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2017 Questão social e serviço social Prof.ª Cristiana Montibeller Copyright © UNIASSELV 2017 Elaboração: Prof.ª Cristiana Montibeller Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 360 M791q Montibeller, Cristiana Questão social e serviço social /Cristiana Montibeller. Indaial: UNIASSELVI, 2017. 280 p. : il. ISBN 978-85-515-0077-4 1.Serviço social. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III apresentação Caro(a) acadêmico(a)! Seja muito bem-vindo a esta nova disciplina! Estamos iniciando os estudos da disciplina Questão Social e Serviço Social. A partir deste momento você irá conhecer e compreender vários aspectos relacionados à profissão de assistente social no que diz respeito ao surgimento da Questão Social e o contexto sócio-histórico no modo de produção capitalista, suas múltiplas e complexas expressões contemporâneas e as implicações na realidade brasileira. Este Caderno de Estudos também abordará as possibilidades e alternativas de reversão do agravamento das manifestações e os desafios no enfrentamento das expressões multifacetadas da Questão Social na construção de uma nova ordem societária. Esta disciplina pretende fornecer subsídios teórico-metodológicos para prepará-lo profissionalmente no sentido da compreensão e análise crítica da “questão social” em sua gênese e contemporaneidade, bem como na identificação das várias formas em que se manifestam as expressões da “questão social“ na sociedade, a fim de que possa construir estratégias diversas de enfrentamento das desigualdades sociais e propor a conquista, efetivação, garantia e ampliação dos direitos sociais através das políticas sociais de inclusão social. Os conteúdos desta disciplina serão abordados em três unidades, sendo que cada uma está subdividida em quatro tópicos de estudos. Na primeira unidade estudaremos a proteção e a assistência na história da humanidade, as primeiras formas de proteção e assistência, bem como a contribuição da filosofia e a influência da religião no contexto social e na profissão; o surgimento da questão social e seu contexto histórico, os fatores históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais que contribuíram para o surgimento da questão social; significado dos termos: “social” e “questão social”, a amplitude da palavra “questão”, o conceito de “questão social” para o serviço social, bem como a abrangência da questão social e de suas expressões e sobre o termo “a nova questão social”. Na segunda unidade iremos estudar e aprofundar o termo neodesenvolvimento no capitalismo e o acirramento das expressões da questão social, o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, liberalismo e neoliberalismo, a nova institucionalidade brasileira frente às expressões sociais, a tipificação nacional de serviços socioassistenciais e a questão social como objeto do trabalho profissional do assistente social. IV Na última e terceira unidade iremos rediscutir as questões sociais e suas expressões na construção de uma nova ordem societária, as situações de vulnerabilidade social e de risco social enfatizando as expressões sociais da questão social no Brasil, as novas configurações das expressões sociais da questão social na realidade brasileira, reconstrução da sociedade pela reconstrução e desenvolvimento da cultura e da condição humana do sujeito, bem como novos sentidos para a cidadania, a democracia e a educação em direitos humanos. Prontos para começar a estudar, pesquisar, analisar e a compreender o significado e a amplitude da questão social? Então, mãos à obra! Confie em você! Dedique-se com afinco e amor! Acredite na profissão! Bons estudos e sucesso! Profª. Cristiana Montibeller UNI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! V VI VII sumário UNIDADE 1 – A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL ................................ 1 TÓPICO 1 – A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE ................................................................................................. 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA .................................................. 3 3 A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA E A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO .............................. 6 3.1 A ENCÍCLICA “RERUM NOVARUM” FRENTE À QUESTÃO SOCIAL ............................. 12 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 14 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 17 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 18 TÓPICO 2 – SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO ........................................................................................................ 19 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 19 2 FATORES HISTÓRICOS ECONÔMICOS, POLÍTICOS, SOCIAIS E CULTURAIS QUE CONTRIBUÍRAM PARA O SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL ....................................................................................... 19 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 35 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 38 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 39 TÓPICO 3 – A CONSTITUIÇÃO DOS TERMOS “SOCIAL” E “QUESTÃO SOCIAL” ........................................................................................................................ 41 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 41 2 REFLEXÕES SOBRE AAMPLITUDE DA PALAVRA “QUESTÃO” ........................................ 41 3 SIGNIFICADO DOS TERMOS: “SOCIAL” E “QUESTÃO SOCIAL” ..................................... 44 4 O CONCEITO DE “QUESTÃO SOCIAL” PARA O SERVIÇO SOCIAL ................................. 48 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 50 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 54 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 55 TÓPICO 4 – A ABRANGÊNCIA DA QUESTÃO SOCIAL E SUAS INÚMERAS EXPRESSÕES ................................................................................................... 57 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 57 2 ALGUMAS QUESTÕES SOCIAIS E SUAS EXPRESSÕES SOCIAIS ...................................... 57 3 REFLEXÕES SOBRE O TERMO “A NOVA QUESTÃO SOCIAL” ............................................ 64 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 68 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 69 UNIDADE 2 – O NEODESENVOLVIMENTO NO CAPITALISMO E O ACIRRAMENTO DAS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL .......................................... 71 TÓPICO 1 – O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO, LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO .............................................................. 73 VIII 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 73 2 A MUNDIALIZAÇÃO DA ECONOMIA E O ACIRRAMENTO DAS EXPRESSÕES SOCIAIS ........................................................................................................... 73 3 A ESTRATÉGIA NEODESENVOLVIMENTISTA FRENTE À QUESTÃO SOCIAL ....................................................................................................... 82 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 95 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 98 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 99 TÓPICO 2 – A NOVA INSTITUCIONALIDADE BRASILEIRA FRENTE ÀS EXPRESSÕES SOCIAIS ................................................................................................. 101 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 101 2 ORIGEM, SIGNIFICADO E ABRANGÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DAS POLÍTICAS SOCIAIS ..................................................................................... 101 3 A NOVA INSTITUCIONALIDADE DE PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL ......................... 114 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 116 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 120 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 121 TÓPICO 3 – A CRIAÇÃO E AMPLIAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS ....................................................................................................................... 123 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 123 2 A POLÍTICA NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL ............................................................. 123 3 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ............................................................................................... 132 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 142 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 143 TÓPICO 4 – A TIPIFICAÇÃO NACIONAL DE SERVIÇOS SOCIOASSISTENCIAIS ....................................................................................................................... 