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1.1 Manifestação da questão social e seus fundamentos socio-históricos, políticos, econômicos e culturais
A questão social é transformada com a movimentação da sociedade. Para sua compreensão, vamos estudar a história do século XIX. Antes, porém, lembremos que o capitalismo surgiu com o fim do feudalismo, nos séculos V a XV, na Europa (BRAUDEL, 1995). Este se estendeu pela Idade Média, sendo o poder dos senhores feudais superior ao dos reis. Essa descentralização de poder marca o fim do período medieval.
Surgem os burgueses, comerciantes da época, que defendiam o mercantilismo. Junto a isso, a acumulação primitiva ganhou formas, e mudanças nas relações sobre as terras se acentuaram.
A burguesia, apesar de não deter o poder político — monopolizado pelo clero e pela nobreza —, ampliou sua influência econômica, aliada à acumulação primitiva como processo de enriquecimento, entre os séculos XVI e XVIII. Isso foi determinante para as transformações econômicas da Revolução Industrial.
A partir do exposto, você já consegue imaginar a relação da questão social com o capitalismo? Como era a economia da época? O que mudou para as pessoas comuns? Vamos ver as dinâmicas da sociedade que tem como atores os burgueses, os trabalhadores que perderam suas terras, os artesãos, os trabalhadores da manufatura e os do início da indústria.
Ao estudar este tópico, você será identificará as características dos fundamentos da questão social reconhecendo seu processo e avanço.
1.1.1 O cercamento das terras
Na Inglaterra do século XVI, como parte da tradição econômica de utilização comunitária da terra que remontava à Idade Média, os camponeses utilizavam as terras de forma comunal e delas extraíam madeira, caça e outros produtos para a sobrevivência. A partir desse período, com as Leis de Cercamentos (Enclosure Acts) editadas por sucessivos monarcas ingleses, viram-se privados dessa fonte de recursos. O que aconteceu nesse novo cenário? As terras que eram de uso comum dos camponeses foram cercadas por poderosos senhores feudais numa ação de privatização dos espaços comuns às populações (POLANYI, 2000).
Vejamos de forma mais detalhada esse processo de privatização da terra. Eram muito comuns na Inglaterra os campos abertos. Qualquer cidadão poderia manter seu cultivo sem ser o proprietário das terras. As comunidades primitivas viviam baseadas no costume e na reciprocidade das pessoas em que todos favoreciam o bem comum. O processo do cercamento de terras deu lugar à exploração em campos fechados, e as terras foram cercadas. Apareceram donos para os espaços que antes eram partilhados com quem podia caçar, extrair madeira ou cultivar. Com os cercamentos, a terra passa a ser mercadoria. Os proprietários podiam comprar e vender, enquanto a maioria daqueles que lá viviam eram expulsos já que não tinham meios para a aquisição de terras. Para aumentar os lucros com a venda de suas terras, os fazendeiros começaram a devastar as florestas e a drenar os pântanos localizados em suas propriedades. Com isso, uma verdadeira revolução agrícola ocorreu.
A Revolução Agrícola ficou conhecida pela implementação de novas técnicas nas plantações da Inglaterra, para o aumento da produção, por exemplo: cavalos puxavam alguns maquinários para agilizar os processos e diminuir a força humana, ou ainda o plantio da mesma espécie de vegetação para facilitar o manuseio e garantir um volume maior do mesmo produto (PEREIRA, 2001).
O cercamento das terras marca a transição do feudalismo para o capitalismo, uma vez que a propriedade privada é uma instituição primordial deste último. O trabalhador perde o acesso às terras, restando-lhe a venda da força de trabalho em troca de salário. Tal contexto promoveu o fortalecimento da burguesia, a constituição do proletariado e o desenvolvimento da Revolução Industrial.
A expropriação das terras e a apropriação privada de uma minoria, ainda no século XV, marcam o início da exploração da propriedade privada capitalista, e da apropriação do trabalho humano por consequência. Trabalho e terra, apesar de serem considerados mercadorias, não podem ser compreendidos dessa forma, como afirma Polanyi (2000, p. 89):
A terra era o componente fundamental da ordem feudal, formando-se, pois, a base do sistema militar, jurídico, administrativo e político. Ademais o status e a função dessa ordem eram determinados pelas leis e costumes... O mercantilismo, por sua vez, levava a almejar o desenvolvimento dos recursos nacionais com base nos negócios e no comércio... Trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria e devem assim ser organizados em mercados, o que leva à falsa ideia de que são mercadorias. Trabalho é a atividade humana produzida não para a venda, mas para fins diversos e não pode ser armazenada. Terra diz respeito à natureza, que como sabemos não pode ser produzida pelo homem. Dinheiro é o equivalente geral dos preços, intermediador das trocas e não algo produzido para a troca. Portanto, tratar terra, trabalho e dinheiro como mercadorias é uma ficção.
Para Polanyi (2000), entender o trabalho e a terra como mercadorias é algo incorreto, ou melhor, fictício. Toda uma dinâmica da sociedade, tanto econômica quanto social, sofre com tanta mudança. O homem que foi sujeitado a essa alteração em relação à sua forma de sobreviver pode ser considerado abandonado socialmente.
Toda essa reestruturação da produção de bens, e agora consumo, favorecidamente realizada pela burguesia, muda o panorama da vida centrada no bem comum da comunidade entendida como primitiva. O que acontece com essa população? A sua vida ganha novos rumos e sua força de trabalho, como outras mercadorias, passa a ser vendida.
O livro "História social e econômica moderna", escrito por Ricardo Selke e Natália Bello, faz um resgate histórico para o entendimento do mundo moderno por meio das mudanças que ocorreram do fim da Idade Média até a Idade Moderna, as quais levaram à acumulação de capital. Recomendamos a leitura das páginas 29 a 36. Elas são referentes ao item que narra a história do sistema feudal até o capitalismo.
Neste primeiro momento, podemos analisar de forma histórica as transformações na vida das pessoas comuns que viviam na Europa, principalmente na Inglaterra, até o século XVIII (BRAUDEL, 1995). Os interesses sociais foram colocados de lado em favor dos interesses econômicos, os quais se tornaram o principal motivo da reorganização social.
1.1.2 As formas de troca
Ainda para compreender o surgimento do capitalismo, vamos retornar às sociedades primitivas que tinham sua vida preservada pelos próprios membros da comunidade por entenderem que isso era uma obrigação moral. O trabalho exercido por um indivíduo normalmente era direcionado pelo parentesco, ou melhor, pela família a que pertencia, algo como uma tradição.
Prevalecia na vida medieval uma ordem social cujo centro era a família, com privilégio hereditário que se perpetuava através dos tempos. O exercício da autoridade passava de pai para filho em obediência à linhagem real ou aristocrática sacramentada pela tradição. Família e propriedade constituíam, pois, antes da constituição dos Estados nacionais, a base do poder governamental (PEREIRA, 2003, p. 64).
As produções não eram destinadas à compra ou à venda, e sim à troca. Os bens eram escassos, contudo, era uma escassez provocada pela falta do bem ou produto e não por uma lógica de mercado que exigia um consumo após uma compra de mercadoria ou serviço.
Para Polanyi (2000), nas sociedades primitivas e arcaicas, ressaltam-se três possibilidades de troca: a reciprocidade, a redistribuição e a troca de mercadoria ou troca relacionada com negociação de mercado.
A reciprocidade, vinculada às sociedades primitivas, é considerada uma movimentação de produtos que não se assemelha ao comércio, sendo uma forma de relação social. Esta relação contava com a formação de acordos espontâneos, sem regras preestabelecidas ou muitas exigências entre as pessoas que realizariam as trocas. Toda a família teria a responsabilidadede auxiliar a subsistência de seus parentes. Algumas comunidades tinham até por hábito ofertar o que de melhor haviam produzido no auxílio à subsistência dos familiares. Para simplificar o conceito de reciprocidade, podemos dizer que os parentes ou pessoas da comunidade se presenteavam, apenas pelo fato de ofertar algo por carinho, sem a expectativa de algum retorno.
A tribo indígena Kaingang, situada atualmente no Rio Grande do Sul, no Brasil, anteriormente estava nas regiões que são conhecidas como Paraná e Santa Catarina, além do Rio Grande do Sul. Apesar de terem sofrido perdas de território no século XIX, conseguiram retomar alguns espaços territoriais. Hoje o que restou foi a memória coletiva desse povo que mantém algumas tradições passadas de geração a geração. A terra, chamada por eles de Mãe Terra, é a base de suas vidas. Não é considerada apenas como um meio de produção de subsistência e está relacionada à sua religião, cultura e vida. “É nesses espaços que exercem atividades de caça, pesca, coleta e cultivo de produtos, como o milho, abóbora, feijão e batata-doce” (TOMMASINO, 2004, p. 58-84). Os conhecimentos medicinais, os animais caçados, as plantas e os cultivos são para o bem comum de toda a aldeia.
Pelo caso relatado pode-se apreender a força da Terra para um povo, bem como toda uma organização social, política e econômica voltadas ao bem comum, que não encontra mais espaço numa realidade marcada pelo capitalismo regido pela lógica do mercado.
