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John Dewey Arte como Experiencia pdf

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J O H N D E W E Y 
Ú L T I M O S E S C R I T O S , 1 9 2 5 - 1 9 5 3 
A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 
Organização: 
JO ANN BOYDSTON 
Editora de texto: 
HARRIET FURST SIMON 
Introdução: 
ABRAHAM KAPLAN 
Tradução: 
VERA RIBEIRO 
martins 
Martins Fontes 
A CRIATURA VIVA 
Por uma das perversidades irônicas que muitas vezes 
acompanham o curso dos acontecimentos, a existência das 
obras de arte das quais depende a formação de uma teoria 
estética se tornou um empecilho à teoria sobre elas. Para 
citar uma razão, essas obras são produtos dotados de exis-
tência externa e física. Na concepção comum, a obra de ar¬ 
te é frequentemente identificada com a construção, o livro, 
o quadro ou a estátua, em sua existência distinta da expe-
riência humana. Visto que a obra de arte real é aquilo que 
o produto faz com e na experiência, o resultado não favo¬ 
rece a compreensão. Além disso, a própria perfeição de al-
guns desses produtos, o prestígio que eles possuem, por 
uma longa história de admiração inquestionável, cria con¬ 
venções que atrapalham as novas visões. Quando um pro¬ 
duto artístico atinge o status de clássico, de algum modo, 
ele se isola das condições humanas em que foi criado e 
das consequências humanas que gera na experiência real 
de vida. 
60 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 61 
Quando os objetos artísticos são separados das condi-
ções de origem e funcionamento na experiência, constrói-se 
em torno deles um muro que quase opacifica sua significa¬ 
ção geral, com a qual lida a teoria estética. A arte é remetida 
a um campo separado, onde é isolada da associação com os 
materiais e objetivos de todas as outras formas de esforço, 
sujeição e realização humanos. Assim, impõe-se uma tare¬ 
fa primordial a quem toma a iniciativa de escrever sobre a 
filosofia das belas-artes. Essa tarefa é restabelecer a conti¬ 
nuidade entre, de um lado, as formas refinadas e intensifi¬ 
cadas de experiência que são as obras de arte e, de outro, 
os eventos, atos e sofrimentos do cotidiano universalmente 
reconhecidos como constitutivos da experiência. Os picos 
das montanhas não flutuam no ar sem sustentação, tam¬ 
pouco apenas se apoiam na terra. Eles são a terra, em uma 
de suas operações manifestas. Cabe aos que se interessam 
pela teoria da terra - geógrafos e geólogos - evidenciar esse 
fato em suas várias implicações. O teórico que deseja lidar 
filosoficamente com as belas-artes tem uma tarefa seme¬ 
lhante a realizar. 
Se alguém se dispuser a admitir essa postura, nem que 
seja apenas a título de um experimento temporário, verá que 
daí decorre uma conclusão surpreendente, à primeira vis¬ 
ta. Para compreender o significado dos produtos artísticos, 
temos de esquecê-los por algum tempo, virar-lhes as cos¬ 
tas e recorrer às forças e condições comuns da experiência 
que não costumamos considerar estéticas. Temos de chegar 
à teoria da arte por meio de um desvio. É que a teoria diz 
respeito à compreensão, ao discernimento, não sem excla¬ 
mações de admiração e sem o estímulo da explosão afetiva 
comumente chamada de apreciação. É perfeitamente pos-
sível nos comprazermos com as flores, em sua forma colo-
rida e sua fragrância delicada, sem nenhum conhecimento 
teórico das plantas. Mas quando alguém se propõe a com-
preender o florescimento das plantas tem o compromisso de 
descobrir algo sobre as interações do solo, do ar, da água e 
do sol que condicionam seu crescimento. 
O Partenon é, por consenso, uma grande obra de arte. 
Mas só tem estatura estética na medida em que se torna uma 
experiência para um ser humano. E se o sujeito quiser ir além 
do deleite pessoal e entrar na formação de uma teoria sobre 
a grande república da arte da qual essa construção é mem¬ 
bro, terá de se dispor, em algum momento de suas reflexões, 
a se desviar dele para os cidadãos atenienses apressados, ar¬ 
gumentadores e agudamente sensíveis, com seu senso cívico 
identificado com uma religião cívica de cuja experiência es¬ 
se templo foi uma expressão, e que o construíram não como 
uma obra de arte, mas sim como uma comemoração cívica. 
Esse voltar-se para eles se dá na condição de seres humanos 
que tinham necessidades, as quais foram uma exigência pa¬ 
ra a construção e foram levadas à sua realização nela; não se 
trata de um exame como o que poderia ser feito por um so¬ 
ciólogo em busca de material relevante para seus fins. Quem 
se propõe teorizar sobre a experiência estética encarnada no 
Partenon precisa descobrir, em pensamento, o que aquelas 
pessoas em cuja vida o templo entrou, como criadoras e co¬ 
mo as que se compraziam com ele, tinham em comum com 
as pessoas de nossas próprias casas e ruas. 
Para compreender o estético em suas formas supremas 
e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma bruta; 
62 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 63 
nos acontecimentos e cenas que prendem o olhar e o ouvi¬ 
do atentos do homem, despertando seu interesse e lhe pro¬ 
porcionando prazer ao olhar e ouvir: as visões que cativam 
a multidão - o caminhão do corpo de bombeiros que pas¬ 
sa veloz; as máquinas que escavam enormes buracos na ter¬ 
ra; a mosca humana escalando a lateral de uma torre; os 
homens encarapitados em vigas, jogando e apanhando pa¬ 
rafusos incandescentes. As origens da arte na experiência 
humana serão aprendidas por quem vir como a graça ten¬ 
sa do jogador de bola contagia a multidão de espectado¬ 
res; por quem notar o deleite da dona de casa que cuida de 
suas plantas e o interesse atento com que seu marido cuida 
do pedaço de jardim em frente à casa; por quem perceber o 
prazer do espectador ao remexer a lenha que arde na lareira 
e ao observar as chamas dardejantes e as brasas que se des¬ 
fazem. Essas pessoas, se alguém lhes perguntasse a razão 
de seus atos, sem dúvida forneceriam respostas sensatas. O 
homem que remexe os pedaços de lenha em brasa diria que 
o faz para melhorar o fogo; mas não deixa de ficar fascinado 
com o drama colorido da mudança encenada diante de seus 
olhos e de participar dele na imaginação. Ele não se mantém 
como um espectador frio. O que Coleridge disse sobre o lei¬ 
tor de poesia se aplica, à sua maneira, a todos os que ficam 
alegremente absortos em suas atividades mentais e corpo¬ 
rais: "O leitor deve ser levado adiante não meramente ou 
sobretudo pelo impulso mecânico da curiosidade, não pelo 
desejo irrequieto de chegar à solução final, mas pela ativida¬ 
de prazerosa do percurso em si". 
O mecânico inteligente, empenhado em sua ativida¬ 
de e interessado em bem executá-la, encontrando satisfa-
ção em seu trabalho e cuidando com genuína afeição de seu 
material e suas ferramentas, está artisticamente engajado. A 
diferença entre esse trabalhador e o homem inepto e des¬ 
cuidado que atamanca seu trabalho é tão grande na ofici¬ 
na quanto no estúdio. Muitas vezes, o produto pode não ser 
atraente para o senso estético dos que o utilizam. Mas a fa¬ 
lha, com frequência, está menos no trabalhador do que nas 
condições do mercado a que seu produto se destina. Se as 
condições e oportunidades fossem diferentes, seriam feitas 
coisas tão significativas para os olhos quanto as produzidas 
por artesãos anteriores. 
Tão vastas e sutilmente disseminadas são as ideias que 
situam a arte em um pedestal longínquo, que muita gen¬ 
te sentiria repulsa, em vez de prazer, se lhe dissessem que 
ela desfruta de suas recreações despreocupadas, pelo menos 
em parte, em função da qualidade estética destas. As artes 
que têm hoje mais vitalidade para a pessoa média são coisas 
que ela não considera artes: porexemplo, os filmes, o ]azz, 
os quadrinhos e, com demasiada frequência, as reportagens 
de jornais sobre casos amorosos, assassinatos e façanhas de 
bandidos. E que, quando aquilo que conhecemos como arte 
fica relegado aos museus e galerias, o impulso incontrolável 
de buscar experiências prazerosas em si encontra as válvu¬ 
las de escape que o meio cotidiano proporciona. Muitas pes¬ 
soas que protestam contra a concepção museológica da arte 
ainda compartilham a falácia da qual brota essa concepção. 
E que a noção popular provém de uma separação entre a ar¬ 
te e os objetos e cenas da experiência corriqueira que muitos 
teóricos e críticos se orgulham em sustentar e até desen¬ 
volver. As ocasiões em que objetos seletos e distintos são 
Marcelo Costa
Highlight
Marcelo Costa
Highlight
Marcelo Costa
Highlight
64 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 65 
estreitamente relacionados com os produtos das ocupações 
habituais são aquelas em que a apreciação dos primeiros é 
mais abundante e mais aguda. Quando, por sua imensa dis¬ 
tância, os objetos reconhecidos pelas pessoas cultas como 
obras de belas-artes parecem anêmicos para a massa popu¬ 
lar, a fome estética tende a buscar o vulgar e o barato. 