145 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 145 2 CARACTERIZAÇÃO DA TIPIFICAÇÃO ...................................................................................... 145 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 154 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 158 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 159 UNIDADE 3 – REDISCUTINDO AS QUESTÕES SOCIAIS E SUAS EXPRESSÕES NA CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA ORDEM SOCIETÁRIA ........................................................... 161 TÓPICO 1 – POSSIBILIDADES E ALTERNATIVAS DE REVERSÃO DO AGRAVAMENTO DAS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL ................................................. 163 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 163 2 OS DESAFIOS DAS EXPRESSÕES MULTIFACETADAS DA QUESTÃO SOCIAL ..................................................................................................................... 163 3 REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS DE REVERSÃO DO AGRAVAMENTO DAS EXPRESSÕES SOCIAIS NO PRIMEIRO, SEGUNDO E TERCEIRO SETOR ........................ 191 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 205 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 206 TÓPICO 2 – REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVAORDEM SOCIETÁRIA: SINTONIZANDO O SERVIÇO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE .......................................................................................... 207 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 207 IX 2 AS ESTRATÉGIAS E O PROJETO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL NO ENFRENTANDO DAS EXPRESSÕES SOCIAIS ..................................................... 207 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 219 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 222 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 223 TÓPICO 3 – A DESIGUALDADE SOCIAL E AS CONCEPÇÕES DOS SISTEMAS DE INDICADORES ............................................................................................... 225 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................225 2 REFLEXÕES SOBRE A DIVERSIDADE E A DESIGUALDADE SOCIAL .............................. 225 3 TIPOS E SIGNIFICADOS DOS SISTEMAS DE INDICADORES UTILIZADOS ........................................................................................................ 229 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 238 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 243 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 244 TÓPICO 4 – RECONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE PELA REDUÇÃO DAS VULNERABILIDADES E REFORÇO À RESILIÊNCIA HUMANA ............................................ 247 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 247 2 OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO MILÊNIO PARA REDUÇÃO DAS VULNERABILIDADES ............................................................................. 247 3 DESENVOLVIMENTO DA CONDIÇÃO E EXISTÊNCIA HUMANA PARA REFORÇAR A RESILIÊNCIA HUMANA ............................................................................. 252 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 254 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 257 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 258 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 259 X 1 UNIDADE 1 A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • compreender e analisar de forma crítica a gênese da Questão Social e da Assistência do ponto de vista histórico, tendo uma noção do desenvolvi- mento do sistema de proteção e de seguridade social; • analisar o cenário contemporâneo, econômico, político, cultural e social no sentido de possibilitar o conhecimento sobre as expressões da “questão social“, provenientes do sistema capitalista, e assim perceber a “questão social“ como resultado das contradições do desenvolvimento do capitalis- mo; • verificar e analisar a abrangência da questão social e de suas inúmeras e novas expressões sociais. A Unidade 1 está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um deles você terá a oportunidade de ampliar seus conhecimentos realizando as atividades propostas. TÓPICO 1 – A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE TÓPICO 2 – SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO TÓPICO 3 – A CONSTITUIÇÃO DOS TERMOS “SOCIAL” E “QUESTÃO SOCIAL” TÓPICO 4 – A ABRANGÊNCIA DA QUESTÃO SOCIAL E SUAS INÚMERAS EXPRESSÕES 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 1 INTRODUÇÃO Para compreender a Questão Social e seus desdobramentos na sociedade e no Serviço Social, se faz necessário conhecer sua gênese, sua história, os marcos sociais, suas formas de manifestações ao longo da história, que são diferenciadas, conforme os meios de sobrevivência dos povos, civilizações, os modos de vida social e cultural, de produção, de economia, de administração política, visto que toda ação social consequentemente leva a uma reação, isso tanto na Antiguidade quanto até nos dias de hoje. Assim como as principais leis da física – como, por exemplo, na dinâmica dos fluidos –, fazendo uma analogia, na área social também não deixa de ser, pois assim como o comportamento de um fluido se move ao longo de um tubo ou conduto, o comportamento humano também fluiu e continua fluindo através dos sistemas sociopolíticos e econômicos (condutos sociais) que foram instituídos pelos próprios homens ao longo da história e continuam sendo alterados, transformados, construídos na atualidade. 2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA Antes do desenvolvimento do capitalismo foram desenvolvidas diversas práticas de “ajuda”, “proteção” e/ou “assistência” ao próximo, designados na época como “necessitados”, “viajantes”, “indigentes”, “doentes”, “desvalidos”, “abandonados”, “órfãos”, “carentes”, “pobres”. Assim eram conceituados os que estavam em situação diferente e de desvantagem dos demais, e que precisavam de alguma forma de ajuda, proteção, apoio ou cura. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 4 Entende-se por ajuda qualquer tipo de subsídio ou auxílio do ponto de vista mais material do que qualquer outro. Nessa perspectiva, o assistencialismo e o clientelismo vigoraram por muito tempo e ainda em alguns momentos se fazem valer nas ações de pessoas que querem se prevalecer, ou serem bem vistas, que esperam um retorno ou vantagem pessoal ou política. FIGURA 1 – PRÁTICA CLIENTELISTA FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br search?q= figuras+de+ajuda+ao+proximo&biw>. Acesso em: 5 jan. 2015. Na história do Serviço Social era comum encontrar as primeiras damas (esposas de prefeitos) na administração e à frente de Secretarias, Departamentos de Assistência Social, chamados de “Damismo”. IMPORTANT E IMPORTANT E Percebe-se que a prática da proteção e da assistência ao outro sempre existiu na história da humanidade. Vigorava nas pessoas “mais fortes” um princípio humano de ajuda e altruísmo. Assim, sob a ótica da solidariedade caritativa, os “pobres e desvalidos” eram alvo de olhares, intenções e ações que foram desenvolvidas e assumindo diversas formas nas diferentes sociedades que existiram. Necessário se faz que a categoria profissional continue na luta pela democracia e justiça social, fortalecendo e priorizando as políticas públicas que garantem os direitos sociais à população que deles necessitem, direitos necessários a uma vida com dignidade, liberdade, respeito e autonomia. A busca dessa organização política exige a recusa pelo profissional do conservadorismo, do assistencialismo e das práticas funcionalistas, como parte de uma construção histórica, humana, intencional e criativa, capaz de possibilitar uma reflexão crítica, voltada para a construção do pacto democrático no Brasil, com a ampliação da cidadania por meio da implementação de políticas sociais de direito (PIANA, 2009, p. 55). TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 5 Porém, na história da humanidade, até se chegar na discussão e implementação de políticas sociais de direito, muitas coisas ocorreram. Assim, quando enfatizamos a existência das diferentes sociedades, vamos recorrer à sociologia, visto que na Antiguidade a primeira forma de sociedade que se formou pelo contexto da luta pela sobrevivência foi a sociedade de caçadores-coletores, onde as pessoas viviam em pequenos bandos espalhados, eram nômades em busca de alimentos e água para a própria sobrevivência do grupo. Toda ação era de ajuda mútua coletiva em favor do próprio grupo no sentido de manutenção e perpetuação. Aproximadamente por volta do ano 7.000 a. C, surge a sociedade de horticultura e de pastoreio. Assim começam a surgir os primeiros produtores de alimentos e criadores de animais domésticos. Este tipo de sociedade também era chamado de sociedade hortelã ou