A redistribuição, como possibilidade de troca na sociedade, é de natureza política — algo muito comum no século XIX. Nessa modalidade de troca, as pessoas pagam os impostos sem escolher quanto irão pagar e quais serviços irão receber em contrapartida. Elas não possuem autonomia para decidir qual será o serviço prestado, pois a autoridade local é quem decide (POLANYI, 2000). A intenção com tal medida é promover o bem comum, público, baseado em justiça. Sendo assim, podemos dizer que desse tipo de procedimento não decorre qualquer problema, certo? A resposta seria positiva se fosse fácil decidir o que é justo. Pessoas diferentes podem ter entendimentos diferentes sobre o que seria justo ou não. Dessa forma, as regras precisam ser definidas.
Para ficar mais claro o entendimento, basta pensarmos nos dias atuais, em que o Estado recebe os valores advindos dos impostos e destina as verbas às políticas públicas baseadas em regras criadas pelos governantes. A maioria das políticas públicas é redistributiva.
Por sua vez, a troca de mercadoria encontrada nos dias atuais é uma movimentação que controla a compra e a venda dos produtos. Para se manterem, os indivíduos precisam vender produtos ou força de trabalho e, em troca, recebem dinheiro ou salário. Os acordos envolvidos nesse tipo de troca são espontâneos e pré-fixados.
Figura 1 - Formas de troca e organização social. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em POLANYI, 2000.
Uma observação: essas formas de troca não são exclusivas de uma determinada época nem mesmo de uma determinada comunidade. Elas podem ocorrer de forma simultânea. O que é possível observar ao analisar todas essas formas de troca? Observamos que a reciprocidade é a forma mais genuína de troca, a qual se dedica ao bem comum sem esperar por recompensas — situação que não ocorre em uma sociedade capitalista.
1.2 Evolução histórica da consolidação da produção mercantil capitalista ao neoliberalismo contemporâneo
A evolução da produção mercantil capitalista até a implementação do neoliberalismo torna compreensíveis as mudanças de padrões a que foram submetidas as pessoas. Suas consequências estão diretamente ligadas ao surgimento da questão social.
A propriedade privada compreende o poder de dispor, desfazer-se ou negociar algo, respeitando o direito dos demais. Ela é regulada pelo poder público e é parte do capitalismo.
Após o cercamento das terras e a instituição da propriedade privada ganhando espaço na Europa, mais precisamente na Inglaterra do século XVIII, nós devemos nos atentar para as mudanças ocorridas a partir da Revolução Industrial, a qual podemos vincular ao capitalismo afirmando que ela o consolida (POLANYI, 2000).
Definimos Revolução Industrial como a inserção de máquinas a vapor substituindo o trabalho humano. Essa alteração de estrutura avançou além das mudanças para novas tecnologias ou formas de produzir — ela mudou a vida das pessoas comuns. De que maneira eram tratados os trabalhadores das fábricas? Quais as opções de assistência que recebiam os pobres?
Ao fim deste tópico, você conhecerá as principais características da era da Revolução Industrial compreendendo seu desenvolvimento com as Poor Laws e interpretando o período do Welfare State, culminando nos dias atuais.
1.2.1 Fases do capitalismo
O capitalismo é nosso foco principal para explorar melhor o conceito de questão social. Segundo Braudel (1995), o pré-capitalismo — ou mercantilismo, que ocorreu do século XV ao século XVIII — surge ao fim da Idade Média como uma iniciativa dos países exploradores da Europa que retiravam as riquezas das novas terras para fomentar suas relações comerciais. O capitalismo industrial surge como uma segunda fase, já na Revolução Industrial, principalmente nos séculos XVIII e XIX. O capitalismo financeiro é encontrado nos dias atuais, a partir do século XX. O sistema financeiro é o principal agente deste período. Todas as fases são baseadas na circulação de mercadorias e no lucro. Segundo Pereira (2001),
Entrando no período histórico conhecido como Mercantilismo, cuja ênfase econômica incidia sobre a utilização do trabalho como fonte de riqueza ou como riqueza em si. Em decorrência, seus adeptos acreditavam que a pobreza era providencial para o acúmulo de riqueza e para a competição vantajosa no comércio internacional, posto que, com ela, se tinha braços para trabalhar a baixo custo (PEREIRA, 2001, p. 66).
Figura 2 - Fases do capitalismo na história que se renova e se refaz a partir das crises. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em PEREIRA, 2001.
A aceleração dos processos produtivos foi intensificada com a mecanização do maquinário iniciada na Revolução Industrial. As cidades foram crescendo a partir da abertura de novas fábricas. As condições de vida nas cidades eram precárias e até mesmo desumanas.
O romance "Tempos difíceis", de Charles Dickens, é a narrativa da vida complicada da população que enfrentava a miséria na Inglaterra no decorrer do processo de industrialização. O romance nos faz conhecer os problemas básicos daquela sociedade e um pouco do cotidiano do século XIX com consciência social.
As gerações que se sucederam à fase de industrialização podem ser definidas, primordialmente, como as duas gerações que viveram a partir da Revolução Industrial e sofreram profundamente as causas de todas as possibilidades do rápido crescimento da indústria que estariam por vir.
1.2.2 Poor Laws
Antes de falarmos sobre a urbanização e a industrialização, vamos retomar o debate aqui apresentado com um olhar social sobre a população que sofreu para sobreviver durante a industrialização na Inglaterra. Nem sempre a população pobre viveu desprotegida. Para amenizar os problemas da miséria foram criadas, em momentos históricos diferentes, leis de proteção aos pobres, as chamadas Poor Laws. As Poor Laws estiveram estreitamente ligadas aos primeiros esforços de construção do Estado na Europa dos séculos XV e XVI (PEREIRA, 2003).
Ainda no século XVI, na Inglaterra, o contingente populacional aumentou consideravelmente. Muitas famílias se deslocaram do meio rural para o urbano em busca de trabalho. Diversos problemas sociais decorreram do fato de haver cidadãos miseráveis andando sem destino pelas cidades. Com o elevado número dessas pessoas, as pregações da igreja afirmando ser dever do Estado promover algum tipo de assistência a elas e, principalmente, para controlar a população, foram criadas as Poor Laws.
A primeira Poor Law foi elaborada para lidar com este problema. A lei procurava assistir essas pessoas promovendouma autoproteção à classe menos favorecida (PEREIRA, 2003).
Figura 3 - A proteção aos pobres na legislação. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em HOBSBAWM, 2003.
Você pode imaginar a pior situação, ou a mais inadequada, a que foram submetidas as pessoas durante essas Poor Laws? Elas tiveram de viver nas workhouses, umas casas de trabalho que se assemelhavam a prisões desumanizadas. Viviam nessas casas de trabalho: homens, mulheres, enfermos, ociosos, criminosos e crianças. O trabalho era forçado, a comida racionada e as condições de higiene insuportáveis. Alguns pobres preferiam viver nas ruas a ter que passar pelas casas de trabalho.
A reforma de 1834 tornava o trabalho obrigatório. O auxílio era dado em troca de uma atividade forçada cujo pagamento era inferior ao que se pagava no mercado livre de trabalho. Vejamos o que diz Hobsbawm (2003):
[...] a Lei dos Pobres de 1834 foi projetada para tornar a vida tão intolerável para os pobres do campo que eles se vissem forçados a abandonar a terra em busca de qualquer emprego que lhes fosse oferecido. E, de fato, logo começaram a fazê-lo. Na década de 1840, vários condados já estavam à beira de uma perda absoluta de população, e a partir de 1850 a fuga do campo se tornou generalizada (HOBSBAWM, 2003, p. 172).
Qual foi o destino dos pobres? Eles foram abandonados, e cessou o direito de qualquer assistência para que as pessoas aceitassem todas as formas de trabalho. A reforma de 1834 permitiu o nascimento do mercado de trabalho (HOBSBAWM, 2003).
1.2.3 Capitalismo e questão social
Os burgueses, donos de fábricas na Inglaterra, procuravam explorar ao máximo seus trabalhadores. As horas de trabalho geralmente passavam das 18 horas diárias. Mulheres e crianças desempenhavam a mesma jornada de trabalho apesar de não receberem o mesmo valor de salário. Mesmo ganhando menos, as mulheres e as crianças não tinham alternativas, pois precisavam aceitar as condições de trabalho para aumentar a renda familiar enquanto os burgueses acreditavam ser interessante contratar crianças e mulheres para baratear a produção. O ambiente de trabalho era inadequado e insalubre. A prostituição e os crimes eram comuns nas ruas das cidades, e os burgueses não se preocupavam com tais questões — o importante para eles era o lucro garantido pelos trabalhadores.
Face a um cenário de exploração, teve início, na Inglaterra, entre os anos de 1811 e 1812, um movimento social que se colocou contrário aos avanços tecnológicos e que se voltou contra a substituição da mão de obra humana por máquinas. Esse movimento recebeu o nome de ludismo, em homenagem a um de seus líderes — Led Nudd.
Os trabalhadores acreditavam que as máquinas provocavam as condições ruins de trabalho. Pensando assim, invadiram diversas fábricas e quebraram máquinas e outros equipamentos que consideravam responsáveis pelo desemprego e as péssimas condições de trabalho no período (IGLÉSIAS, 1981).
Figura 4 - Mobilizações, lutas e reivindicações populares. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em IGLÉSIAS, 1981.