Os fatores que glorificaram as belas-artes, elevando-as 
em um pedestal distante, não surgiram no âmbito da arte, e 
sua influência não se restringe às artes. Para muitas pessoas, 
uma aura mesclada de reverência e irrealidade envolve o 
"espiritual" e o "ideal", enquanto, em contraste, "matéria" 
tornou-se um termo depreciativo, algo a ser explicado ou 
pelo qual se desculpar. As forças atuantes nisso são as que 
afastaram a religião, assim como as belas-artes, do alcan¬ 
ce do que é comum, ou da vida comunitária. Historicamen¬ 
te, essas forças produziram tantos deslocamentos e divisões 
da vida e do pensamento modernos que a arte não pôde es-
capar a sua influência. Não precisamos viajar até os confins 
da Terra nem recuar milênios no tempo para encontrar po¬ 
vos para os quais tudo que intensifica o sentimento imedia¬ 
to de vida é objeto de grande admiração. A escarificação do 
corpo, as plumas oscilantes, os mantos vistosos e os ador¬ 
nos reluzentes de ouro e prata, esmeralda e jade, formaram 
o conteúdo de artes estéticas, e, ao que podemos presumir, 
sem a vulgaridade do exibicionismo classista que acompa¬ 
nha seus análogos atuais. Utensílios domésticos, móveis de 
tendas e de casas, tapetes, capachos, jarros, potes, arcos ou 
lanças eram feitos com um primor tão encantado que hoje 
os caçamos e lhes damos lugares de honra em nossos mu¬ 
seus de arte. No entanto, em sua época e lugar, essas coi-
sas eram melhorias dos processos da vida cotidiana. Em vez 
de serem elevadas a um nicho distinto, elas faziam parte da 
exibição de perícia, da manifestação da pertença a grupos e 
clãs, do culto aos deuses, dos banquetes e do je jum, das lu¬ 
tas, da caça e de todas as crises rítmicas que pontuam o flu¬ 
xo da vida. 
A dança e a pantomima, origens da arte teatral, flores¬ 
ceram como parte de ritos e celebrações religiosos. A arte 
musical era repleta do dedilhar de cordas tensionadas, do 
bater de peles esticadas, do soprar de juncos. Até nas caver¬ 
nas, as habitações humanas eram adornadas com imagens 
coloridas, que mantinham vivas nos sentidos as experiên¬ 
cias com os animais muito intimamente ligados à vida dos 
seres humanos. As estruturas que abrigavam seus deuses e 
os meios que facilitavam o comércio com os poderes supe¬ 
riores eram criados com um requinte especial. Mas as ar¬ 
tes do drama, da música, da pintura e da arquitetura, assim 
exemplificadas, não tinham nenhuma ligação peculiar com 
teatros, galerias ou museus. Faziam parte da vida significati¬ 
va de comunidades organizadas. 
A vida coletiva que se manifestava na guerra, no culto 
ou no fórum não conhecia nenhuma separação entre o que 
era característico desses lugares e operações e as artes que 
neles introduziam cor, graça e dignidade. A pintura e a escul¬ 
tura tinham uma ligação orgânica com a arquitetura, já que 
esta se harmonizava com a finalidade social a que serviam as 
construções. A música e o canto eram partes íntimas dos ri¬ 
tos e cerimônias em que se consumava o significado da vi¬ 
da do grupo. A dramatização era uma reencenação vital das 
lendas e da história da vida grupal. Nem mesmo em Atenas é 
66 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 67 
possível desprender essas artes de sua inserção na experiên¬ 
cia direta e, ao mesmo tempo, preservar seu caráter significa¬ 
tivo. Os esportes atléticos, assim como o teatro, celebravam e 
reforçavam tradições raciais e grupais, instruindo o povo, co¬ 
memorando glórias e fortalecendo o orgulho cívico. 
Nessas condições, não é de admirar que os gregos ate¬ 
nienses, ao refletirem sobre a arte, tenham formado a ideia 
de que ela era um ato de reprodução ou de imitação. Há 
muitas objeções a essa concepção. Mas a popularidade da 
teoria é um testemunho da estreita ligação entre as belas-
-artes e a vida cotidiana; essa ideia não teria ocorrido a nin¬ 
guém, se a arte fosse distante dos interesses da vida. Pois a 
doutrina não significava que a arte fosse uma cópia literal 
de objetos, mas sim que ela refletia as emoções e ideias as¬ 
sociadas às principais instituições da vida social. Platão sen¬ 
tiu essa ligação de forma tão intensa que ela o levou à ideia 
da necessidade de censurar poetas, dramaturgos e músicos. 
Talvez ele tenha exagerado ao dizer que a troca da forma 
dórica pela lídia na música seria uma precursora certeira da 
degeneração civil. Mas nenhum contemporâneo seu duvi¬ 
daria de que a música era parte integrante do espírito e das 
instituições da comunidade. A ideia de "arte pela arte" nem 
sequer seria compreendida. 
Então, deve haver razões históricas para o surgimen¬ 
to da concepção compartimentalizada das belas-artes. Nos¬ 
sos atuais museus e galerias, nos quais as obras de arte são 
recolhidas e armazenadas, ilustram algumas das causas que 
agiram no sentido de segregar a arte, em vez de considerá-la 
um fator concomitante do templo, do fórum e de outras for¬ 
mas de vida associativa. Seria possível escrever uma história 
instrutiva da arte moderna em termos da formação dessas 
instituições nitidamente modernas que são o museu e a ga¬ 
leria de exposições. Posso assinalar alguns fatos destacados. 
Quase todos os museus europeus são, entre outras coisas, 
memoriais da ascensão do nacionalismo e do imperialismo. 
Toda capital tem de ter seu museu de pintura, escultura e tc , 
em parte dedicado a exibir a grandeza de seu passado ar¬ 
tístico, em parte dedicado a exibir a pilhagem recolhida por 
seus monarcas na conquista de outras nações, a exemplo 
da acumulação de espólios de Napoleão que se encontra no 
Louvre. Eles atestam a ligação entre a moderna segregação 
da arte e o nacionalismo e o militarismo. Não há dúvida de 
que, em alguns momentos, essa ligação serviu a um propó¬ 
sito útil, como no caso do Japão, que, ao entrar no processo 
de ocidentalização, salvou muitos de seus tesouros artísti¬ 
cos, nacionalizando os templos que os continham. 
O crescimento do capitalismo foi uma influência po¬ 
derosa no desenvolvimento do museu como o lar adequa¬ 
do para as obras de arte, assim como na promoção da ideia 
de que elas são separadas da vida comum. Os novos-r icos , 
que são um importante subproduto do sistema capitalista, 
sentiram-se especialmente comprometidos a se cercar de 
obras de arte que, por serem raras, eram também dispen¬ 
diosas. Em linhas gerais, o colecionador típico é o capitalista 
típico. Paracomprovar sua boa posição no campo da cultura 
superior, ele acumula quadros, estátuas e jóias artísticos do 
mesmo modo que suas ações e seus títulos atestam sua po¬ 
sição no mundo econômico. 
Não apenas indivíduos, mas também comunidades e na¬ 
ções, evidenciam seu bom gosto cultural mediante a cons-
68 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 69 
trução de teatros de ópera, galerias e museus. Estes mostram 
que a comunidade não está inteiramente absorta na riqueza 
material, já que se dispõe a gastar seus lucros no patrocínio 
das artes. Ela erige esses prédios e coleciona seu conteúdo 
do mesmo modo que constrói catedrais. Essas coisas refle¬ 
tem e estabelecem o status cultural superior, enquanto sua 
segregação da vida comum reflete o fato de que elas não fa¬ 
zem parte de uma cultura inata e espontânea. São uma es¬ 
pécie de equivalente de uma atitude santarrona, exibida não 
em relação às pessoas como tais, mas aos interesses e ocu¬ 
pações que absorvem a maior parte do tempo e da energia 
da comunidade. 
A indústria e o comércio modernos têm um alcance in¬ 
ternacional. O conteúdo das galerias e dos museus atesta o 
aumento do cosmopolitismo econômico. A mobilidade do 
comércio e das populações, em função do sistema econômi¬ 
co, enfraqueceu ou destruiu o vínculo entre as obras de arte 
e o genius loci do qual, em época anterior, elas foram a ex-
pressão natural. À medida que as obras de arte foram per¬ 
dendo seu status autóctone, adquiriram um novo status - o 
de serem espécimes das belas-artes, e nada mais. Além dis¬ 
so, tal como outros artigos, hoje se produzem obras de arte 
para serem vendidas no mercado. O patrocínio econômico 
oferecido por indivíduos ricos e poderosos, em muitas oca¬ 
siões, desempenhou um papel no incentivo à produção ar¬ 
tística. É provável que muitas tribos de selvagens tenham 
tido seus mecenas. Mas agora, até esse tanto de ligação so¬ 
cial estreita se perde na impessoalidade de um mercado 
mundial. Objetos que no passado foram válidos e signifi¬ 
cativos, por seu lugar na vida de uma comunidade, funcio-
nam hoje isolados das condições de sua origem. Em vista 
disso, são também desvinculados da experiência comum e 
servem de insígnias de bom gosto e atestados de uma cul¬ 
tura especial. 
Em decorrência das mudanças nas condições indus¬ 
triais, o artista foi posto de lado em relação às correntes 
principais do interesse ativo. A indústria mecanizou-se, e 
um artista não pode trabalhar mecanicamente para a produ¬ 
ção em massa. Fica menos integrado do que antes no fluxo 
normal dos serviços sociais. Resulta daí um "individualis¬ 
mo" estético peculiar. Os artistas acham que lhes compete 
empenharem-se em seu trabalho como um meio isolado de 
"expressão pessoal". Para não atenderem à tendência das 
forças econômicas, é comum sentirem-se obrigados a exa¬ 
gerar sua separação, a ponto de chegarem à excentricidade. 
Por conseguinte, os produtos artísticos assumem em grau 
ainda maior a aparência de algo independente e esotérico. 
Juntando a ação de todas essas forças, as condições 
que criam o abismo que costuma existir entre o produtor 
e o consumidor, na sociedade moderna, agem no sentido 
de também criar um abismo entre a experiência comum e a 
experiência estética. Finalmente, como comprovação desse 
abismo, aceitamos como se fossem normais as filosofias da 
arte que a situam em uma região não habitada por nenhu¬ 
ma outra criatura, e que enfatizam de forma despropositada 
o caráter meramente contemplativo do estético. A confusão 
de valores entra em cena para acentuar a separação. Ques¬ 
tões adventícias, como o prazer de colecionar, de expor, de 
possuir e exibir, simulam valores estéticos. A crítica é afeta-
70 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 71 
da. Há muitos aplausos para as maravilhas da apreciação e 
as glórias da beleza transcendente da arte, às quais as pes¬ 
soas se entregam sem levar muito em conta sua capacidade 
de percepção estética no concreto. 