sociedade pastoril. Como resultado, as sociedades hortelãs criaram povoados com populações numerosas e foram se adaptando e crescendo, com produção de barcos, cerâmicas, têxteis, entre outrosdiversos produtos (OLIVEIRA, 2002). Isso na civilização babilônica aproximadamente 2.000 a. C., onde um dos primeiros reis babilônicos, Hamurábi (1728-1686 a. C.), cria o primeiro Código de Leis – o Código de Hamurábi; na Índia, o Código de Manu estabelecia normas morais para regular a conduta e prestar proteção aos necessitados; bem como a Lei das XII Tábuas que instituiu a legislação na origem do Direito Romano e na constituição da República Romana. Na Antiguidade, os primeiros registros na história da proteção social surgiram no Oriente Médio com o Código de Hamurábi, na Babilônia, século XVIII a. C., e com o Código de Manu, na Índia, século II a. C., que continham preceitos de proteção aos trabalhadores e carentes. Porém, apesar de se afirmar a existência de direitos aos indivíduos, não existiam garantias contra o poder dos governantes. Assim, cabia ao cidadão apenas observar as leis (DEZOTTI; MARTA, 2011, p. 433). Nesse sentido, também existem muitos relatos bíblicos enfatizando no Antigo Testamento, em especial no Egito, situações diversas de miséria, pobreza, doenças, pestes, entre outras situações de escravidão dos povos, inclusive do povo hebreu. Os Dez Mandamentos da Lei de Deus, bem como diversos livros e textos sagrados para os povos, tais com a Lei Torá do Judaísmo, a Bíblia do Cristianismo, o Alcorão ou Corão do Islamismo, o Dhammapada do Budismo, entre outros, UNI No Oriente Médio, sabe-se que em função de se tentar garantir a ordem e instituir regras e normas para serem seguidas por todos, pois não eram mais alguns e tampouco pequenos grupos, mas sim, populações numerosas, tem-se registros de códigos em forma de leis sociais, que foram criados e instituídos em algumas regiões. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 6 também foram criados e tinham como propósito instituir leis, códigos, regras de conduta, proteção, libertação, salvação, cura, perdão, caridade, sendo que até os dias atuais se fazem valer sob o ponto de vista religioso ou como filosofia de vida (GAARDER, 2000). No Egito, Grécia e Roma, no período da Antiguidade já havia registros de ações assistenciais de ajuda e auxílio, com distribuição de alimentos, em especial trigo, aos necessitados. 3 A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA E A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO Sabe-se também que, para o mundo ocidental, as primeiras tentativas de estudo, questionamento, análise e compreensão a respeito da sociedade, das relações sociais, das formas de interação humana (ser, pensar e fazer a sociedade) foram influenciadas na antiguidade pela filosofia grega. A base das ciências do mundo ocidental emergiu a partir do mundo greco- romano com a observação dos primeiros filósofos sociais – Sócrates, Platão e Aristóteles –, que começaram a questionar e refletir temas primordiais, tais como conceitos de ética, moral, verdade, direito, governo, justiça, política, democracia, felicidade, melancolia, entre outros diversos assuntos de interesse da polis, das cidades-estados. Sócrates (470-399 a.C) de Atenas foi considerado o homem mais sábio e o filósofo mais importante da sua época. Para ele, o saber fundamental é o saber a respeito do homem, por isso até hoje conhecemos sua frase máxima: Conhece-te a ti mesmo. Assim, a maior virtude que o homem pode ter é o conhecimento (é necessário conhecer para agir retamente) e o maior vício é a ignorância. Sócrates dedicou-se à reflexão e discussão da Filosofia Humanista. IMPORTANT E Interessante saber é que, desde a Antiguidade, os filósofos se preocupavam também com temas, tópicos de estudo, análise e discussões referente à sociedade em que viviam. Temas eram discutidos, tais como democracia, política, justiça, verdade, pois existiam na polis daquela época situações antidemocráticas, de corrupção, de injustiças, de mentiras, ou seja, manifestações ruins ou erradas que estavam merecendo ser discutidas na sociedade, no sentido de propiciar mudanças, transformações. TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 7 FIGURA 2 – FILÓSOFO SÓCRATES FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/ search?q=imagem+do+filosofo+socrates>. Acesso em: 7 jan. 2015. O termo democracia era muito discutido na época pelos filósofos. Sócrates, crítico da democracia de sua época, questionava de forma aguda como poderia numa democracia não existir a participação plena de todos, como poderiam existir escravos, por que estrangeiros e mulheres não podiam participar da vida política? Assim, era contra a democracia ateniense e não acreditava na mitologia grega. Dessa forma, foi condenado à morte por sua racionalidade, criticidade e por defender suas ideias. Preferiu a morte do que a recusa pelos seus princípios. Segundo Kim (2011, p.14), O tipo de pergunta que Sócrates fez aos cidadãos de Atenas buscou chegar ao cerne do que eles realmente acreditavam que eram certos conceitos. Sócrates fazia perguntas aparentemente simples – como “O que é justiça?” ou “O que é beleza?” [...] Em discussão desse gênero, Sócrates desafiou preceitos sobre a maneira como vivemos e sobre as coisas que consideramos importantes. Na filosofia grega existia uma preocupação com a essência das coisas, sair da superficialidade era necessário para uma mente autêntica e crítica. Assim, vamos perceber a necessidade da filosofia na profissão, pois precisamos ir além das aparências e considerar o que realmente é importante. UNI Assim, na antiguidade podemos perceber que a escravidão, a exclusão, a discriminação, a desvalorização da mulher e estrangeiros eram consideradas pelos filósofos consequências da falta de uma autêntica democracia, ou seja, traduzindo: eram formas de manifestações da Questão Social = Política da época, o que demonstrava certa irracionalidade e incoerência por parte dos legisladores, governantes. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 8 No caso atual, exemplos de manifestações sociais da Questão Social Política, ou até mesmo da economia, podem ser visualizados. Assim podemos identificar a corrupção, a pobreza. Seguindo a análise de pensamento de Montaño (2012), a pobreza é uma expressão da “questão social”, é uma manifestação atual no capitalismo, da relação de exploração entre capital e trabalho; o pauperismo é atualmente resultado, manifestação, expressão do capitalismo em sua forma de exploração e acumulação privada de capital. Aqui a Questão Social discutida está relacionada ao tema ECONOMIA ou até conjuntamente ao tópico POLÍTICA, pois ambos contribuem para a disseminação e aumento da desigualdade e pobreza. E assim, poderíamos prosseguir com inúmeras e outras reflexões que abordam a questão social e suas expressivas manifestações. Por analogia e comparações da antiguidade e da sociedade contemporânea, poderíamos descrever e citar diversas situações que nos serviriam como base de fundamentação e raciocínio. Retornando ao pensar a filosofia, os filósofos tinham como compromisso propor normas para que o ser humano vivesse numa sociedade ideal. As bases para as ciências sociais foram dadas através dos séculos, desde a Antiguidade, por pensadores que estiveram ligados à máquina administrativa da cidade-estado ou que estudaram sua constituição e funcionamento. Os séculos V e IV a. C. foram os séculos em que Atenas viveu seu apogeu econômico, político e cultural. Nas palavras do historiador grego Heródoto, “O Século de Ouro” do governante Péricles, que após a vitória nas Guerras Médicas contra os Persas de Dario I e Xerxes, investiu todos os recursos adquiridos de outras cidades (com a Liga de Delos) na valorização de sua cultura. Aconteceu nesse período a exaltação dos valores dos atenienses através de construções de palácios e monumentos; no incentivo de produções artísticas, literárias, históricas e filosóficas tentandodemonstrar o auge de sua cultura e civilização alcançada com a consolidação do regime democrático. Do ponto de vista da produção do conhecimento desse período, destacam- se três filósofos: Sócrates, Platão e Aristóteles. Todos eles viveram em Atenas, pelo menos durante o período central de sua produção, e todos eles têm uma obra que influenciou não apenas o momento histórico que viveram, mas também o próprio desenvolvimento da Filosofia e da Ciência. A preocupação desses filósofos era trazer para o centro de suas indagações o HOMEM, como ser capaz de produzir conhecimento através do desenvolvimento de sua Moral. Acreditavam, portanto, que o Conhecimento – a Filosofia – tinha uma função social, e por isso, consistia na formação de cidadãos como tarefa indispensável para a transformação da sociedade (RODRIGUES, 2014). Porém, além da filosofia, também as religiões foram sendo criadas e influenciaram e muito o comportamento humano nas diversas sociedades. A