O que surge com a expansão da indústria e o consequente avanço do capitalismo? Nesse contexto, irrompe a questão social. Ela nasce como um produto ligado a essas transformações e suas consequências para a sociedade. Nesse período, as desigualdades sociais eram naturalizadas, aceitas como consequência do desenvolvimento. O que podemos afirmar é que a escassez passou a ser produzida por este mesmo mecanismo que busca o desenvolvimento, assim, o que para alguns era desenvolvimento, para outros eram prejuízos irreparáveis em sua condição de vida.
O novo cenário apresentado aqui de transformação econômica, política e social promoveu as expressões de desigualdade e o anseio por lutas sociais.
1.3 Abordagens teóricas sobre o surgimento da questão social
A questão social e todas as desigualdades provocadas pelo capitalismo são fatos inegáveis, independentemente das justificativas. Existem até explicações que divergem sobre seu surgimento. Mas, afinal, o que é questão social? Devemos entendê-la como a expressão da desigualdade social proveniente do modo de produção capitalista. Não podemos tratá-la como algo natural, que faz parte da sociedade, mesmo que se aborde a transição do feudalismo para o capitalismo. Devemos nos ater às transformações e suas consequências, sem acreditar que estas últimas sejam situações inevitáveis.
Como a questão social se expressa? Quais as principais correntes teóricas sobre ela? Neste tópico, exploraremos o conceito estudando seus processos e particularidades, além de outros níveis de entendimento acerca de suas expressões. Veremos como os pensadores marxistas a abordam, uma vez que são os que mais se aproximam da formação do assistente social. Estudaremos ainda outros pensadores pela sua importância na discussão do tema, a partir das perspectivas da sociologia e da história. Todos tratam da questão social partindo de fundamentações sobre o capitalismo, o mercado de trabalho e as formas de proteção social. Assim, destacam-se as contradições e explorações provenientes desse modo de produção.
1.3.1 Definições
Como podemos entender a questão social? De que forma podemos defini-la? Entendida como o conjunto das expressões que definem as desigualdades da sociedade, podemos iniciar a definição da questão social situando seu surgimento no século XIX, na Europa. Nesse sentido, é a expressão da desigualdade e pobreza — questões interligadas e indissociáveis do modo de produção capitalista. A pobreza, de acordo com Marx (1848, p. 25), “[...] por ter causa conhecida poderia ter uma solução adequada [...]”. Ele complementa: “[...] o desenvolvimento das forças produtivas operando nos marcos é capaz de reduzir, significativamente, a dependência e determinação de fatores naturais na produção da escassez”.
A extrema pobreza que já se manifestava antes mesmo do capitalismo era construída socialmente pela divisão entre classes, mas sua causa principal estaria relacionada às formas de exploração das forças produtivas. O pauperismo produzido socialmente não é a única forma de expressão da questão social, esta pode ainda ter outros desdobramentos sociopolíticos como as lutas de classe nas relações de antagonismos entre capital versus trabalho.
Segundo Iamamoto (2001, p. 18):
A pulverização da questão social, típica da ótica liberal, resulta nas várias “questões sociais” em detrimento da presença de unidade. Impede assim de resgatar a origem da questão social imanente à organização social capitalista, o que não elide a necessidade de apreender as múltiplas expressões e formas concretas que assume.
O entendimento das expressões da questão social é primordial no desenvolvimento de políticas sociais, e desta maneira, se compreende o objeto do serviço social. Josiane Soares Santos (2012, p. 18) nos orienta que “O conceito adquire uma potencialidade totalizadora a ser explorada, especialmente por designar, de modo articulado, uma série de manifestações encaradas tradicionalmente de forma isolada, configurando os chamados ‘problemas sociais’”.
Para Netto (2001), a história registra que a pobreza crescia na razão direta em que aumentavam a capacidade de produzir, isto é, o nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais é ligado à escassez gerada. Não é possível deixar de perceber os aspectos da vida social, principalmente dos trabalhadores na época do processo de industrialização e urbanização, que já davam sérios sinais de perversidade nas condições de vida e trabalho ofertados pela burguesia.
Conforme Telles (1996, p. 85):
A questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramadas na dinâmica das relações de poder e dominação.
Castel (2009, p. 76) já definia “[...] a questão social e suas consequências ideológicas e políticas,são expressões utilizadas aproximadamente a partir de 1830 para designar uma nova dinâmica da pobreza que se generalizava”. O autor ainda complementa a informação deixando a entender que o pauperismo que antecede a industrialização não poderia ser considerado expressão da questão social. Ele vincula a questão social ao pagamento de salário na industrialização e urbanização, até porque, anteriormente, existiam as leis dos pobres que lhes davam assistência.
Para Pereira (2001, p. 59):
A questão social é percebida, [...], na existência de relações conflituosas entre portadores de interesses opostos e antagônicos [...], na qual os atores dominados conseguem impor-se como forças políticas estratégicas e problematizar efetivamente necessidades e demandas, obtendo ganhos sociais relativos. Foi com essa caracterização que a questão social surgiu na Europa no século XIX. [...] Por isso, a questão social é, de fato, particular e histórica.
Figura 5 - Caracterização das expressões da questão social no modo de produção capitalista. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em CASTEL, 2013.
Nos dias atuais, as definições e causas das questões sociais são as mesmas de períodos passados e a cada dia suas consequências têm se aproximado mais do período da industrialização.
1.3.2 Desigualdade social
Como podemos compreender a desigualdade? Podemos entendê-la pela acumulação e acesso de bens e serviços a determinadas pessoas de forma indiscriminada, gerando um grupo que não tem ou terá o mesmo acesso. “David Ricardo e Karl Marx, dois pensadores influentes do século XXI, defendiam a visão de que apenas um grupo social — os proprietários da terra, para Ricardo; os capitalistas industriais, para Marx — se apropriaria de uma parte crescente da produção e da renda” (PIKETTY, 2014, p. 15).
A maioria dos estudos sobre desigualdade depara com as situações decorrentes do processo de industrialização, demarcadas por relações distintas, nas quais a classe burguesa é a favorecida no acesso à propriedade e na compra e venda de produtos. Por consequência, a desigualdade se torna pertinente quando se busca a origem nas relações de capital e trabalho.
No Manifesto Comunista de Engels e Marx (1999, p. 14), os autores afirmam que:
[...] o desenvolvimento da indústria moderna, portanto, enfraquece o próprio terreno em que a burguesia assentou a produção e a apropriação de seus produtos. Assim, a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.
Partindo dessa perspectiva, a desigualdade na sociedade industrial condiciona e ressalta um problema muito maior e mais significativo, de diferentes dimensões, que afeta as possibilidades na vida e na classe das pessoas.
E se a sociedade mudasse a forma de pensar? A redução ou o fim da desigualdade social estariam garantidos? A resposta é não. Veja que ainda são encontrados nos dias atuais expressões da questão social muito mais visíveis que a própria questão social.
Quadro 1 - Análise crítica dos desdobramentos da expressão da questão social no Brasil. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em IBGE, 2010.
Geralmente essas expressões são carregadas de lutas dos excluídos, os quais, por causa da contradição da lógica do capital e da lógica do trabalho, se manifestam e resistem exigindo direitos políticos, sociais, econômicos e culturais.
1.4 A sociedade e o Estado nas relações e reproduções capitalistas
A sociedade e o Estado possuem uma relação conflituosa que, na atualidade, inclui a atuação de sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais. Pela relação dialética com a sociedade, o Estado abarca todos os fenômenos da vida social, todos os indivíduos e classes e declara diferentes responsabilidades, até mesmo as de responder a demandas e reivindicações contraditórias.
O Estado é aqui entendido como uma organização do poder não mais fundada na fé, mas na política como atividade humana e, como tal, uma construção mundana (e não divina) — prevista, primeiramente, por Hobbes (PEREIRA, 2001).
Cada país possui um entendimento do que é dever do Estado, até mesmo em um único país podem haver variações dessas responsabilidades. Ele pode ser totalitário e depois democrático, ou o contrário. Podem ocorrer disputas de forças e o Estado estar democrático por apenas um período curto de tempo.
O Estado sustenta o modelo capitalista ao controlar a sociedade sob suas instruções. Sendo dotado de poder coercitivo e estando predominantemente a serviço das elites, pode o Estado proporcionar atividades de proteção visando as classes até então menos favorecidas? Sim, desde que os resultados dessas medidas sejam interessantes, ou a pressão social seja tão intensa que ele não tenha alternativa.
1.4.1 As qualificações do Estado
O Estado pode ser qualificado de várias formas: pode variar conforme uma corrente teórica e pode ser diferente em sua formação em determinados tempos — lembremos que o Estado é uma ocorrência histórica em movimento permanente com ideologias diferentes e constantes relações.
O Estado, para Poulantzas (1977), pode ser definido como uma solidificação de forças, isto é, uma relação de forças detectada com foco no poder ou como um conjunto de dominação que predomina por meio de um aparelho institucional que usa burocracia, judiciário, polícia e ideologia em relação à sociedade, apesar de dela também sofrer influências. Dessa forma, o poder do Estado simboliza a força aglomerada e direcionada da sociedade.
A qualificação de Estado direciona ao entendimento do que é sociedade, apesar de nem sempre essas duas precisões serem consideradas. Alguns autores e correntes de pensamento definem de maneira diferente. Na relação com o Estado está a sociedade civil.
Quadro 2 - Diferentes concepções de Sociedade Civil. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em PEREIRA, 2001.