Meu objetivo, porém, não é me dedicar a uma interpre¬ 
tação econômica da história das artes, muito menos afirmar 
que, de forma invariável ou direta, as condições econômi¬ 
cas são relevantes para a percepção e o prazer, ou mesmo 
para a interpretação de obras de arte individuais. Meu pro¬ 
pósito é indicar que as teorias que isolam a arte e sua apre¬ 
ciação, colocando-as em um campo próprio, desvinculado 
das outras modalidades do experimentar, não são ineren¬ 
tes ao assunto, mas surgem em virtude de condições ex¬ 
ternas que podem ser explicitadas. Inseridas que estão nas 
instituições e nos hábitos da vida, essas condições atuam 
de maneira eficaz, porque trabalham de forma inconscien¬ 
te. Com isso, o teórico presume que elas estão inseridas na 
natureza das coisas. No entanto, a influência dessas con¬ 
dições não se restringe à teoria. Como já indiquei, ela afe¬ 
ta profundamente a prática da vida, afastando percepções 
estéticas que são ingredientes necessários da felicidade ou 
reduzindo-as ao nível de excitações compensatórias transi¬ 
tórias e agradáveis. 
Até para os leitores que são avessos ao que foi dito aqui, 
as implicações das afirmações já feitas podem ser úteis para 
definir a natureza do problema: o de recuperar a continuida¬ 
de da experiência estética com os processos normais do vi¬ 
ver. A compreensão da arte e de seu papel na civilização não 
é favorecida por partirmos de louvores a ela nem por nos 
ocuparmos exclusivamente, desde o começo, das grandes 
obras de arte reconhecidas como tais. Chega-se à compreen¬ 
são buscada pela teoria através de um desvio, retornando à 
experiência do curso comum ou rotineiro das coisas, a fim 
de descobrir a qualidade estética que essa experiência pos¬ 
sui. A teoria só pode começar a partir das obras de arte reco¬ 
nhecidas quando o estético já está compartimentalizado ou 
somente quando as obras de arte são postas em um nicho à 
parte, em vez de serem comemorações, reconhecidas como 
tal, das coisas da experiência comum. Até uma experiência 
tosca, se for genuína, está mais apta a dar uma pista da na¬ 
tureza intrínseca da experiência estética do que um objeto já 
separado de qualquer outra modalidade da experiência. Se¬ 
guindo essa pista, podemos descobrir como a obra de arte 
se desenvolve e acentua o que é caracteristicamente valio¬ 
so nas coisas do prazer do dia a dia. Nesse caso, percebe-se 
que o produto artístico brota destas últimas, quando o pleno 
sentido da experiência corriqueira se expressa, do mesmo 
modo que surgem corantes do alcatrão de hulha, quando ele 
recebe um tratamento especial. 
Já existem muitas teorias sobre a arte. Se há alguma 
justificativa para propor mais uma filosofia do estético, ela 
tem de ser encontrada em uma nova abordagem. Combina¬ 
ções e permutações entre teorias existentes podem ser facil¬ 
mente propostas pelos que têm essa inclinação. Para mim, 
porém, o problema das teorias existentes é que elas partem 
de uma compartimentalização pronta ou de uma concepção 
da arte que a "espiritualiza", retirando-a da ligação com os 
objetos da experiência concreta. A alternativa a essa espiri¬ 
tualização, entretanto, não é a materialização degradante e 
prosaica das obras de arte, mas uma concepção que reve-
72 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 73 
le de que maneira essas obras idealizam qualidades encon¬ 
tradas na experiência comum. Se as obras de arte fossem 
colocadas em um contexto diretamente humano na estima 
popular, teriam um atrativo muito maior do que podem ter 
quando as teorias compartimentalizadas da arte ganham 
aceitaçãogeral. 
Uma concepção das belas-artes que parta da ligação 
delas com as qualidades descobertas na experiência comum 
poderá indicar os fatores e forças que favorecem a evolução 
normal das atividades humanas comuns para questões de 
valor artístico. Poderá também assinalar as condições que 
bloqueiam seu crescimento normal. Os que escrevem sobre 
a teoria estética, muitas vezes, levantam a questão de a filo¬ 
sofia estética poder ou não ajudar no cultivo da apreciação 
estética. Essa indagação é um ramo da teoria geral da críti¬ 
ca, a qual, ao que me parece, não consegue cumprir plena¬ 
mente sua tarefa, quando não indica o que procurar e o que 
encontrar nos objetos estéticos concretos. De qualquer mo¬ 
do, porém, é lícito dizer que uma filosofia da arte se torna 
estéril, a menos que nos conscientize da função da arte em 
relação a outras modalidades da experiência, a menos que 
indique por que essa função é tão insatisfatoriamente cum¬ 
prida e a menos que sugira em que condições essa tarefa se¬ 
ria executada com êxito. 
A comparação entre a emergência de obras de arte a 
partir de experiências comuns e o refinamento de matérias¬ 
-primas em produtos valiosos talvez pareça indigna para al¬ 
guns, se não uma verdadeira tentativa de reduzir essas obras 
à condição de artigos manufaturados para fins comerciais. 
A questão, porém, é que não há louvor extasiado de obras 
acabadas que possa, por si só, ajudar na compreensão ou na 
geração de tais obras. As flores podem ser apreciadas sem 
que se conheçam as interações entre o solo, o ar, a umidade 
e as sementes das quais elas resultam. Mas não podem ser 
compreendidas sem que justamente essas interações sejam 
levadas em conta - e a teoria é uma questão de compreen¬ 
são. A teoria interessa-se por descobrir a natureza da pro¬ 
dução das obras de arte e do seu deleite para a percepção. 
Como é que a feitura corriqueira de coisas evolui para a for¬ 
ma do fazer que é genuinamente artística? De que modo 
nosso prazer cotidiano com cenas e situações evolui para 
a satisfação peculiar que acompanha a experiência enfati¬ 
camente estética? São essas as perguntas que a teoria deve 
responder. Não há como encontrar as respostas, se não nos 
dispusermos a descobrir os germes e as raízes nas questões 
da experiência que atualmente não consideramos estéticas. 
Depois de descobrir essas sementes ativas, podemos acom¬ 
panhar o curso de sua evolução até as mais elevadas formas 
de arte acabada e requintada. 
E comumente sabido que não podemos, a não ser por 
acidente, dirigir o crescimento e o florescimento das plan¬ 
tas, por mais encantadoras e apreciadas que sejam, sem 
compreender suas condições causais. Deveria ser igualmen¬ 
te corriqueiro saber que a compreensão estética - distinta 
do puro prazer pessoal - parte do solo, do ar e da luz dos 
quais brotam coisas esteticamente admiráveis. E essas con¬ 
dições são as condições e os fatores que tornam completa 
uma experiência comum. Quanto mais reconhecermos es¬ 
se fato, mais nos descobriremos diante de um problema, e 
não de uma solução final. Se a qualidade artística e estética 
7 4 J O H N D E W E Y 
ARTE COMO EXPERIÊNCIA 
mente sob sua pele; seus órgãos subcutâneos são meios de 
ligação com o que está além de sua estrutura corporal, e ao 
qual, para viver, ela precisa adaptar-se, através da acomo¬ 
dação e da defesa, mas também da conquista. A todo mo¬ 
mento, a criatura viva é exposta aos perigos do meio que a 
circunda, e a cada momento precisa recorrer a alguma coi¬ 
sa nesse meio para satisfazer suas necessidades. A carreira 
e o destino de um ser vivo estão ligados a seus intercâm¬ 
bios com o meio, não externamente, mas sim de uma ma¬ 
neira mais íntima. 
O rosnado de um cão que se abaixa sobre sua comi¬ 
da, seu uivo nos momentos de perda e solidão, o abanar da 
cauda à volta de seu amigo humano, tudo isso são expres¬ 
sões da implicação do viver em um meio natural, que inclui 
o homem e o animal que ele domesticou. Toda necessida¬ 
de, digamos, a falta de alimento ou ar puro, é uma carên¬ 
cia que denota, no mínimo, a ausência temporária de uma 
adaptação adequada ao meio circundante. Mas é também 
um pedido, uma busca no ambiente para suprir essa carên¬ 
cia e restabelecer a adaptação, construindo ao menos um 
equilíbrio temporário. A própria vida consiste em fases nas 
quais o organismo perde o compasso da marcha das coi¬ 
sas circundantes e depois retoma a cadência com elas - se¬ 
ja por esforço, seja por um acaso fortuito. E, em uma vida 
em crescimento, a recuperação nunca é mero retorno a um 
estado anterior, pois é enriquecida pela situação de dispa¬ 
ridade e resistência que atravessou com sucesso. Quando 
o abismo entre o organismo e o meio é grande demais, a 
criatura morre. Quando sua atividade não é favorecida pe¬ 
la alienação temporária, ela simplesmente subsiste. A vida 
está implícita em toda experiência normal, de que maneira 
explicaremos como e por que, de modo muito geral, ela não 
consegue explicitar-se? Por que, para uma multidão de pes¬ 
soas, a arte parece ser um produto importado de um país es¬ 
trangeiro para experiência e o estético parece ser sinônimo 
de algo artificial? 
Não podemos responder a essas perguntas, assim co¬ 
mo não podemos acompanhar o desenvolvimento da arte a 
partir da experiência cotidiana, a menos que tenhamos uma 
ideia clara e coerente do que pretendemos dizer com "ex¬ 
periência normal". Felizmente, o caminho para chegar a es¬ 
se conhecimento está livre e bem sinalizado. A natureza da 
experiência é determinada pelas condições essenciais da vi¬ 
da. Embora o ser humano seja diferente das aves e das feras, 
compartilha funções vitais básicas com elas e tem de fazer os 
mesmos ajustes basais, se quiser levar adiante o processo de 
viver. Tendo as mesmas necessidades vitais, o homem de¬ 
riva os meios pelos quais respira, movimenta-se, vê e ouve, 
e o próprio cérebro com que coordena seus sentidos e seus 
movimentos, de seus antepassados animais. Os órgãos com 
que ele se mantém vivo não são apenas dele, mas provêm 
das lutas e conquistas de uma longa linhagem de ancestrais 
no mundo animal. 
