio auxiliar para seus fins. É interessante notar que a Psicologia encontra-se, nesse contexto, como detentora de um saber e de um corpo de técnicas, particularmente a psicometria, relacionada às práticas especificamente psicológicas, numa versão bastante próxima das atuais. O Movimento Psiquiátrico de Recife Esse movimento erigiu-se sobre o alicerce representado pelas idéias e ações de Ulysses Pernambucano, caminhando na contramão do pensamento psiquiátrico corrente na época e contribuindo significativamente para a Educação (que será especificamente abordada no próximo capítulo). Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Pernambucano foi discípulo de Juliano Moreira; porém, sua prática distanciou-se da Psiquiatria organicista preponderante nos meios acadêmicos e institucionais de então. Nomeado, em 1924, diretor do Hospital de Doenças Nervosas e Mentais de Recife, aboliu os calabouços e as camisas-de-força, implantou a praxiterapia, criou o Pavilhão de Observações, o Laboratório de Análises e o Pavilhão de Hidroterapia, tendo também criado o sistema de “internato acadêmico” para os jovens médicos estagiarem. Teve Pernambucano participação fundamental na implantação da “Assistência a Psicopatas de Pernambuco”, assim composta: serviços para doentes mentais não alienados, com ambulatório e hospital aberto; serviços para doentes mentais alienados, com hospital para doentes agudos e colônia para doentes crônicos; Manicômio Judiciário; Serviço de Higiene Mental, com Serviço de Prevenção das Doenças Mentais e Instituto de Psicologia. Sobre o Serviço de Higiene Mental, afirma João Marques de Sá15: “Creio mesmo que o Serviço de Higiene Mental foi o responsável pela suspensão da interferência da polícia sobre os cultos afro-brasileiros. As seitas africanas tiveram em Ulysses e no mestre Gilberto Freyre os mais ardentes defensores, passando a receber certo grau de controle científico do serviço de Higiene Mental” (1978, p. 20). A referência acima a “controle científico” relaciona-se provavelmente aos estudos realizados por Pernambucano sobre os africanos no Brasil e que o fez conhecido também como antropólogo. Esses estudos foram inicialmente influenciados por Nina Rodrigues, cujo teor era marcadamente
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