Para finalizar, destacamos a definição de Gramsci, na qual sociedade civil é o conjunto das instituições responsáveis pela representação dos interesses de diferentes grupos sociais, bem como pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos, de ideologias, compreendendo o sistema escolar, os partidos políticos, as igrejas, as instituições de caráter científico e artístico.
Gramsci concebia o Estado como autônomo. Ele estendeu o conceito de Marx no que podemos chamar de Estado ampliado, estando este acima de outros elementos da sociedade civil e, por isso, com alguma dominação sobre eles. Há diferenças na concepção de Estado entre os dois autores citados. Para Marx, estão nas suas constituições distintas: instituições privadas com função hegemônica (ideologias e cultura) e o Estado com suas intenções políticas (restrição e dominação). O chamado Estado ampliado, devido à inclusão da sociedade em sua definição, defendido por Gramsci, estende as bases para uma discussão que inclui questões como: valores, ciência, arte, escolas, igrejas, ideologias e partidos políticos.
1.4.2 Momentos do Estado capitalista
Podemos considerar três os momentos do Estado Capitalista: o Estado Liberal, o Estado de Bem-Estar Social e o Estado Neoliberal.
Para compreendermos melhor o desenvolvimento do capitalismo é importante entender inicialmente como foi sendo configurado o Estado Moderno. Ele nasceu absolutista e teve início com a crise da sociedade feudal, a partir do século XIV, na Europa Ocidental. Nesse modelo, os monarcas concentravam todos os poderes em suas mãos e o Estado se confundia com a pessoa deles.
Que ação foi tomada pelo rei com a centralização do poder político? Ele passou a impor barreiras econômicas à burguesia (classe social em franca expansão) instituindo altos impostos. Esse contexto histórico perdurou até o século XVIII, conhecido como Século das Luzes, quando se deslocou o eixo do poder divino soberano para o Estado de Direito, no decurso das revoluções burguesas. Esse cenário marcado pela Revolução Gloriosa, o Iluminismo e a Revolução Francesa determinou o declínio do Estado Absolutista e o surgimento do Estado Liberal.
E no Estado Liberal, quem detémo poder? Nesse modelo prevalece o poder da burguesia. O aparecimento do Estado Liberal foi gradual, opondo-se às monarquias absolutistas da época e ao seu regime econômico — o mercantilismo — defendendo a liberdade individual, uma democracia representativa, o direito à propriedade, à livre iniciativa e à concorrência como garantia de progresso.
Um Estado Liberal não é necessariamente democrático: ao contrário, realiza-se historicamente em sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada às classes possuidoras [...] O Estado Liberal foi posto em crise pelo progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio universal (BOBBIO, 1994, p. 7).
Quando surgiu, no século XVIII, foi caracterizado pela ideia de que o indivíduo possui direitos naturais e inalienáveis, tais como o direito a se expressar publicamente, o direito à liberdade religiosa e o direito natural, segundo John Locke, à propriedade, aos bens materiais.
Não demorou muito para o liberalismo ser compreendido como uma exploração dos pobres. As políticas do laissez-faire (deixar fazer) do liberalismo, após a crise de 1930, são aos poucos trocadas pelo Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) (PEREIRA, 2013).
Com o Estado de Bem-Estar, uma nova relação entre Estado e sociedade foi formada, sendo alguns princípios priorizados: “o aumento do pleno emprego, o aumento do acesso de serviços voltados aos direitos sociais e a formalização da assistência social para garantia de promoção dos mínimos sociais às pessoas que viviam em condições indignas” (PEREIRA, 2003, p. 125).
O Estado de Bem-Estar garantiu mais poder ao Estado no controle do mercado, protegendo os direitos dos proprietários com as instituições estatais que passaram a garantir os direitos sociais dos trabalhadores. Vejamos o que diz Stein (2000):
[...] sistema de organização social que procura restringir as livres forças do mercado em três principais direções: a) garantindo direito e segurança social a grupos específicos da sociedade, como crianças, idosos e trabalhadores; b) distribuindo de forma universal serviços sociais como saúde e educação; c) transferindo recursos monetários para garantir a renda dos mais pobres em certas contingências como a maternidade, ou em situação de interrupção de ganhos devido a fatores como doença e desemprego (STEIN, 2000, p. 138).
O Estado atua ao lado de sindicatos e empresas privadas, atendendo às características de cada país, com o intuito de garantir serviços públicos e proteção à população. Os países europeus foram os primeiros e principais incorporadores do modelo que agradou os defensores da social-democracia. Registram-se Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca como destaques na aplicação do Estado de Bem-Estar Social, países que estão no topo do ranking de melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
De acordo com Gasparetto Junior (2017, p. 23),
[...] no Brasil, houve um esboço de implantação do Estado de Bem-Estar Social nas décadas de 1970 e 1980. Todavia, o modelo não seria aplicado como investimento produtivo para sociedade, mas de forma assistencialista. Logo, o que se verificou foi a manutenção da acentuada desigualdade social, os elevados índices de pobreza e o insucesso no Índice de Desenvolvimento Humano.
Ainda na análise deste autor o primeiro país a abandonar o modelo foi a Inglaterra, no governo de Margareth Thatcher. Sob alegação de que o Estado não dispunha mais de recursos para sustentar o Estado de Bem-Estar Social, os direitos que os cidadãos haviam conquistado no decorrer das décadas foram retirados. Nasceria, então, o Estado Neoliberal. Normalmente, entende-se que o Estado de Bem-Estar Social é sintetizado pelo pressuposto Keynesiano que clamava pelo fim do laissez-faire e a formação de uma nova possibilidade além do liberal e do socialismo de Estado.
John Maynard Keynes — o economista de mais destaque no século XX — intercedeu pela política econômica de Estado intervencionista, demonstrando profunda oposição ao liberalismo, apesar de não ser considerado comunista. Os desdobramentos de seus ideais deram origem ao Keynesianismo (PEREIRA, 2003).
Você sabe dizer quando o Estado Neoliberal ganhou destaque? Foi com a crise do petróleo, no início da década de 1970, quando se alegava que o “Estado Keynesiano” ou o “Estado de Bem-Estar Social” havia se transformado num Estado estatizante, coletivista e demasiado grande. A redução do tamanho do Estado foi o pressuposto para o novo modelo, de modo que este deveria ter um papel rigorosamente limitado, diminuindo sua influência na sociedade e na economia. Esta última deveria funcionar de forma independente, sem a influência de ninguém, além de ter o consumidor individual como principal ator do livre mercado.
O Estado deveria ser reorganizado e a diminuição dos tributos e a privatização das empresas estatais seriam um crescente, enquanto a política do pressuposto keynesiano voltado ao pleno emprego seria considerada algo que demandaria muito gasto público e não poderia continuar. A classe trabalhadora perde forças, principalmente de seus sindicatos.
O filme A dama de ferro, lançado em 2011, conta a história de Margaret Thatcher, a primeira-ministra da Inglaterra. Desde sua entrada na política, manteve o pulso forte até os últimos dias de vida. Ela promoveu o fim do Welfare State e implementou o neoliberalismo.
O neoliberalismo intensificou as desigualdades sociais em todos os lugares em que foi implantado. Efetivamente, o que é evidente sobre a questão social são algumas expressões acentuadas pela falta de intervenção estatal e com a desproteção social recorrente no modelo.
2.1 A dimensão da questão social no Brasil
A historicidade dos processos sociais é construída na dinâmica da sociedade. O estudo sobre a construção do cenário brasileiro nos auxilia no entendimento do longo processo que levou à estruturação do país com o qual deparamos hoje.
E você, já está aberto à problematização da questão social no contexto brasileiro? Está pronto a decifrar o que torna o Brasil um país com particularidades em suas intervenções sobre a questão social? Sabe como se expressam as questões sociais num país com amplas dimensões continentais?
Inicialmente, levaremos em conta como a população brasileira foi construindo seu padrão ímpar de relação com a vida e o espaço público. Atributos da formação social brasileira criaram entre nós a possibilidade de convivência pacífica, ora destacando-se uma passividade demasiada, não atendendo às mobilizações por melhores condições de vida, ora levando a população a sofrer direcionamentos ditatoriais com ganhos e perdas de direitos.
Neste tópico, você aprenderá como se deu a constituição do capitalismo no Brasil. Ao estudá-lo, você transitará pela história brasileira e pelas configurações sociais, políticas e econômicas com suas consequências para a população em períodos históricos diferentes.
Tendo o Brasil dimensões continentais, torna-se heterogêneo, singular e com padrões diferentes, dependendo da região abordada. A criação de leis que vigoram em alguns estados e não vigoram em outros é uma realidade. Ao finalizar o estudo deste tópico, você será capaz de reconhecer as dimensões da questão social brasileira, identificando suas principais características.
2.1.1 Constituição do capitalismo no Brasil — da colônia ao período monárquico
A expansão marítima europeia, principalmente a realizada por Portugal, deu origem à formação social que conhecemos desde o Brasil colônia. Toda a colonização dos trópicos, na qual o Brasil está incluído, é destinada a atender ao comércio europeu. Assim, podemos dizer, somando ao pensamento de Caio Prado Junior (1963), que a colonização no país se voltou ao fornecimento de gêneros tropicais e minerais de grande importância para Portugal, de forma a comercializar tais produtos no mercado europeu.