necessidade de orientar a vida é fundamental para os seres humanos e era uma preocupação dos povos antigos, que percebiam que não precisavam apenas de comida e bebida, de calor, compreensão e contatos físicos, mas, essencialmente, descobrir a origem da humanidade. TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 9 Referente ao pensamento cristão, as relações sociais ocupavam um lugar considerável no ensinamento dos profetas do Antigo Testamento. E por incrível que pareça, é na amplitude da temática da justiça que foi elaborado o pensamento religioso e social dos profetas. Assim, era a justiça um assunto (tema, objeto, tópico, contexto, matéria), ou melhor dizendo, uma “questão social” de grande importância. “É em torno do tema da justiça que está elaborado o pensamento religioso e social dos profetas. [...] É um tema religioso, mas é também, e indissoluvelmente, um tema social.” (BIGO, 1969, p. 21). O termo justiça era considerado no sentido do direito, fazer justiça, ser justo. Assim, a noção de justiça e de direito era foco de interesse, análise e discussão, pois se percebia, já naquela época, as manifestações da falta de justiça principalmente aos pequenos, órfãos, viúvas, estrangeiros, indigentes, doentes, que eram excluídos pelos que possuíam além de suas necessidades e não faziam justiça, melhor enfatizando, não dividiam, mas sim acumulavam mais e mais para si. Exemplos podem ser descritos, conforme diversos relatos bíblicos, pois os ricos tinham mesa abundante, roupas finas e luxuosas, ouro, prata e honras não merecidas, propriedades diversas, não pagavam seus assalariados justamente, o lucro dos impostos, acumulação e uso dos bens além das necessidades, riquezas injustas advindas de administrações desleais, entre outras diversas descrições nos textos do Antigo e do Novo Testamento. Sobre essa postura e visão dos profetas, Bigo (1969, p. 24) descreve claramente: Assim, os profetas já atribuem à justiça uma dimensão que nós não mais lhe ousamos dar. A justiça, para eles, não é primeiramente o direito daqueles que têm, é, antes de tudo, o direito daqueles que não têm, o direito do membro da comunidade quando se encontra em necessidade. É nessa perspectiva que se situam as numerosas advertências dos profetas àqueles que vivem em demasia fartura. O luxo é, literalmente, uma injúria à pobreza, porque retira àquele que nada tem para dar àquele que já tem. Há um ensinamento dos profetas sobre o supérfluo, [...]. A avidez dos açambarcadores, daqueles que juntam “casa sobre casa, campo sobre campo”, é impiedosamente fustigada. Podemos chegar claramente à conclusão de que, se não existia justiça, com certeza existiam inúmeras manifestações, expressões desta “questão social”, sendo uma delas a pobreza, outras, a desigualdade, a miséria, a doença e assim UNI Quem somos? Para onde vamos? Por que estamos vivos e como melhorar a vida no grupo, no povoado, na cidade, na polis, na metrópole? Assim, muitos questionamentos surgiram sobre a existência de tudo, inclusive da vida e da morte. Essas indagações existenciais formaram a base de todas as religiões no mundo. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 10 consequentemente. Conforme Bigo (1969, p. 36), “Os sermões dos profetas aos ricos giravam sempre em torno do tema da justiça, os de Cristo giravam em torno do tema da pobreza.” Interessante perceber que os sermões de Cristo se baseavam não na “questão social”, mas nas consequências da falta da justiça, ou seja, no conjunto das diversas expressões da sociedade injusta da época, proveniente da avareza, ganância e soberba dos ricos. A religião se expandiu por toda a Europa com a queda do Império Romano no ano 400, aproximadamente. A Igreja Católica Apostólica Romana foi o grande poder que emergiu das cinzas do Império Romano, em torno do qual se ergueu o mundo medieval, que foi caracterizado como a Idade das Trevas. A Santa Inquisição, criada em 1232, espalhou medo e terror por toda a Europa, através do Tribunal do Santo Ofício (que era uma paranoica luta contra o demônio e as heresias), como também as Cruzadas, guerras santas em que a Europa cristã combateu os “mouros infiéis”: os islâmicos (COSTA, 1997). A partir da Idade Média, na Europa, foram criadas as confrarias, que eram caracterizadas como grupos, irmandades, congregações ou associações religiosas, formadas por leigos do catolicismo que desenvolviam ações com caráter caritativo, filantrópico e cultos religiosos. FIGURA 3 - IRMANDADES, CONGREGAÇÕES DE AJUDA FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=igreja +na+idade+media+e+os+pobres&tbm>. Acesso em: 5 jan. 2015. Nessa época eram comuns ações assistencialistas ou clientelistas, como doações, práticas em forma de favor, boa vontade com fundamento em princípios cristãos. “A ética cristã – como a filosofia cristã em geral – parte de um conjunto de verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem com o seu Criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação no outro mundo.” (VÁZQUEZ,1996, p. 243). Sob a perspectiva da ética cristã, a ideologia religiosa da época priorizava que toda ação pessoal deveria estar voltada para e com Deus, sob uma nova forma TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 11 de participação social onde o teocentrismo fazia valer uma ação transcendental, direcionada a favor da própria salvação. Contudo, a ética cristã tende a regular o comportamento dos homens com vistas a outro mundo (a uma ordem sobrenatural), colocando o seu fim ou valor supremo fora do homem, isto é, em Deus. Disto decorre que, para ela, a vida moral alcança a sua plena realização somente quando o homem se eleva a esta ordem sobrenatural. (VÁZQUEZ, 1996, p. 245). Segundo a ética cristã, Deus exigia obediência sem precedentes, bem como sujeição a seus mandamentos. Assim, no cristianismo, o ser humano é e o que deve fazer, antes de tudo em relação a Deus, tendo como valores a fé, a esperança e a caridade para a obtenção da salvação eterna. Assim, também os “Dez Mandamentos” e a própria Bíblia foram uma forma de tentar garantir a ordem e instituir regras e normas para todos, no sentido de mando e doutrina indiscutível, vindo a se tornar uma constituição que está presente, de uma forma ou outra, até hoje nas mentes e nas ações das pessoas no mundo ocidental. Segundo Carvalho (2006, p. 15), “Na Idade Média, a forte influência do Cristianismo, através da doutrina da fraternidade, incentivou a prática assistencial, com a difusão das confrarias que apoiavam as viúvas, os órfãos, os velhos e os doentes”. Esta concepção medieval pensava que a causa da miséria era um problema do pecado da humanidade, de desobediência a Deus, castigo individual, e em muitos casos visto como castigo coletivo, sefalando em pragas e pestes. Nessa época, a Ásia foi atormentada por secas, enchentes e terremotos que provocaram uma fome sem precedentes, a Europa sofreu com as mudanças climáticas com perdas irreparáveis de sucessivas colheitas, tendo como consequência a fome generalizada que espalhou doenças e o desespero nas comunidades superpovoadas. Não bastando, uma epidemia entre 1346 e 1352 assolou todo o continente e chegou a matar mais de um terço da população europeia, conhecida como a peste negra, que provocou a maior onda de mortandade no mundo (GUSMÃO JR., 2014). Durante a Idade Média começaram a surgir, a partir dos mosteiros e conventos, instituições asilares, destinadas mais a cuidar dos doentes e proporcionar-lhes conforto e ajuda, sobretudo no período de doença em fase terminal, pois não se sabia como curá-los. UNI No século XIV, de 1301 ao ano de 1400, a única explicação possível para a série de golpes devastadores que abalaram todo o mundo era vista como ira de Deus frente à desobediência e aos pecados dos homens. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 12 Com o aparato e influência da civilização judaico-cristã, a ajuda toma a expressão de caridade e a filantropia ao próximo. Assim, com a intenção de juntar práticas de auxílio e apoio aos aflitos, doentes e pobres, diversos grupos filantrópicos e religiosos começaram a se organizar, dando origem às diversas instituições de caridade sob ordem e fundamento da Igreja Católica (SPOSATI et al., 2007). O doente, o inválido, o indigente, o pobre, na visão cristã, passou a ser um indivíduo digno de compaixão e auxílio. A prática da caridade era de conforto e acolhimento. Assim, com o passar dos tempos, a concepção de doença, pobreza, miséria, castigo, entre outros termos, típicos da Europa nos séculos XVI a XIX – aproximadamente entre 1501 a 1801 –, inicia e desenvolve-se fundamentalmente a partir da organização de ações filantrópicas. Assim, a miséria, a pobreza e todas as manifestações delas não eram consideradas como resultado da dominação e exploração absolutista do clero da época, no período feudal, mas como fenômenos autônomos e de responsabilidade individual ou coletiva dos setores por elas atingidos. Começa‑se a se pensar então a “questão social”, a miséria, a pobreza, e todas as manifestações delas, não como resultado da exploração econômica, mas como fenômenos autônomos e de responsabilidade individual ou coletiva dos setores por elas atingidos. A “questão social”, portanto, passa a ser concebida como “questões” isoladas, e ainda como fenômenos naturais ou produzidos pelo comportamento dos sujeitos que os padecem (MONTAÑO, 2012, p. 272). Durante longo período da história, especificamente durante a Idade Média, não se discutia a “questão social”, muito menos suas expressões na sociedade da época, e a assistência ficava relegada ao campo da filantropia e da caridade. Dessa forma, as iniciativas de apoio e amparo aos chamados “pobres” eram realizadas de forma caridosa e piedosa pela Igreja, por paróquias, pelos grupos religiosos ancorados nos postulados da fé cristã. 