Por sorte, uma teoria do lugar da estética na experiên¬ 
cia não tem de se perder em detalhes minuciosos, ao iniciar 
pela experiência em sua forma elementar. Bastam os contor¬ 
nos gerais. A primeira grande consideração é que a vida se 
dá em um meio ambiente; não apenas nele, mas por causa 
dele, pela interação com ele. Nenhuma criatura vive mera-
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cresce quando o descompasso temporário é uma transição 
para um equilíbrio mais amplo das energias do organismo 
com as das condições em que ele vive. 
Esses lugares-comuns biológicos são algo mais do que 
isso; chegam às raízes da estética na experiência. O mundo 
é cheio de coisas que são indiferentes ou até hostis à vida; 
os próprios processos pelos quais a vida se mantém tendem 
a desajustá-la de seu meio. No entanto, quando a vida con¬ 
tinua e, ao continuar, se expande, há uma superação dos 
fatores de oposição e conflito; há uma transformação de¬ 
les em aspectos diferenciados de uma vida mais energiza-
da e significativa. A maravilha da adaptação orgânica, vital, 
através da expansão (e não da contração e da acomodação 
passiva), realmente acontece. Aí se encontram, em germe, o 
equilíbrio e a harmonia atingidos através do ritmo. O equi¬ 
líbrio não surge de maneira mecânica e inerte, mas a partir 
e por causa da tensão. 
Existe na natureza, mesmo abaixo do nível da vida, algo 
além de mero fluxo e mudança. A forma é atingida toda vezque se atinge um equilíbrio estável, embora móvel. As mu¬ 
danças se entrelaçam e se sustentam. Sempre que essa coe¬ 
rência existe, há persistência. A ordem não é imposta de fora 
para dentro, mas feita das relações de interações harmonio¬ 
sas que as energias têm entre si. Por ser ativa (e não algo es¬ 
tático, por ser alheio ao que se passa), a própria ordem se 
desenvolve. E passa a incluir em seu movimento equilibra¬ 
do uma variedade maior de mudanças. 
Só se pode admirar a ordem em um mundo constan¬ 
temente ameaçado pela desordem - em um mundo em que 
as criaturas vivas só podem continuar a viver "tirando pro-
veito da ordem que existe em torno delas, incorporando-a a 
elas mesmas. Em um mundo como o nosso, toda criatura vi-
va que atinge a sensibilidade acolhe a ordem de bom grado, 
com uma resposta de sentimento harmonioso, toda vez que 
encontra uma ordem congruente à sua volta. 
Isso porque só ao compartilhar as relações ordeiras de 
seu meio é que o organismo garante a estabilidade essencial 
à vida. E, quando essa participação vem depois de uma fase 
de perturbação e conflito, ela traz em si os germes de uma 
consumação semelhante ao estético. 
O ritmo da perda da integração ao meio e da recupera¬ 
ção da união não apenas persiste no homem, como se tor¬ 
na consciente com ele; suas condições são o material a partir 
do qual ele cria propósitos. A emoção é o sinal conscien-
te de uma ruptura real ou iminente. A discórdia é o ensejo 
que induz à reflexão. O desejo de restabelecimento da união 
converte a simples emoção em um interesse pelos objetos, 
como condições de realização da harmonia. Com a realiza¬ 
ção, o material da reflexão é incorporado pelos objetos como 
o significado deles. Uma vez que o artista se importa de mo¬ 
do peculiar com a fase da experiência em que a união é al¬ 
cançada, ele não evita os momentos de resistência e tensão. 
Ao contrário, cultiva-os, não por eles mesmos, mas por suas 
potencialidades, introduzindo na consciência viva uma ex¬ 
periência unificada e total. Em contraste com a pessoa cujo 
objetivo é estético, o cientista se interessa por problemas, 
por situações em que a tensão entre o conteúdo da observa-
ção e o do pensamento é acentuada. É claro que ele se im-
porta com a resolução desses problemas. Mas não para por 
aí; segue adiante rumo a outro problema, usando a solução 
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alcançada apenas como um degrau a partir do qual instau¬ 
rar novas indagações. 
A diferença entre o estético e o intelectual, portanto, é 
um dos lugares em que a ênfase recai sobre o ritmo cons¬ 
tante que marca a interação da criatura viva com seu meio. 
A matéria suprema das duas ênfases na experiência é a mes¬ 
ma, como o é também sua forma geral. A estranha ideia de 
que o artista não pensa e de que o investigador científico não 
faz outra coisa resulta da conversão de uma divergência de 
ritmo e ênfase em uma diferença de qualidade. O pensador 
tem seu momento estético quando suas ideias deixam de ser 
meras ideias e se transformam nos significados coletivos dos 
objetos. O artista tem seus problemas e pensa enquanto tra¬ 
balha. Mas seu pensamento se incorpora de maneira mais 
imediata ao objeto. Em função do caráter comparativamente 
remoto de seu fim, o trabalhador científico opera com sím¬ 
bolos, palavras e signos matemáticos. O artista desenvolve 
seu raciocínio nos meios muito qualitativos em que traba¬ 
lha, e os termos ficam tão próximos do objeto que ele pro¬ 
duz que se fundem diretamente com este. 
O animal vivo não tem de projetar emoções nos obje¬ 
tos vivenciados. A natureza é generosa e maléfica, meiga e 
rabugenta, irritante e consoladora, muito antes de ser mate¬ 
maticamente qualificada ou mesmo de ser um aglomerado 
de qualidades "secundárias", como as cores e suas formas. 
Até palavras como "comprido" e "curto" ou "sólido" e "oco" 
ainda transmitem a todos, exceto aos intelectualmente es¬ 
pecializados, uma conotação moral e afetiva. O dicionário 
informa a quem o consultar que o uso primitivo de palavras 
como "doce" e "amargo" não foi a denotação de qualidades 
sensoriais como tais, mas a discriminação das coisas como 
favoráveis ou hostis. Como poderia ser diferente? A expe¬ 
riência direta vem da natureza e da interação entre os seres 
humanos. Nessa interação, a energia humana é acumulada, 
liberada, represada, frustrada e vitoriosa. Há pulsações rít¬ 
micas de desejo e realização, pulsos do fazer e do ser impe¬ 
dido de fazer. 
Todas as interações que afetam a estabilidade e a or¬ 
dem no fluxo turbilhonante da mudança são ritmos. Exis¬ 
tem o influxo e o refluxo, a sístole e a diástole: a mudança 
ordeira. Esta se move dentro de limites. Ultrapassar os li¬ 
mites estabelecidos equivale à destruição e à morte, a partir 
das quais, entretanto, se constroem novos ritmos. A inter¬ 
cepção proporcional das mudanças estabelece uma ordem 
de padrão espacial, e não apenas temporal: como as ondas 
do mar, as ondulações da areia onde as ondas fluíram e re¬ 
fluíram ou as nuvens lanosas e as de fundo escuro. O con¬ 
traste entre a falta e a plenitude, a luta e a realização ou 
o ajuste depois da irregularidade consumada constituem o 
drama em que ação, sentimento e significado são uma coisa 
só. Daí resultam o equilíbrio e o contrabalanceamento. Estes 
não são estáticos nem mecânicos. Expressam uma força que 
é intensa, por ser medida pela superação da resistência. Os 
objetos circundantes beneficiam ou prejudicam. 
Há dois tipos de mundos possíveis em que a experiência 
estética não ocorreria. Em um mundo de mero fluxo, a mu¬ 
dança não seria cumulativa, não se moveria em direção a um 
desfecho. A estabilidade e o repouso não existiriam. Mas é 
igualmente verdadeiro que um mundo acabado, concluído, 
não teria traços de suspense e crise e não ofereceria oportu-
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nidades de resolução. Quando tudo já está completo, não há 
realização. Só contemplamos com prazer o Nirvana e uma 
bem-aventurança celestial uniforme porque eles se projetam 
no pano de fundo de nosso mundo atual, feito de tensão e 
conflito. Pelo fato de o mundo real, este em que vivemos, ser 
uma combinação de movimento e culminação, de rupturas e 
reencontros, a experiência do ser vivo é passível de uma qua¬ 
lidade estética. O ser vivo perde e restabelece repetidamente 
o equilíbrio com o meio circundante. O momento de passa¬ 
gem da perturbação para a harmonia é o de vida mais intensa. 
Em um mundo acabado, o sono e a vigília não poderiam ser 
distinguidos. Em um mundo totalmente perturbado, não se¬ 
ria possível lutar contra as circunstâncias. Em um mundo feito 
segundo os padrões do nosso, momentos de realização pon¬ 
tuam a experiência com intervalos ritmicamente desfrutados. 
A harmonia interna só é alcançada quando se chega 
de algum modo a um entendimento com o meio. Quan¬ 
do ele ocorre em outras bases que não as "objetivas", é ilu¬ 
sório - nos casos extremos, a ponto de chegar à insanidade. 
Felizmente, para a variedade da experiência, chega-se a en¬ 
tendimentos de muitas maneiras - maneiras decididas, em 
última análise, pelo interesse seletivo. Os prazeres podem 
advir mediante o contato fortuito e a estimulação; tais pra¬ 
zeres não devem ser desprezados em um mundo repleto de 
dor. Mas a felicidade e o gozo são um tipo de coisa diferente. 