Portugal tentou regular a colônia brasileira na tentativa de suprir os interesses da metrópole. Nesse período, o capitalismo já avançava paraa manufatura. O Brasil era considerado fornecedor de matéria-prima, e seu desenvolvimento foi limitado por Portugal a essa condição — o que importava era apenas o potencial comercial de exportação.
Os portugueses atracavam nos portos brasileiros para serem comerciantes e/ou empresários e esperavam que nativos, e posteriormente escravos, fossem os trabalhadores. Ocorreu uma ocupação predatória. A metrópole só buscava extrair vantagens.
Essa lógica promoveu uma distribuição das terras de maneira desigual. Surgiram, assim, grandes proprietários de terras para manter o cultivo de monocultura. Os nativos foram mortos ou explorados sem respeito à cultura que carregavam. Como não se plantava para o país, a desnutrição era crescente, sem falar da educação da população nascia e vivia em solo brasileiro, que foi completamente ignorada (FAUSTO, 2009).
O livro “A carne e o sangue”, apesar de ser um romance, auxilia na compreensão do contexto histórico no qual viveram Dom Pedro I e a Imperatriz Leopoldina. Obras como essa não só despertam no leitor o interesse pela literatura como aprimoram o conhecimento histórico. A obra foi escrita por Mary Del Priori e publicada em sua primeira versão em 2012.
Para Prado Júnior (2004), o fim da era colonial é marcado pela vinda da família real para o Brasil, em 1808, permitindo uma autonomia econômica e política que não tinha possibilidade de retrocesso porque Portugal não estava se adaptando às novas formas produtivas.
O período monárquico se estendeu até 1889, início da República (RIBEIRO, 1995). O café se tornou o produto de exportação de destaque, cuja cultura se transformou na base política e econômica da sociedade brasileira — os fazendeiros podiam ser considerados parte da aristocracia ou burguesia. As pressões abolicionistas, vindas principalmente da Inglaterra, foram fundamentais para o reconhecimento da independência do Brasil (RIBEIRO, 1995).
Enquanto o país focalizava a agroexportação, o capitalismo industrial avançava em outros países. O Brasil acabava ficando para trás com seu processo produtivo conciso comparado aos demais. O fim do período monárquico não foi deflagrado por participação popular, tendo sido fruto do desejo de setores da elite econômica e política brasileira.
2.1.2 Constituição do capitalismo no Brasil — da República Velha ao período da ditadura militar
Com o fim do período monárquico — derrubado por um golpe militar — e a Proclamação da República — movimento eminentemente elitista que ocorreu sem luta e sem a participação direta das camadas populares — tem início o período republicano.
Com a derrubada da monarquia foi constituído um governo provisório chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca, que governou o país até 1891. Nesse período se estabeleceu uma efetiva disputa política em torno do modelo republicano a ser implantado. De um lado, os militares defendiam um regime republicano centralizado, com um Poder Executivo forte o bastante para controlar o Poder Legislativo e o Judiciário, no qual os Estados (as antigas províncias) não tivessem autonomia; de outro, os grandes proprietários agrários, sobretudo os ricos cafeicultores paulistas, se opunham a esse modelo e defendiam um regime republicano federalista, no qual os Estados fossem autônomos a ponto de poderem ser controlados economicamente (CANCIAN, 2013).
O Brasil neste período republicano marca a entrada no capitalismo com as estruturas econômicas sendo reorganizadas. A burguesia cafeeira demonstrava ideias que tendiam para a mudança na economia, já pensando em industrializar o país. O ideário neoliberal que tomava conta da Europa dava sinais de manifestação na antiga colônia de Portugal e o liberalismo foi adotado como ideologia econômica (FAUSTO, 2009).
A burguesia cafeeira insistia na industrialização brasileira incentivando as primeiras fábricas, companhias de navegação e bancos. Somente no século XX a indústria nacional ganhou força, apesar de continuar grande o investimento nas matérias-primas, quer fossem para a exportação, quer fossem para ser usadas nas fábricas (FAUSTO, 2009). Podemos considerar tais iniciativas como pequenos avanços rumo ao desenvolvimentismo com o objetivo de modernizar a economia nacional.
E quanto à situação do trabalhador nesse contexto? Badaró Mattos (2008, p. 47 apud BARISON, 2017) postula que “a miséria era o principal elemento que identificava a experiência homogênea dos proletários. A comparação entre o que o trabalhador recebia e o que ele necessitava para sua sobrevivência ampliava o sentimento de injustiça associado à exploração”.
Os direitos sociais, em especial os direitos do trabalho, não eram uma realidade. A Constituição de 1891 registrava a herança escravocrata nas formas de tratar o trabalhador. Durante a Primeira República, os trabalhadores não tinham à sua disposição uma legislação que regulasse as relações entre o capital e o trabalho. É nesse contexto que se formaliza a atuação política do Estado brasileiro frente à classe operária, na frase: “A questão social é caso de polícia” — uma referência ao fato de que a intervenção do Estado na questão social resumia-se apenas em repressão policial, prisões arbitrárias, fechamento de associações e deportação de estrangeiros, entre outros (BATISTELLA, 2017).
No transcurso da década de 1920, o poder político das oligarquias cafeeiras entrou em crise — uma consequência da divisão das classes dominantes que divergiam profundamente quanto às diretrizes da política governamental. Nesse contexto, as oligarquias cafeeiras que controlavam o aparelho de Estado e o Governo Federal enfrentaram a oposição política das oligarquias tradicionais e da burguesia industrial. Além disso, as instituições republicanas começaram a perder legitimidade frente ao descontentamento dos grupos sociais urbanos e dos movimentos de revolta armada (CANCIAN, 2013).
O cenário brasileiro, anteriormente marcado pelas oligarquias cafeeiras, inclusive com forte poder político e econômico, agora é marcado pelo crescimento do setor fabril, provocando a formação da burguesia industrial. Esta aos poucos se transforma em poderosa classe social cujos interesses, devido à sua influência econômica, são atendidos pelo Estado.
Os interesses da burguesia industrial passam a se chocar com os interesses das oligarquias agrárias cafeicultoras. Enquanto a burguesia industrial reivindicava do governo uma política monetária, fiscal e cambial que favorecesse o setor produtivo fabril, as oligarquias agrárias cafeicultoras reivindicavam do governo investimentos na política de valorização do café.
A crise econômica de 1929 abalou as economias dos Estados Unidos e da maioria dos países da Europa — os maiores consumidores do café produzido no Brasil e principais fontes de empréstimos ao governo federal. Cada vez mais se aprofunda a divergência de interesses entre as classes rurais e industrial.
A partir de 1930, segundo Fausto (2009), a Segunda República, ou a Era Vargas, como alguns historiadores preferem chamá-la, não poderia ter passado imune à crise de 1929. Esta afetou diretamente os produtores rurais, que deixaram de receber apoios do governo para garantir a produção.
Getúlio Dornelles Vargas, ou apenas Getúlio Vargas, gaúcho, foi presidente da República entre os anos de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Após derrubar o governo de Washington Luís, ficou conhecido por suas características direcionadas ao nacionalismo e populismo. Em 1937 instaurou o Estado Novo e governou de maneira ditatorial. Em 1950 ele retomou o poder de forma democrática por eleições diretas. No ano de 1957 suicidou-se no Rio de Janeiro, no Palácio do Catete. Até hoje é lembrado como o “pai dos pobres” (BASTOS; FONSECA, 2012).
Você deve estar pensando que a nova conjuntura brasileira trouxe demandas inéditas, mas quais seriam? A primeira delas foi a necessidade de mão de obra especializada, o que dependia de outra demanda, ou seja, escolas para tal formação. São então institucionalizados o ensino secundário e as primeiras universidades. Bastos e Fonseca (2012),em seus estudos sobre Getúlio Vargas, nos informam que, em 1934, foi promulgada uma Constituição que afirmava a educação como direito de todos.
O que devemos destacar é a ausência de um setor social. As burguesias industrial e financeira não tinham estabilidade, um projeto político preciso e nem meios de desempenhar uma dominação efetiva. Consequentemente, as classes médias e o proletariado não dispunham de quaisquer maneiras para tomarem a frente no processo político.
Bastos e Fonseca (2012) afirmam que, até o início do século XX, o movimento operário possuía uma prática independente, autônoma, anarquista e comunista. As expressões da questão social eram reprimidas para solucionar os problemas cruciais da classe trabalhadora.
Policarpo Quaresma, o herói do Brasil, filme do ano de 1998, baseado no livro “Triste fim de Policarpo Quaresma”, do autor Lima Barreto, é uma crítica ao nacionalismo com um embate entre a utopia e a vida real. Ele promove uma reflexão sobre os conflitos sociais e políticos no período da República. Assista ao vídeo em: <https://youtu.be/mSSTpFHl3J0>.
Na Era Vargas, a questão social era pensada para que se contivessem os movimentos grevistas, por este motivo foi criada a legislação social. Vargas entendia que os trabalhadores contribuíam com apoio político, daí a política social fazer parte da agenda do Estado instaurado em 1930 (BASTOS; FONSECA, 2012).
A ação do Estado diante das expressões da questão social tem seu marco no processo de industrialização, sendo que o Estado precisava controlar a população, principalmente a classe trabalhadora. A pobreza, o desemprego e as exclusões social, econômica, cultural e política se agravavam para a classe trabalhadora em torno das cidades, enquanto os grandes proprietários mantinham o crescimento de suas riquezas.