3.1 A ENCÍCLICA “RERUM NOVARUM” FRENTE À QUESTÃO SOCIAL Na Idade Média houve pouca evolução nas declarações de direitos humanos e sociais, as que surgiram não eram universais e se restringiam a determinados grupos. Encontramos o Decreto de Afonso IX, nas Cortes de Leon, de 1188, e a Magna Carta de João II, em 1215, na Inglaterra. Foi um período histórico muito complexo e difícil, frente a muitos interesses, conflitos, guerras, revoluções, doenças, sofrimentos. Assim, através do fortalecimento do cristianismo, nasceu a ideia de solidariedade que fez surgir sistemas de mútua ajuda e seguridade. Porém, foi com o Estado Absolutista que houve a primeira lei que versou sobre a assistência social, que ficou conhecida como Law of Poor (Lei dos Pobres) ou Poor TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 13 Relief Act (ação de assistência aos pobres) em 1601, na Inglaterra, durante o reinado da rainha Isabel (DEZOTTI; MARTA, 2011). A partir daí as autoridades começaram, a passos lentos, a se preocupar com a proteção social, procurando dar auxílio nos casos de enfermidades, invalidez e desemprego, tendo como princípio a responsabilidade do Estado pela assistência pública, surgindo a obrigatoriedade de contribuições para fins sociais. Diante de toda essa realidade, consequentemente a Igreja se viu na obrigatoriedade de pensar com afinco a “questão social”. Então, em 1891, a Igreja Católica oficializou, por meio do Papa Leão XIII, a publicação da Encíclica "Rerum Novarum", apresentando ao mundo católico os fundamentos e as diretrizes da Doutrina Social da Igreja, enfatizando sua postura frente aos graves problemas sociais que dominavam as sociedades europeias naquele período. A Igreja Católica, a partir da Encíclica, priorizou um discurso e intervenção doutrinária na ação política, com a elaboração de diretrizes gerais de compreensão dos problemas sociais da época, que estavam eclodindo por efeito do fenômeno industrial na Europa. No entanto, suas diretrizes oscilavam entre a influência marxista a favor do socialismo e a proposta liberal do sistema capitalista com amplitude de reforma social. Foi aproximadamente nesse período, quando o Serviço Social transitava para sua profissionalização, que surgiram duas encíclicas papais, uma que foi a Rerum Novarum, divulgada por Leão XIII a 15 de maio de 1891, e a outra, chamada Quadragésimo Anno, divulgada por Pio XI a 15 de maio de 1931, diante do fervor do capitalismo e da crise econômica no mundo. Sabemos que, no Brasil, o Serviço Social foi criado em 1936, a partir das iniciativas dos grandes líderes da Igreja Católica, inspirados na Doutrina Social da Igreja então enriquecida por uma nova Encíclica Social: a "Quadragésimo Ano", redigida pelo Papa Pio XI e publicada no dia 15 de maio de 1931, em comemoração aos 40 anos da Rerum Novarum. Assim, a profissão do Serviço Social foi se desenvolvendo e crescendo permeada pela prática da "Ação Social Católica", sob a liderança da Igreja, sendo que até o início dos anos 60 recebeu forte influência que está permeada até os dias atuais (CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL – CRESS/SC – 12ª REGIÃO, 2014). Mas o fato de sabermos que o dia "15 de maio" é uma homenagem à publicação da "Rerum Novarum" – documento que embalou a profissão em berço e lhe sustentou a vida – não esgota o assunto em pauta. Quem determinou que assim o fosse? É uma data comemorada apenas por assistentes sociais brasileiros? Essas são algumas perguntas que na literatura encontrada, bem como nos contatos estabelecidos na fase preparatória desse artigo, não responderam a estas indagações. Cabe, portanto, aos assistentes sociais interessados na história profissional, que se embrenhem pelos caminhos da pesquisa em busca dessas respostas UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 14 e de outras relativas ao tema. Cabe a nós, assistentes sociais, conhecer o passado e construir a memória da nossa profissão (CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL – CRESS/SC – 12ª REGIÃO, 2014). Interessante averiguarmos o quanto a profissão teve a influência do catolicismo, por isso é um grande desafio mudar aspectos culturais. No entanto, com qualificação e competência podemos mostrar que trabalhar na área social não é algo tão simples assim, ter boa vontade ou espírito solidário não é profissão. Utilizam-se ainda muitos termos ligados à história e à religião, como ajuda, caridade, auxílio, doação, entre outros, assim confundem-se muito os termos ligados ao Serviço Social, aos Serviços Sociais, à Assistência Social. Para esclarecer, vejamos o quadro a seguir, que enfatiza com teor e objetividade diversas especificações referentes à abrangênciae compreensão da profissão. LEITURA COMPLEMENTAR Myrian Veras Baptista A QUESTÃO SOCIAL COMO UM DESAFIO HISTÓRICO DO SERVIÇO SOCIAL Assumo como ponto de partida para essa minha reflexão a ideia de que, na estrutura do serviço social brasileiro como profissão, sempre esteve presente o desafio do enfrentamento das expressões da questão social gestadas pelo capitalismo, o que fez com que seus profissionais parametrassem suas intervenções na relação capital-trabalho. Evaldo A. Vieira tem sobre esse aspecto uma posição assemelhada à que eu expresso aqui. É dele a consideração seguinte: a questão social foi uma base sólida na constituição e consolidação do serviço social, uma vez que tem sido sempre seu eixo de reflexão e a expressão de sua particularidade2. Helena Iraci Junqueira, uma das pioneiras da profissão, esclarece em depoimento (1983:16) que o serviço social originou-se de um movimento dentro da Igreja [Católica] […] de uma prática concreta, de uma posição de vanguarda […] voltando-se para a formação de profissionais para a UNI O Serviço Social tem sua história vinculada com ações de caridade e benevolência, por isso ainda nos dias de hoje a profissão passa pelo desafio de esclarecer as interpretações equivocadas, que ainda não abrangem a clareza do real significado contemporâneo da terminologia ligada à profissão. TÓPICO 1 | A PROTEÇÃO E A ASSISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE 15 atuação sobre os problemas sociais que se colocavam na época. Ele começou com ímpeto de renovação, de estudo, de posicionamento avançado para a época. Em outro momento, em depoimento (LIMA, 1982:75), H. I. Junqueira situa as razões de sua escolha do serviço social como profissão: […] eu estava engajada no movimento de Ação Católica. Esse movimento, em São Paulo, despertara, desde o início, um sentido profundamente social nos seus membros […] Tínhamos uma grande preocupação pela justiça social. […] quando tive conhecimento da fundação da Escola de Serviço Social, me empolguei com a ideia de que poderia ter uma profissão que iria servir à implantação da justiça social. O serviço social brasileiro foi gestado na esteira de um movimento internacional, articulado e comandado pela Igreja Católica, que tinha por objetivo sedimentar uma proposta política que se configurara através de encíclicas papais as quais estruturaram uma doutrina social que se tornou conhecida como a Doutrina Social da Igreja. A Doutrina Social da Igreja estabelecia as bases para a operacionalização de uma alternativa para o enfrentamento da questão social – “nem o liberalismo, nem o individualismo, nem o comunismo, o humanismo cristão”, Rerum Novarum de Leão XIII, publicada em 15 de maio de 1891, e Quadragésimo Ano de Pio XI, de 15 de maio de 1931. Hoje, o espaço privilegiado da ação profissional continua sendo o do enfrentamento das manifestações da questão social – naturalmente, a partir de outros paradigmas –, principalmente aquelas que expressam a relação pobreza- sociedade, na medida em que essa pobreza se gesta, se nutre e se amplia nas defasagens sofridas pelos polos menos favorecidos da relação capital/trabalho. […] Esse quadro, posto por H. I. Junqueira, expressa uma realidade na qual se pode depreender processos econômicos e sociopolíticos que compõem as condições objetivas para que o serviço social se constitua como profissão: a sociedade e o Estado viam-se cada vez mais desafiados a enfrentar as questões sociais construindo respostas ao nível de políticas sociais e de serviços, a uma crescente gama de situações que exigiam profissionais preparados para seu planejamento e execução, e os assistentes sociais foram investidos como um dos agentes executores das políticas sociais (NETTO, 2001:74-75). [...] Em São Paulo, o movimento que tinha por proposta a expansão política da Doutrina Social da Igreja se apoiou estrategicamente em um tripé cujas bases eram configuradas por: 1) um partido político, o Partido Democrata Cristão, cuja presidência foi assumida, via eleição, pelos integrantes do movimento. Nesse partido, muitos assistentes sociais militaram politicamente, aceitando e disputando cargos políticos. O PDC teve, por muitos anos, como secretário geral, José Pinheiro Cortez; e Helena Iracy Junqueira foi, pelo partido, a primeira vereadora mulher da cidade de São Paulo e foi também Secretária da Educação no município, nos anos 50, na administração PDC. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 16 2) a mobilização do laicato católico através da organização da Ação Social Católica, cuja responsabilidade de implantação em São Paulo fora assumida pelo CEAS – Centro de Estudos e Ação Social – a partir de 1934. A Ação Social Católica destacava a responsabilidade social do cristão, superando a vivência religiosa mais individual (VICINI, 1990:24) e atuava através de grupos organizados como a Liga Feminina de Ação Católica, a Juventude Operária Católica-JOC, a Juventude Agrícola Católica – JAC, a Juventude Estudantil Católica (secundarista) – JEC, a Juventude Independente Católica – JIC, a Juventude Universitária Católica – JUC. 3) e a implementação de espaços de formação e de disseminação de ideias e da doutrina, de preparação de uma elite intelectual católica, configurados principalmente pelas Universidades Católicas. Não por acaso, em São Paulo, foi o CEAS a entidade fundadora e mantenedora da primeira Escola de Serviço Social. Consonante com as propostas da Doutrina Social da Igreja, o objeto da formação e da intervenção profissional dos assistentes sociais nesse período era também o objeto que preocupava a Igreja e a Ação Social Católica: a questão social, tal como vinha se expressando na sociedade brasileira e, no caso de São Paulo, paulista. Em decorrência, a profissão de serviço social se constituiria num dos aspectos concretos da ação social (Albertina Ferreira Ramos – 1940 - apud Yasbek, 1980:40) e o curso de serviço social, além de se voltar para a disseminação de conhecimentos e de técnicas para uma ação mais eficaz no enfrentamento dos problemas sociais, dedicava-se também à formação social de dirigentes, integrantes da ação política do laicato católico (LIMA, 1982:45). FONTE: BAPTISTA, Myrian Veras. A questão social como um desafio histórico do serviço social. 2009. Disponível em: <http://www.jurassicos.com.br/leao_XIII/arquivos/surgimento_servico_ social.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2015. 17 Neste primeiro tópico ampliamos nossos conhecimentos e estudamos um pouco mais sobre a gênese da questão social, assim enfatizamos vários itens: • Verificamos as características da proteção e da assistência na história da humanidade e percebemos que mesmo antes do desenvolvimento do capitalismo foram desenvolvidas diversas práticas de “ajuda”, “proteção” e/ou “assistência” ao próximo. • Analisamos a influência da filosofia para o mundo ocidental, sendo que as primeiras tentativas de estudo, questionamento, análise e compreensão a respeito da sociedade, das relações sociais, foram influenciadas na Antiguidade pela filosofia, especificamente pela filosofia grega. • Verificamos que durante longo período da história, especificamente durante a Idade Média, não se discutia a “questão social”, muito menos suas expressões na sociedade, e a assistência ficava relegada ao campo da filantropia e da caridade. • Constatamos a influência da religião católica na sociedade e especificamente no serviço social, como, por exemplo no Brasil, o Serviço Social foi criado em 1936, a partir das iniciativas dos grandes líderes da Igreja Católica, inspirados na Doutrina Social da Igreja. • Analisamos que a profissão do Serviço Social foi se desenvolvendo e crescendo permeada pela prática da “Ação Social Católica”, sendo que até o início dos anos 60 recebeu forte influência no sentido de tercaráter caritativo e assistencialista, práticas severamente combatidas na atualidade. RESUMO DO TÓPICO 1 18 1 Conforme o estudo desta primeira unidade, descreva como foram desenvolvidas na Antiguidade as práticas de assistência ao outro. ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 2 Que influência teve a religião na consolidação da prática da assistência no contexto social, especificamente na Europa e América Latina? ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ AUTOATIVIDADE 19 TÓPICO 2 SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Iremos aprofundar nesta unidade os fatores históricos econômicos, políticos, sociais e culturais que contribuíram para o surgimento da questão social, especificamente, durante o período de transição da Idade Média para a Idade Moderna, tais como, movimentos intelectuais como o Renascimento e o Iluminismo, que contribuíram para a concretização da Revolução Francesa. Abordaremos também o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, bem como os significados do liberalismo e do neoliberalismo enquanto doutrinas de política econômica a favor das ideias e avanços industriais e capitalistas. 2 FATORES HISTÓRICOS ECONÔMICOS, POLÍTICOS, SOCIAIS E CULTURAIS QUE CONTRIBUÍRAM PARA O SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL A questão social está intrinsecamente vinculada com a história do surgimento e desenvolvimento do capitalismo, visto o desenrolar dos acontecimentos que mudaram o curso da história da humanidade. Por isso precisamos conhecer o passado para compreender e refletir sobre aspectos do cenário contemporâneo mundial e da nossa própria realidade. A transição da Idade Média para a Idade Moderna foi um período muito conturbado e difícil em todos os sentidos, pois foi um período de transição entre a mentalidade medieval para a mentalidade moderna racional, com profundas transformações sob o ponto de vista histórico econômico, político, social e cultural. Ao invés de termos o mundo explicado pela fé (por verdades reveladas), passa-se a ter um mundo explicado pela razão, pela ciência experimental; do teocentrismo passa-se para a perspectiva do antropocentrismo, focando não mais na fundamentação da teologia e do poder do absolutismo, mas essencialmente na racionalidade científica, onde o homem dotado de certeza e razão torna-se o centro do mundo. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 20 Nesse período de transição obtivemos a primeira noção de movimento social, o RENASCIMENTO – desenvolvimento do Humanismo nos séculos XV e XVI, que foi caracterizado como um movimento intelectual de desenvolvimento artístico, literário e científico. Desse modo, renasce novamente a filosofia e há um grande passo às pesquisas científicas, até então proibidas na Idade Média. As manifestações deste movimento tiveram maior repercussão na França, contra as injustiças sociais, intolerância religiosa e privilégios do absolutismo. FIGURA 4 – REPRESENTAÇÃO DO PERÍODO MODERNO FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=antropocentrismo&bi w=>. Acesso em: 5 jan. 2015. Assim também surgiu o ILUMINISMO, que significou uma corrente de pensamento dominante no período aproximado de 1700 a 1800, período caracterizado como Século das Luzes. Era um movimento que representava uma visão de mundo da burguesia intelectual da época na Europa, que estimulava a luta da razão e do progresso contra a superstição e a teologia. Essa corrente de pensamento inspirou os ideais da Revolução Francesa em 1789, que teve como lema: Liberdade, Fraternidade e Igualdade, pois denunciava erros e vícios do Antigo Regime feudal e absoluto, efetivando a derrubada da monarquia absoluta. UNI O teocentrismo é uma concepção que enfatiza Deus no centro de todas as coisas, desse modo, o homem e o que deve fazer definem-se essencialmente em relação a Deus (VÁZQUEZ, 2000). TÓPICO 2 | SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO 21 Hampson (1996, p. 375) descreve que: Mais que um movimento, o Iluminismo foi um modo de pensar. Falando de maneira geral, foi uma consequência da “revolução científica” no final do século XVII, que havia transformado a concepção que a maior parte das pessoas instruídas tinha a respeito do mundo por elas habitado. [...] A compreensão, pelo Homem, de si mesmo e da sociedade só podia ser alcançada pelos métodos científicos da observação e dedução, que lhe permitiam captar princípios que governavam o comportamento da matéria. O francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tornou-se