Surgem por meio de uma realização que alcança as profun¬ 
dezas de nosso ser - uma realização que é uma adaptação 
de todo o nosso ser às condições de vida. No processo de vi¬ 
ver, a consecução de um período de equilíbrioé, ao mesmo 
tempo, o início de uma nova relação com o meio, uma rela-
ção que traz em si o poder de novas adaptações, a serem fei¬ 
tas através da luta. O tempo da consumação é também o de 
um recomeço. Qualquer tentativa de perpetuar além do pra¬ 
zo o gozo concomitante ao tempo de realização e harmonia 
constitui um afastamento do mundo. Por isso, assinala a di¬ 
minuição e a perda da vitalidade. Contudo, através das fa¬ 
ses de perturbação e conflito, persiste a lembrança arraigada 
de uma harmonia subjacente, cuja sensação frequenta a vida 
como a sensação de se estar alicerçado em uma rocha. 
A maioria dos mortais tem consciência de que é comum 
ocorrer uma cisão entre sua vida atual e seu passado e futuro. 
Nesse caso, o passado pesa sobre eles como um fardo; inva¬ 
de o presente com uma sensação de pesar, de oportunidades 
não aproveitadas e de consequências que gostaríamos de des¬ 
fazer. Assenta-se sobre o presente como uma opressão, em 
vez de ser um reservatório de recursos com os quais avançar 
confiantemente. Mas a criatura viva adota seu passado; pode 
lidar amigavelmente até com suas tolices, usando-as como 
advertências que ampliam a cautela atual. Em vez de tentar 
viver do que quer que tenha sido obtido no passado, ela usa 
os sucessos anteriores para instrumentar o presente. Toda 
experiência viva deve sua riqueza ao que Santayana denomi-
nou, oportunamente, de "reverberações murmuradas" 1 . 
1 . " E s s a s f lores c o n h e c i d a s , e s s a s n o t a s b e m l e m b r a d a s dos p á s s a r o s , e s s e 
céu c o m seu b r i l h o i n t e r m i t e n t e , e s s e s c a m p o s a r a d o s c r e l v a d o s , c a d a q u a l c o m 
u m a e s p é c i e d e p e r s o n a l i d a d e que lhe é c o n f e r i d a p e l a s e b e c a p r i c h o s a , c o i s a s c o -
mo e s s a s s ã o a l í n g u a m a t e r n a de n o s s a i m a g i n a ç ã o , a l í n g u a c a r r e g a d a de to¬ 
das a s a s s o c i a ç õ e s sut i s e i n e x t r i c á v e i s d e i x a d a s p e l a s h o r a s f u g a z e s d a i n f â n c i a . 
N o s s o p r a z e r a o sol , n a g r a m a al ta d e h o j e , t a l v e z n ã o p a s s a s s e d e u m a t ê n u e per¬ 
c e p ç ã o de a l m a s c a n s a d a s , n ã o f o s s e m o sol e a g r a m a de a n o s d i s t a n t e s , q u e ain¬ 
d a v i v e m e m n ó s e t r a n s f o r m a m n o s s a p e r c e p ç ã o e m a m o r / ' ( G e o r g e E l io t , e m 
O moinho sobre o rio). 
82 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 83 
Para o ser plenamente vivo, o futuro não é ominoso, 
e sim uma promessa; cerca o presente como uma auréola. 
Consiste em possibilidades sentidas como a posse do que 
existe aqui e agora. Na vida que é verdadeiramente vida, tu¬ 
do se superpõe e se funde. Não raro, porém, existimos em 
meio a apreensões sobre o que o futuro poderá trazer e fi¬ 
camos divididos dentro de nós. Mesmo quando não esta¬ 
mos exageradamente ansiosos, não desfrutamos o presente, 
porque o subordinamos àquilo que está ausente. Dada a 
frequência desse abandono do presente ao passado e ao fu¬ 
turo, os períodos felizes de uma experiência agora comple¬ 
ta, por absorver em si lembranças do passado e expectativas 
do futuro, passam a constituir um ideal estético. Somente 
quando o passado deixa de perturbar e as expectativas do 
futuro não são aflitivas é que o ser se une inteiramente com 
seu meio e, com isso, fica plenamente vivo. A arte celebra 
com intensidade peculiar os momentos em que o passado 
reforça o presente e em que o futuro é uma intensificação do 
que existe agora. 
Para apreender as fontes da experiência estética, por¬ 
tanto, é necessário recorrer à vida animal abaixo da escala 
humana. As atividades da raposa, do cão e do sabiá podem 
ao menos figurar como lembretes e símbolos da unicidade 
da experiência que tanto fracionamos, quando o trabalho é 
um esforço árduo e o pensamento nos distancia do mundo. 
O animal vivo acha-se plenamente presente, inteiramente 
participante em todos os seus atos: nos olhares cautelosos, 
no farejar sensível, no espetar abrupto das orelhas. Todos os 
sentidos se encontram igualmente no qui vive. Ao observᬠ
-lo, vemos o movimento fundir-se com o sentido e o sentido 
com o movimento, constituindo aquela graça animal com 
que o ser humano tem tanta dificuldade de rivalizar. O que 
a criatura viva preserva do passado e espera do futuro fun¬ 
ciona como orientações no presente. O cão nunca é pedan¬ 
te nem acadêmico, pois essas coisas surgem apenas quando 
o passado é cindido do presente na consciência e instituí¬ 
do como modelo a ser copiado, ou como reservatório on¬ 
de buscar material. O passado absorvido pelo presente faz 
avançar, empurra para adiante. 
Há muito de embrutecido na vida do selvagem. Entre¬ 
tanto, no que ele tem de mais vivo, é sumamente observa¬ 
dor do mundo que o cerca e sumamente tenso de energia. 
Ao observar o que se mexe à sua volta, ele também se mexe. 
Sua observação é ato em preparação e antevisão do futuro. 
Com todo o seu ser, ele é tão ativo ao olhar e escutar quanto 
ao espreitar a presa, ou ao se afastar furtivamente de um ini¬ 
migo. Seus sentidos são sentinelas do pensamento imedia¬ 
to e postos avançados da ação, e não, como tantas vezes são 
conosco, meras vias pelas quais o material é recolhido, para 
ser armazenado para uma possibilidade adiada e remota. 
É a simples ignorância, portanto, que leva a supor que 
a ligação da arte e da percepção estética com a experiência 
significa uma diminuição de sua importância e dignidade. 
A experiência, na medida em que é experiência, consiste na 
acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar -
-se em sentimentos e sensações privados, significa uma tro¬ 
ca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma 
interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos 
e acontecimentos. Em vez de significar a rendição aos ca¬ 
prichos e à desordem, proporciona nossa única demonstra-
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ção de uma estabilidade que não equivale à estagnação, mas 
é rítmica e evolutiva. Por ser a realização de um organismo 
em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a expe¬ 
riência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas 
rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa 
que é a experiência estética. 
A CRIATURA VIVA E AS "COISAS ETÉREAS" 
Por que a tentativa de ligar as coisas superiores e ideais 
da experiência às raízes vitais básicas é vista, com tanta fre¬ 
quência, como uma traição a sua natureza e uma negação de 
seu valor? Por que existe repulsa quando as realizações su¬ 
periores da arte refinada são postas em contato com a vida 
comum, a vida que compartilhamos com todos os seres vi¬ 
vos? Por que se pensa na vida como uma questão de ape¬ 
tites inferiores ou, na melhor das hipóteses, uma coisa de 
sensações grosseiras, pronta a despencar do que tem de me¬ 
lhor para o nível da lascívia e da crueldade bruta? Uma res¬ 
posta completa a essas perguntas envolveria a redação de 
uma história da moral que expusesse as condições que acar¬ 
retaram o desprezo pelo corpo, o medo das sensações e a 
oposição da carne ao espírito. 
1. "O S o l , a L u a , a T e r r a e s e u c o n t e ú d o são um m a t e r i a l p a r a f o r m a r c o i s a s 
m a i o r e s , i s to é , c o i s a s e t é r e a s - c o i s a s m a i o r e s d o q u e a s fe i tas p e l o p r ó p r i o C r i a -
d o r . " ( J o h n K e a t s ) 
86 J O H N D r w l ' . Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 87 
Um aspecto dessa história é tão relevante para nosso 
problema que deve receber ao menos uma menção passa¬ 
geira. A vida institucional da humanidadeé marcada pela 
desorganização. Muitas vezes, essa desordem é disfarçada 
pelo fato de assumir a forma de uma divisão estática entre 
classes, e essa separação estática é aceita como a própria es¬ 
sência da ordem, desde que seja tão fixa e tão aceita que não 
gere conflitos abertos. A vida é compartimentalizada, e os 
compartimentos institucionalizados são classificados como 
superiores e inferiores; seus valores, como profanos e espiri¬ 
tuais, materiais e ideais. Os interesses são relacionados uns 
com os outros de maneira externa e mecânica, através de 
um sistema de verificações e balanços. Visto que a religião, 
a moral, a política e os negócios têm seus próprios compar¬ 
timentos, dentro dos quais convém que cada um permane¬ 
ça, também a arte deve ter seu âmbito peculiar e privado. A 
compartimentalização das ocupações e interesses acarreta a 
separação entre a forma de atividade comumente chamada 
de "prática" e a compreensão entre a imaginação e o fazer 
executivo, entre o propósito significativo e o trabalho, entre 
a emoção, de um lado, e o pensamento e a ação, de outro. 
Cada um destes tem também seu lugar próprio, no qual de¬ 
ve permanecer. Assim, aqueles que escrevem a anatomia da 
experiência supõem que essas divisões são inerentes à pró¬ 
pria constituição da natureza humana. 