Até a década de 1930, as reivindicações de direitos eram reprimidas de forma violenta. A partir de 1930, os direitos sociais foram reconhecidos pelo Estado de forma institucionalizada, foram criados o Ministério do Trabalho e o da Previdência Social, além da promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) (RIBEIRO, 1995). Outro ponto importante foi o reconhecimento dos direitos garantidos pela luta sindical. Todos os direitos conquistados foram deixados de lado durante a ditadura militar, que proibiu as mobilizações por melhorias ou qualquer reivindicação dessa ordem.
Toda essa construção histórica marca o Brasil atual, seja em lugarejos no interior do país, seja nas grandes cidades que temos hoje, com a economia voltada à exportação, à produção de matéria-prima, à falta de centralidade na garantia de cidadania aliada ao protecionismo das classes dominantes que permanecem exercendo a manutenção de diversos privilégios (SANTOS, 2012). As políticas sociais surgem em socorro à população explorada pela burguesia para diluir as incertezas e manter sem alterações significativas o espaço consagrado à elite.
2.2 A questão social a partir da teoria social marxista
Ao entender que a questão social é identificada nas desigualdades sociais geradas pelo capitalismo, devemos discutir as manifestações que buscam a superação dessas diferenças para que compreendamos as expressões da questão social.
Como a teoria marxista contribuiu ao entendimento do conceito da questão social? As expressões da questão social são identificadas na teoria marxista? Como a exploração do trabalho pode ser relacionada às expressões da questão social? Ao fim deste tópico, você será capaz de identificar as correntes teóricas e suas influências no entendimento da questão social, distinguindo a teoria social marxista das demais.
Partiremos da discussão sobre a cidadania regulada no Brasil, o acesso aos direitos com precondições — o que o difere do ideário marxista com os serviços voltados à classe trabalhadora e não à permanência da burguesia no poder.
2.2.1 Cidadania regulada
Santos (1994) entende por cidadania regulada o resultado das exigências dos trabalhadores organizados sem alterar as estabilidades garantidas às elites. Depois de 1930, a expressão da questão social recebe intervenções de políticas sociais na busca de diminuir as complexidades da sociedade.
Para o autor (1994), a cidadania regulada é determinada pela política econômico- social que considerou apenas cidadãos os trabalhadores de ocupações reconhecidas e definidas pela lei, isto é, para ser cidadão no Brasil pós-1930 era exigida a inserção da pessoa no sistema produtivo. Para o Estado reconhecer a pessoa como cidadã, primeiro a profissão por ela exercida deveria ser reconhecida por lei.
A política social atuante nas expressões da questão social era discriminatória e seletiva, estruturada na relação capital x trabalho.
Para Castel (2009, p. 72):
[...] reencontra-se e reproduz-se a vulnerabilidade de massa, condição da necessidade de generalização das relações salariais, risco cujo equacionamento e expulsão estavam na origem do “Estado Social”. E como seu núcleo se constitui pelo enfraquecimento das formas de política social, ou pelo seu encolhimento, pelo crescimento do desemprego e da precarização, pela impossibilidade de acesso livre aos postos assalariados de trabalho, sua personificação se faz não pelo vagabundo, mas pelo desemprego e pelos desempregados, os novos “desfiliados” sem lugar, categorias que se desenvolveram como contraponto e reverso da situação configurada a partir do trabalho como imperativo.
Quadro 1 - Conquistas e consequências da cidadania regulada. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em SANTOS, 1994.
Ao aprofundar o conceito de cidadania regulada, podemos analisar o seguinte caso.
Um jovem de 22 anos que vivia na região central do Rio de Janeiro era empregado na empresa ferroviária tendo direito a se aposentar após muitos anos de contribuição, ou, se lhe ocorresse algum acidente, receberia auxílio doença. Esses benefícios eram garantidos por sua contribuição mensal e por sua profissão ser regulamentada por lei. Já um jovem da mesma idade que atuasse como sapateiro não tinha direito ao benefício de auxílio doença, pois sua profissão não era reconhecida por lei e ele não tinha meios de fazer qualquer contribuição para sua aposentadoria. A estratificação da cidadania depende da lei para decidir se a pessoa pode ou não ser considerada cidadã e ter direito ao benefício.
Ao mesmo tempo, os trabalhadores não incluídos seriam pré-cidadãos. Dessa forma, estariam os trabalhadores rurais e os urbanos em igual condição ativa no meio de produção sem a devida regulação, isto é, as ocupações não foram reguladas por lei. Assim, as pessoas que exercem tal atividade não são entendidas como beneficiárias de políticas sociais, estas ofertadas apenas aos que contribuem por ela.
2.2.2 Capital versus Trabalho
As múltiplas expressões da questão social apresentam-se como uma problemática a ser superada pelas elites quando a classe trabalhadora começa a se organizar em prol de seus interesses, lutando por reformas no sistema capitalista, melhorias econômicas, direitos de cidadania e a extinção do capitalismo para uma outra ordem social.
Karl Marx (2008) dedicou-se à questão social em sua crítica às iniciativas da classe burguesa para solucionar os problemas de escassez de forma paliativa e limitada sem grandes resultados.
Figura 1 - A ordem social identificada por Marx na sociedade capitalista. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em MARX, 2008.
Para Marx (2008), a questão social poderia ser compreendida pela exploração do trabalho assalariado feita pelo capital e as lutas dos trabalhadores contra as relações sociais de produção capitalista e todas as suas formas de opressão e dominação.
Por que o trabalho pode sofrer variações ao longo do tempo, segundo Marx? O trabalho, para Marx, não deve ser estudado apenas pelos aspectos técnicos ou pelo conteúdo material. Ele necessita ser discutido em sua forma socio-histórica concreta. Isso não quer dizer que Marx ao realizar seus ensinamentos tenha objetivado o grau de desenvolvimento das forças produtivas, pelo contrário,ele tentou desvelar o modo capitalista de produção no desenvolvimento das forças produtivas.
O tratamento teórico que Marx proporcionou sobre a questão social busca compreendê-la como produto social historicamente determinado pelo modo de produção capitalista e pelas lutas modernas do movimento operário.
Para Marx, é pelo trabalho que a realidade natural pode ser modificada, passando os homens a usufruir dela. É na relação com a natureza que estes, atravessados pelo trabalho, constroem a sociedade e conseguem reconfigurar a história (MARX, 2008). Contudo, o trabalho também pode ser entendido como elemento de subordinação ao capital, no qual o sacrifício e a mortificação do homem são produzidos e se revelam no próprio ato da produção.
Por esse motivo, ao estudar a questão da produção, é necessário que você conheça a demarcação histórica à qual o modo de produção analisado está inserido, para que seja possível identificar cada formação econômica (escravista, feudal, capitalista) (MARX, 2008).
O processo de transformação do modo de produção capitalista requer como premissa o desmembramento do trabalho e dos meios de produção de maneira que o proprietário da força de trabalho sinta-se obrigado a vendê-la ao proprietário dos meios de produção em troca de um salário. Este processo se dá porque o trabalhador foi despojado de toda propriedade e vê-se na obrigação de vender sua força de trabalho — sua única posse — para sobreviver, não restando outra alternativa a não ser se tornar um trabalhador assalariado.
A força de trabalho negociada será agregada ao capital pelo processo de produção, o que prioriza a mais-valia. Para concluir o raciocínio marxista, vale assimilar que o capital que se torna salário é denominado capital variável. A mais-valia é o que motiva toda a transformação. Sem a mais-valia não existiria a transformação nem as relações de produção capitalistas.
2.3 O projeto ético-político do Serviço Social e a compreensão da realidade social
O aspecto econômico das relações sociais pode ser considerado fundamental na vida social. Contudo, não pode ser o único a ser considerado para a compreensão dos fenômenos sociais, nem das contradições da sociedade burguesa. O curso de Serviço Social procura fornecer ao futuro assistente social condições de compreender a realidade social por meio do conhecimento da raiz dos fenômenos, em sua essência e em todas as expressões da questão social.
Como se apresentam as contradições da realidade social ao assistente social? De que forma o projeto ético-político instrumentaliza este profissional para a atuação nas expressões da questão social na perspectiva da garantia de direitos?
Devemos explorar os conceitos que permeiam o debate sobre classe, exploração do trabalho e sociedade burguesa e, assim, completar os estudos sobre seus processos, para que você seja capaz de empregar as expressões da questão social como objeto do Serviço Social.
O projeto ético-político do Serviço Social perpassa a identidade coletiva profissional em sua função e nos arcabouços profissionais teórico, metodológico, interventivo, instrumental, normativo e legal, os quais compõem as três dimensões do Serviço Social: a teórico-metodológica, a ético-política e a técnico-operativa.
A realidade social é entendida pela investigação e intervenção profissional. Neste estudo, o objetivo é promover a reflexão sobre as questões mais relevantes para o assistente social em sua ação profissional.
2.3.1 O projeto ético-político do Serviço Social
Tendo como orientação um aporte teórico bem fundamentado, o assistente social pode definir o objeto de trabalho e fazer uma perfeita escolha de instrumentos capazes de auxiliá-lo na leitura da realidade.
O processo de investigação da realidade exige do assistente social um olhar crítico capaz de considerar a totalidade e as contradições presentes no contexto histórico. Nesse sentido, sua intervenção, orientada pelas dimensões ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa, encontra no método dialético uma ponte para materializar o projeto ético-político da profissão.