o iluminista mais radical, precursor do socialismo, defendia um Estado democrático, voltado para o bem comum e a vontade geral. Surge na época uma doutrina política e econômica designada como Liberalismo. Seu principal teórico foi o economista escocês Adam Smith (1723- 1790), que criticava a intervenção estatal na economia e idealizava uma economia dirigida pelo jogo livre da oferta e da procura, chamado de laissez-faire (deixai fazer), como se existisse algo invisível que iria conduzir da melhor forma a economia e a sociedade. O trabalho nesta concepção era considerado como a verdadeira riqueza das nações e o sistema econômico deveria ser dirigido pela livre iniciativa dos empreendedores, burgueses, capitalistas. A ação racional, portanto, significava conformidade a um sistema que era moralmente autolegitimado. A “mão invisível” da Providência garantia que a busca individual de um autointeresse iluminista conduziria sempre ao bem-estar da sociedade como um todo. [...] Durante a segunda metade do século XVIII, o Iluminismo foi contestado por uma repulsa ao que era visto como uma concepção mecanicista do universo, uma negação das verdades da percepção e da emoção e uma fuga ao conflito entre inclinação e dever. Jean-Jacques Rousseau, em particular, embora partilhasse alguns dos pressupostos do Iluminismo, baseou sua teoria na soberania popular e um conceito de regeneração moral do indivíduo pela sociedade que tirava o seu dinamismo da consciência e de uma moralidade intuitiva. [...] Os homens que se viram no controle da França em 1789, em sua esmagadora maioria, partilhavam dos seus pressupostos (HAMPSON, 1996, p. 376). Interessante ressaltar que a sociedade racional dos iluministas revelou na sociedade burguesa uma profunda irracionalidade, pois começava a germinar um tipo de dominação e exploração por parte dos burgos da época. Assim, foi UNI Surge na época uma sociedade racional, porém com uma sociedade burguesa ambiciosa, onde a exploração e dominação eram cada vez mais evidentes, transparecendo novamente a desigualdade e a exclusão social. Assim, com o novo sistema econômico desenvolveu-se também uma nova sociedade, urbana e industrial, com suas consequências inevitáveis. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 22 se consolidando e crescendo um tipo de grupo social que estava enriquecendo, a burguesia, grupoque foi se consolidando com o crescimento do capitalismo, sendo considerada mais tarde como classe social burguesa. A Europa passava por imensas transformações, a começar pela Revolução Francesa, e depois pela Revolução Industrial, que mudaram o curso da história, principalmente para o absolutismo e poderio da Igreja, visto que os princípios iluministas se proliferavam pela luta da razão e do progresso contra a superstição e a teologia, bem como com o fim do feudalismo. A Revolução Francesa, ao romper com um sistema político de privilégios e protagonizar a instauração de uma sociedade de indivíduos, assume, desde o século XVIII, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a tarefa de encaminhamento de uma política social, que foi tornando a caridade e a assistência clerical cada vez mais aleatória. A esta época, o frágil equilíbrio necessário para tornar a solidariedade eficaz, entre a riqueza e a pobreza, entre a generosidade e o sofrimento, se torna a cada dia mais difícil e ilusório (IVO, 2012, p. 72). FIGURA 5 – IMAGEM DA REVOLUÇÃO FRANCESA FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=SOCIAL>. Acesso em: 6 jan. 2015. UNI No século XVIII ocorreram duas grandes revoluções na Europa, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Influenciadas pelos princípios iluministas e da substituição das ferramentas pelas máquinas, ajudaram a consolidar a globalização do capitalismo, bem como as teorias econômicas liberalistas (RAMALHO, 2012). TÓPICO 2 | SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO 23 Segundo Carlebach (1996, p. 405), “A Revolução Francesa visava reestruturar toda a sociedade, em todos os níveis, no espírito das novas noções de igualdade social defendidas pelo Iluminismo”. A Revolução Industrial teve início na Inglaterra, emergindo aproximadamente em 1775 e se espalhando por toda a Europa. Concomitantemente com o crescimento econômico, crescia também um número exorbitante de homens, mulheres e crianças em situações desumanas e degradantes. Era um retrocesso social, tendo em vista as condições desumanas a que os trabalhadores eram submetidos em toda a Europa, assim foi se caracterizando o Estado Liberal com intervenção mínima do poder político e estatal na sociedade da época. Desenvolviam-se as teorias econômicas liberalistas que ajudaram a consolidar o progresso capitalista e, consequentemente, fizeram emergir os problemas sociais (atualmente designados como expressões da questão social) oriundos destas profundas transformações, tais como pauperismo, carências, mendicância, desvios de conduta, desemprego, péssimas condições de trabalho, entre outras consequentes manifestações. FIGURA 6 – TRABALHADORES DAS INDÚSTRIAS INGLESAS FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/ search?q=revolução+industrial&biw>. Acesso em: 5 jan. 2015. UNI A REVOLUÇÃO FRANCESA (chamada de Revolução Gloriosa) se caracterizou como um movimento social revolucionário de caráter liberal e burguês a favor do liberalismo, nacionalismo e socialismo, provocando a derrubada da monarquia absoluta. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 24 Em 1848, na Europa, ocorreram diversas revoluções, manifestações populares, revoltas diversas em vários países. Vários movimentos de trabalhadores começaram a eclodir, pois começaram a negar a manutenção do poder burguês, a criticar a crise econômica, a exigir melhores condições sociais, econômicas e políticas a favor da democracia e cidadania. Originalmente, o termo “primavera dos povos” está associado às revoluções ocorridas na Europa central e oriental em 1848. A grande onda de reivindicações iniciada nesse ano, que tinha em sua agenda política a extensão do direito de voto e a ampliação de direitos das minorias nacionais, foi uma resposta à política continental de restauração que conduziu as decisões internas dos Estados europeus após a derrota napoleônica. Incapazes de absorver as mudanças propostas pelo ideário liberal/burguês e mesmo de processar a incorporação dos novos grupos sociais surgidos das transformações sociais da industrialização crescente, os Estados monárquicos europeus viram eclodir diversas revoluções (PARADA, 2011). Esse conjunto de revoluções foi chamado de Primavera dos Povos, tinha caráter liberal, democrático, nacionalista e, apesar de sua breve duração, recebe importância significativa no estudo da questão social, por ter sido a primeira revolução do proletariado. Na França, com intuito de apaziguar o contexto de revoltas, o governo francês procura remediar como podia. Referindo-se aos debates de 1848, Rosanvallon (1998, p. 120) descreve: Em 26 de fevereiro de 1848, um cartaz com um novo decreto foi exposto nos muros da capital: “O governo provisório da República Francesa se compromete a prover a existência do trabalhador pelo trabalho, que será garantido a todos os cidadãos” [...] Reunindo inicialmente alguns milhares de homens, chegavam a quase 100.000 beneficiados [...] A experiência foi um insucesso monstruoso, [...]. Protestos e reivindicações emergiram na França e se proliferaram por toda a Europa. Resultado consequente da transformação de uma sociedade agrária para uma industrial, fez emergir um contingente de operários sem garantias de trabalho e direitos sociais, bem como milhares de desempregados em situação de miséria. Com o desenvolvimento ocorre a passagem da manufatura para mecanização, criação de duas novas classes sociais antagônicas: burguesia e proletariado, ou empresários e trabalhadores. Surgem as primeiras manifestações UNI Interessante ressaltar que as revoluções estão associadas ao termo radicalismo, as mudanças radicais fundamentais geralmente estão interligadas com o sistema social e suas conjunturas, sistemas de poder da política, da economia. TÓPICO 2 | SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO 25 de revolta na Europa, dando origem aos sindicatos a partir de 1833. Começa-se a produção de consumo. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL se caracterizou como um processo histórico de transformação econômica e social, através do qual um novo modo de produção capitalista passa a dominar a sociedade: produção em escala para o mercado mundial, uso intensivo de máquinas, concentração de operários – trabalhadores – e a divisão social do trabalho. FIGURA 7 – CONFIGURAÇÕES DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=revolução+industrial &biw=1366&bih~>. Acesso em: 5 jan. 2015. Surge então efetivamente o capitalismo, um novo sistema econômico e social de mercado, um tipo de economia e de sociedade que se caracteriza pela propriedade privada (individual ou coletiva) dos meios de produção, trabalho assalariado e acumulação de capital (riqueza), se baseando no controle, previsão e exploração de oportunidades de mercado para efeito do lucro, bem como de recursos técnicos e naturais disponíveis. UNI Podemos analisar o capitalismo sob duas perspectivas, uma sob a análise do perspectivismo liberal e a outra sob a análise do perspectivismo marxista, duas concepções totalmente distintas referentes à concepção do capital, do sistema de produção e reprodução capitalista, da sociedade e de suas manifestações presenciais e futuras. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 26 Para os liberais da época, a propriedade privada assegurava a melhor distribuição possível dos recursos. Assim, o mercado assegurava uma satisfação em função de sua dotação e criação de bens e serviços, e a distribuição dos recursos podia resultar pelo simples jogo do mercado, que, por si só, beneficiava a todos e sem interferência do Estado na economia, mas com uma intervenção flexível ou mínima através de suas políticas de bem-estar. O lucro é justificado no capitalismo pelasua própria natureza, assim como a justa remuneração e iniciativa dos empresários, que se empenham em melhorar o capital técnico, investem seus recursos em novos recursos e na produção, descobrem novas ideias e procuram pô-las em prática para que o desenvolvimento e o crescimento econômico se efetivem cada vez mais em sua plenitude (GÉLÉDAN; BRÉMOND, 1988). Sabe-se que o processo de industrialização e o avanço desenfreado do capitalismo desencadearam inúmeras consequências na área social, evidências e expressões negligenciadas e omitidas pelos liberalistas, visto apenas visualizarem o bem-estar econômico da sociedade – seu crescimento e desenvolvimento do ponto de vista da economia –, deixando à deriva o desenvolvimento social e as consequências desastrosas do sistema capitalista. A questão social e suas expressões, na época designada como problemas ou disfunções sociais, para os liberais estavam dissociadas da questão econômica. Assim, percebiam e consideravam todos os problemas sociais como desvios de conduta que estavam vinculados e relacionados com a cultura, a moral, a religião, a família, a própria pessoa. Dessa forma, a pobreza era relacionada a causas individuais e psicológicas, pensava-se o pauperismo como mendicância e como crime, e assim a repressão se instituía como forma de tentar harmonizar a sociedade da época. [...] a partir de 1834, existem algumas características e problemas dessa concepção de “questão social”, pobreza e tratamentos: a. A “questão social” é separada dos seus fundamentos econômicos (a contradição capital/trabalho, baseada na relação de exploração do trabalho pelo capital, que encontra na indústria moderna seu ápice) e políticos (as lutas de classes). É considerada a “questão social” durkheimianamente como problemas sociais, cujas causas estariam vinculadas a questões culturais, morais e comportamentais dos próprios indivíduos que os padecem. b. A pobreza é atribuída a causas individuais e psicológicas, jamais a aspectos estruturais do sistema social. c. O enfrentamento, seja a pobreza considerada como carência ou déficit (onde a resposta são ações filantrópicas e beneficência social). Ou seja, ela entendida como mendicância e vadiagem (onde a resposta é a criminalização da pobreza, enfrentada com repressão/reclusão), sempre remete à consideração de que as causas da “questão social” e da pobreza encontram-se no próprio indivíduo. Trata-se das manifestações da “questão social” no espaço de quem os padece, no interior dos limites do indivíduo, e não como questão do sistema social. Essa é a perspectiva pós-1835, século XIX — que, a partir da constituição do proletariado como sujeito e de suas lutas desenvolvidas particularmente entre 1830-48, pensa o pauperismo como mendicância TÓPICO 2 | SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO 27 e como crime, tratando assim dela com repressão (MONTÃNO, 2012, p. 274). As inúmeras consequências se evidenciavam com o aumento da pobreza e da exclusão social, das desigualdades sociais, da expansão de situações de risco social, aumento de situações de vulnerabilidade social, precarização do trabalho, baixo salário, diminuição de postos de trabalho, trabalho infantil, crescimento excessivo de imigrações e migrações, explorações diversas. Bottomore (1996, p. 59) especificou o capitalismo como um: Tipo de economia e de sociedade que, em sua forma desenvolvida, surgiu a partir da Revolução Industrial do século XVIII na Europa Ocidental, o capitalismo foi posteriormente conceituado de variadas maneiras por economistas, historiadores e sociólogos (a palavra em si mesma só veio a ser amplamente utilizada no final do século XIX, particularmente por pensadores marxistas). Marx (O Capital, 1867, vol. 1) definiu-a como uma “sociedade produtora de mercadorias”, na qual os principais meios de produção estão nas mãos de uma classe particular, a BURGUESIA, e a força de trabalho também se torna uma mercadoria que é comprada e vendida. Essa concepção foi elaborada no quadro da teoria de Marx sobre a história – sua “interpretação econômica” – e o capitalismo encarado como o mais recente estágio em um novo processo de evolução dos modos de produção e formas de sociedade humanos. Seus aspectos característicos, segundo Marx, eram a capacidade de autoexpansão através da acumulação incessante (a centralização e a concentração de capital), a revolução contínua dos métodos de produção (fortemente enfatizada em O manifesto comunista), intimamente ligada ao avanço da ciência e da tecnologia como uma força produtiva de importância maior, e ainda o caráter cíclico de seu processo de desenvolvimento, marcado por fases de prosperidade e depressão, e também uma divisão mais claramente articulada, ao lado de crescente conflito entre as duas classes mais importantes (ver CLASSE) – a burguesia e o proletariado (ver CLASSE OPERÁRIA). Quando a classe proletária explorada começa a questionar a realidade social e o sistema econômico vigente, sua consciência crítica e de classe social faz surgir e proliferar inúmeros movimentos sociais, revoluções sociais. Dessa forma, os problemas sociais foram politizados, obrigando o Estado a efetivar e garantir os direitos sociais, ou seja, os problemas sociais foram transformados e considerados como expressões sociais da questão social e não mais como resultados do comportamento individual e das instituições sociais. UNI Porém, a questão social, mesmo com o desenvolvimento e crescimento do capitalismo, era considerada alvo de preocupação, pois os “problemas sociais” não deixavam de existir, mas cresciam em diferentes formas e números, sendo alvo de estudo por diversos pensadores. UNIDADE 1 | A GÊNESE DA ASSISTÊNCIA E DA QUESTÃO SOCIAL 28 FIGURA 8 – MOVIMENTOS SOCIAIS FONTE: Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=movimentos+sociais&b iw>. Acesso em: 5 jan. 2015. Os problemas sociais ou disfunções sociais foram politizados pela classe trabalhadora, foram transformados em expressões sociais, em manifestações multifacetadas da questão social. Assim, constatamos que a questão social e suas expressões eram designadas, caracterizadas, conceituadas como: problemas ou disfunções sociais, pois não eram tratadas sob o ponto de vista estrutural da sociedade capitalista. Porém, essa politização e questionamento da classe trabalhadora não ocorreram de forma pacífica, lenta e amigável durante a história, tanto é que as transformações que estavam ocorrendo impulsionaram muitos estudiosos a se debruçarem cientificamente sobre os estudos sociais e, através de pesquisas, mostrassem evidências comparadas e comprovadas da sociedade. Assim, por necessidade, é que a sociologia se caracterizou como uma ciência. A partir da substituição das ferramentas pelas máquinas, da energia humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril, se iniciou o processo de industrialização em escala mundial. Consequentemente, o capitalismo começou a emergir e foi alvo de atenção de diversos economistas e sociólogos. IMPORTANT E Podemos entender o significado de expressões ou manifestações multifacetadas da questão social como aquelas que se apresentam na sociedade com várias facetas, muitas faces, múltiplas aparências, características ou atributos. TÓPICO 2 | SURGIMENTO DA QUESTÃO SOCIAL E SEU CONTEXTO HISTÓRICO 29 Alguns teóricos e profissionais estavam preocupados em organizar o processo de produção para obtenção do crescimento do próprio capital, e outros, em analisar os resultados de tal sistema, seu modo de funcionamento e suas consequências. Assim, seguindo as descrições feitas por Oliveira (2002), podemos relatar alguns dos grandes mestres das ciências sociais, que analisaram a sociedade de sua época: QUADRO 1 – OS PENSADORES CLÁSSICOS DA
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