A uma grande parte de nossa experiência - tal como 
efetivamente vivida nas atuais condições institucionais eco¬ 
nômicas e jurídicas - é muito verdadeiro que essas sepa¬ 
rações se aplicam. Só ocasionalmente, na vida de muitas 
pessoas, os sentidos são carregados do sentimento que pro-
vém da compreensão profunda dos significados intrínse-
cos. Vivenciamos as sensações como estímulos mecânicos 
ou estimulações irritadas, sem termos ideia da realidade que 
há nelas e por trás delas: em grande parte de nossa expe-
riência, nossos diferentes sentidos não se unem para contar 
uma história comum e ampliada. Vemos sem sentir; ouvi-
mos, mas apenas como um relato em segunda mão - segun-
da mão por ele não ser reforçado pela visão. Tocamos, mas o 
contato permanece tangencial, porque não se funde com as 
qualidades dos sentidos que mergulham abaixo da superfí-
cie. Usamos os sentidos para despertar a paixão, mas não 
para servir ao interesse do discernimento, não porque es¬ 
se interesse não esteja potencialmente presente no exercício 
do sensorial, mas porque cedemos a condições de vida que 
forçam os sentidos a se manterem como excitações superfi¬ 
ciais. O prestígio vai para aqueles que usam a mente sem a 
participação do corpo e que agem vicariamente através do 
controle dos corpos e do trabalho de terceiros. 
Nessas condições, o sentido e a carne ficam mal-afa¬ 
mados. O moralista, entretanto, tem uma ideia mais ver¬ 
dadeira das conexões íntimas dos sentidos com o resto de 
nosso ser do que o psicólogo e o filósofo profissionais, em¬ 
bora seu entendimento dessas conexões siga uma direção 
que inverte as realidades potenciais de nossa vida em rela¬ 
ção ao meio ambiente. Nos últimos tempos, os psicólogos e 
filósofos têm estado tão obcecados com o problema do co¬ 
nhecimento que tratam as "sensações" como meros com¬ 
ponentes dele. O moralista sabe que o sensorial está ligado 
às emoções, impulsos e apetites. Por isso, denuncia o gozo 
do olhar como parte da rendição do espírito à carne. Identi-
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fica o sensório com o sensual e o sensual com o lascivo. Sua 
teoria moral é tendenciosa, mas ao menos ele tem consciên¬ 
cia de que o olho não é um telescópio imperfeito, projetado 
para a recepção intelectual do material, a fim de promover o 
conhecimento de objetos distantes. 
O "sentido" abarca urna vasta gama de conteúdos: o 
sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimen¬ 
tal, junto com o sensual. Inclui quase tudo, desde o choque 
físico e emocional cru até o sentido em si - ou seja, o signi¬ 
ficado das coisas presentes na experiencia imediata. Cada 
termo se refere a uma fase e aspecto reais da vida de urna 
criatura orgânica, tal como a vida ocorre através dos órgãos 
sensoriais. Mas o sentido, como um significado tão direta¬ 
mente encarnado na experiencia a ponto de ser seu próprio 
significado esclarecido, é a única significação que expressa a 
função dos órgãos sensoriais quando levados à plena reali¬ 
zação. Os sentidos são os órgãos pelos quais a criatura vi¬ 
va participa diretamente das ocorrências do mundo a seu 
redor. Nessa participação, o assombro e o esplendor deste 
mundo se tornam reais para ela nas qualidades que ela vi¬ 
vencia. Esse material não pode ser contrastado com a ação, 
porque o aparelho motor e a própria "vontade" são os meios 
pelos quais essa participação é levada a cabo e dirigida. Não 
pode ser contrastado com o "intelecto", porque a mente é 
o meio pelo qual a participação se torna fecunda através do 
juízo [senso], pelo qual os significados e valores são extraí¬ 
dos, preservados e colocados a serviço de outras questões, 
na relação da criatura viva com o meio que a cerca. 
A experiência é o resultado, o sinal e a recompensa da 
interação entre organismo e meio que, quando plenamen-
te realizada, é uma transformação da interação em partici¬ 
pação e comunicação. Visto que os órgãos sensoriais, com o 
aparelho motor que lhes está ligado, são os meios dessa par¬ 
ticipação, toda e qualquer invalidação deles, seja de ordem 
prática ou teórica, é, ao mesmo tempo, efeito e causa de um 
estreitamento e um embotamento da experiência de vida. 
As oposições entre mente e corpo, alma e matéria, espíri¬ 
to e carne originam-se todas, fundamentalmente, no medo 
do que a vida pode trazer. São marcas de contração e retrai¬ 
mento. Portanto, o reconhecimento pleno da continuidade 
entre os órgãos, necessidades e impulsos básicos da criatura 
humana e seus antepassados animais não implica uma re¬ 
dução necessária do homem ao nível dos bichos. Ao con¬ 
trário, possibilita o traçado de um projeto fundamental da 
experiência humana sobre o qual se erga a superestrutura 
da experiência maravilhosa e distintiva do homem. O que 
há de distintivo no homem lhe permite descer abaixo do ní¬ 
vel dos animais. Também lhe possibilita elevar a alturas no¬ 
vas e sem precedentes a união do sentido e do impulso, do 
cérebro, olho e ouvido, que é exemplificada na vida animal, 
saturando-a com os significados conscientes derivados da 
comunicação e da expressão deliberada. 
O h o m e m prima pela complexidade e pela minúcia das 
diferenciações. Esse simples fato constitui a exigência de 
muitas relações mais abrangentes e exatas entre os compo¬ 
nentes de seu ser. Por mais importantes que sejam as distin¬ 
ções e relações assim possibilitadas, a história não termina 
aí. Há mais oportunidades de resistência e tensão, mais de¬ 
mandas de experimentação e invenção e, por conseguinte, 
maior ineditismo na ação, maior leque e profundidade do 
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discernimento e maior pungência dos sentimentos. À medi¬ 
da que um organismo aumenta sua complexidade, os ritmos 
de luta e consumação em sua relação com o meio tornam¬ 
-se variados e prolongados e passam a incluir em si uma va¬ 
riedade infindável de sub-ritmos. Os projetos de vida são 
ampliados e enriquecidos. A realização é mais maciça e tem 
nuanças mais sutis. 
Com isso, o espaço torna-se algo mais do que um va¬ 
zio pelo qual perambular, pontilhado, aqui e ali, de coisas 
perigosas e coisas que satisfazem os apetites. Torna-se um 
cenário abrangente e fechado no qual se ordena a multipli¬ 
cidade de atos e experiências em que ohomem se engaja. 
O tempo deixa de ser o fluxo infindável e uniforme ou a su¬ 
cessão de pontos instantâneos que alguns filósofos afirma¬ 
ram que é. Ele é também o meio organizado e organizador 
do influxo e refluxo rítmicos de impulsos expectantes, movi¬ 
mentos de avanço e recuo e de resistência e suspense, com 
realização e consumação. E uma ordenação do crescimen¬ 
to e do amadurecimento - como disse James, aprendemos 
a patinar no verão, depois de haver começado no inverno. 
O tempo, como organização da mudança, é crescimento, e 
o crescimento significa que uma série variada de mudanças 
entra nos intervalos de pausa e repouso, de conclusões que 
se tornam os pontos iniciais de novos processos de desen¬ 
volvimento. Tal como o solo, a mente é fertilizada quando 
está improdutiva, até seguir-se um novo surto de floração. 
Quando um relâmpago ilumina uma paisagem escu¬ 
ra, há um reconhecimento momentâneo dos objetos. Mas 
o reconhecimento em si não é um mero ponto no tempo. 
E a culminação focal de longos e lentos processos de ma-
turação. É a manifestação da continuidade de uma expe¬ 
riência temporal ordenada, em um súbito instante ímpar de 
clímax. Isolado, ele é tão sem sentido quanto seria a tra¬ 
gédia de Hamlet, caso se restringisse a um único verso ou 
palavra, sem qualquer contexto. Mas a frase "o resto é si¬ 
lêncio" é infinitamente pregnante como conclusão de um 
drama encenado pelo desenvolvimento no tempo; o mes¬ 
mo pode ocorrer com a percepção momentânea de uma ce¬ 
na natural. A forma, tal como presente nas artes, é a arte de 
deixar claro o que está envolvido na organização do espaço 
e do tempo, prefigurada em todo curso de uma experiência 
vital em desenvolvimento. 
Os momentos e lugares, a despeito da limitação físi¬ 
ca e da localização restrita, são carregados de acúmulos de 
energia colhida durante muito tempo. O retorno a uma ce¬ 
na da infância, deixada anos antes, inunda o local com uma 
liberação de lembranças e esperanças refreadas. Encontrar 
em um país estrangeiro um conhecido informal de casa po¬ 
de despertar uma satisfação tão aguda que chega a emo¬ 
cionar. O mero reconhecimento só ocorre quando estamos 
ocupados com outra coisa que não o objeto ou a pessoa re¬ 
conhecidos. Assinala uma interrupção ou uma intenção de 
usar o que é reconhecido como um meio para algo diferen¬ 
te. Ver, perceber, é mais do que reconhecer. Não identifica 
algo presente em termos de um passado desvinculado de¬ 
le mesmo. O passado se transpõe para o presente, expan¬ 
dindo e aprofundando o conteúdo deste último. Aí se ilustra 
a tradução da pura continuidade do tempo externo para a 
ordem e organização vitais da experiência. A identificação 
acena e segue adiante. Ou então define um momento pas-
92 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 93 
sageiro isolado, marca na experiencia um ponto morto que é 
meramente preenchido. O grau em que o processo de viver 
um dia ou uma hora quaisquer reduz-se a rotular situações, 
eventos e objetos como "tais e quais" em mera sucessão as¬ 
sinala a cessação da vida como uma experiência conscien¬ 
te. As continuidades percebidas em uma forma individual e 
distinta são a essência desta última. 
A arte, portanto, prefigura-se nos próprios processos 
do viver. O pássaro constrói seu ninho, e o castor, seu di¬ 
que, quando as pressões orgânicas internas cooperam com 
o material externo para que as primeiras se realizem e o se¬ 
gundo seja transformado em uma culminação satisfatória. 
Podemos hesitar em aplicar a isso a palavra "arte" , já que 
duvidamos da presença de uma intenção diretiva. Mas toda 
deliberação, toda intenção consciente brota de coisas antes 
organicamente executadas pela interação de energias natu¬ 
rais. Se assim não fosse, a arte se alicerçaria em areia move¬ 
diça, ou melhor, no ar instável. A contribuição distintiva do 
homem é a consciência das relações encontradas na nature¬ 
za. Através da consciência, ele converte as relações de cau¬ 
sa e efeito encontradas na natureza em relações de meios e 
consequência. Melhor dizendo, a consciência em si é a ori¬ 
gem dessa transformação. O que era mero choque torna-se 
um convite; a resistência transforma-se em algo a ser usa¬ 
do para mudar os arranjos existentes da matéria; as facilida¬ 
des desenvoltas tornam-se agentes da execução de ideias. 