Quadro 2 - Dialética marxista: qualquer objeto é parte de um todo. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em COSTA, 2000.
Na prática interventiva, cabe perceber que o objeto do Serviço Social não se dá de imediato, ele precisa ser apreendido e pode ser reconstruído conforme se apresentam os fenômenos da sociedade.
O desvendamento da intervenção profissional, principalmente na perspectiva marxista, se constituiu no movimento de reconceituação na América Latina e do Radical Social Work de outros países. Na perspectiva marxista (FALEIROS, 2011), a atuação profissional está condicionada profundamente pelas determinações econômicas, articuladas às determinações políticas, sociais e culturais, tanto do ponto de vista da demanda como do ponto de vista da provisão dos serviços sociais. Não se trata, pois, de uma evolução de formas de bem-estar, nem de melhoria do modo de viver pela ação das classes dominantes. As provisões de bem-estar social são, pois, resultantes de uma disputa por poder e recursos em movimentos de forças de interesses antagônicos, mas que se repõem e compõem conjunturalmente (FALEIROS, 2011, p. 3).
O movimento da sociedade exige do profissional competências, habilidades e atitudes essenciais correspondentes à identidade profissional já afirmada.
Quadro 3 - Especificidades da prática profissional do assistente social. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em IAMAMOTO, 2001.
Nesse contexto, as conquistas acumuladas devem ser utilizadas de forma ética, respeitando os cenários institucionais.
O grande desafio na atualidade é, pois, transitar da bagagem teórica acumulada ao enraizamento da profissão na realidade, atribuindo, ao mesmo tempo, uma maior atenção às estratégias, táticas e técnicas do trabalho profissional, em função das particularidades dos temas que são objetos de estudo e ação do assistente social (IAMAMOTO, 2001, p. 52).
Por que é necessário que a prática profissional do assistente social esteja em consonância com as dimensões ético-políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas do serviço social? O trabalho do assistente social terá pleno sentido se este profissional estiver apto a decifrar a realidade e a ela propor estratégias de enfrentamento.
Consideramos que as intervenções profissionais pautadas nos princípios do projeto ético-político do serviço social são estratégicas na medida em que possibilitam, entre outras questões, a articulação entre os assistentes sociais e a rede formada, uma interlocução entre aqueles que estão diretamente na execução com os que estão nos chamados níveis centrais, garantindo a efetivação de um projeto de intervenção profissional coletivamente construído nas instituições.
2.3.2 O objeto do Serviço Social
A questão social na atualidade pode ser identificada pela precariedade do trabalho e pela vida de dificuldades que a população que vende a força de trabalho sofre. Sendo assim, qual é o grande desafio dos profissionais do Serviço Social? O assistente social deve garantir o acesso aos direitos básicos e necessários à luta por uma sociedade justa e democrática frente à realidade cheia de contradições e desigualdades sociais impostas pelo modo de produção capitalista. Sua atuação se efetiva no contexto das sequelas da questão social.
Vamos relembrar, a seguir, de forma esquemática, o tempo da questão social.
Figura 2 - Expressões da questão social ao longo das décadas no Brasil. Fonte: Elaborada pela autora, baseado em SANTOS, 2012.
Uma vez institucionalizado pelo Estado, o Serviço Social voltou-se à manutenção do statu quo, ao domínio da vida social, em um contexto em que a questão social — objeto da intervenção profissional — se apresenta intimamente ligada ao capitalismo e às formas de organização da sociedade.
O curta-metragem em 3D, Vida Maria, lançado em 2006 e produzido pelo animador gráfico Márcio Ramos, relata a história da pobreza cíclica no Brasil. São gerações e gerações que não conseguem sairdesse ciclo. Apesar de ser uma animação, a realidade apresentada se aproxima com o contexto sócio-político brasileiro. Disponível em: <https://youtu.be/yFpoG_htum4>.
É nessa realidade que o assistente social atua, na relação de força da desigualdade, da rebeldia e da resistência, pois estas situações não podem ser separadas da vida em sociedade — o que exige do profissional não só decifrar a realidade apresentada como intervir na demanda.
Marilda Iamamoto (2001, p. 11) comenta que a distinção da ação do assistente social está fundada na “[...] transversalidade das múltiplas expressões da questão social, na defesa dos direitos sociais e humanos e das políticas públicas que os materializam”.
O compromisso do assistente social com a sociedade, isto é, com os indivíduos que a compõem, assim, comprometido com as transformações societárias por meio de seu processo de trabalho deve ser destacado.
A forma como o Estado lida com as expressões da questão social está desconectada de uma análise crítica da realidade e da relação entre capital e trabalho. Nos dias atuais, percebemos um aumento nas consequências da questão social. A forma diversas vezes utilizada para conter tal situação tem sido a repressão da população em relação às suas necessidades, manifestada nas insuficiências das políticas públicas, ou seja, na marginalização e na pobreza.
“10 lições sobre Hannah Arendt” transita por escritos sobre política e miséria humana. No livro, são questionados os poderes na solução da questão social. Escrito por Luciano Oliveira, tendo a 2ª reimpressão em 2016, a obra nos apresenta inúmeras reflexões da filósofa política, uma das mulheres mais influentes do século XX.
Por alguns momentos, a característica anterior à década de 1930, representada pela frase de Washington Luís, vem à tona: “questão social é caso de polícia”. A população é repreendida pela polícia por manifestar suas insatisfações ou por clamar por condições de vida mais dignas (SANTOS, 2012, p. 67).
[...] a questão social produzida e reproduzida ampliadamente tem sido vista, na perspectiva sociológica, enquanto ‘disfunção’ ou “ameaça” à ordem e à coesão social. É apresentada como uma “nova questão social”, resultante da “inadaptação dos antigos métodos de gestão do social”, produto da crise do “Estado de Providência”. Frequentemente a programática para fazer frente à mesma tende a ser reduzida a uma gestão mais humanizada e eficaz dos problemas sociais [...]. As respostas à questão social passam a ser canalizadas para os mecanismos reguladores do mercado e para as organizações privadas, as quais partilham com o Estado a implementação de programas focalizados e descentralizados de “combate à pobreza e à exclusão social (IAMAMOTO, 2001, p. 45).
Assim, é possível considerar que a questão social sofre a intervenção do Estado por meio das políticas sociais e, desta maneira, tem configurado a manutenção do desenvolvimento capitalista. Neste contexto, o Estado se apresenta como mediador dos interesses contraditórios da lógica capital versus trabalho sem confrontar os interesses do capital financeiro.
A naturalização da questão social desperta uma banalização do humano. O sentido de pertencimento social é furtado juntamente com a dignidade da vida humana para muitas pessoas que vivem na extrema pobreza. Podemos destacar diversas situações que constrangem a humanidade, como miséria, exclusão, pobreza e todas as formas de vulnerabilidade.
2.4 A intervenção do assistente social e a sólida formação teórico-metodológica
A atuação do assistente social vincula-se direta e contraditoriamente ao capitalismo. Como uma profissão que surge para atender uma demanda do capital, no contexto contemporâneo, direciona sua ação na perspectiva de garantir direitos fundamentais e necessários para que os indivíduos superem a situação de exploração e pobreza — produzidas pelo capitalismo — na busca de uma sociedade justa e democrática. O empoderamento de setores e minorias sociais vem ocorrendo nos últimos anos, o que tem ampla repercussão na prática profissional. Nesse sentido, algumas questões são fundamentais: Frente às contradições sociais, o Serviço Social consegue manter um direcionamento teórico? Qual a especificidade do trabalho do assistente social?
A intervenção do assistente social baseia-se em sólida formação teórico-metodológica, a qual permite a ele desenvolver uma defesa dos usuários e incentivar maior habilidade para solucionar os problemas.
A articulação da vida cotidiana e a intervenção profissional fazem parte de um processo que exige luta e integração, afirmação e negação, expressão, manifestação e organização. O Estado, nas sociedades capitalistas, está mais comprometido em criar e expandir as condições reais para a reprodução do capital do que em atender às necessidades da força de trabalho, deixando recair o custo disso sobre os trabalhadores.
O acirramento da divisão do trabalho no sistema capitalista faz que as questões sociais emerjam como consequência da exploração, dos desgastes das classes trabalhadoras e de sua exclusão do processo de consumo e utilização de bens e serviços.
2.4.1 A prática profissional e a questão social
Ao intervir na realidade, o profissional precisa necessariamente desenvolver a leitura sobre ela. Isso exige como condição sine qua non a apropriação do conhecimento teórico que se consubstancializa na dimensão teórico-metodológica da profissão. Nesse sentido, estabelece-se o nexo dialético teoria/prática.
Como o profissional poderá determinar e definir o próprio espaço? Pela qualidade e sucesso do fazer profissional. Faustini (1995, p. 21) afirma que a “[...] prática pode ser entendida como uma ação consciente e planejada, ou não consciente e não intencional. Além disso, deve ser percebida como uma ação que transforma, que muda ou, simplesmente, reproduz a realidade”.
Quadro 4 - As possibilidades da prática e suas relações com a sociedade. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em FAUSTINI, 1995.