Nessas operações, um estímulo orgânico torna-se portador 
de significados, e as respostas motoras se transformam em 
instrumentos de expressão e comunicação; deixam de ser 
meros meios de locomoção e reação direta. Enquanto is-
so, o substrato orgânico persiste como a base estimuladora 
e profunda. Fora das relações de causa e efeito da nature¬ 
za, a concepção e a invenção não poderiam existir. Separa¬ 
da da relação dos processos de conflito e realização rítmicos 
da vida animal, a experiência seria desprovida de projeto e 
padrão. Separadas dos órgãos herdados dos antepassados 
animais, a ideia e a finalidade seriam desprovidas de um 
mecanismo de realização. As artes primitivas da natureza e 
da vida animal são a tal ponto o material e, em linhas gerais, 
a tal ponto o modelo das realizações intencionais do h o m e m 
que as pessoas de mentalidade teológica imputaram uma 
intenção consciente à estrutura da natureza - posto que o 
homem, que tem muitas atividades em comum com o ma¬ 
caco, tende a pensar nelas como uma imitação de seu pró¬ 
prio desempenho. 
A existência da arte é a prova concreta do que aca¬ 
bou de ser afirmado em termos abstratos. E a prova de que 
o h o m e m usa os materiais e as energias da natureza com 
a intenção de ampliar sua própria vida, e de que o faz de 
acordo com a estrutura de seu organismo - cérebro, órgãos 
sensoriais e sistema muscular. A arte é a prova viva e con¬ 
creta de que o homem é capaz de restabelecer, consciente¬ 
mente e, portanto, no plano do significado, a união entre 
sentido, necessidade, impulso e ação que é característica 
do ser vivo. A intervenção da consciência acrescenta a re¬ 
gulação, a capacidade de seleção e a reordenação. Por isso, 
diversifica as artes de maneiras infindáveis. Mas sua inter¬ 
venção também leva, com o tempo, à ideia da arte como 
ideia consciente - a maior realização intelectual na histó¬ 
ria da humanidade. 
94 JOHN DEWEY 
A variedade e a perfeição das artes na Grécia levaram 
os pensadores a moldar uma concepção generalizada da ar-
te e a projetar o ideal de uma arte de organizar as atividades 
humanas como tais - a arte da política e da moral, tal co-
mo concebida por Sócrates e Platão. As ideias de concepção, 
projeto, ordem, padrão e finalidade ou propósito emergi-
ram distinguindo-se dos materiais empregados em sua rea-
lização e relacionando-as com eles. A concepção do homem 
como o ser que usa a arte tornou-se, ao mesmo tempo, a ba-
se da distinção entre o homem e o resto da natureza, bem 
como do vínculo que o liga à natureza. Quando a concep-
ção da arte como traço distintivo do homem foi explicitada, 
houve a certeza de que, a não ser por uma completa recaí-
da da humanidade abaixo até da selvageria, a possibilida-
de da invenção de novas artes permaneceria, ao lado do uso 
das artes antigas, como o ideal norteador da humanidade. 
Embora o reconhecimento desse fato ainda seja relutante, 
dadas as tradições estabelecidas antes que o poder da ar-
te fosse adequadamente reconhecido, a própria ciência não 
passa de uma arte central que auxilia na geração e utiliza-
ção de outras artes2. 
E costumeiro e, segundo alguns pontos de vista, neces-
sário estabelecer uma distinção entre belas-artes e arte útil 
ou tecnológica. Mas o ponto de vista a partir do qual essa dis-
tinção é necessáriaé extrínseco à obra de arte propriamente 
2. Desenvolvi este ponto em. Experience and Nature [Experiência e natureza], 
no Capítulo 9, "Experiência, natureza e arte". No que concerne à colocação atual, 
a conclusão encontra-se na afirmação de que "a arte, forma de atividade carregada 
de significados passíveis de uma posse imediatamente desfrutada, é a culminação 
completa da natureza, e a ciência, no sentido apropriado, é a serva que conduz os 
eventos naturais a esse final feliz" (p. 358) [Later Works, vol. 1, p. 269] . 
96 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 97 
dita. A distinção habitual baseia-se simplesmente na acei¬ 
tação de certas condições sociais existentes. Suponho que 
os fetiches do escultor negro africano tenham sido consi¬ 
derados excepcionalmente úteis para seu grupo tribal, mais 
até do que as lanças e a roupa. Agora, porém, constituem 
obras de arte e servem, no século xx, para inspirar uma re¬ 
novação em artes que se tornaram convencionais. No en¬ 
tanto, só são obras de arte porque o artista anônimo viveu 
e teve experiências muito plenas durante o processo de 
produção. Um pescador pode comer seu pescado sem por 
isso perder a satisfação estética que vivenciou ao lançar o 
anzol e pescar. E esse grau de completude do viver, na ex¬ 
periência de fazer e perceber, que estabelece a diferença 
entre o que é belo ou estético na arte e o que não é. Se a 
coisa produzida é ou não utilizada, como potes, tapetes, 
roupas ou armas, é, intrinsecamente falando, irrelevante. O 
fato de muitos ou talvez de a maioria dos artigos e utensí¬ 
lios hoje criados para uso não serem genuinamente estéti¬ 
cos é verdadeiro, infelizmente. Mas é verdadeiro por razões 
alheias à relação entre o "belo" e o "út i l " como tais. Onde 
quer que as condições sejam tais que impeçam o ato de 
produção de ser uma experiência em que a totalidade da 
criatura esteja viva e na qual ela possua sua vida através do 
prazer, faltará ao produto algo da ordem do estético. Por 
mais que ele seja útil para fins especiais e limitados, não 
será útil no grau supremo - o de contribuir, direta e liberal¬ 
mente, para a ampliação e enriquecimento da vida. A his¬ 
tória da separação e da oposição nítida e final entre o útil e 
o belo é a história do desenvolvimento industrial, median¬ 
te o qual grande parte da produção se tornou uma forma 
de vida adiada e grande parte do consumo tornou-se um 
prazer superposto aos frutos do trabalho alheio. 
Em geral, há uma reação hostil à concepção da arte 
que a liga às atividades da criatura viva em seu ambiente. 
A hostilidade à associação das belas-artes com os proces¬ 
sos normais do viver é um comentário patético ou até trᬠ
gico sobre a vida, tal como comumente vivida. E somente 
pelo fato de a vida ser usualmente muito mirrada, abortada, 
embotada ou carregada que se alimenta a ideia de haver um 
antagonismo intrínseco entre o processo da vida normal e a 
criação e apreciação de obras da arte estética. Afinal, ainda 
que o "espiritual" e o "material" sejam separados e opostos 
entre si, deve haver condições em que o ideal seja passível 
de incorporação e realização - e isso, fundamentalmente, é 
tudo o que significa "matéria" . A própria maneira como essa 
oposição se tornou corrente atesta, portanto, a ação genera¬ 
lizada de forças que convertem aquilo que poderia constituir 
meios de executar ideias liberais em fardos opressivos, e que 
levam os ideais a serem aspirações frouxas, em um clima in¬ 
seguro e sem alicerces. 
Embora a arte em si seja a melhor prova da existência de 
uma união realizada, e portanto realizável, entre o material e 
o ideal, há argumentos gerais que apoiam a tese em exame. 
Toda vez que a continuidade é possível, o ônus da prova recai 
sobre os que afirmam a oposição e o dualismo. A natureza é 
a mãe e o habitat do ser humano, ainda que, vez por outra, 
seja madrasta e um lar pouco acolhedor. O fato de a civiliza¬ 
ção perdurar e de a cultura prosseguir - e às vezes avançar 
- é prova de que as esperanças e objetivos humanos encon-
98 J O H N D E W E Y 
A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 99 
tram base e respaldo na natureza. Assim como o crescimen¬ 
to evolutivo do indivíduo, desde o embrião até a maturidade, 
resulta da interação do organismo com o meio circundante, 
a cultura é produto não de esforços empreendidos pelos ho¬ 
mens no vazio, ou apenas com eles mesmos, mas da intera¬ 
ção prolongada e cumulativa com o meio. A profundidade 
das reações provocadas pelas obras de arte mostra a conti¬ 
nuidade que há entre elas e as operações dessa experiência 
duradoura. As obras e as reações que elas provocam são con¬ 
tínuas aos próprios processos do viver, conforme estes são 
levados a uma inesperada realização satisfatória. 
Quanto à absorção do estético na natureza, cito um caso 
reproduzido, em certa medida, em milhares de pessoas, mas 
notável por ter sido expresso por um artista do mais alto quilate, 
W. H. Hudson. "Quando estou longe da visão da grama cres¬ 
cente e viva, e das vozes dos pássaros e todos os sons rurais, sin¬ 
to que não estou propriamente vivo." Mais adiante, ele afirma: 
. . .quando ouço pessoas dizerem que não acham o mun-
do e a vida tão agradáveis e interessantes a ponto de se 
apaixonarem por eles, ou que encaram serenamente o 
seu fim, tendo a pensar que nunca estiveram propria¬ 
mente vivas, nem viram com uma visão clara o mundo 
de que pensam tão mal , ou coisa alguma dentro dele -
nem mesmo um talo de capim. 
A faceta mística da aguda entrega estética, que a torna tão 
parecida, como experiência, com o que os religiosos cha¬ 
mam de comunhão extasiada, é relembrada por Hudson a 
partir de sua vida de menino. Ele fala do efeito nele exercido 
pela visão das acácias: 
A folhagem solta e plumosa, nas noites enluaradas, ti¬ 
nha um aspecto encanecido peculiar que fazia essa ár¬ 
vore parecer mais intensamente viva do que outras, mais 
consciente de mim e da minha presença. [...] [Era algo] 
semelhante à sensação que uma pessoa teria de ser visi¬ 
tada por um ser sobrenatural, se estivesse perfeitamen¬ 
te convencida de que ele estava ali em sua presença, 
apesar de calado e invisível, olhando-a atentamente e 
adivinhando cada um de seus pensamentos . 
Emerson é constantemente visto como um pensador auste¬ 
ro. No entanto, foi o Emerson adulto que disse, bem dentro 
do espírito da passagem citada de Hudson: "Ao atravessar 
um simples parque, com suas poças de neve, ao cair da noite 
o sob o céu nublado, sem ter no pensamento nenhuma ocor¬ 
rência de uma sorte especial, desfrutei de uma euforia perfei¬ 
ta. Fiquei feliz a ponto de chegar à beira do temor". 
Não vejo maneira de explicar a multiplicidade de ex¬ 
periências desse tipo (encontrando-se algo da mesma qua¬ 
lidade em toda reação estética espontânea, não coagida), a 
não ser com base na entrada em atividade de ressonâncias 
de disposições adquiridas nas relações primitivas do ser vi¬ 
vo a seu meio, e que são irrecuperáveis na consciência clara 
ou intelectual. Experiências como as mencionadas levam-
nos a uma outra consideração que atesta a continuidade 
natural. Não há limite para a capacidade de a experiência 
sensorial imediata absorver em si significados e valores que, 
em si e por si - isto é, em termos abstratos -, seriam de¬ 
signados como "ideais" e "espirituais". A corrente animista 
da experiência religiosa, encarnada na lembrança dos tem¬ 
pos da infância por Hudson, é um exemplo em um dado ní-
100 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 101 
vel de experiência. E o poético, seja qual for o seu veículo, é 
sempre um parente próximodo animista. E, se nos voltar¬ 
mos a uma arte que, sob muitos aspectos, se encontra no 
polo oposto - a arquitetura -, veremos que as ideias, talvez 
inicialmente moldadas em um pensamento altamente téc¬ 
nico, como o da matemática, são passíveis de incorporação 
direta sob a forma sensorial. A superfície sensível das coisas 
nunca é meramente uma superfície. Podemos discriminar a 
pedra do papel fino e delicado apenas pela superfície, visto 
que as resistências do tato e a solidez decorrente das tensões 
de todo o sistema muscular foram completamente incorpo¬ 
radas à visão. Esse processo não para com a encarnação de 
outras qualidades sensoriais que dão profundidade de senti¬ 
do à superfície. Nada que o h o m e m já tenha alcançado pelo 
mais alto voo do pensamento, ou em que tenha penetrado 
por um minucioso discernimento, é intrinsecamente tal que 
não possa se tornar o coração e o cerne dos sentidos. 
Uma mesma palavra, "símbolo", é usada para designar 
expressões de pensamento abstrato, como na matemática, e 
coisas como uma bandeira ou um crucifixo, que incorporam 
um profundo valor social e o significado da fé histórica e do 
credo teológico. O incenso, os vitrais, o badalar de sinos in¬ 
visíveis e os mantos bordados acompanham a abordagem do 
que é considerado divino. A ligação entre a origem de mui¬ 
tas artes e os rituais primitivos torna-se mais evidente a ca¬ 
da incursão dos antropólogos no passado. Só os que estão 
tão distantes das experiências primitivas, que perderam de 
vista seu sentido, são capazes de concluir que os ritos e ce¬ 
rimônias eram meros dispositivos técnicos para assegurar a 
chuva, os filhos varões, a lavoura ou o sucesso na batalha. E 
claro que eles tinham essa intenção mágica, mas foram per-
sistentemente encenados, podemos ter certeza, apesar de 
todos os fracassos na prática, por serem intensificações ime-
diatas da experiência de viver. Os mitos foram algo diferente 
de tentativas intelectualistas do homem primitivo no campo 
da ciência. O desconforto diante de qualquer fato desconhe-
cido certamente desempenhou seu papel. Mas o prazer com a 
narrativa, com o aumento e a exposição de uma boa história, 
desempenhou então seu papel dominante, tal como faz hoje 
no crescimento das mitologias populares. Não só o elemen-
to sensorial direto - e a emoção é uma modalidade do sentir -
tende a absorver todo o conteúdo ideativo, como também, à 
parte uma disciplina especial, imposta por um aparato físico, 
subjuga e digere tudo o que é meramente intelectual. 
A introdução do sobrenatural na fé e a facílima rever¬ 
são humana ao sobrenatural são muito mais uma questão 
de psicologia que gera obras de arte do que de um esforço 
de explicação científica e filosófica. Elas intensificam a vibra¬ 
ção emocional e pontuam o interesse pertinente a qualquer 
ruptura na rotina conhecida. Se a influência do sobrenatural 
no pensamento humano fosse exclusivamente - ou até pre¬ 
dominantemente - uma questão intelectual, seria de certo 
modo insignificante. As teologias e cosmogonias captaram 
a imaginação por terem sido acompanhadas por procissões 
solenes, incenso, mantos bordados, música, o brilho de lu¬ 
zes coloridas e histórias que despertavam reverência e in¬ 
duziam a uma admiração hipnótica. Em outras palavras, 
chegaram ao homem através de um apelo direto aos senti¬ 
dos e à imaginação sensorial. A maioria das religiões identi¬ 
ficou seus sacramentos com os píncaros da arte, e as crenças 
mais abalizadas revestiram-se de uma roupagem de pompa 
102 J O H N D H W E Y 
A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 103 
e espetáculos grandiosos, que proporcionavam um prazer 
imediato aos olhos e ouvidos e evocavam emoções maciças 
de suspense, assombro e reverência. Os voos dos físicos e 
astrônomos de hoje respondem mais à necessidade estética 
de satisfação da imaginação do que a qualquer exigência ri¬ 
gorosa de provas não afetivas da interpretação racional. 
Henry Adams deixou claro que a teologia da Idade Mé¬ 
dia foi uma construção com a mesma intenção da que eri¬ 
giu as catedrais. Em geral, essa Idade Média, popularmente 
considerada como a expressão do auge da fé cristã no mun¬ 
do ocidental, é uma demonstração do poder dos sentidos de 
absorver as ideias mais altamente espiritualizadas. A músi¬ 
ca, a pintura, a escultura, a arquitetura, o teatro e o roman¬ 
ce eram servos da religião, tanto quanto o eram a ciência e 
a erudição. As artes mal chegavam a ter existência fora da 
Igreja, e os ritos e cerimônias eclesiásticos eram artes en¬ 
cenadas em condições que lhes davam o máximo possível 
de apelo emocional e imaginativo. Não sei o que daria ao 
espectador e ouvinte da manifestação das artes uma entre¬ 
ga mais pungente do que a convicção de que elas estavam 
impregnadas dos meios necessários da glória e da bem¬ 
- aven tu rança eternas. 
As seguintes palavras de Pater merecem ser citadas 
nesse contexto: 
O cristianismo cia Idade Média avançou, em parte, por 
sua beleza estética, algo muito profundamente sentido 
pelos hinis tas la t inos , que, para cada sentimento moral 
ou espiritual, tinham uma centena de imagens sensoriais. 
U m a paixão cujas válvulas de escape estão vedadas ge¬ 
ra uma tensão nervosa na qual o mundo sensível chega 
ao indivíduo com um brilho e um relevo reforçados -
toda vermelhidão se transforma em sangue; toda água, 
em lágrimas. Daí a sensualidade desvairada e convulsa 
de toda a poesia da Idade Média, na qual as coisas da 
natureza começaram a desempenhar um estranho pa¬ 
pel delirante. Das coisas da natureza, a mente medieval 
t inha um senso profundo; mas o senso que tinha de¬ 
las não era objetivo, não era uma fuga real para o mun¬ 
do sem nós. 
Em seu ensaio autobiográfico intitulado A criança na ca¬ 
sa, Pater generalizou o que está implícito nessa passagem, 
dizendo: 
Em anos posteriores, ele chegou a filosofias que muito 
o ocuparam na avaliação das proporções dos elementos 
sensoriais e ideais no conhecimento humano, dos pa¬ 
péis relativos que exercem nele; e, em seu esquema inte¬ 
lectual, foi levado a atribuir pouquíssimo ao pensamento 
abstrato, e muito a seu veículo ou ocasião sensível. 
E ste último 
tornou-se o concomitante necessário de qualquer per¬ 
cepção das coisas, real o bastante para ter peso ou con¬ 
sequência em sua casa do pensamento . [... ] Tornou-se 
cada vez mais incapaz de se importar com a alma ou 
pensar nela senão como estando em um corpo real, ou 
com qualquer mundo senão aquele em que se encon¬ 
tram a água e as árvores, e onde h o m e n s e mulheres têm 
tal ou qual aparência, e apertam mãos de verdade. 
104 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 105 
A elevação do ideal acima e além do sentido imediato fun¬ 
cionou não apenas para torná-lo pálido e exangue, mas agiu 
também, como um conspirador com a mente sensual, no 
sentido de empobrecer e degradar tudo o que é da expe¬ 
riencia direta. 
No título deste capítulo, tomei a liberdade de buscar 
em Keats a palavra "etéreos" , para designar os significa¬ 
dos e valores que muitos filósofos e alguns críticos supõem 
serem inacessíveis aos sentidos, por seu caráter espiritual, 
eterno e universal - exemplificando, com isso, o dualismo 
comum entre natureza e espírito. Permitam-me citar no¬ 
vamente suas palavras. O artista pode considerar "o Sol, a 
Lua, as estrelas, a Terra e seu conteúdo [como] um mate¬ 
rial para formar coisas maiores, isto é, coisas etéreas - coisas 
maiores do que as feitas pelo próprio Criador". Ao fazer este 
uso de Keats, tive ainda em mente o fato de que ele identifi¬ 
cou a atitude do artista com a do ser

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