Tais práticas se desenvolvem na dinâmica das relações em sociedade. São práticas sociais que traduzem e revelam o momento histórico, bem como as formas das relações objetivas e subjetivas entre os sujeitos. Associadas entre si ou não, podem expressar o significado, o sentido e a intencionalidade dos atos humanos.
Inseridas e a serviço de um processo histórico, indicam as possibilidades reais de construção ou reprodução de conhecimentos. Por isso é imprescindível que o profissional na reflexão sobre a relação teoria e prática formule um questionamento sobre como pensar, muito antes do que pensar. A apropriação de um método lhe permitirá agir sobre a realidade social e sobre as demandas sociais.
Segundo Faustini (1995), o Serviço Social ao apropriar-se da compreensão da relação dialética entre teoria e prática busca melhor reconhecer e compreender as tendências prático-teóricas que se apresentam na atualidade para a construção de outras possibilidades.
O Serviço Social se constrói, na contemporaneidade, em uma perspectiva de criação de espaços rompendo com moldes e padrões internos tradicionais da profissão. Dessa forma, reconhece-se o espaço político da profissão construído a partir de um repensar a própria prática.
Nas primeiras décadas do século XX (SANTOS, 2012), o debate sobre a questão social percorreu toda a sociedade obrigando o Estado, a classe dominante (grandes capitalistas) e a Igreja a se posicionarem frente a ela. A questão social era entendida como questão moral e religiosa dos indivíduos, muito mais do que a expressão das desigualdades sociais e econômicas. O papel social do assistente social, definido pela prática profissional, era o de educar e moralizar as classes subalternas.
Na atualidade, a prática do Serviço Social se dá a partir de uma leitura crítica da sociedade. Dessa forma, qual é hoje o papel social do assistente social? Ele atua como agente político, articulador e mobilizador das capacidades e da consciência política dos sujeitos sociais, na medida em que estes se constituem como sujeitoshistóricos e de direitos.
2.4.2 O projeto teórico-metodológico e a intervenção do assistente social 
A intervenção profissional do assistente social se relaciona com as dimensões estruturais e conjunturais da realidade. Ela precisa ser crítica, consciente e baseada no conhecimento da legislação social e da ciência das contradições e negações.
Em meados dos anos 1980 foi retomada a discussão acerca do instrumental técnico-operativo para romper com os paradigmas teórico-metodológicos da tradição positivista (SANTOS, 2012).
Por que a teoria não pode ser confundida com o método? A teoria auxilia na compreensão das estruturas dos processos sociais e nas determinações contraditórias dos processos que constituem os fenômenos. Então, a teoria social marxista não pode ser resumida às formulações de um nível de intervenção.
O Movimento de Renovação do Serviço Social que predomina até a atualidade é caracterizado pela laicização da profissão, legitimação da prática e validação teórica, mudanças nas relações com as Ciências Sociais e renúncia ao vínculo confessional (a Igreja). Dentro dele emerge o Movimento de Reconceituação da profissão na América Latina (1965 – 1975) resultante de um questionamento sobre a funcionalidade em relação ao Serviço Social tradicional. Assim, o Movimento de Renovação se afirma pelo processo de erosão do Serviço Social tradicional.
A crítica do profissional se desenvolveu de maneira distinta tanto pelos momentos e décadas que se passaram quanto pela teoria que foi utilizada em cada período, assim, temos três perspectivas principais: a Perspectiva Modernizadora, a de Reatualização do Conservadorismo e a de Intenção de Ruptura (NETTO, 1992).
Quadro 5 - Instrumentais teóricos e mudanças na atividade profissional do assistente social. Fonte: Elaborado pela autora, baseado em NETTO, 1992.
Todas essas mudanças proporcionaram ao Serviço Social as bases para a sua renovação.
A década de 1980, conforme Netto (1992), foi extremamente fraca na definição de rumos técnicos acadêmicos, sendo discutidos e construídos ao longo das duas décadas seguintes. A forte expressão dos assistentes sociais junto aos movimentos sociais e sua luta pela democratização trouxe à tona não só a possibilidade de transformá-los em sujeitos sociais, mas toda a reformulação da categoria profissional em sua formação agora crítica e marxista nas décadas posteriores.
3.1 As expressões das desigualdades e as particularidades brasileiras
O Estado vem se remodelando em face das diversas expressões da questão social encontradas principalmente devido à expansão do capitalismo monopolista, isto é, o crescimento na produção industrial e a concentração produtiva. Dessa forma, surge a necessidade de minimizar os impactos desse tipo de desenvolvimento, contudo, o Estado continua sendo o maior empregador de assistentes sociais em suas políticas públicas enquanto o crescimento da desigualdade não é freado.
As intervenções profissionais contemporâneas ocorrem nos mais variados espaços socio-ocupacionais e o objeto do Serviço Social se apresenta nas diferentes manifestações da questão social.
E você, consegue pensar em quais são as expressões da questão social em sua cidade? Como intervir nas diferentes expressões da questão social? O que seria uma expressão da questão social na sociedade brasileira?
A partir deste tópico, você será capacitado a desenvolver as competências necessárias à intervenção sobre as expressões da questão social.
O termo intervenção, que quer dizer “ato ou efeito de intervir”, “tomar parte em”, é muito utilizado no Serviço Social dada a especificidade do trabalho do profissional sobre as expressões da questão social e, sobretudo, pela vertente hegemônica da teoria crítica.
3.1.1 Breve histórico das desigualdades no Brasil
De acordo com Ribeiro (1995), a modernização brasileira torna-se incompleta com a estagnação econômica e os diversos problemas sociais do país. Ela gerou uma espécie de ideologia provinciana que identifica o moderno com o equipamento técnico de última geração, o chamado “coisa de Primeiro Mundo”. Essa operação ideológica serve para impedir a visão do que seria uma modernização integral da sociedade, a qual transformaria não apenas o equipamento técnico, mas, sobretudo, a enorme diferença de classes do Brasil, um país rico, mas desigual.
O esclarecimento sobre o tipo de modernização que o Brasil experimentou permite entender melhor a situação anômala do país — dinâmico em termos econômicos, mas extremamente desigual em termos sociais. Essa situação contraditória indica que o Brasil não pode ser incluído entre os países pobres. Como isso se explica? A única explicação para o fato de ele apresentar um cenário de desigualdade com destaque para a pobreza tão grave e extensa é que a riqueza está muito mal distribuída. Diversos índices dos mais variados organismos de pesquisa social e econômica comprovam esse aspecto. Por exemplo, o Brasil tinha em 2007 a sexta economia do planeta, mas no ano anterior, segundo o IBGE (2010), apresentava a décima pior distribuição de renda entre 126 países e territórios. Ou seja, caracterizava-se pela alta concentração de renda e ao mesmo tempo por uma parte considerável da população vivendo na pobreza.
A renda dos ricos era em média trinta vezes maior que a dos pobres. Para que esses índices sejam reveladores é interessante compará-los com os índices relativos a outros países. Na Suécia, por exemplo, a renda dos ricos é no máximo seis vezes maior que a dos pobres. No vizinho Uruguai essa diferença é de no máximo dez vezes (PIKETTY, 2014).
A população pobre do Brasil é maior que a população total de muitos países. Em 2010, segundo o IBGE, no seu censo demográfico, 53,9 milhões de brasileiros eram considerados pobres, ou seja, tinham renda familiar inferior a um salário mínimo. Destes, 20,3 milhões viviam em situação de miséria com uma renda familiar inferior a um quarto do salário mínimo. Um dado inquietante: aproximadamente 50% da população infantil com menos de dois anos de idade está na linha de pobreza.
Esses índices apresentados pelo IBGE (2010) e as comparações estabelecidas indicam que o Brasil não pode ser considerado um país pobre. A conclusão mais correta é considerá-lo um país que apresenta alto índice de pobreza atingindo parte significativa da população. A carência resulta não da falta de recurso, mas da repartição desigual.
A que conclusão chegamos? A má distribuição de renda é a responsável pela geração e pela reprodução da pobreza.
Você sabia que expressões do tipo “pobre não gosta de trabalhar” ou ainda “pobre não sabe fazer nada e não consegue compreender nada”, muito comuns, resultam do preconceito que é sempre socialmente produzido? Essas frases operam uma naturalização do social, isto é, elas apagam o caráter histórico e social de um fato reduzindo-o a um acontecimento natural.
Considerado na perspectiva descrita, um fato como a pobreza deixa de ser encarado como resultado das práticas sociais ou da estruturação da sociedade para ser considerado um atributo natural de uma pessoa, de um grupo, de uma classe e até mesmo de um povo. É o que a natureza reserva para alguém ou para um conjunto de pessoas, marcando e determinando sua existência. Não se pode lutar contra o que é natural, pois a natureza é regida por leis imutáveis que escapam ao controle humano, tornando impotente qualquer ação para transformá-la decisivamente. A naturalização informal induz ao conformismo, à aceitação passiva e resignada do que é histórico e socialmente produzido.
O filme Memórias do cárcere (SANTOS, 1984), dirigido por Nelson Pereira dos Santos e baseado no livro de Graciliano Ramos de mesmo nome, conta a história do autor que foi preso na década de 1930 por ser associado ao partido comunista. Na prisão, ele é submetido a condições insalubres, passa fome e convive com outros presos. 
Uma operação ideológica mantém uma determinada ordem social e uma configuração da vida econômica. Então, como devemos tratar a pobreza? O que se deve fazer, em primeiro

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